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O aflorar do Islã - O cotidiano das mulheres muçulmanas em São Paulo

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O aflorar do Islã
O cotidiano das mulheres muçulmanas
em São Paulo
Aline Batista, Julia Alves & Thais Sanches
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O aflorar do Islã: o cotidiano das mulheres muçulmanas em São Paulo 
Aline Batista, Julia Alves, Thais Sanches - São Caetano (SP), 2017. 
166 p. 
 
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social - 
Jornalismo) – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Paulo, 2017. 
Orientadora: Lilian Crepaldi 
 
Modo de Acesso: World Wide Web: 
<http://www.aflorardoisla.com> 
 
1. Mulheres muçulmanas. 2. Islã. 3. Religião. 4. Cultura. 5. 
Conhecimento. I. Batista, Aline II. Alves, Julia III. Sanches, Thais IV. 
Crepaldi, Lilian, Orientadora. 
2 
 
Sumário 
 
 
 
Agradecimentos, 
 
Apresentação
A mulher no Islã
O contato com a religião 
Entre multidões e os pilares
Chahada: o início de uma nova página 
 Oração: abra os olhos e converse com Deus 
 Caridade: purifique a alma e os bens 
 Ramadan: um mês de euforia, luz e súplica 
 Peregrinação: o recomeço 
Não é status, é proteção
“Fazemos por nós”
Construção de laços
Em busca dos sonhos
Posfácio
Glossário
Bibliografia
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A nossos pais, que nos deram exemplos de amor e respeito ao próximo. 
E às muçulmanas de todos os lugares do mundo, que possuem a grande 
coragem de superar barreiras e desafios em nome do que acreditam e, 
especialmente, nos ensinaram mais sobre compreensão e fé. 
 
 
 
 
 
4 
 
Agradecimentos 
 
 
 
Às nossas famílias, que nos deram todo o suporte para cursar uma 
universidade e apoio na realização desta obra. 
 
À Lilian Crepaldi e Roberto Araújo, nossos professores que nos orientaram e 
acreditaram junto conosco neste projeto. 
 
Às mulheres muçulmanas que cruzaram nosso caminho e confiaram em nós 
suas histórias, experiências e sonhos. 
 
À Rosangela, secretária da CDIAL, que nos abriu todas as portas possíveis na 
comunidade muçulmana de São Bernardo do Campo e São Paulo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
“A solidariedade entre as mulheres pode ser uma poderosa força 
de mudança e pode influenciar o desenvolvimento futuro de forma 
favorável não só para as mulheres, mas também para os homens” 
 
Nawal El-Saadawi 
A Face Oculta de Eva: As Mulheres do Mundo Árabe 
 
 
6 
 
Apresentação 
 
 
 
 Há 1,3 bilhão de muçulmanos, um quinto da humanidade. Da África 
Ocidental a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e Índia. Em muitos países, 
os muçulmanos representam a maioria da população local. 
 A nação com maior número de muçulmanos é a Indonésia com, 
aproximadamente, 200 milhões de seguidores do Islã1, que corresponde a 15% 
do número total. 
 Segundo estudo do Instituto americano Pew Research Center, publicado 
em 2015, o Islã é a religião que crescerá 73% entre 2010 e 2050. Os motivos 
que explicam esse ritmo acelerado são a taxa de fertilidade e o fato deste 
grupo religioso ser mais novo que os outros. 
 O Islã é praticado e vivenciado de diferentes maneiras. Cada país é 
naturalmente diversificado em relação ao desenvolvimento histórico e cultural. 
As interpretações e aplicações das crenças mudam em cada sociedade. 
 No Brasil, de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de 
Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 35 mil praticantes da religião. 
De 2000 a 2010, o número de muçulmanos cresceu 29%. Nesse período, a 
população brasileira aumentou em 12,3%, mostrando que a quantidade de 
seguidores do Islã cresceu mais do que o número de habitantes. 
 Em contrapartida, a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil 
estima que o número total de fiéis, em 2015, era entre 800 mil a 1,2 milhão. 
 Dois a cada cinco seguidores do Islã no Brasil são mulheres. Quando 
falamos de revertidos ao Islã, aproximadamente, sete a cada dez são mulheres. 
 
1United States Census, 2007. 
 
7 
 
 Com este livro, nosso objetivo é revelar o cotidiano das mulheres 
muçulmanas que vivem em São Paulo, além de disseminar mais informações 
sobre o Islã. São histórias, experiências, momentos e descobertas. 
 A vontade de falar com as mulheres muçulmanas para entender mais 
sobre suas vidas e desmistificar pré-conceitos foi o grande estímulo para que a 
obra fosse realizada. O que pesquisamos e reportamos nesse livro foi feito a 
partir de nossas percepções no contato com elas. Não é uma totalidade, e sim 
a versão possível da vida das seguidoras do Islã. 
 A obra apresenta a vida de mulheres nascidas no Líbano, descendentes 
de libaneses e brasileiras revertidas ao Islã, de 18 a 50 anos, entre sunitas e 
xiitas. As histórias e as opiniões são de pessoas inseridas nessa cultura. 
 Deixamos de lado conceitos e estereótipos construídos em torno do 
tema para conseguir entender uma realidade diferente das nossas e, assim, 
narrar a vida de uma mulher muçulmana. 
 Dar voz às essas mulheres possibilitou apresentar o assunto de uma 
forma mais profunda e aproximar o leitor de uma religião diferente da 
predominante no Brasil. 
 A expectativa é que as informações e histórias aqui escritas ajudem na 
reflexão contra os pré-conceitos, intolerância e, principalmente, incentivem o 
respeito ao próximo. 
 
 
 
8 
 
A mulher no Islã 
 
 
 
 - Salamaleico2 
É com essas palavras que todos os encontros começam. Recepção com 
sorrisos e olhares curiosos. A secretária do Centro de Divulgação do Islã para a 
América Latina (CDIAL), Rosangela França, revertida ao Islã há 25 anos, recebe 
carinhosamente cada mulher que chega à mesquita Anhangabaú em uma 
manhã fria típica do inverno paulista. 
A mesquita Bilal Ibn Rabah3, ou mais conhecida como Anhangabaú, foi 
aberta em 16 de janeiro de 2016, após o espaço ter sido comprado pelo CDIAL. 
Com sua entrada discreta e à frente do acesso à estação do Metrô, ela recebe 
grande parcela da comunidade muçulmana que vive na região central da 
capital paulista. 
Na entrada, com uma habilidade admirável, Rosangela embala com o 
véu mulheres que ainda não aderiram ao uso e as visitantes. Ela demonstra 
orgulho ao apresentar o item. Uma recepção repleta de sorrisos e um 
sentimento perceptível de felicidade pela participação de mulheres e homens 
no Seminário Islâmico sobre a Importância da Mulher no Islã. Em seu olhar, é 
possível enxergar o brilho em compartilhar um dia tão importante para outras 
pessoas, seguidoras ou não da religião. 
 
2 Em português, Salaam Aleikum significa “Que a paz esteja sobre vós”. É uma expressão de cumprimento 
utilizada pelos muçulmanos. 
3 Um dois mais verdadeiros companheiros do Profeta Muhammad. Ele foi escolhido pelo Profeta para 
realizar os chamados para oração. Bilal foi escravo e acredita-se que nasceu no local que hoje é 
conhecido como Etiópia. 
9 
 
Após terem os cabelos cobertos, há dois armários repletos de pares de 
sapatos onde os presentes devem deixar os seus calçados. Para entrar no 
ambiente sagrado, é preciso ficar apenas com a meia ou descalço. 
 Ao lado dos armários, todos começam a subir as escadas para acesso 
ao segundo andar da mesquita. No último degrau, é possível ver várias 
mulheres envoltas no famoso véu. Cada hijab4 contém uma história. Cada cor 
do véu, uma essência. Cada olhar, uma desconfiança. 
 “Fiquem à vontade, sentem onde quiser e aproveitem o dia conosco”, 
diz Rosangela, entusiasmada, para os visitantes. 
 Seguindo seu conselho, as mulheres sentam nas cadeiras dispostas no 
espaço e os homens, no chão. Durante o discurso das mulheres convidadas 
para o seminário 5 , grandes histórias são contadas e experiências, 
compartilhadas. A emoção e atenção se fazem presente a cada palestra. 
 A professora Dina Hussein falou sobre a importância de Aisha6 no Islã e 
finalizou seu discurso contando uma experiência de vida para asmais de 15 
mulheres que ali estavam. “Um dia, passando pela (Avenida) Paulista, vi uma 
manifestação e em um dos cartazes estava escrito ‘Contra o Islamismo no 
Brasil’. Neste momento, eu me perguntei apenas o porquê, o porquê dessa 
atitude e deste ódio por nós”, afirma, exaltada. Ela questionou a pessoa que 
segurava o banner, mas a resposta não foi positiva, porém a professora não 
discutiu, apenas desejou o bem. Para algumas muçulmanas, atos como esse 
não precisam ser revidados, porque serão julgados no dia do juízo final. 
 De véu branco e sorriso fácil, Aladia não entende bem português. A 
muçulmana ouviu atenta ao seminário na parte da manhã, mas as palavras 
 
4 É um dos tipos de véu. Este modelo esconde os cabelos, as orelhas e o pescoço, e só deixa visível o 
rosto. 
5 Foram sorteadas mulheres das mesquitas de São Bernardo do Campo e Anhangabaú para falar sobre 
diferentes mulheres importantes do Islã e associar com seu exemplo de vida. 
6 Uma das esposas do Profeta Muhammad. 
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inspiradoras e avançadas da maioria ali presente não coincidiram com a 
realidade do seu país de origem. 
 Apontando para a sua cabeça, ela declara: “Na Nigéria, o homem está 
aqui em cima”. Mudando o movimento e trazendo as mãos para perto dos pés, 
ela completa: “A mulher fica aqui embaixo”. A nigeriana explica que as 
mulheres em seu país devem obedecer ao que o marido diz. “Se o marido falar 
que não podemos fazer xixi, nós não vamos”, comenta. 
 Najila Hasan, jovem de origem libanesa, trabalha em uma agência de 
publicidade muito conceituada de São Paulo. “Na agência, eu me encontrei. 
Existem muitas personalidades diferentes e, por isso, ninguém fica tão 
surpreso ao ver uma muçulmana que trabalha de véu”. A professora Salwa 
Saifi, também libanesa, acrescenta que as mulheres podem trabalhar e é 
importante esclarecer como a mulher muçulmana pode ser inserida no 
mercado de trabalho. 
 O Sheikh7 libanês sunita, Kamal Chahin, de 32 anos, empolga com as 
palavras. “A mulher é como um coração. Nosso corpo não funciona sem o 
coração e a sociedade não funciona sem a mulher, elas importam”, ressalta. 
Alguns homens muçulmanos acreditam na real importância da mulher 
muçulmana e enxergam-nas como uma joia. Essas palavras fazem os olhos das 
mulheres brilharem e aplaudirem. 
 Outros discursos deixaram as mulheres desconfortáveis, revelando que 
alguns homens muçulmanos também veem as mulheres como submissas e 
que devem ser obedientes aos seus maridos. 
 Quando o relógio apontou 12h30, as mulheres foram para um lado 
separado da mesquita (longe dos homens) para iniciar suas orações. Todas se 
voltaram em direção à Meca e começaram as orações seguindo o 
 
7 O uso da expressão Sheikh é aplicado para denominar o líder de uma comunidade muçulmana. 
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procedimento necessário, com exceção das mulheres que estavam em 
período menstrual. 
 Feita a oração, é chegada a hora do almoço. Todas se juntaram para 
comer. O Sheikh Kamal colocou uma mesa no canto e trouxe quatro bacias 
brancas, que tinham frango, arroz, feijão, salada de alface e tomate, além de 
um pão sírio para completar a refeição. Agradecer pela comida é o assunto 
neste momento. 
 No fim do evento, Rosangela se despede das muçulmanas presentes. 
“Espero que tenham gostado de hoje”, diz, com um sorriso largo e abraços 
aconchegantes. 
 Para compreender a vida das seguidoras do Islã, é preciso ir além da 
abordagem superficial e entender o contexto em que essas mulheres estão 
inseridas. Algumas muçulmanas pertencem a uma cultura complexa, em 
especial pelo fato da interpretação dos livros sagrados que orientam os 
seguidores do Islã. 
 Os especialistas na religião acreditam na existência de grupos com 
diferentes visões sobre a mulher. Há os que afirmam que a opressão e 
subordinação da mulher estão relacionadas aos ensinamentos do Islã. Outros 
consideram que a religião é igualitária para todos os gêneros. Os extremistas 
acreditam que não exista nenhuma opressão. E também há aqueles que 
consideram que a opressão da mulher não é um problema existente apenas 
nas comunidades muçulmanas. 
 Países como Arábia Saudita, Afeganistão, Paquistão, Emirados Árabes 
Unidos, Egito, Iêmen e Irã são destaques quando tratamos sobre o assunto de 
diferença entre gêneros. Contudo, nações como Turquia, Tunísia, Argélia, Síria 
e Líbano têm avanços legais e sociais para reduzir essas diferenças. 
 Professora, doutora em História Social pela USP, especializada em 
movimentos sociais de mulheres muçulmanas, Cila Lima explica que a origem 
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geográfica e social da mulher muçulmana é um fator essencial para 
compreender suas vidas e os fatos que as envolvem. 
 A educação é um exemplo. Na Turquia e no Líbano, mais de 85% das 
mulheres com até 24 anos são alfabetizadas. Já no Paquistão e no Marrocos, 
menos de 61% alcançam essa oportunidade. O casamento forçado também 
apresenta diferença conforme o território. No Iêmen, este tipo de casamento 
não é uma lei civil, mas é uma lei implantada pela sharia8. “Na Turquia, são 
proibidos casamentos forçados. Claro que, mesmo sendo proibido acontece 
este tipo de união, mas não existe uma lei dizendo isso, geralmente acontece 
por causa de famílias fundamentalistas ou muito tradicionais”, acrescenta Cila. 
 O Sheikh Kamal reforça que os casamentos arranjados não têm a ver 
com a religião, mas com uma questão cultural de cada país, por isso alguns 
têm isso como uma norma da lei sagrada e outros não. 
 A poligamia, uma prática muito comum na maioria dos países 
muçulmanos, foi proibida por lei na Turquia e na Tunísia. “Em países como Síria 
e Líbano, onde há observância social quanto ao cuidado justo às quatro 
esposas, essa prática se limita às famílias mais abastadas ou ricas”, comenta 
Cila. 
 O Islã é uma religião que engloba diferentes culturas locais e, por isso, 
cada pessoa tem uma ideia do que é a mulher muçulmana. Costumes locais 
podem ser facilmente relacionados com a religião. 
 Não há apenas uma condição específica da muçulmana: cada 
sociedade apresenta suas inter-relações com as estruturas econômicas, 
sociais e políticas. 
 A mulher que utiliza o véu no Islã pode adquirir o item por uma 
identidade religiosa, cultural, símbolo de opressão ou tendência de moda. 
 
8 Código de leis islâmicas que agem como um manual ou guia sobre comportamentos do muçulmano. 
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Estes motivos também são variáveis de acordo com o país em que a 
muçulmana está inserida. 
 A religião traz grandes referenciais de mulheres, sendo as principais 
Khadija, Aisha, e Fatima — respectivamente esposas e filha do Profeta 
Muhammad9. Muitos dos hadiths10 foram comunicados por Aisha, a terceira e 
mais famosa esposa do Profeta, e trazem a importância da mulher: exercer um 
papel essencial no desenvolver da religião. O Islã institui que a mãe é muito 
importante para a constituição da família, porque são elas que transmitem a 
religião. 
 Na família, as mulheres teriam, portanto, uma missão de transmitir 
conhecimento para os filhos e a responsabilidade pela educação. “Não há algo 
que diz que a mulher não pode trabalhar no Islã, mas desde que ela não deixe 
de lado suas obrigações como mãe”, contou a professora Salwa Saifi. 
 No Islã, existem quatro escolas de jurisprudência que foram feitas por 
sábios da religião que viveram após o Profeta Muhammad e interpretam seus 
atos (relatados na Sunnah)11. 
 Essas escrituras não alteram os mandamentos do Alcorão, que são 
sagrados e permanentes, mas abrem espaço para interpretações das fontes 
religiosas sobre questões não definidas na Sunnah e no Alcorão. Cada 
muçulmano é livre para escolher a interpretação que acha melhor. 
 Existem duas divisões muito conhecidas no Islã: os sunitas e xiitas. 
Atualmente,15% dos muçulmanos são xiitas (minoria). Essa divisão começou 
após a morte do Profeta Muhammad, que não deixou nenhuma indicação do 
seu sucessor e, a partir disso, criaram-se as controvérsias. 
 A minoria dos muçulmanos, os xiitas, acreditava que a sucessão do 
Profeta deveria ser o próximo da linhagem familiar, no caso Ali, genro de 
 
9 Nesta obra, adotamos trataremos o Profeta como Muhammad (palavra árabe). 
10 Ditos do Profeta Muhammad. 
11Segunda principal referência da religião (narra a vivência do Profeta Muhammad). 
 
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Muhammad. A maioria dos muçulmanos, os sunitas, acreditava em uma 
sucessão mais democrática: qualquer bom muçulmano poderia ser o Profeta 
que conseguiria alcançar o contato com Allah, era necessário apenas o 
consentimento da comunidade. 
 Dessa incompatibilidade, surgiu a divisão entre xiitas e sunitas. As 
diferenças entre os dois grupos são as leis, rituais e organização religiosa. “Os 
xiitas não são muçulmanos. Eles saíram dos ensinamentos do Alcorão e 
Sunnah, eles seguem outros líderes religiosos que não estão relacionados ao 
Islã”, diz o Sheikh Kamal, quando questionado sobre a divisão dos muçulmanos. 
 “Acho os sunitas normais, são muçulmanos como a gente, apenas 
decidiram seguir outra pessoa após a morte do Profeta Muhammad. Eu tenho 
uma amiga sunita e, praticamente, nossos costumes são parecidos”, conta 
Reine Sleiman, xiita de 18 anos. 
 Além dos xiitas e sunitas, o Islã também tem os revertidos à religião. As 
pessoas que se tornam muçulmanas são chamados de revertidos e não 
convertidos. Isso porque eles acreditam que nascemos muçulmanos e que, ao 
aceitar o Islã, a pessoa está voltando a sua origem. 
 Para explicar as experiências das mulheres desses diferentes grupos, é 
preciso dar voz para elas. A partir desse momento, começa um mergulho na 
vida de cinco muçulmanas que conduzem essa narrativa, além de outras que 
colaboraram com suas histórias. 
 
 
O contato com a religião 
 
“Após essa vida, tudo se ameniza e o que nós levamos são apenas nossas ações” 
- Gisela Carvalho 
 
 Aos 15 anos, Gisela Carvalho se casou com um primo distante, 20 anos 
mais velho. O casamento foi realizado de forma consciente e seguindo um tipo 
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de tradição pernambucana. Tudo era muito bom. Tinha um marido que 
cuidava dela, não deixava faltar nada em casa. De certa forma, não tinha 
motivos para reclamar, porém, nada parecia fazer sentido. Faltava algo e ela 
sentia bem no fundo de sua alma. Desde criança, ela acreditava em algo maior 
do que os seres humanos, uma força que controlava tudo e todos. Por anos, 
ouviu pessoas falarem sobre Deus, sem entender realmente o que era aquilo. 
 Enquanto crescia, passou por diversas religiões. Foi membro da Igreja 
Batista, Testemunha de Jeová, Umbanda e outras crenças. Em seu interior, 
nada encaixava. Estava infeliz. Era uma busca incessante para dar sentido ao 
que estava acontecendo em sua vida. 
 Nessa tentativa de fazer parte de algo maior, de forma despretensiosa, 
encontrou o Islã. Antes de fazer o testemunho, antes de entender sobre esse 
código de vida religioso, ela começou o Ramadan12. 
 No fim daqueles 30 dias, algo havia mudado. Como uma semente, o 
amor pelo Islã foi germinando até se tornar a grande certeza de sua vida. “O 
que eu ganhei dentro de mim foi muito maior do que um simples prazer. A 
felicidade que tinha no coração era indescritível. Comecei a chorar e falar: eu 
quero isso para mim e não sei como vou fazer”, explica, empolgada. 
 Uma viagem que barganhou com o marido, na época, foi o grande 
começo de sua vida no Islã. Após alguns desencontros, ela fez seu itinerário 
para o Marrocos. O idioma predominante é o árabe, língua que, na época, não 
dominava. Localizado no norte da África, a religião predominante do país é o 
Islã. Sem entender o idioma, e com um inglês básico, Gisela embarcou. “Repeti 
para mim mesma: ‘Meu Deus, o que eu estou fazendo? Mas é por Deus’. E fui 
com a cara e com a coragem”, relembra. 
 
12 Jejum obrigatório realizado no nono mês lunar do calendário islâmico, o qual se acredita ser o mês 
que Allah fez a primeira revelação a Muhammad. É um mês de oração, renovação, e um dos cinco pilares 
do Islã. 
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 Ela estava preparada para uma aventura. Antes de chegar, leu sobre a 
cultura local e fez questão de se vestir da forma mais coerente com o que os 
marroquinos estavam acostumados: vestes islâmicas, ou seja, mais compridas 
e que não marcam o corpo. Ainda no aeroporto da Espanha, preparada para 
embarcar para o Marrocos, uma mulher se aproximou. “Deus foi tão 
misericordioso comigo que me apresentou essa moça marroquina”, comenta. 
Essa ‘moça’ se chama Naima. A conversa foi bem simples, já que nenhuma das 
duas era fluente em inglês. 
 “Você não é daqui. Para aonde você está indo?”, indaga Naima. 
 “Estou indo para o Marrocos, mas para onde exatamente não sei”, 
explicou Gisela, mostrando o endereço que estava escrito em árabe. 
 Ela levou várias frases no idioma para que os nativos entendessem com 
mais facilidade o que ela estava dizendo. 
 “Não, você vai para minha casa, sozinha você não fica”, diz Naima, após 
olhar o endereço. 
 “Como assim?”, responde Gisela, demonstrando espanto. De certa 
forma, ela não estava acostumada a esse tipo de abordagem. Perguntava-se: 
quem chama alguém para passar dias em sua casa sem ao menos conhecer o 
indivíduo? Naima mostrou fotos da família e finalizou: “Você estará segura, 
você não vai para o albergue”. 
 Gisela aceitou a oferta. Que bom que o fez. Com o coração na mão, ela 
seguiu Naima até sua residência. Esse foi o primeiro contato dela com uma 
muçulmana. O que foi apreensão tornou-se uma experiência incrível. Por 15 
dias, Gisela viveu na casa de Naima. “Eu nunca fui tão bem cuidada em toda 
minha vida. Ela cuidou de uma maneira que acho que nem minha mãe cuidou 
de mim”, comenta Gisela pausadamente, como se tentasse exprimir pela voz 
toda a gratidão que tem por esses dias no Marrocos. 
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 Em um dia qualquer, Naima e sua família levaram Gisela para conhecer 
a principal mesquita de Casa Blanca, a maior cidade do país. A mesquita 
Hassam II é a segunda maior do planeta e um dos principais cartões-postais 
do Marrocos. Seu minarete13 tem 200 metros de altura, o mais alto do mundo. 
Como Gisela não era muçulmana na época, ela não pôde entrar na construção, 
mas, de certa forma, não foi necessário. Do lado de fora, ouviu o adhan, a 
chamada para a reza. “Eu nunca tinha escutado o adhan na minha vida. 
Quando eu ouvi, eu senti meu coração tremer. Eu não entendi nada, mas, para 
mim, aquilo que estava sendo dito era a verdade, e eu queria aquilo na minha 
vida”, explica Gisela. 
 Depois de fortes experiências, Gisela estava de volta ao Brasil. Seu 
casamento não durou muito depois disso. De alguma forma, não estava bom. 
Sua vontade de se reverter também foi um empecilho para continuar, já que 
seu ex-marido não aceitava sua escolha. Não muito tempo depois, ela voltou 
ao Marrocos. “A mãe da Naima começou a me passar coisas básicas, a colocar 
o lenço, a rezar do jeito dela”, comenta. 
 Após ter a certeza de que aquilo era o que queria, em agosto de 2011, 
ela estava novamente em São Bernardo do Campo, município em que morou 
por 15 anos e que, por todo esse tempo, nunca havia visto a mesquita da 
região. “Quando cheguei e procurei o endereço da mesquita mais próxima, 
apareceu essa, não estava acreditando. Eu tive que sair do meu país para 
aprender o que é o Islã e precisei voltar para estudar o Islã dentro do Brasil”, 
diz, curiosa. 
 Então ela foi até a mesquita. “Eu já fui de véu e me explicaram o que 
precisava saber. Larguei tudo e embarquei de cabeça no Islã. Finalmente, 
encontrei a verdade que estava procurando na minha vida”, fala Gisela, com13 Torre alta nas mesquitas onde se anunciam os chamados para oração. 
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uma convicção inabalável. Através de sua voz, o Islã se torna tão real como 
algo que se pode tocar e sentir. 
 “Eu vivi os dois mundos, o mundo antes de ser muçulmano e depois”, 
comenta Gisela, com 37 anos atualmente. 
 
 
“Essa é a Ana Paula, ela veio conhecer a mesquita e disse que só falta um dedo 
para ela se reverter”. “Então vamos cortar esse dedo fora”. 
 
 A primeira lembrança do Islã são algumas muçulmanas passando na rua 
vestindo seus hijabs. “Que lindas, pensei”, mas Ana Paula ainda era nova e de 
outra religião. Não que isso significasse sua completa devoção: de certa forma, 
seguia por influência da família. Após completar 18 anos, Ana Paula deixou a 
religião evangélica de lado. Ela queria algo mais concreto, para se sentir, 
realmente, completa. 
 Durante a transmissão da novela O Clone (2001), ela pesquisou mais 
sobre a cultura árabe e o Islã. O suficiente para que ela conhecesse o que 
ambos significavam e se encantasse ainda mais. Com o falecimento de sua 
mãe, Ana Paula sentiu que precisava entender outra religião diferente da 
professada por sua família, que era Testemunha de Jeová. “Passei por 
Umbanda, Espiritismo, mas foi o Islã que me tocou mais”, comenta. 
 Mesmo com pouca idade, Ana Paula já era casada e tinha uma filha, 
Carolina. Sua vontade de acreditar em algo que lhe parecesse realmente 
verdadeiro venceu todas as barreiras. Através de uma muçulmana com a qual 
conversava pelo Facebook, ela conheceu a mesquita de São Bernardo. No 
mesmo dia, entrou em contato com o CDIAL, que fica localizado ao lado da 
mesquita e é uma das principais portas de entrada para a comunidade 
muçulmana da região. 
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 “Estou querendo ir conhecer a mesquita”, falou Ana Paula, acanhada. 
“Vem agora, pode vir”, responde Rosangela, secretária do CDIAL. No mesmo 
dia, pela tarde, lá estava Ana Paula. A ansiedade era tanta que não esperou 
mais nenhum dia. 
 “O que você achou? Gostou? Quer se reverter?”, questiona Rosangela, 
agitada depois de levá-la em um tour pela mesquita. “Não sei se quero me 
reverter, mas quero conhecer mais. Pelo que pesquiso, pelo que vejo, eu gosto 
muito e tudo me traz uma segurança que esse é o caminho certo”, responde 
Ana Paula. Por algumas horas, ela conversou com Rosangela e um dos Sheikhs 
que ficam no local. 
 Esse foi a primeira visita, de muitas que vieram. Por cinco meses, ela 
frequentou a mesquita. As irmãs, os Sheikhs e a comunidade a acolheram. Em 
salas, dentro do CDIAL, Ana Paula passava as tardes aprendendo sobre o Islã. 
Com o tempo, o amor pela religião foi crescendo. As dúvidas eram sanadas. A 
vontade de se reverter crescia. 
 Em maio de 2014, ela se tornou oficialmente muçulmana, após realizar 
a Chahada14. Por anos, ela sonhou em ter uma religião em que acreditasse 
realmente, e que se identificasse. O momento certo apareceu. 
 
 
 
“Para mim, soa natural, eu não lembro quando aprendi sobre o Islã, é como se já 
nascesse com isso em mim” - Najila Hasan 
 
 Com a voz suave e riso fácil, Najila Hasan, de 24 anos, é uma menina 
que exala pureza. Não que ela seja ingênua, na verdade, ela sabe se cuidar 
 
14 Testemunho de fé realizado para se tornar muçulmano. 
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muito bem. Parece que ela e o Islã foram feitos um para o outro, já que se 
combinam tanto. 
 Najila é descendente de libaneses, nascida do amor entre dois primos. 
Casamentos entre primos são comuns no Líbano. Ela nasceu em São Paulo, 
local em que seu pai foi criado. Ela vem de uma família muçulmana tradicional, 
mas foi criada para fazer seu próprio caminho e ultrapassar obstáculos. Sua 
religiosidade é incontestável. Passa por cima de curiosidades momentâneas, 
sonhos e fantasias pelo Islã, e o faz com amor e certeza. Sempre foi assim. 
 Escuta sobre Deus e o Islã desde criança. Na verdade, nem consegue 
lembrar-se exatamente quando foi que começou a aprender sobre, como se já 
tivesse nascido sabendo, como uma lembrança antiga que, em alguns 
momentos, confunde-se com um sonho. 
 Najila estudou em uma escola islâmica desde a Educação Infantil até o 
terceiro ano do Ensino Médio. Nessa escola, havia aulas de religião para os 
muçulmanos. Lições similares a uma aula de teologia, ensinando e aplicando 
as diretrizes do Islã para crianças e adolescentes. Nessas aulas, decorava o 
Alcorão, aprendia a rezar, entendia a história de sua religião. Então, o Islã se 
tornou “seu”. “Desde pequena estudei lá, então já fui introduzida na religião e 
foi muito mais fácil”, explica. 
 Enquanto ela fala sobre religião e como é ser muçulmana em diferentes 
locais do mundo, já que sempre viaja para o Líbano, não é possível pensar em 
nada, apenas: “era para ser”. 
 De certo modo, nascer muçulmana em um país ocidental a fez escolher 
caminhos diferentes, porém, importantes para sua vida espiritual. Najila 
cursou Publicidade e Propaganda em uma grande universidade, trabalha em 
uma agência reconhecida, sai com as amigas de faculdade pelo menos uma 
vez ao mês, anda pelo shopping quando está entediada aos fins de semana, 
dirige, é livre, e segue o Islã à risca. 
21 
 
 Seu hijab não foi imposto, pelo contrário. “Sempre gostei, sempre quis, 
sempre achei que era o certo, que era o meu momento de usar”, diz, com 
firmeza. Seu jejum não é supervisionado, suas rezas não são cobradas por 
ninguém. Seu dever, sua relação é com Deus, apenas. Tudo que faz, os 
caminhos que segue, e as escolhas tomadas são pensados e planejados para 
que suas obrigações como muçulmana não fiquem em segundo plano. 
 Seu destino já estava traçado. Não havia possibilidade de ser outra 
pessoa e perder seu sorriso largo e olhos grandes, sua personalidade 
marcante e jeito brincalhão. Ela sabe quem é, o que tem a oferecer e tudo se 
encaixa perfeitamente. Najila é a cara do Islã. Do verdadeiro Islã. 
 
 
“Respeito e amor ao próximo, sempre. Independente das diferenças, deve haver 
respeito mútuo” - Fatima Cheaitou 
 
 Nascida na Bahia, descendente de libaneses, youtuber, estudante de 
Jornalismo, a mais velha de três irmãs. Dá para ficar um tempo falando sobre o 
que Fatima Cheaitou, 19, é e faz. Ela é incrivelmente disposta a disseminar 
informações sobre o Islã, principalmente para pessoas que estão com vontade 
de entendê-lo. Aproximadamente 1.900 pessoas seguem-na no Facebook e 
quase 4 mil no YouTube com seu canal Fala, Fatuma. Seu papel de revelar o 
verdadeiro Islã está dando certo. 
 Sua família é o grande alicerce de seu conhecimento sobre a religião, já 
que até cerca de 9 anos, não tinha contato com outros muçulmanos. Seu 
amor cresceu conforme ela amadurecia e enxergava o mundo ao seu redor. 
Com certeza, ela é uma pessoa determinada na causa “Islã”. Não que ela 
queira arrecadar revertidos, não é isso, ela quer que as pessoas vejam o que 
ela vê, todo esse amor e toda essa caridade da comunidade muçulmana. “Eu 
22 
 
desejo que chegue um dia que as pessoas entendam o que realmente é o Islã. 
Espero muito que eu possa ser um dos meios para isso, com o canal e as 
dúvidas que eu tento tirar, mas o que importa é que as pessoas 
compreendam a religião, vindo de mim ou dos outros”, expressa. 
 Ela é feliz com o que faz. Ela é satisfeita com sua religião. Seus olhos se 
iluminam ao falar do Islã. 
 Atualmente, Fatima mora no Líbano próximo a sua família. Aliás, o 
conhecimento e amor que adquiriu sobre sua religião foi um dos principais 
motivos de representá-la na web. Seu jeito meigo e atencioso encanta a todos 
que passam por seu caminho. Nada a impede de continuar sua missão: 
mostrar que a mulher muçulmana não é oprimida, que sua submissão é a 
Deus e que ela deve estudar e trabalhar, sim. 
 Ela não precisaria ter essa ‘tarefa’. Ela conhece a realidade de sua 
religião, o amor que sua família e amigos lhe passam e o quanto é livre parafazer tudo que quer. “A não ser voltar às 4 da manhã para casa, mas não acho 
que tenha algo que me restrinja”, diz, em meio a risos. Ela é essa menina: 
divertida, feliz, disposta, mas que também sabe falar sério. Tem maturidade 
para ouvir sua família, conversar abertamente sobre assuntos importantes, 
ensinar e aprender com as diferenças. 
 Humildade, amor ao próximo e conhecimento. É isso que aprende com 
sua religião. Como muçulmana que nasceu e viveu boa parte de sua vida em 
uma sociedade ocidental, ela sabe sobre as diferenças que existem entre as 
pessoas e entende muito bem como transformar certos muros em pontes. 
 
 
“A coisa mais importante para nós é a família. As pessoas passam na nossa vida e 
quem marca realmente é a família, ou quem a gente considera família” 
- Reine Sleiman 
 
23 
 
 Aos 18, a caçula, única menina entre quatro irmãos, Reine Sleiman já 
tem muitas histórias para contar. Apesar dos conselhos dos pais, ela escolheu 
cursar Nutrição e preferiu seguir os próprios instintos. Seu brilho nos olhos, 
risada leve e fácil contrastam com seus momentos mais sérios enquanto 
explica sobre sua infância no Líbano, mas, mesmo assim, não perde a 
animação. Reine é do tipo de menina que faz horas parecer minutos. 
 Seu pai veio para o Brasil e decidiu ficar a trabalho, quando ainda era 
muito nova. A cada dois meses, ele voltava ao Líbano, onde permanecia por 
mais 30 dias. Enquanto isso, ela ficava com sua mãe, irmãos e avós. A família é 
a coisa mais valiosa em sua vida e foi através deles que ela aprendeu sobre o 
Islã e sobre as doutrinas da religião. 
 Aos 7 anos, Reine presenciou a Guerra do Líbano15 em 2006. Com 
pouquíssima idade, ela não entendia muito o porquê precisou deixar sua casa 
e passar as próximas semanas indo para a moradia de diversas pessoas da 
família. Para ela, isso até parecia férias. “Imagina, uma casa cheia de crianças? 
A gente subia no telhado e ficava vendo a fumaça dos bombardeios”, diz. Ela e 
seus primos brincavam de adivinhar o que aquela fumaça parecia. “Nossa, 
parece um camelo”. Ela e sua família ficaram próximos a cidades católicas que 
não estavam sendo atacadas, por um tempo. 
 Da casa do tio, para casa do avô, para a casa da tia, para Turquia, depois 
Brasil. Esses trajetos não significavam muito para ela naquela época. A religião 
e a fé foram grandes alicerces para a família passar segurança a todas as 
crianças, mas nem sempre era possível conter as emoções. “Quando meu tio 
foi nos levar para o aeroporto, ele começou a chorar e eu falava: ‘Calma, calma, 
a gente já volta’. Eu achava que Brasil era do lado, sabe? Nem sabia que 
 
15 Conhecida como Guerra de Julho, o conflito entre o norte de Israel e o sul do Líbano começou no dia 
12 de julho, quando dois soldados israelenses foram sequestrados por soldados do Hezbollah. Em 
resposta, Israel começou um ataque forte por mar, ar e terra no sul do Líbano e Zona Sul de Beirute. 
Estradas, construções, pontes foram atingidas e destruídas. O cessar-fogo aconteceu no dia 14 de agosto, 
deixando 1.200 mortos, 5 mil feridos e quase um milhão de refugiados. 
24 
 
falavam português, achava que todo mundo falava árabe”, conta. Essa 
inocência de criança não se perdeu mesmo vivendo tempos de terror, como 
quando ficou sabendo que seu lar, o prédio que morava em Beirute, caiu 
totalmente. Desapareceu. 
 Logo que chegou ao Brasil, a guerra terminou. Nessa mesma época, aos 
7 anos, Reine já sabia praticar sua religião. “Eu já rezava direito e fazia jejum 
porque gostava”, diz, orgulhosa. 
 Ela consegue demonstrar o quanto o Islã é importante para ela e sua 
família, por isso sente falta do Líbano. “Minha família é o que mais sinto falta 
de lá, por isso queria voltar”, comenta. Em todos os eventos, a família se reunia. 
Era a maior felicidade ver os primos juntos. 
 Reine começou sua história em um momento de guerra e tristeza, mas 
nada disso influenciou em sua alegria e vontade de viver. Dessas experiências, 
ela consegue extrair apenas o lado positivo e acredita que isso é ser 
muçulmana. Essa ligação com Deus é clara. Tudo que acontece e aconteceu 
estava nos planos Dele. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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A porta de entrada da mesquita de São Bernardo do Campo. Fica aberta até o último 
horário de oração. (FOTO: Thais Sanches) 
 
 
 
 
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O Alcorão Sagrado traduzido para o português disposto em uma prateleira no local 
onde as mulheres fazem suas orações na mesquita Brasil em São Paulo. 
(FOTO: Aline Batista) 
 
 
 
 
 
 
 
 
27 
 
 
Capítulo 2 
 O relógio ainda não marcava 13h e a Rua Henrique Alves dos Santos, 
em São Bernardo do Campo, estava tomada por homens e mulheres. 
Motoristas passavam com cautela pelas ruas estreitas na esperança de 
encontrar uma vaga para estacionar. Quem estivesse passando por ali pela 
primeira vez diria se tratar de algum evento especial, mas todas as sextas-
feiras, nesse mesmo horário, o cenário é igual. É no número 205 que está 
localizada a mesquita Abu Bakr Assidik16, a única do Grande ABC. 
 Por volta do ano 622, em locais com a população de maioria islâmica, 
eram construídas cidades ao redor de grandes mesquitas. Muçulmanos se 
reuniam cinco vezes ao dia para as rezas em horários definidos. As grandiosas 
construções amparavam a comunidade para confraternizações e aulas sobre 
religião, uma espécie de escola sobre o Islã. 
 Esses princípios não ficaram presos no passado. Desde a expansão de 
comunidades muçulmanas ao redor do globo, as mesquitas foram construídas 
próximas de ummas17. São Bernardo, por exemplo, abriga aproximadamente 
250 famílias libanesas. Sheikh Kamal nasceu no Líbano e vive na cidade 
localizada no Grande ABC há sete anos. Ele explica que muitos imigrantes 
árabes da região são primos, parentes distantes e conhecidos. “Eu vim para o 
Brasil por curiosidade e também para divulgar o Islã, mas fora isso tem uma 
cidade inteira aqui no país que é minha cidade do Líbano”, comenta Kamal. 
 
16 Nome do primeiro califa da religião e companheiro do Profeta Muhammad. 
17 Comunidades muçulmanas. 
28 
 
 De longe, avistam-se duas torres, cada uma com aproximadamente 27 
metros, altas o suficiente para chamar a atenção de motoristas e pedestres. A 
mesquita foi construída no fim de 1980 e é mantida pela Sociedade Islâmica 
de Beneficência Abu Bakr Assidik. O lema do local é: “Em nome de Deus 
clemente misericordioso”. 
 As portas e portões da mesquita permanecem abertos dia e noite até o 
último horário de oração. O convite para entrar é irrecusável. A beleza do local 
se realça durante o dia quando a luz do sol passa pelas grandes janelas ao 
redor da construção. Da porta principal, um grande salão é revelado, há 
algumas cadeiras, e é revestido com um carpete vermelho. Em certos horários, 
o salão fica tão cheio de homens muçulmanos que a cor do chão sob seus pés 
desaparece. Do lado direito está o minbar18. Do alto, o Sheikh ou imam19 
transmite seu conhecimento e ministra as orações de sextas-feiras, chamada 
de jummah, dia para a prática em comunidade, sendo o melhor dia da semana 
aos olhos de Deus. 
 Muçulmanas não são obrigadas a rezarem na mesquita, porém é 
possível encontrar um grande número delas presentes. Elas rezam em um 
local diferente. Em São Bernardo, ficam acima dos homens. A separação é 
importante para que não haja contato visual. Tudo isso para que sejam 
evitadas distrações enquanto a Palavra de Deus é pronunciada. 
 Elas entram por uma porta atrás da mesquita. Antes de pisar no carpete, 
os sapatos são removidos. Botas, sapatilhas, salto altos e calçados infantis são 
organizados em uma espécie de sapateira. Todas as mulheres (muçulmanas 
ou não) precisam estar devidamente cobertas. Mãos até o pulso e o rosto 
podem ficar à mostra.No caso dos homens, é inválido rezar com umbigo, 
costas e joelhos descobertos. 
 
18 Uma espécie de púlpito, composto por escadas que levam até uma pequena plataforma, podendo 
ser feito de madeira, mármore ou alvenaria. 
19 Sábio, estudioso da sharia, aquele que memorizou o Alcorão, responsável pela mesquita. 
29 
 
 As muçulmanas também rezam sobre um carpete com linhas vermelhas 
diagonais que demarcam a direção para Kaaba 20 , em Meca 21 . Não se 
direcionar a Kaaba invalida a oração22. À direita da porta, um armário aberto 
com diversos tipos de hijabs e saias até os pés, aparatos necessários para que 
a oração seja válida. 
 Na entrada da mesquita, estão expostos diversos fones de ouvido, um 
aviso de que o sermão será em árabe. Os fones são disponibilizados para os 
revertidos ou descendentes de árabes que ainda não são fluentes na língua do 
Alcorão. O entendimento da Palavra de Deus é importante. 
 Nota-se esse cuidado com os revertidos e interessados pelo Islã desde a 
primeira visita à mesquita. Há quatro anos, Ana Paula marcava sua primeira ida 
ao local e, desde então, não parou de frequentar. O encantamento pela 
religião lhe custou caro, um divórcio, e a reprovação de sua família, mas, por 
outro lado, conquistou muitos amigos. “Até hoje, qualquer dúvida que eu 
tenho eles me explicam. Minha família se distanciou de mim, mas eu ganhei 
outra”, reflete Ana Paula. 
 Em São Paulo, existem mais de 30 centros islâmicos espalhados pelo 
estado. No Brasil, esse número chega a aproximadamente 100 locais. Há 
diferentes tipos de lugares em que muçulmanos rezam. Quando não existem 
mesquitas por perto, são construídas mussalas, uma espécie de sala para 
oração. Entre janeiro e setembro de 2015, cinco centros islâmicos foram 
abertos em São Paulo para atender à população muçulmana, que cresce a 
cada ano. Em São Bernardo, por exemplo, o número de revertidos aumentou 
 
20 Primeira casa de adoração de Allah. O local foi construído por Ismael, filho do Profeta Abraão. 
21 Também conhecida como Makkah é a primeira cidade sagrada do Islã fundada por Abraão e seu filho 
Ismael por ordem divina. 
22 De acordo com o livro do Sheikhh Al-Albani “Descrição da oração do Profeta Muhammad Do começo 
ao fim”, apenas em alguns casos o não direcionamento a Kaaba não invalida a oração. “Soldados na 
oração do medo ou durante a guerra. Quem estiver incapacitado, doente, ou estiver em um navio, carro, avião, 
se estiver andando montado em um cavalo”. 
30 
 
em 30% em 2014, e a quantidade de imigrantes ou descendentes de 
muçulmanos, mais ainda, 80%. 
 Esse salto no número de revertidos e de novas construções para oração 
islâmica foi estimulado por novas formas de divulgar o Islã no país. Essa 
disseminação de informação ocorre de diversas maneiras: aulas de árabe 
oferecidas para comunidade, feiras de comida árabe, inclusão de refugiados 
muçulmanos na comunidade, Sheikhs brasileiros que se propõem a ensinar a 
Palavra de Deus e sobre os livros sagrados, entre outros. 
 O Alcorão Sagrado é a principal fonte de ensinamentos e fé para os 
muçulmanos. O livro revela as palavras de Allah que, por intermédio do anjo 
Gabriel, chegou ao Profeta Muhammad. O Alcorão existe há mais de 15 
séculos, e até hoje se encontra na língua original: o árabe. No livro, estão 
descritas a criação do universo, do homem, de leis que comandam aspectos 
sociais, morais, e econômicos. Sabedoria, doutrinas, rituais e leis são a 
essência do Alcorão. Com mais de 144 capítulos (surah ou surata), o Alcorão 
contém mais de 6.600 versículos (ayat). 
 A Sunnah ou Suna é o segundo livro mais importante para os 
muçulmanos. O livro contém a maneira de vida do Muhammad, seus hadiths 
(dizeres), realizações, ensinamentos e costumes praticados por ele durante 23 
anos, seu tempo como mensageiro de Deus. A Sunnah é usada pelos 
muçulmanos para que consigam seguir um caminho correto dentro dos 
valores do Islã. O livro traz explicações do que está escrito no Alcorão, como a 
prática da teoria. O que difere os sunitas e xiitas, nessa questão, são as 
interpretações dos hadiths. 
 Há outra porta de entrada para o Islã em São Paulo (fora a busca por 
conhecimento dos grandes livros sagrados) e é por meio da mesquita Brasil. 
Hoje, é considerada uma atração turística na cidade por conta do tempo em 
que está construída e pela exuberância do local. A mesquita segue os padrões 
31 
 
e a riqueza dos templos muçulmanos construídos no Oriente Médio. O local é 
alto e iluminado, seja pela luz que entra através das janelas, ou pelas 
incontáveis lâmpadas e lustres pendurados no teto e pilares da construção. O 
carpete do local é verde com listras em um marrom claro. No teto e em parte 
dos pilares, estão desenhados lindos arabescos em dourado, amarelo, azul e 
marrom. É um pedacinho do Oriente Médio em São Paulo. As atividades 
religiosas começaram em 1927, no bairro Cambuci, e após 80 anos, é 
conhecida como uma das mais importantes mesquitas da América Latina. É 
possível agendar um tour pela mesquita para conhecer o local e entender mais 
sobre o Islã e suas práticas. 
 Como uma construção, o Islã tem um alicerce sólido e seus pilares dão 
suporte para que os muçulmanos vivam de acordo com as diretrizes islâmicas. 
No total, existem cinco pilares, que devem ser seguidos por todos os que 
praticam o Islã. As ordens dos pilares foram escolhidas conforme os 
fundamentos que eram revelados por Allah e colocados em prática por 
Muhammad. 
 
 
 
Chahada: o início de uma nova página 
“Testemunho que não há outra divindade além de Allah e testemunho que 
Muhammad é o mensageiro de Allah.” 
 É com essa declaração de fé, e com a intenção sincera de coração, que 
qualquer pessoa se reverte ao Islã. Esse depoimento é o primeiro dos cinco 
pilares da religião, chamado de Chahada. Não é possível aceitar a Allah sem 
antes estudar sobre o Islã, entender as doutrinas, o código de vida e o 
compromisso que está assumindo com Ele após recebê-lo como Deus único. 
32 
 
 Mayssa frequentou a mesquita de São Bernardo por três meses sem 
realizar a Chahada. “Quero aprender mais sobre a religião antes de fazer.” 
Mesmo antes do testemunho, ela usa o hijab e já havia escolhido um novo 
nome: Ayat. 
 Um dos Sheikhs da mesquita de São Bernardo, Hajj Ismael, aconselha 
que pessoas com nomes de entidades de outras religiões - ou em casos que 
gerem confusão - troquem de nome. Para ilustrar, ele comenta sobre seu caso. 
Na realidade, Ismael se chamava Israel, mas durante os anos em que foi para 
países do Oriente Médio estudar, passou por alguns problemas por conta de 
seu nome, principalmente em territórios inimigos de Israel. Por isso, para não 
pensarem que o nome dele foi escolhido por questões políticas, ele o trocou. 
“Isso é um conselho para homens e mulheres, mas não podemos obrigar 
ninguém a trocar de nome” esclarece o Sheikh. 
 Os sábios da comunidade colocam-se à disposição para ensinar 
muçulmanos e revertidos sobre o Islã. Em qualquer visita, fazem questão de 
tirar dúvidas e dar livros importantes, inclusive o Alcorão traduzido para 
português. “Charles, que é o responsável na mesquita pela divulgação, se 
sentou para me explicar tudo. Eu falei que tinha dúvidas e comecei a 
perguntar. Ele me deu uma sacola também com Alcorão e livros. Eu fiquei 
encantada”, comenta Ana Paula, com um sorriso largo e olhar imerso em 
gratidão. 
Ana Paula preferiu entender tudo sobre a religião, questionar sobre 
passagens que ela não entendia do Alcorão antes de fazer o testemunho e 
reverter-se ao Islã. “Não se pode brincar com as coisas de Deus”, comenta. Sua 
Chahada aconteceu com a presença de um Sheikh e algumas mulheres 
muçulmanas. “Eu já estava me programando, já sabia o básico, já sabia como 
que é a religião, já estava me sentindo segura com a minhafé”, diz. 
33 
 
 No caso de Ana Paula, ocorreu de um Sheikh estar na mesquita e 
participar como testemunha, porém, é possível fazê-lo sozinha em casa, caso 
não tenha nenhum muçulmano conhecido ou mesquita por perto. “Nós 
fazemos o testemunho diante de alguém para que sejamos reconhecidos 
como muçulmanas, como em um casamento, mas, na verdade, isso é entre 
criatura e criador”, esclarece Gisela. 
Em um dia qualquer, Ana Paula chegou e decidiu que esse era “o” dia. 
Então, ela ficou parada em frente ao Sheikh com o dedo indicador levantado. 
Esse movimento mostra a unicidade de Deus. Em seguida, é recitado o 
testemunho em árabe e português. “O Sheikh fala a frase e eu vou repetindo. 
Depois todo mundo fica contente e as mulheres te abraçam”, relembra com 
felicidade. 
 O testemunho de Gisela foi algo gradual. Ela sempre soube a verdade 
sobre o Islã e só faltava expressar-se verbalmente. Quando estava no Centro 
Islâmico, em São Bernardo, buscando informações, ela já entendia o que essa 
religião significava para ela, porém não pensava no testemunho já que, por um 
tempo, não sabia que era necessário. “Meu inconsciente já era de uma 
muçulmana e, por mais que percebesse essa diferença, só faltava eu admitir 
com a minha palavra, com a minha língua, com a minha boca, porque o 
coração já era muçulmano”, diz Gisela. Foi em agosto de 2011, depois de um 
ano do Ramadan que havia realizado antes de conhecer completamente a 
religião, que aconteceu. “Eu estava na mesquita do Pari e uma das irmãs 
perguntou se eu tinha realizado a Chahada, eu disse que não, e foi naquele 
momento que fiz”, explica. 
 Esse momento marcou sua vida, principalmente porque várias pessoas 
testemunharam a sua demonstração de fé. “Não há nada no nosso idioma ou 
em outro que possa demonstrar o que eu senti na hora. Você tem a garantia 
que não está sozinha”, recorda. 
34 
 
 Gisele Marie Rocha, de 47 anos, realizou seu testemunho em 2009. Ela 
conheceu o Islã por meio do seu amor por leitura, história, literatura e cultura 
de diversos lugares do mundo. O primeiro contato que teve com muçulmanos 
foi através de um turco que se casou com sua tia. “Mas, eu nunca pensei que 
um dia eu me tornaria muçulmana”, comenta. Com sede de conhecimento, ela 
encontrou um site que oferecia aulas de árabe online e sem custo nenhum. 
Depois de meses estudando o idioma, encontrou o Alcorão na versão bilíngue 
e resolveu ler para testar seu árabe. “Se alguém me dissesse que eu ia me 
tornar muçulmana, eu provavelmente teria rido muito disto, até que eu li a 
seguinte frase na Surata 2 (Al Bakara): ‘(256) – Não há imposição quanto à 
religião, porque já se destacou a verdade do erro. Quem renegar o sedutor e crer 
em Allah, ter-se-á apegado a um firme e inquebrantável sustentáculo, porque Allah 
é Oniouvinte, Sapientíssimo’, essa frase mudou tudo para mim”, diz, alegremente. 
Foi o próprio Alcorão que a levou até o Islã. 
 Gisele Marie realizou sua Chahada em sua própria casa, com suas filhas 
de testemunha. “Eu fiquei muito emocionada e chorei muito depois”, conta. 
Depois de algum tempo que começou a frequentar mesquitas e ser 
introduzida na comunidade muçulmana, ela recebeu um certificado de 
reversão ao Islã, em inglês, Islam Embracing Certificate. “É um documento oficial 
emitido pelas mesquitas e registrado na Arábia Saudita, que é como um 
documento islâmico”, esclarece. 
 Este documento não é obrigatório para todos os muçulmanos, não é 
necessário ter esse certificado para que a sociedade te reconheça como 
muçulmano, porém, em algumas ocasiões esses documentos servem para 
tirar o RG com o hijab, por exemplo. É possível mostrar esse certificado para 
comprovar o motivo pelo qual se está usando o véu. Na peregrinação 
realizada anualmente para Meca, apenas muçulmanos têm a entrada 
permitida, por isso o certificado pode ajudar a participar com mais facilidade, 
35 
 
como um testemunho de boa fé. Até mesmo no casamento, o certificado pode 
ajudar a provar que está se casando com uma mulher ou homem muçulmano. 
Em países de minoria islâmica, esse certificado é emitido por meio das 
mesquitas. Consta o nome, data de nascimento, endereço, a data da Chahada, 
e as testemunhas (se houver). 
A Chahada traz o renascimento para alma. É como se voltassem a ser 
bebês de colo, livres de pecados e com a página em branco para recomeçar a 
vida. “É recomendado voltar para casa (depois do testemunho) e tomar banho. 
E então, seus erros anteriores são perdoados”, explica Ana Paula. 
Todas que realizaram o testemunho e hoje praticam o Islã reconhecem 
a grande diferença que a Chahada causou em suas vidas. 
 “Eu tenho problemas como qualquer pessoa, mas levo a vida tranquila, 
diferente do que eu era antes, muito ansiosa, nervosa, antissocial. 
Antigamente eu não sorria, hoje eu sorrio de dentro para fora”, diz Gisela, com 
certeza. “No Islã, eu aprendi práticas que me facilitam diariamente e tudo, 
absolutamente tudo, depende de Deus” finaliza, feliz. 
 Essa mudança também foi reconhecida por Ana Paula, que se sentia 
muito mais desligada com o divino antes da Chahada. “Hoje em dia, leio algo 
no Alcorão e aquilo me emociona. É a fé que eu escolhi”, reconhece. Até 
mesmo em questões de conforto espiritual com as coisas materiais houve 
mudanças após a religião entrar em sua vida. “Eu tenho que dar graças a Deus 
pelo que eu tenho, o que Allah decretou para nós temos que agradecer e ficar 
contentes com isso”, diz. 
 É visível a força do Islã em meio às mulheres. O Islã é uma das poucas 
religiões que traz a mulher como um ser precioso para sociedade e expõe a 
sua importância no âmbito social, familiar e até econômico. Porém, para esse 
tipo de afirmação, não se pode levar em consideração as interpretações 
36 
 
extremas e machistas (presentes em qualquer religião) dos livros sagrados e 
das leis islâmicas baseadas neles. 
 O primeiro passo em direção à verdade que encontraram foi dado. 
 
 
 
Oração: abra os olhos e converse com Deus 
 A quantidade de mulheres e homens presentes na mesquita era o 
suficiente para duvidar de uma possível organização na hora de rezar, mas, em 
poucos minutos, as mulheres já estavam alinhadas às marcações no carpete 
em direção a Meca. As mais velhas estavam sentadas em cadeiras. Uma irmã 
passa fila por fila verificando os pés e as linhas: tudo precisa estar perfeito, 
nem muito para frente, nem para trás. Ombro a ombro, a oração se inicia com 
todos em pé. O silêncio se faz presente, apenas o imam comanda a reza. 
 É necessário que a intenção esteja clara. Não é preciso que seja em voz 
alta, mas a força do pensamento é importante. As mulheres levam as mãos 
com as palmas viradas para cima até a orelha, e repousam a mão direita sobre 
a esquerda, próximo aos seios. O movimento sincronizado cria um som em 
meio ao silêncio. De acordo com Rosangela, esse gesto de juntar os braços 
traz conforto e acalma o coração. O primeiro capítulo do Alcorão é recitado, a 
Surah Al-Fatiha, que significa “A abertura”. É a oração mais importante do Islã e 
é pronunciada em todas as rezas durante o dia. A Surata de início tem sete 
versos clamando por orientação, louvor e misericórdia de Deus. 
 Um coro masculino pronuncia: “Amin23”. 
 Elas se curvam em uma posição de 90° em relação ao carpete. As mãos 
ficam estendidas nos joelhos, e os olhos fixos num ponto no chão. Essa 
posição significa a glorificação de Deus. Por alguns segundos, nada acontece. 
 
23 “Que assim seja”. 
37 
 
Com a posição ereta novamente, após o som produzido por levantarem suas 
mãos na altura da orelha, a prostração completa é realizada. Esse movimento 
representa, literalmente, a submissão completa a Deus. Com a testa apoiada 
no carpete, é difícil diferenciar quem é quem. O que as distingue são os 
diversos tipos e cores de hijabs. Essa variedade cria uma harmonia detons 
que agrada aos olhos. Cada mulher coloca um toque de personalidade na reza. 
Algumas, principalmente as mais velhas, mantêm o semblante mais sério, 
concentrado. Outras exteriorizam uma leveza, como se estivessem em uma 
conversa tranquila com Deus. Todas, com suas particularidades e diferenças, 
formam uma sincronia ensaiada. 
 Elas se levantam parcialmente e permanecem ajoelhadas. Poucos 
segundos depois, ficam em pé. Esse foi o primeiro ciclo da oração, chamado 
de rakat. Dependendo do horário, as quantidades de repetições do ciclo 
mudam. 
 Na primeira oração do dia, são dois ciclos completos de oração. Na 
segunda e terceira, são quatro; na oração da tarde, são três; e na última do dia, 
são quatro. Esse número é obrigatório, mas é possível também fazer orações 
não obrigatórias. “Eu faço as cinco orações e, às vezes, faço algumas 
recomendadas”, conta Ana Paula. 
 Todas se conectam na mesma frequência. Iluminadas, como o sol que 
permeia através da janela. Em alguns momentos, apenas o som da respiração 
das dezenas de mulheres é escutado. Como se suas reflexões se 
transformassem em música. Em seus pensamentos, pedem por suas famílias, 
agradecem por suas conquistas e levam a Ele suas aflições. Algumas se 
comovem após a oração. “Eu me emociono, principalmente na mesquita, 
quando eu vejo todo mundo se abaixando ao mesmo tempo”, comenta Ana 
Paula. 
38 
 
 Fatima explica que, muitas vezes, as pessoas acabam rezando por dever 
e, por isso, não se emocionam com frequência. Quando ela se concentra, não 
consegue encontrar palavra que descreva o sentimento. “Nos momentos em 
que estou 100% na oração, sinto que estou conversando diretamente com 
Deus e é uma sensação indescritível, por isso tento focar e rezar com todo o 
coração sempre, para estar junto com Deus”, conclui. 
 
 
 
 Os horários de oração são definidos em: Fajr, a oração da alvorada; Zuhr, 
a oração do meio-dia; Asr, oração da tarde; Maghrib, oração do pôr do sol; 
Inchá, a oração da noite. 
 Quando Ana Paula está em casa, faz a oração dentro do quarto, em um 
pequeno espaço atrás da porta. Com a ajuda de uma bússola, encontra a 
direção a Meca. Ela explica que, quando está em outros locais, procura um 
lugar calmo e limpo para rezar. “Se eu estiver no banco e deu o horário de 
rezar, eu peço para alguém se tem alguma salinha para eu ir. Se deixarem, 
fecho a porta e faço a reza”. 
 É obrigatória também a ablução para o muçulmano que rezará. “Antes 
de fazer a ablução, eu falo a intenção. Então, lavo as mãos, a boca, o nariz, o 
rosto, os braços até a altura do cotovelo, passo a mão molhada na cabeça, 
limpo os ouvidos e lavo os pés até o tornozelo, aí estou abluída”, exemplifica 
Ana Paula. 
 A higiene pessoal é indispensável no Islã, assim como a purificação 
completa após relações sexuais, durante o período menstrual, em feriados 
religiosos e às sextas-feiras. De acordo com o livro O Profeta do Islã, 
Muhammad, de Sam Deeb, o Profeta dava conselhos como: use perfume, 
39 
 
depile os pelos pubianos e da axila, se vista com roupas limpas, lave as mãos e 
não toque na comida antes de lavá-las. 
 “Nós temos que ter essa educação porque estamos diante do criador. 
Do mesmo jeito que a mulher se arruma para encontrar o namorado, temos 
que estar limpos, de banho tomado, perfumados, para estar diante do maior 
de todos, por respeito”, explica Gisela. 
 
 
 
 Já estava na hora da reza do meio-dia e as mulheres se arrumavam. Um 
pequeno número sentou-se no primeiro local livre que encontrou. Essas 
mulheres eram não muçulmanas ou muçulmanas menstruadas. Rosangela 
saiu da ordem e pediu que arrumassem outro local para sentar, ao lado ou 
atrás delas. A explicação veio após a oração: não pode ter nada à sua frente 
durante a reza. “A sua intenção está diretamente direcionada a Meca, qualquer 
coisa que estiver nesse caminho muda a direção desse pensamento”, 
esclarece Rosangela. 
 Mulheres muçulmanas não podem rezar menstruadas. Nesse período, 
elas eram proibidas de entrar nas mesquitas também. “No tempo do Profeta 
Muhammad, não existia absorvente, então, mesmo com os panos usados, as 
mulheres se sujavam e sujavam ao chão da mesquita”. Com essa comparação, 
Rosangela explica o motivo da proibição e da nova interpretação: elas podem 
entrar em mesquitas, mas ainda são proibidas de orar. 
 Para os muçulmanos, a demonstração prática da fé é a oração. O fato 
de serem distribuídas em cinco horários segue a explicação de que, como 
necessitamos comer de três a quatro vezes ao dia para não reclamar de fome, 
é preciso também alimentar o espírito para sobreviver. A oração é o momento 
em que mais se aproximam de Deus. 
40 
 
 “Eu tenho orgulho de fazer parte da religião que adora Deus 24 horas 
por dia”, exalta Gisela, que, mesmo quando não podia rezar no trabalho, 
juntava as três orações que perdia para fazê-las quando chegasse em casa, 
muitas vezes exausta com a rotina diária. “Até o dia em que eu dormi com a 
testa no tapete de cansaço e acordei com meu irmão batendo na porta. 
Precisei pedir perdão a Deus”, diz, em meio a risadas. 
 Najila sempre procura um local para rezar: no trabalho, no cursinho ou 
no shopping. “Eu tento programar quantas horas vou ficar, se terei que rezar 
ou não, e sempre levo o que preciso”, comenta. Ela foi criada dentro das 
doutrinas do Islã e em uma escola islâmica. No colégio, por exemplo, tinha o 
horário de oração. No local de trabalho, as orações de Najila são realizadas em 
uma sala separada. Depois de algumas vezes que pediu a chave para adentrar 
o cômodo, já providenciaram uma cópia para ela, talvez como sinal de 
confiança ou pela praticidade. Ela já deixa uma saia que usa para rezar no 
trabalho. Tudo é planejado para que as rezas sejam feitas no horário certo e 
da forma correta. 
 Quando estudava, Najila ia até o último andar pelas escadas, onde 
funcionava uma espécie de manutenção, para rezar. Isso porque sua 
faculdade é presbiteriana e não tinha um lugar para ela rezar. De alguma 
forma, ninguém passaria por ali para perturbá-la. “Usava esse cantinho porque 
era mais confortável e improvável de alguém passar por lá”, explica. E assim o 
fez por quatro anos. 
 No caso de Reine, as rezas se fazem em blocos. Por falta de tempo em 
administrar o horário de estudos e trabalho de manhã, quando acorda 
atrasada, precisa correr para faculdade e perde a oração antes do nascer do 
sol. “Quando chego em casa, faço a primeira, a do meio-dia e da tarde”. À noite, 
ela consegue realizar as orações no horário proposto. Por questão de hábito, 
Reine e sua família não rezam juntos. “Normalmente, fica cada um no seu 
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quarto mesmo”, diz. “Só de terça e quinta que tem uma oração na mesquita e 
então rezamos juntos lá quando dá para ir”, conclui Reine. 
 Organizar agenda e planejar o dia são funções que, hoje em dia, os 
celulares têm ajudado, e muito. Em horários específicos, o aparelho de Gisela 
começa a vibrar e tocar o adhan, o chamado para reza, para a recordação de 
Deus. É uma recitação de alguma surata falada em um ritmo sequencial. 
 “É hora de rezar”, diz Gisela. 
 Seja na faculdade, ou enquanto conversa com outras pessoas, o 
smartphone toca, e enquanto desabilita o alarme, simultaneamente, um largo 
sorriso aparece em seu rosto. 
 No período noturno, os colegas de classe de Gisela abriam espaço para 
que suas súplicas fossem feitas dentro da sala de aula. Orgulhosa, ela comenta 
que todos a respeitam, e respeitam seu horário de rezar. “Eles até falam: ‘reza 
por mim, Gisela’”, conta feliz. Porém, agora estudando em uma sala menor, ela 
arrumou outra forma de rezar, em sua mesa. “O Islã é facilidade. Quando tinha 
espaço, esticava o tapete e rezava, mas agora, para não me constranger e 
constranger os colegas de classe, então rezo sentada. É preciso ter bom 
senso”, explica o motivo da mudança. Mesmo assim, pediu permissão para 
suas rezas nasecretaria da faculdade. 
 “Vai, Gisela, já deu a hora de rezar”, lembra uma de suas amigas. Porém, 
como a reza normalmente é em horário de aula, prefere não interromper o 
professor, até porque há um limite de tempo para rezar, não é totalmente 
necessário que seja no mesmo minuto proposto. 
 Fatima encontrava dificuldade em rezar na universidade e preferia fazê-
lo em casa quando chegasse, local em que realiza as cinco orações diárias. “Em 
casa, todos têm um tapete de reza, para não precisar rezar no chão. Eu rezo 
todas as obrigatórias e raramente as recomendadas, por falta de tempo 
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mesmo. Sempre que consigo, tento rezar a mais e ler súplicas aconselháveis”, 
esclarece. 
 Ela também revela a diferença dos países, já que na faculdade de São 
Paulo não conseguia rezar, e agora, no Líbano, não encontra problemas. “Na 
faculdade tem um local de reza, então não tenho dificuldade com isso”, 
ressalta Fatima. Ela ainda não trabalha, mas afirma que irá se esforçar para 
encontrar algum cantinho limpo para rezar sempre nas horas necessárias 
quando começar. 
 Mesmo chegando tarde do trabalho, Najila procura sempre estar 
disposta a rezar. Normalmente, ela reza sozinha em certos horários. “Eu 
costumo chegar à noite e rezar sozinha. Na oração antes do nascer do sol, eu 
estou no meu quarto, acordo, faço a ablução e rezo lá mesmo”, diz. Mesmo 
assim, sabe da importância de rezar em conjunto. “Às vezes, meu irmão 
pergunta se alguém já rezou, aí se já estou abluída, acompanho ele, porque é 
mais benéfico fazer a oração em conjunto do que sozinha”, reconhece. 
 Até a forma de achar a direção correta para Meca mudou. Hoje em dia, 
muitas pessoas utilizam aplicativos que mostram a direção, evitando o 
sofrimento de entender a posição do sol e outros itens que já não são mais 
tão necessários. “Antigamente, usávamos a bússola, mas hoje em dia tem um 
aplicativo. Antes era muito difícil, tinha que saber onde nasce o sol, virar para 
direita, era difícil, agora com o aplicativo é melhor”, expõe Najila. 
 Um desses aplicativos se chama Crescent Trips e informa a direção para 
Meca enquanto está a 10 mil metros de altitude, ou seja, em voo. É possível 
programar um alarme para que toque no horário correto da oração de acordo 
com o fuso do local. É possível encontrar dezenas de outros aplicativos que 
exploram o mercado muçulmano, que vem crescendo a cada dia. 
 
 
43 
 
 
 
Caridade: purifique a alma e os bens 
 O termo zakat, do vocabulário árabe, significa purificação, pois se 
acredita que o coração é limpo da ganância. Essa palavra gira em torno de 
uma ação: a caridade. 
 No Cristianismo, a caridade é um ato de amor ao próximo. No Judaísmo, 
o altruísmo é chamado de justiça: amparar os necessitados é justo, não 
benevolência. No Islã, é uma obrigação. 
 Doar tempo, dinheiro e comida aos necessitados é o terceiro pilar do 
Islã. Anualmente, todos os muçulmanos e muçulmanas devem retirar 2,5% dos 
bens ou fortuna que estejam parados (que não sejam para uso próprio) para 
doar aos pobres. “Do que eu ganho livre, eu faço um cálculo do que recebo no 
ano. Na época do Profeta, calculavam em ouro e prata, e hoje em dia, o cálculo 
é feito em ouro”, explica Ana Paula. Esse ganho deve ser igual ou maior que 85 
gramas (hoje em dia, essa quantidade equivalente a R$ 11.021,95), dessa 
quantia que se retira a porcentagem. Se o muçulmano não possuir essa verba, 
não é preciso fazer esse tipo de doação. 
O zakat é uma responsabilidade individual. Diferentemente de outras 
instituições religiosas, as mesquitas não costumam arrecadar esse dinheiro: a 
doação feita em segredo é ainda mais exaltada por Deus. “O correto é doar 
para quem você conhece, porque você sente como que é a necessidade da 
pessoa”, diz Ana Paula. 
 Na religião islâmica, crê-se que Allah é o dono de todos os bens, Ele que 
provê a riqueza para suas criaturas e, por isso, ajudar aos necessitados é um 
agradecimento pelas posses adquiridas. Nada conquistado na terra é levado 
para o reino dos céus. 
44 
 
 A doação é feita para qualquer muçulmano que esteja passando por 
necessidade, e pode ser paga de diferentes formas, não necessariamente em 
dinheiro. “Eu tenho que fazer caridade, porque ela apaga os pecados”, afirma 
Ana Paula. 
 Essa doação é uma obrigação religiosa que deve ser cumprida pelo 
menos uma vez ao ano, porém a caridade feita ao longo dos doze meses é 
muito incentivada no Islã. “Pelo menos uma vez por ano, doamos roupas”, 
explica Fatima. 
 A sadaqa é outra doação feita para qualquer pessoa necessitada, sendo 
muçulmana ou não. Fatima explica que ela e sua família se esforçam para fazer 
uma sadaqa todo dia. “Colocamos dinheiro num pequeno cofre, nem que seja 
apenas uma moeda de 25 centavos. E no fim do mês, levamos esse cofre para 
instituições e orfanatos, tentamos ajudar mais os órfãos já que, infelizmente, 
aqui (no Líbano) tem muitas crianças que perderam suas famílias nas guerras”, 
ressalta. 
 Por não ter a quantia necessária que atinja as 85 gramas de ouro, Ana 
Paula não faz o zakat, porém, sempre que pode, doa comida e dinheiro aos 
que precisam. “Faço marmita de comida e vou levar para moradores de rua. 
Tem um (morador de rua) que sempre nos cumprimenta e, quando passo com 
a minha filha, dou dinheiro e peço para ela entregar a ele, assim já vou 
ensinando ela também”, comenta. 
 A família de Reine também realiza algumas doações durante o ano. “Mas 
não podemos falar para os outros o que estamos fazendo, porque é como se 
estivéssemos fazendo só para os outros saberem”, conta. 
 Além do zakat, por ser xiita, Fatima e sua família realizam mais um tipo 
de caridade. “O khomus é a doação de um quinto do que você possui aos 
necessitados e instituições islâmicas que têm o intuito de fortalecer o Islã”, e 
45 
 
acrescenta: “Nós focamos mais no khomus do que no zakat, mas ambos são 
obrigatórios”, conclui. 
 Outra doação que está escrita no Alcorão é o zakat Al-fitr. É uma doação 
na comemoração do último dia do Ramadan. “Geralmente, os Sheikhs pedem 
que sejam uns 15 reais, 20 reais no mínimo, mas essa quantia deve ser 
revertida em comida”, explica Ana Paula que, em 2017, recebeu uma cesta 
básica por meio dessa doação e também doou alimentos que ela não estava 
precisando a outras pessoas necessitadas. 
 Grande parte das mulheres muçulmanas realizam atividades que, de 
alguma forma, ajudem o próximo. Muitas se tornam professoras, tutoras para 
as novas revertidas entenderem o Islã, enfermeiras, socorristas, 
coordenadoras de projetos sociais, nutricionistas, advogadas24, entre outras 
profissões que as permitam ajudar aos outros. “É muito importante que todos 
ajudem os outros, se não for através do trabalho, que seja algo a mais”, 
comenta Fatima. 
 
 
 
Ramadan: um mês de euforia, luz e súplicas 
 “Seus dias são os mais excepcionais, suas noites as mais extraordinárias e 
suas horas as mais singulares” (Profeta Muhammad) 
 Por volta das quatro da manhã25, aproximadamente 1,5 bilhão de 
pessoas ao redor do mundo acordará para tomar o café da manhã. Não que 
esse seja o horário normal desses indivíduos iniciarem suas as atividades 
 
24 Dados retirados das entrevistadas e mulheres muçulmanas que conhecemos através desse livro-
reportagem. 
25 Os horários para o suhoor, o café da manhã, antes de começar o jejum diário muda de acordo com o 
fuso horário de cada estado ou país. Esse horário foi escolhido para ilustrar um período antes do nascer 
do sol. 
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diárias: é que durante o dia, até o pôr do sol, eles não irão consumir mais nada. 
Nem comida. Nem água. Nada. 
 Por aproximadamente 30 dias, essa será a rotina de todos os 
muçulmanos. O jejum é o quarto pilar do Islã, chamado de Ramadan. Foi nesse 
período, no ano 610, que o Alcorão foi revelado por Deus ao Profeta. Com 
base nos hadiths de Muhammad, quem jejuardurante o nono mês lunar do 
calendário muçulmano com fé e intenção será perdoado pelos pecados que 
cometeu. 
 Todo ano, o dia que começa o Ramadan muda. Isso porque os 
muçulmanos não seguem o calendário solar gregoriano para definir as datas 
de seus feriados religiosos, como a maioria da população mundial. O 
calendário lunar islâmico tem doze meses, sendo que cada mês tem de 29 a 
30 dias, antecedendo 11 dias anualmente em relação ao calendário ocidental. 
“Acompanhamos o calendário gregoriano por conta de negócios, do país, mas 
seguimos o islâmico”, conta Gisela. 
 No ano de 2017 (1438-1439 no calendário muçulmano)26, o mês do 
Ramadan se iniciou no dia 27 de maio e terminou em 25 de junho. Em países 
de maioria muçulmana, a rotina de todos muda. Restaurantes e cafés ficam 
fechados durante o dia e abrem à noite. As empresas, escolas e comércios 
diminuem o horário de funcionamento. Dessa forma, não há “tentações” 
durante o período de abstinência. 
Enquanto o sol está alto no céu, essas cidades parecem desertas. De 
acordo com Fatima, no Líbano, por exemplo, muitas pessoas trocam o dia pela 
noite, preferindo passar o período de jejum em casa, e saindo para comer de 
noite até madrugada adentro. 
 
26 O começo do calendário muçulmano não ocorreu a partir da revelação do Alcorão e, sim, da hégira, 
no ano de 622. Os primeiros seguidores de Muhammad eram poucos, mas conseguiram importunar a 
elite comercial de Meca com a ameaça de destruir as imagens de deuses politeístas – que gerava turismo 
e renda à nobreza de Meca. Os seguidores do Profeta - e ele mesmo - estavam sendo ameaçados e por 
isso precisaram fugir para uma cidade mais aberta. Eles pararam em Medina, que estava a 300 km ao 
norte de Meca. Essa migração marcou o começo do calendário islâmico. 
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 Em países ocidentais, não há esse tipo de mobilização. Os muçulmanos 
se privam de comida, bebida, pensamentos hostis e mentiras, gerando 
autocontrole, empatia, disciplina, purificação espiritual e física. “Devemos 
manter uma excelente conduta moral para se aproximar mais de Deus”, 
explica Fatima. Já os ocidentais almoçam, tomam água, as padarias continuam 
funcionando, as empresas operam normalmente, a correria, o trânsito caótico, 
as intolerâncias, a indiferença. Tudo isso permanece. 
 Najila precisa trabalhar durante o Ramadan e, por isso, não consegue 
quebrar o jejum em família. “Eu levo marmita para a agência, dá o horário, e eu 
vou comer sozinha no refeitório. Não tem como esperar para comer em casa, 
senão ficaria mais duas, três horas em jejum”, expõe. 
 Depois que começou a trabalhar, tudo ficou um pouco “sem graça”, mas 
mesmo com a correria do dia a dia, Najila relembra dos momentos bons que já 
passou durante o Ramadan. “Você está em casa, come junto com todo mundo. 
Você sente uma calma, é bem gostoso”. 
 Faz quatro anos que Ana Paula jejua no mês do Ramadan. Ela conta que 
logo que fez a Chahada, as irmãs já comentavam sobre a abstinência. “Comecei 
a pensar ‘como eu vou fazer para ficar o dia todo sem comer? Seja o que Deus 
quiser’. E aí começou e eu fiz direitinho os trinta dias. A partir daí, nunca deixei 
de fazer”, conta, orgulhosa. 
Crianças, idosos, pessoas enfermas, mulheres em período menstrual, 
viajantes, e grávidas estão isentos do jejum no mês do Ramadan, porém todos 
que estiverem em condições temporárias deverão ficar em abstinência 
quando for possível antes do próximo Ramadan. Outros que estiverem em 
situações permanentes devem alimentar um necessitado a cada dia que não 
jejuarem. 
Fatima diz que já precisou ficar sem jejuar e se sentiu estranha em fazê-
lo. “Enquanto a mulher está menstruada, ela não pode jejuar. Como é algo 
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natural do corpo da mulher, só repomos esses dias depois. Mas, mesmo assim, 
é estranho não estar de jejum já que todos estão, eu sinto como se estivesse 
fazendo algo errado, mesmo não estando”, afirma. 
Desde os 7 anos, quando ainda morava no Líbano, Reine faz o jejum. 
“Mas acho que minha mãe não deixava eu fazer o mês todo, ou quando sentia 
sede, ela me dava água”, diz, se esforçando para lembrar. Para ela, esse é o 
melhor mês do ano. “Eu amo essa época. A família toda fica unida, vêm amigos 
da família, amigos dos meus irmãos, então comemos todos juntos, depois de 
comer ficamos na mesquita umas duas horas e voltamos para casa”, comenta, 
com a voz em um tom de felicidade. 
Para os muçulmanos, esse é o período em que Deus está mais 
misericordioso, além de ser um mês de grandes bênçãos, porém, é preciso 
que seja seguido de forma exemplar: quem quebra o jejum sem motivos deve 
ficar em abstinência por 60 dias seguidos ou alimentar 60 necessitados. Se o 
jejum for quebrado por algo haram, proibido, a pessoa deverá ficar por 60 dias 
em privação e alimentar 60 necessitados. 
Ana Paula cozinha para Carol, sua filha de 7 anos, inclusive durante o 
jejum. “Ela perguntou por que eu não ia almoçar e eu expliquei. Ela pensou e 
disse: ‘Eu também vou ficar sem comer?’, e eu falei para ela que criança não faz 
Ramadan, vai treinando aos pouquinhos”, revela Ana, antes de comentar a 
grande tentação que é sentir o cheiro da comida durante o dia. 
 “O comer, beber e fazer sexo não me faz falta, porque Deus supre tudo, 
ainda mais no Ramadan porque é uma entrega total”, enfatiza Gisela, que 
também jejua toda terça e quinta. Tudo que faz para Deus se tornou sua rotina, 
seja o Ramadan, as orações ou o uso do hijab. 
 Reine também costuma jejuar fora do mês do Ramadan, por isso, ficar 
sem comer não é um problema para ela. “Você se sente bem, porque você faz 
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algo pensando nos outros. Está te aproximando de Deus e fazendo você sentir 
o que o outro sente”, comenta. 
Por vezes, quando recebem convidados para a quebra do jejum, Fatima 
ajuda sua mãe na preparação da comida, principalmente da sobremesa. “A 
gente acaba se acostumando, nem nos incomodamos mais com a fome ou 
cansaço”, conta, após dizer que faz o jejum desde os 9 anos de idade, quando 
ainda morava no Brasil. “Meu primeiro Ramadan foi em 2007 e foi difícil pra 
mim, porque estudava em uma escola islâmica que ficava muito longe de casa, 
todo dia uma hora de trajeto, então, muitas vezes, acabava tendo que quebrar 
o jejum já que não conseguia aguentar o cansaço”. Ela ainda diz que muitas 
vezes o refluxo a fazia passar mal, e então precisava quebrar a abstinência. 
No dia 9 de junho, o programa matutino da Rede Globo, Encontro com 
Fatima Bernardes, abriu um espaço de 15 minutos para falar sobre o Ramadan. 
O Sheikh Rodrigo Rodrigues, convidado do programa, comentou sobre o intuito 
de jejuar desde o amanhecer até o pôr do sol. “Um dos motivos do jejum é a 
pessoa se dominar, se conhecer. O jejum educa a pessoa a sentir um pouco o 
que milhares de pessoas sentem todo dia. Nós temos o momento de quebrar 
o jejum, quantas pessoas nesse Brasil não têm esse momento?”, explica 
Rodrigo. “O jejum em si não é apenas de comida, é também dos maus hábitos 
da pessoa, tentar evitar fazer fofoca, xingamentos. É a renovação da alma”, 
acrescentou a libanesa Dunia, que mora há 13 anos no Brasil. 
 “Quando estamos com fome e sede, costumamos nos tornar mais 
humanos e mais sensíveis às necessidades dos outros”, afirma Fatima. Ela 
também se lembra das recompensas positivas do jejum para o corpo e alma. 
“Cada versículo do Alcorão lido durante o Ramadan equivale à recompensa de 
quem leu o Alcorão inteiro em outro mês”. 
 Fatima conta que passou os últimos dias do Ramadan de 2017 no Irã, 
um país islâmico. “Este ano foi incrível. Era um ambiente totalmente religioso, o 
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tempo todo vivendo o real significado da religião e desse mês sagrado. Esse 
ano foi quando entendi completamente o significado e o valor do jejum”, 
informa Fatima. 
 Com Gisela, cada Ramadan é uma nova aventura. Em 2017, 
especialmente, já que foi o primeiro ano que estava

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