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O aflorar do Islã O cotidiano das mulheres muçulmanas em São Paulo Aline Batista, Julia Alves & Thais Sanches 1 O aflorar do Islã: o cotidiano das mulheres muçulmanas em São Paulo Aline Batista, Julia Alves, Thais Sanches - São Caetano (SP), 2017. 166 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social - Jornalismo) – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Paulo, 2017. Orientadora: Lilian Crepaldi Modo de Acesso: World Wide Web: <http://www.aflorardoisla.com> 1. Mulheres muçulmanas. 2. Islã. 3. Religião. 4. Cultura. 5. Conhecimento. I. Batista, Aline II. Alves, Julia III. Sanches, Thais IV. Crepaldi, Lilian, Orientadora. 2 Sumário Agradecimentos, Apresentação A mulher no Islã O contato com a religião Entre multidões e os pilares Chahada: o início de uma nova página Oração: abra os olhos e converse com Deus Caridade: purifique a alma e os bens Ramadan: um mês de euforia, luz e súplica Peregrinação: o recomeço Não é status, é proteção “Fazemos por nós” Construção de laços Em busca dos sonhos Posfácio Glossário Bibliografia 3 A nossos pais, que nos deram exemplos de amor e respeito ao próximo. E às muçulmanas de todos os lugares do mundo, que possuem a grande coragem de superar barreiras e desafios em nome do que acreditam e, especialmente, nos ensinaram mais sobre compreensão e fé. 4 Agradecimentos Às nossas famílias, que nos deram todo o suporte para cursar uma universidade e apoio na realização desta obra. À Lilian Crepaldi e Roberto Araújo, nossos professores que nos orientaram e acreditaram junto conosco neste projeto. Às mulheres muçulmanas que cruzaram nosso caminho e confiaram em nós suas histórias, experiências e sonhos. À Rosangela, secretária da CDIAL, que nos abriu todas as portas possíveis na comunidade muçulmana de São Bernardo do Campo e São Paulo. “A solidariedade entre as mulheres pode ser uma poderosa força de mudança e pode influenciar o desenvolvimento futuro de forma favorável não só para as mulheres, mas também para os homens” Nawal El-Saadawi A Face Oculta de Eva: As Mulheres do Mundo Árabe 6 Apresentação Há 1,3 bilhão de muçulmanos, um quinto da humanidade. Da África Ocidental a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e Índia. Em muitos países, os muçulmanos representam a maioria da população local. A nação com maior número de muçulmanos é a Indonésia com, aproximadamente, 200 milhões de seguidores do Islã1, que corresponde a 15% do número total. Segundo estudo do Instituto americano Pew Research Center, publicado em 2015, o Islã é a religião que crescerá 73% entre 2010 e 2050. Os motivos que explicam esse ritmo acelerado são a taxa de fertilidade e o fato deste grupo religioso ser mais novo que os outros. O Islã é praticado e vivenciado de diferentes maneiras. Cada país é naturalmente diversificado em relação ao desenvolvimento histórico e cultural. As interpretações e aplicações das crenças mudam em cada sociedade. No Brasil, de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 35 mil praticantes da religião. De 2000 a 2010, o número de muçulmanos cresceu 29%. Nesse período, a população brasileira aumentou em 12,3%, mostrando que a quantidade de seguidores do Islã cresceu mais do que o número de habitantes. Em contrapartida, a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil estima que o número total de fiéis, em 2015, era entre 800 mil a 1,2 milhão. Dois a cada cinco seguidores do Islã no Brasil são mulheres. Quando falamos de revertidos ao Islã, aproximadamente, sete a cada dez são mulheres. 1United States Census, 2007. 7 Com este livro, nosso objetivo é revelar o cotidiano das mulheres muçulmanas que vivem em São Paulo, além de disseminar mais informações sobre o Islã. São histórias, experiências, momentos e descobertas. A vontade de falar com as mulheres muçulmanas para entender mais sobre suas vidas e desmistificar pré-conceitos foi o grande estímulo para que a obra fosse realizada. O que pesquisamos e reportamos nesse livro foi feito a partir de nossas percepções no contato com elas. Não é uma totalidade, e sim a versão possível da vida das seguidoras do Islã. A obra apresenta a vida de mulheres nascidas no Líbano, descendentes de libaneses e brasileiras revertidas ao Islã, de 18 a 50 anos, entre sunitas e xiitas. As histórias e as opiniões são de pessoas inseridas nessa cultura. Deixamos de lado conceitos e estereótipos construídos em torno do tema para conseguir entender uma realidade diferente das nossas e, assim, narrar a vida de uma mulher muçulmana. Dar voz às essas mulheres possibilitou apresentar o assunto de uma forma mais profunda e aproximar o leitor de uma religião diferente da predominante no Brasil. A expectativa é que as informações e histórias aqui escritas ajudem na reflexão contra os pré-conceitos, intolerância e, principalmente, incentivem o respeito ao próximo. 8 A mulher no Islã - Salamaleico2 É com essas palavras que todos os encontros começam. Recepção com sorrisos e olhares curiosos. A secretária do Centro de Divulgação do Islã para a América Latina (CDIAL), Rosangela França, revertida ao Islã há 25 anos, recebe carinhosamente cada mulher que chega à mesquita Anhangabaú em uma manhã fria típica do inverno paulista. A mesquita Bilal Ibn Rabah3, ou mais conhecida como Anhangabaú, foi aberta em 16 de janeiro de 2016, após o espaço ter sido comprado pelo CDIAL. Com sua entrada discreta e à frente do acesso à estação do Metrô, ela recebe grande parcela da comunidade muçulmana que vive na região central da capital paulista. Na entrada, com uma habilidade admirável, Rosangela embala com o véu mulheres que ainda não aderiram ao uso e as visitantes. Ela demonstra orgulho ao apresentar o item. Uma recepção repleta de sorrisos e um sentimento perceptível de felicidade pela participação de mulheres e homens no Seminário Islâmico sobre a Importância da Mulher no Islã. Em seu olhar, é possível enxergar o brilho em compartilhar um dia tão importante para outras pessoas, seguidoras ou não da religião. 2 Em português, Salaam Aleikum significa “Que a paz esteja sobre vós”. É uma expressão de cumprimento utilizada pelos muçulmanos. 3 Um dois mais verdadeiros companheiros do Profeta Muhammad. Ele foi escolhido pelo Profeta para realizar os chamados para oração. Bilal foi escravo e acredita-se que nasceu no local que hoje é conhecido como Etiópia. 9 Após terem os cabelos cobertos, há dois armários repletos de pares de sapatos onde os presentes devem deixar os seus calçados. Para entrar no ambiente sagrado, é preciso ficar apenas com a meia ou descalço. Ao lado dos armários, todos começam a subir as escadas para acesso ao segundo andar da mesquita. No último degrau, é possível ver várias mulheres envoltas no famoso véu. Cada hijab4 contém uma história. Cada cor do véu, uma essência. Cada olhar, uma desconfiança. “Fiquem à vontade, sentem onde quiser e aproveitem o dia conosco”, diz Rosangela, entusiasmada, para os visitantes. Seguindo seu conselho, as mulheres sentam nas cadeiras dispostas no espaço e os homens, no chão. Durante o discurso das mulheres convidadas para o seminário 5 , grandes histórias são contadas e experiências, compartilhadas. A emoção e atenção se fazem presente a cada palestra. A professora Dina Hussein falou sobre a importância de Aisha6 no Islã e finalizou seu discurso contando uma experiência de vida para asmais de 15 mulheres que ali estavam. “Um dia, passando pela (Avenida) Paulista, vi uma manifestação e em um dos cartazes estava escrito ‘Contra o Islamismo no Brasil’. Neste momento, eu me perguntei apenas o porquê, o porquê dessa atitude e deste ódio por nós”, afirma, exaltada. Ela questionou a pessoa que segurava o banner, mas a resposta não foi positiva, porém a professora não discutiu, apenas desejou o bem. Para algumas muçulmanas, atos como esse não precisam ser revidados, porque serão julgados no dia do juízo final. De véu branco e sorriso fácil, Aladia não entende bem português. A muçulmana ouviu atenta ao seminário na parte da manhã, mas as palavras 4 É um dos tipos de véu. Este modelo esconde os cabelos, as orelhas e o pescoço, e só deixa visível o rosto. 5 Foram sorteadas mulheres das mesquitas de São Bernardo do Campo e Anhangabaú para falar sobre diferentes mulheres importantes do Islã e associar com seu exemplo de vida. 6 Uma das esposas do Profeta Muhammad. 10 inspiradoras e avançadas da maioria ali presente não coincidiram com a realidade do seu país de origem. Apontando para a sua cabeça, ela declara: “Na Nigéria, o homem está aqui em cima”. Mudando o movimento e trazendo as mãos para perto dos pés, ela completa: “A mulher fica aqui embaixo”. A nigeriana explica que as mulheres em seu país devem obedecer ao que o marido diz. “Se o marido falar que não podemos fazer xixi, nós não vamos”, comenta. Najila Hasan, jovem de origem libanesa, trabalha em uma agência de publicidade muito conceituada de São Paulo. “Na agência, eu me encontrei. Existem muitas personalidades diferentes e, por isso, ninguém fica tão surpreso ao ver uma muçulmana que trabalha de véu”. A professora Salwa Saifi, também libanesa, acrescenta que as mulheres podem trabalhar e é importante esclarecer como a mulher muçulmana pode ser inserida no mercado de trabalho. O Sheikh7 libanês sunita, Kamal Chahin, de 32 anos, empolga com as palavras. “A mulher é como um coração. Nosso corpo não funciona sem o coração e a sociedade não funciona sem a mulher, elas importam”, ressalta. Alguns homens muçulmanos acreditam na real importância da mulher muçulmana e enxergam-nas como uma joia. Essas palavras fazem os olhos das mulheres brilharem e aplaudirem. Outros discursos deixaram as mulheres desconfortáveis, revelando que alguns homens muçulmanos também veem as mulheres como submissas e que devem ser obedientes aos seus maridos. Quando o relógio apontou 12h30, as mulheres foram para um lado separado da mesquita (longe dos homens) para iniciar suas orações. Todas se voltaram em direção à Meca e começaram as orações seguindo o 7 O uso da expressão Sheikh é aplicado para denominar o líder de uma comunidade muçulmana. 11 procedimento necessário, com exceção das mulheres que estavam em período menstrual. Feita a oração, é chegada a hora do almoço. Todas se juntaram para comer. O Sheikh Kamal colocou uma mesa no canto e trouxe quatro bacias brancas, que tinham frango, arroz, feijão, salada de alface e tomate, além de um pão sírio para completar a refeição. Agradecer pela comida é o assunto neste momento. No fim do evento, Rosangela se despede das muçulmanas presentes. “Espero que tenham gostado de hoje”, diz, com um sorriso largo e abraços aconchegantes. Para compreender a vida das seguidoras do Islã, é preciso ir além da abordagem superficial e entender o contexto em que essas mulheres estão inseridas. Algumas muçulmanas pertencem a uma cultura complexa, em especial pelo fato da interpretação dos livros sagrados que orientam os seguidores do Islã. Os especialistas na religião acreditam na existência de grupos com diferentes visões sobre a mulher. Há os que afirmam que a opressão e subordinação da mulher estão relacionadas aos ensinamentos do Islã. Outros consideram que a religião é igualitária para todos os gêneros. Os extremistas acreditam que não exista nenhuma opressão. E também há aqueles que consideram que a opressão da mulher não é um problema existente apenas nas comunidades muçulmanas. Países como Arábia Saudita, Afeganistão, Paquistão, Emirados Árabes Unidos, Egito, Iêmen e Irã são destaques quando tratamos sobre o assunto de diferença entre gêneros. Contudo, nações como Turquia, Tunísia, Argélia, Síria e Líbano têm avanços legais e sociais para reduzir essas diferenças. Professora, doutora em História Social pela USP, especializada em movimentos sociais de mulheres muçulmanas, Cila Lima explica que a origem 12 geográfica e social da mulher muçulmana é um fator essencial para compreender suas vidas e os fatos que as envolvem. A educação é um exemplo. Na Turquia e no Líbano, mais de 85% das mulheres com até 24 anos são alfabetizadas. Já no Paquistão e no Marrocos, menos de 61% alcançam essa oportunidade. O casamento forçado também apresenta diferença conforme o território. No Iêmen, este tipo de casamento não é uma lei civil, mas é uma lei implantada pela sharia8. “Na Turquia, são proibidos casamentos forçados. Claro que, mesmo sendo proibido acontece este tipo de união, mas não existe uma lei dizendo isso, geralmente acontece por causa de famílias fundamentalistas ou muito tradicionais”, acrescenta Cila. O Sheikh Kamal reforça que os casamentos arranjados não têm a ver com a religião, mas com uma questão cultural de cada país, por isso alguns têm isso como uma norma da lei sagrada e outros não. A poligamia, uma prática muito comum na maioria dos países muçulmanos, foi proibida por lei na Turquia e na Tunísia. “Em países como Síria e Líbano, onde há observância social quanto ao cuidado justo às quatro esposas, essa prática se limita às famílias mais abastadas ou ricas”, comenta Cila. O Islã é uma religião que engloba diferentes culturas locais e, por isso, cada pessoa tem uma ideia do que é a mulher muçulmana. Costumes locais podem ser facilmente relacionados com a religião. Não há apenas uma condição específica da muçulmana: cada sociedade apresenta suas inter-relações com as estruturas econômicas, sociais e políticas. A mulher que utiliza o véu no Islã pode adquirir o item por uma identidade religiosa, cultural, símbolo de opressão ou tendência de moda. 8 Código de leis islâmicas que agem como um manual ou guia sobre comportamentos do muçulmano. 13 Estes motivos também são variáveis de acordo com o país em que a muçulmana está inserida. A religião traz grandes referenciais de mulheres, sendo as principais Khadija, Aisha, e Fatima — respectivamente esposas e filha do Profeta Muhammad9. Muitos dos hadiths10 foram comunicados por Aisha, a terceira e mais famosa esposa do Profeta, e trazem a importância da mulher: exercer um papel essencial no desenvolver da religião. O Islã institui que a mãe é muito importante para a constituição da família, porque são elas que transmitem a religião. Na família, as mulheres teriam, portanto, uma missão de transmitir conhecimento para os filhos e a responsabilidade pela educação. “Não há algo que diz que a mulher não pode trabalhar no Islã, mas desde que ela não deixe de lado suas obrigações como mãe”, contou a professora Salwa Saifi. No Islã, existem quatro escolas de jurisprudência que foram feitas por sábios da religião que viveram após o Profeta Muhammad e interpretam seus atos (relatados na Sunnah)11. Essas escrituras não alteram os mandamentos do Alcorão, que são sagrados e permanentes, mas abrem espaço para interpretações das fontes religiosas sobre questões não definidas na Sunnah e no Alcorão. Cada muçulmano é livre para escolher a interpretação que acha melhor. Existem duas divisões muito conhecidas no Islã: os sunitas e xiitas. Atualmente,15% dos muçulmanos são xiitas (minoria). Essa divisão começou após a morte do Profeta Muhammad, que não deixou nenhuma indicação do seu sucessor e, a partir disso, criaram-se as controvérsias. A minoria dos muçulmanos, os xiitas, acreditava que a sucessão do Profeta deveria ser o próximo da linhagem familiar, no caso Ali, genro de 9 Nesta obra, adotamos trataremos o Profeta como Muhammad (palavra árabe). 10 Ditos do Profeta Muhammad. 11Segunda principal referência da religião (narra a vivência do Profeta Muhammad). 14 Muhammad. A maioria dos muçulmanos, os sunitas, acreditava em uma sucessão mais democrática: qualquer bom muçulmano poderia ser o Profeta que conseguiria alcançar o contato com Allah, era necessário apenas o consentimento da comunidade. Dessa incompatibilidade, surgiu a divisão entre xiitas e sunitas. As diferenças entre os dois grupos são as leis, rituais e organização religiosa. “Os xiitas não são muçulmanos. Eles saíram dos ensinamentos do Alcorão e Sunnah, eles seguem outros líderes religiosos que não estão relacionados ao Islã”, diz o Sheikh Kamal, quando questionado sobre a divisão dos muçulmanos. “Acho os sunitas normais, são muçulmanos como a gente, apenas decidiram seguir outra pessoa após a morte do Profeta Muhammad. Eu tenho uma amiga sunita e, praticamente, nossos costumes são parecidos”, conta Reine Sleiman, xiita de 18 anos. Além dos xiitas e sunitas, o Islã também tem os revertidos à religião. As pessoas que se tornam muçulmanas são chamados de revertidos e não convertidos. Isso porque eles acreditam que nascemos muçulmanos e que, ao aceitar o Islã, a pessoa está voltando a sua origem. Para explicar as experiências das mulheres desses diferentes grupos, é preciso dar voz para elas. A partir desse momento, começa um mergulho na vida de cinco muçulmanas que conduzem essa narrativa, além de outras que colaboraram com suas histórias. O contato com a religião “Após essa vida, tudo se ameniza e o que nós levamos são apenas nossas ações” - Gisela Carvalho Aos 15 anos, Gisela Carvalho se casou com um primo distante, 20 anos mais velho. O casamento foi realizado de forma consciente e seguindo um tipo 15 de tradição pernambucana. Tudo era muito bom. Tinha um marido que cuidava dela, não deixava faltar nada em casa. De certa forma, não tinha motivos para reclamar, porém, nada parecia fazer sentido. Faltava algo e ela sentia bem no fundo de sua alma. Desde criança, ela acreditava em algo maior do que os seres humanos, uma força que controlava tudo e todos. Por anos, ouviu pessoas falarem sobre Deus, sem entender realmente o que era aquilo. Enquanto crescia, passou por diversas religiões. Foi membro da Igreja Batista, Testemunha de Jeová, Umbanda e outras crenças. Em seu interior, nada encaixava. Estava infeliz. Era uma busca incessante para dar sentido ao que estava acontecendo em sua vida. Nessa tentativa de fazer parte de algo maior, de forma despretensiosa, encontrou o Islã. Antes de fazer o testemunho, antes de entender sobre esse código de vida religioso, ela começou o Ramadan12. No fim daqueles 30 dias, algo havia mudado. Como uma semente, o amor pelo Islã foi germinando até se tornar a grande certeza de sua vida. “O que eu ganhei dentro de mim foi muito maior do que um simples prazer. A felicidade que tinha no coração era indescritível. Comecei a chorar e falar: eu quero isso para mim e não sei como vou fazer”, explica, empolgada. Uma viagem que barganhou com o marido, na época, foi o grande começo de sua vida no Islã. Após alguns desencontros, ela fez seu itinerário para o Marrocos. O idioma predominante é o árabe, língua que, na época, não dominava. Localizado no norte da África, a religião predominante do país é o Islã. Sem entender o idioma, e com um inglês básico, Gisela embarcou. “Repeti para mim mesma: ‘Meu Deus, o que eu estou fazendo? Mas é por Deus’. E fui com a cara e com a coragem”, relembra. 12 Jejum obrigatório realizado no nono mês lunar do calendário islâmico, o qual se acredita ser o mês que Allah fez a primeira revelação a Muhammad. É um mês de oração, renovação, e um dos cinco pilares do Islã. 16 Ela estava preparada para uma aventura. Antes de chegar, leu sobre a cultura local e fez questão de se vestir da forma mais coerente com o que os marroquinos estavam acostumados: vestes islâmicas, ou seja, mais compridas e que não marcam o corpo. Ainda no aeroporto da Espanha, preparada para embarcar para o Marrocos, uma mulher se aproximou. “Deus foi tão misericordioso comigo que me apresentou essa moça marroquina”, comenta. Essa ‘moça’ se chama Naima. A conversa foi bem simples, já que nenhuma das duas era fluente em inglês. “Você não é daqui. Para aonde você está indo?”, indaga Naima. “Estou indo para o Marrocos, mas para onde exatamente não sei”, explicou Gisela, mostrando o endereço que estava escrito em árabe. Ela levou várias frases no idioma para que os nativos entendessem com mais facilidade o que ela estava dizendo. “Não, você vai para minha casa, sozinha você não fica”, diz Naima, após olhar o endereço. “Como assim?”, responde Gisela, demonstrando espanto. De certa forma, ela não estava acostumada a esse tipo de abordagem. Perguntava-se: quem chama alguém para passar dias em sua casa sem ao menos conhecer o indivíduo? Naima mostrou fotos da família e finalizou: “Você estará segura, você não vai para o albergue”. Gisela aceitou a oferta. Que bom que o fez. Com o coração na mão, ela seguiu Naima até sua residência. Esse foi o primeiro contato dela com uma muçulmana. O que foi apreensão tornou-se uma experiência incrível. Por 15 dias, Gisela viveu na casa de Naima. “Eu nunca fui tão bem cuidada em toda minha vida. Ela cuidou de uma maneira que acho que nem minha mãe cuidou de mim”, comenta Gisela pausadamente, como se tentasse exprimir pela voz toda a gratidão que tem por esses dias no Marrocos. 17 Em um dia qualquer, Naima e sua família levaram Gisela para conhecer a principal mesquita de Casa Blanca, a maior cidade do país. A mesquita Hassam II é a segunda maior do planeta e um dos principais cartões-postais do Marrocos. Seu minarete13 tem 200 metros de altura, o mais alto do mundo. Como Gisela não era muçulmana na época, ela não pôde entrar na construção, mas, de certa forma, não foi necessário. Do lado de fora, ouviu o adhan, a chamada para a reza. “Eu nunca tinha escutado o adhan na minha vida. Quando eu ouvi, eu senti meu coração tremer. Eu não entendi nada, mas, para mim, aquilo que estava sendo dito era a verdade, e eu queria aquilo na minha vida”, explica Gisela. Depois de fortes experiências, Gisela estava de volta ao Brasil. Seu casamento não durou muito depois disso. De alguma forma, não estava bom. Sua vontade de se reverter também foi um empecilho para continuar, já que seu ex-marido não aceitava sua escolha. Não muito tempo depois, ela voltou ao Marrocos. “A mãe da Naima começou a me passar coisas básicas, a colocar o lenço, a rezar do jeito dela”, comenta. Após ter a certeza de que aquilo era o que queria, em agosto de 2011, ela estava novamente em São Bernardo do Campo, município em que morou por 15 anos e que, por todo esse tempo, nunca havia visto a mesquita da região. “Quando cheguei e procurei o endereço da mesquita mais próxima, apareceu essa, não estava acreditando. Eu tive que sair do meu país para aprender o que é o Islã e precisei voltar para estudar o Islã dentro do Brasil”, diz, curiosa. Então ela foi até a mesquita. “Eu já fui de véu e me explicaram o que precisava saber. Larguei tudo e embarquei de cabeça no Islã. Finalmente, encontrei a verdade que estava procurando na minha vida”, fala Gisela, com13 Torre alta nas mesquitas onde se anunciam os chamados para oração. 18 uma convicção inabalável. Através de sua voz, o Islã se torna tão real como algo que se pode tocar e sentir. “Eu vivi os dois mundos, o mundo antes de ser muçulmano e depois”, comenta Gisela, com 37 anos atualmente. “Essa é a Ana Paula, ela veio conhecer a mesquita e disse que só falta um dedo para ela se reverter”. “Então vamos cortar esse dedo fora”. A primeira lembrança do Islã são algumas muçulmanas passando na rua vestindo seus hijabs. “Que lindas, pensei”, mas Ana Paula ainda era nova e de outra religião. Não que isso significasse sua completa devoção: de certa forma, seguia por influência da família. Após completar 18 anos, Ana Paula deixou a religião evangélica de lado. Ela queria algo mais concreto, para se sentir, realmente, completa. Durante a transmissão da novela O Clone (2001), ela pesquisou mais sobre a cultura árabe e o Islã. O suficiente para que ela conhecesse o que ambos significavam e se encantasse ainda mais. Com o falecimento de sua mãe, Ana Paula sentiu que precisava entender outra religião diferente da professada por sua família, que era Testemunha de Jeová. “Passei por Umbanda, Espiritismo, mas foi o Islã que me tocou mais”, comenta. Mesmo com pouca idade, Ana Paula já era casada e tinha uma filha, Carolina. Sua vontade de acreditar em algo que lhe parecesse realmente verdadeiro venceu todas as barreiras. Através de uma muçulmana com a qual conversava pelo Facebook, ela conheceu a mesquita de São Bernardo. No mesmo dia, entrou em contato com o CDIAL, que fica localizado ao lado da mesquita e é uma das principais portas de entrada para a comunidade muçulmana da região. 19 “Estou querendo ir conhecer a mesquita”, falou Ana Paula, acanhada. “Vem agora, pode vir”, responde Rosangela, secretária do CDIAL. No mesmo dia, pela tarde, lá estava Ana Paula. A ansiedade era tanta que não esperou mais nenhum dia. “O que você achou? Gostou? Quer se reverter?”, questiona Rosangela, agitada depois de levá-la em um tour pela mesquita. “Não sei se quero me reverter, mas quero conhecer mais. Pelo que pesquiso, pelo que vejo, eu gosto muito e tudo me traz uma segurança que esse é o caminho certo”, responde Ana Paula. Por algumas horas, ela conversou com Rosangela e um dos Sheikhs que ficam no local. Esse foi a primeira visita, de muitas que vieram. Por cinco meses, ela frequentou a mesquita. As irmãs, os Sheikhs e a comunidade a acolheram. Em salas, dentro do CDIAL, Ana Paula passava as tardes aprendendo sobre o Islã. Com o tempo, o amor pela religião foi crescendo. As dúvidas eram sanadas. A vontade de se reverter crescia. Em maio de 2014, ela se tornou oficialmente muçulmana, após realizar a Chahada14. Por anos, ela sonhou em ter uma religião em que acreditasse realmente, e que se identificasse. O momento certo apareceu. “Para mim, soa natural, eu não lembro quando aprendi sobre o Islã, é como se já nascesse com isso em mim” - Najila Hasan Com a voz suave e riso fácil, Najila Hasan, de 24 anos, é uma menina que exala pureza. Não que ela seja ingênua, na verdade, ela sabe se cuidar 14 Testemunho de fé realizado para se tornar muçulmano. 20 muito bem. Parece que ela e o Islã foram feitos um para o outro, já que se combinam tanto. Najila é descendente de libaneses, nascida do amor entre dois primos. Casamentos entre primos são comuns no Líbano. Ela nasceu em São Paulo, local em que seu pai foi criado. Ela vem de uma família muçulmana tradicional, mas foi criada para fazer seu próprio caminho e ultrapassar obstáculos. Sua religiosidade é incontestável. Passa por cima de curiosidades momentâneas, sonhos e fantasias pelo Islã, e o faz com amor e certeza. Sempre foi assim. Escuta sobre Deus e o Islã desde criança. Na verdade, nem consegue lembrar-se exatamente quando foi que começou a aprender sobre, como se já tivesse nascido sabendo, como uma lembrança antiga que, em alguns momentos, confunde-se com um sonho. Najila estudou em uma escola islâmica desde a Educação Infantil até o terceiro ano do Ensino Médio. Nessa escola, havia aulas de religião para os muçulmanos. Lições similares a uma aula de teologia, ensinando e aplicando as diretrizes do Islã para crianças e adolescentes. Nessas aulas, decorava o Alcorão, aprendia a rezar, entendia a história de sua religião. Então, o Islã se tornou “seu”. “Desde pequena estudei lá, então já fui introduzida na religião e foi muito mais fácil”, explica. Enquanto ela fala sobre religião e como é ser muçulmana em diferentes locais do mundo, já que sempre viaja para o Líbano, não é possível pensar em nada, apenas: “era para ser”. De certo modo, nascer muçulmana em um país ocidental a fez escolher caminhos diferentes, porém, importantes para sua vida espiritual. Najila cursou Publicidade e Propaganda em uma grande universidade, trabalha em uma agência reconhecida, sai com as amigas de faculdade pelo menos uma vez ao mês, anda pelo shopping quando está entediada aos fins de semana, dirige, é livre, e segue o Islã à risca. 21 Seu hijab não foi imposto, pelo contrário. “Sempre gostei, sempre quis, sempre achei que era o certo, que era o meu momento de usar”, diz, com firmeza. Seu jejum não é supervisionado, suas rezas não são cobradas por ninguém. Seu dever, sua relação é com Deus, apenas. Tudo que faz, os caminhos que segue, e as escolhas tomadas são pensados e planejados para que suas obrigações como muçulmana não fiquem em segundo plano. Seu destino já estava traçado. Não havia possibilidade de ser outra pessoa e perder seu sorriso largo e olhos grandes, sua personalidade marcante e jeito brincalhão. Ela sabe quem é, o que tem a oferecer e tudo se encaixa perfeitamente. Najila é a cara do Islã. Do verdadeiro Islã. “Respeito e amor ao próximo, sempre. Independente das diferenças, deve haver respeito mútuo” - Fatima Cheaitou Nascida na Bahia, descendente de libaneses, youtuber, estudante de Jornalismo, a mais velha de três irmãs. Dá para ficar um tempo falando sobre o que Fatima Cheaitou, 19, é e faz. Ela é incrivelmente disposta a disseminar informações sobre o Islã, principalmente para pessoas que estão com vontade de entendê-lo. Aproximadamente 1.900 pessoas seguem-na no Facebook e quase 4 mil no YouTube com seu canal Fala, Fatuma. Seu papel de revelar o verdadeiro Islã está dando certo. Sua família é o grande alicerce de seu conhecimento sobre a religião, já que até cerca de 9 anos, não tinha contato com outros muçulmanos. Seu amor cresceu conforme ela amadurecia e enxergava o mundo ao seu redor. Com certeza, ela é uma pessoa determinada na causa “Islã”. Não que ela queira arrecadar revertidos, não é isso, ela quer que as pessoas vejam o que ela vê, todo esse amor e toda essa caridade da comunidade muçulmana. “Eu 22 desejo que chegue um dia que as pessoas entendam o que realmente é o Islã. Espero muito que eu possa ser um dos meios para isso, com o canal e as dúvidas que eu tento tirar, mas o que importa é que as pessoas compreendam a religião, vindo de mim ou dos outros”, expressa. Ela é feliz com o que faz. Ela é satisfeita com sua religião. Seus olhos se iluminam ao falar do Islã. Atualmente, Fatima mora no Líbano próximo a sua família. Aliás, o conhecimento e amor que adquiriu sobre sua religião foi um dos principais motivos de representá-la na web. Seu jeito meigo e atencioso encanta a todos que passam por seu caminho. Nada a impede de continuar sua missão: mostrar que a mulher muçulmana não é oprimida, que sua submissão é a Deus e que ela deve estudar e trabalhar, sim. Ela não precisaria ter essa ‘tarefa’. Ela conhece a realidade de sua religião, o amor que sua família e amigos lhe passam e o quanto é livre parafazer tudo que quer. “A não ser voltar às 4 da manhã para casa, mas não acho que tenha algo que me restrinja”, diz, em meio a risos. Ela é essa menina: divertida, feliz, disposta, mas que também sabe falar sério. Tem maturidade para ouvir sua família, conversar abertamente sobre assuntos importantes, ensinar e aprender com as diferenças. Humildade, amor ao próximo e conhecimento. É isso que aprende com sua religião. Como muçulmana que nasceu e viveu boa parte de sua vida em uma sociedade ocidental, ela sabe sobre as diferenças que existem entre as pessoas e entende muito bem como transformar certos muros em pontes. “A coisa mais importante para nós é a família. As pessoas passam na nossa vida e quem marca realmente é a família, ou quem a gente considera família” - Reine Sleiman 23 Aos 18, a caçula, única menina entre quatro irmãos, Reine Sleiman já tem muitas histórias para contar. Apesar dos conselhos dos pais, ela escolheu cursar Nutrição e preferiu seguir os próprios instintos. Seu brilho nos olhos, risada leve e fácil contrastam com seus momentos mais sérios enquanto explica sobre sua infância no Líbano, mas, mesmo assim, não perde a animação. Reine é do tipo de menina que faz horas parecer minutos. Seu pai veio para o Brasil e decidiu ficar a trabalho, quando ainda era muito nova. A cada dois meses, ele voltava ao Líbano, onde permanecia por mais 30 dias. Enquanto isso, ela ficava com sua mãe, irmãos e avós. A família é a coisa mais valiosa em sua vida e foi através deles que ela aprendeu sobre o Islã e sobre as doutrinas da religião. Aos 7 anos, Reine presenciou a Guerra do Líbano15 em 2006. Com pouquíssima idade, ela não entendia muito o porquê precisou deixar sua casa e passar as próximas semanas indo para a moradia de diversas pessoas da família. Para ela, isso até parecia férias. “Imagina, uma casa cheia de crianças? A gente subia no telhado e ficava vendo a fumaça dos bombardeios”, diz. Ela e seus primos brincavam de adivinhar o que aquela fumaça parecia. “Nossa, parece um camelo”. Ela e sua família ficaram próximos a cidades católicas que não estavam sendo atacadas, por um tempo. Da casa do tio, para casa do avô, para a casa da tia, para Turquia, depois Brasil. Esses trajetos não significavam muito para ela naquela época. A religião e a fé foram grandes alicerces para a família passar segurança a todas as crianças, mas nem sempre era possível conter as emoções. “Quando meu tio foi nos levar para o aeroporto, ele começou a chorar e eu falava: ‘Calma, calma, a gente já volta’. Eu achava que Brasil era do lado, sabe? Nem sabia que 15 Conhecida como Guerra de Julho, o conflito entre o norte de Israel e o sul do Líbano começou no dia 12 de julho, quando dois soldados israelenses foram sequestrados por soldados do Hezbollah. Em resposta, Israel começou um ataque forte por mar, ar e terra no sul do Líbano e Zona Sul de Beirute. Estradas, construções, pontes foram atingidas e destruídas. O cessar-fogo aconteceu no dia 14 de agosto, deixando 1.200 mortos, 5 mil feridos e quase um milhão de refugiados. 24 falavam português, achava que todo mundo falava árabe”, conta. Essa inocência de criança não se perdeu mesmo vivendo tempos de terror, como quando ficou sabendo que seu lar, o prédio que morava em Beirute, caiu totalmente. Desapareceu. Logo que chegou ao Brasil, a guerra terminou. Nessa mesma época, aos 7 anos, Reine já sabia praticar sua religião. “Eu já rezava direito e fazia jejum porque gostava”, diz, orgulhosa. Ela consegue demonstrar o quanto o Islã é importante para ela e sua família, por isso sente falta do Líbano. “Minha família é o que mais sinto falta de lá, por isso queria voltar”, comenta. Em todos os eventos, a família se reunia. Era a maior felicidade ver os primos juntos. Reine começou sua história em um momento de guerra e tristeza, mas nada disso influenciou em sua alegria e vontade de viver. Dessas experiências, ela consegue extrair apenas o lado positivo e acredita que isso é ser muçulmana. Essa ligação com Deus é clara. Tudo que acontece e aconteceu estava nos planos Dele. 25 A porta de entrada da mesquita de São Bernardo do Campo. Fica aberta até o último horário de oração. (FOTO: Thais Sanches) 26 O Alcorão Sagrado traduzido para o português disposto em uma prateleira no local onde as mulheres fazem suas orações na mesquita Brasil em São Paulo. (FOTO: Aline Batista) 27 Capítulo 2 O relógio ainda não marcava 13h e a Rua Henrique Alves dos Santos, em São Bernardo do Campo, estava tomada por homens e mulheres. Motoristas passavam com cautela pelas ruas estreitas na esperança de encontrar uma vaga para estacionar. Quem estivesse passando por ali pela primeira vez diria se tratar de algum evento especial, mas todas as sextas- feiras, nesse mesmo horário, o cenário é igual. É no número 205 que está localizada a mesquita Abu Bakr Assidik16, a única do Grande ABC. Por volta do ano 622, em locais com a população de maioria islâmica, eram construídas cidades ao redor de grandes mesquitas. Muçulmanos se reuniam cinco vezes ao dia para as rezas em horários definidos. As grandiosas construções amparavam a comunidade para confraternizações e aulas sobre religião, uma espécie de escola sobre o Islã. Esses princípios não ficaram presos no passado. Desde a expansão de comunidades muçulmanas ao redor do globo, as mesquitas foram construídas próximas de ummas17. São Bernardo, por exemplo, abriga aproximadamente 250 famílias libanesas. Sheikh Kamal nasceu no Líbano e vive na cidade localizada no Grande ABC há sete anos. Ele explica que muitos imigrantes árabes da região são primos, parentes distantes e conhecidos. “Eu vim para o Brasil por curiosidade e também para divulgar o Islã, mas fora isso tem uma cidade inteira aqui no país que é minha cidade do Líbano”, comenta Kamal. 16 Nome do primeiro califa da religião e companheiro do Profeta Muhammad. 17 Comunidades muçulmanas. 28 De longe, avistam-se duas torres, cada uma com aproximadamente 27 metros, altas o suficiente para chamar a atenção de motoristas e pedestres. A mesquita foi construída no fim de 1980 e é mantida pela Sociedade Islâmica de Beneficência Abu Bakr Assidik. O lema do local é: “Em nome de Deus clemente misericordioso”. As portas e portões da mesquita permanecem abertos dia e noite até o último horário de oração. O convite para entrar é irrecusável. A beleza do local se realça durante o dia quando a luz do sol passa pelas grandes janelas ao redor da construção. Da porta principal, um grande salão é revelado, há algumas cadeiras, e é revestido com um carpete vermelho. Em certos horários, o salão fica tão cheio de homens muçulmanos que a cor do chão sob seus pés desaparece. Do lado direito está o minbar18. Do alto, o Sheikh ou imam19 transmite seu conhecimento e ministra as orações de sextas-feiras, chamada de jummah, dia para a prática em comunidade, sendo o melhor dia da semana aos olhos de Deus. Muçulmanas não são obrigadas a rezarem na mesquita, porém é possível encontrar um grande número delas presentes. Elas rezam em um local diferente. Em São Bernardo, ficam acima dos homens. A separação é importante para que não haja contato visual. Tudo isso para que sejam evitadas distrações enquanto a Palavra de Deus é pronunciada. Elas entram por uma porta atrás da mesquita. Antes de pisar no carpete, os sapatos são removidos. Botas, sapatilhas, salto altos e calçados infantis são organizados em uma espécie de sapateira. Todas as mulheres (muçulmanas ou não) precisam estar devidamente cobertas. Mãos até o pulso e o rosto podem ficar à mostra.No caso dos homens, é inválido rezar com umbigo, costas e joelhos descobertos. 18 Uma espécie de púlpito, composto por escadas que levam até uma pequena plataforma, podendo ser feito de madeira, mármore ou alvenaria. 19 Sábio, estudioso da sharia, aquele que memorizou o Alcorão, responsável pela mesquita. 29 As muçulmanas também rezam sobre um carpete com linhas vermelhas diagonais que demarcam a direção para Kaaba 20 , em Meca 21 . Não se direcionar a Kaaba invalida a oração22. À direita da porta, um armário aberto com diversos tipos de hijabs e saias até os pés, aparatos necessários para que a oração seja válida. Na entrada da mesquita, estão expostos diversos fones de ouvido, um aviso de que o sermão será em árabe. Os fones são disponibilizados para os revertidos ou descendentes de árabes que ainda não são fluentes na língua do Alcorão. O entendimento da Palavra de Deus é importante. Nota-se esse cuidado com os revertidos e interessados pelo Islã desde a primeira visita à mesquita. Há quatro anos, Ana Paula marcava sua primeira ida ao local e, desde então, não parou de frequentar. O encantamento pela religião lhe custou caro, um divórcio, e a reprovação de sua família, mas, por outro lado, conquistou muitos amigos. “Até hoje, qualquer dúvida que eu tenho eles me explicam. Minha família se distanciou de mim, mas eu ganhei outra”, reflete Ana Paula. Em São Paulo, existem mais de 30 centros islâmicos espalhados pelo estado. No Brasil, esse número chega a aproximadamente 100 locais. Há diferentes tipos de lugares em que muçulmanos rezam. Quando não existem mesquitas por perto, são construídas mussalas, uma espécie de sala para oração. Entre janeiro e setembro de 2015, cinco centros islâmicos foram abertos em São Paulo para atender à população muçulmana, que cresce a cada ano. Em São Bernardo, por exemplo, o número de revertidos aumentou 20 Primeira casa de adoração de Allah. O local foi construído por Ismael, filho do Profeta Abraão. 21 Também conhecida como Makkah é a primeira cidade sagrada do Islã fundada por Abraão e seu filho Ismael por ordem divina. 22 De acordo com o livro do Sheikhh Al-Albani “Descrição da oração do Profeta Muhammad Do começo ao fim”, apenas em alguns casos o não direcionamento a Kaaba não invalida a oração. “Soldados na oração do medo ou durante a guerra. Quem estiver incapacitado, doente, ou estiver em um navio, carro, avião, se estiver andando montado em um cavalo”. 30 em 30% em 2014, e a quantidade de imigrantes ou descendentes de muçulmanos, mais ainda, 80%. Esse salto no número de revertidos e de novas construções para oração islâmica foi estimulado por novas formas de divulgar o Islã no país. Essa disseminação de informação ocorre de diversas maneiras: aulas de árabe oferecidas para comunidade, feiras de comida árabe, inclusão de refugiados muçulmanos na comunidade, Sheikhs brasileiros que se propõem a ensinar a Palavra de Deus e sobre os livros sagrados, entre outros. O Alcorão Sagrado é a principal fonte de ensinamentos e fé para os muçulmanos. O livro revela as palavras de Allah que, por intermédio do anjo Gabriel, chegou ao Profeta Muhammad. O Alcorão existe há mais de 15 séculos, e até hoje se encontra na língua original: o árabe. No livro, estão descritas a criação do universo, do homem, de leis que comandam aspectos sociais, morais, e econômicos. Sabedoria, doutrinas, rituais e leis são a essência do Alcorão. Com mais de 144 capítulos (surah ou surata), o Alcorão contém mais de 6.600 versículos (ayat). A Sunnah ou Suna é o segundo livro mais importante para os muçulmanos. O livro contém a maneira de vida do Muhammad, seus hadiths (dizeres), realizações, ensinamentos e costumes praticados por ele durante 23 anos, seu tempo como mensageiro de Deus. A Sunnah é usada pelos muçulmanos para que consigam seguir um caminho correto dentro dos valores do Islã. O livro traz explicações do que está escrito no Alcorão, como a prática da teoria. O que difere os sunitas e xiitas, nessa questão, são as interpretações dos hadiths. Há outra porta de entrada para o Islã em São Paulo (fora a busca por conhecimento dos grandes livros sagrados) e é por meio da mesquita Brasil. Hoje, é considerada uma atração turística na cidade por conta do tempo em que está construída e pela exuberância do local. A mesquita segue os padrões 31 e a riqueza dos templos muçulmanos construídos no Oriente Médio. O local é alto e iluminado, seja pela luz que entra através das janelas, ou pelas incontáveis lâmpadas e lustres pendurados no teto e pilares da construção. O carpete do local é verde com listras em um marrom claro. No teto e em parte dos pilares, estão desenhados lindos arabescos em dourado, amarelo, azul e marrom. É um pedacinho do Oriente Médio em São Paulo. As atividades religiosas começaram em 1927, no bairro Cambuci, e após 80 anos, é conhecida como uma das mais importantes mesquitas da América Latina. É possível agendar um tour pela mesquita para conhecer o local e entender mais sobre o Islã e suas práticas. Como uma construção, o Islã tem um alicerce sólido e seus pilares dão suporte para que os muçulmanos vivam de acordo com as diretrizes islâmicas. No total, existem cinco pilares, que devem ser seguidos por todos os que praticam o Islã. As ordens dos pilares foram escolhidas conforme os fundamentos que eram revelados por Allah e colocados em prática por Muhammad. Chahada: o início de uma nova página “Testemunho que não há outra divindade além de Allah e testemunho que Muhammad é o mensageiro de Allah.” É com essa declaração de fé, e com a intenção sincera de coração, que qualquer pessoa se reverte ao Islã. Esse depoimento é o primeiro dos cinco pilares da religião, chamado de Chahada. Não é possível aceitar a Allah sem antes estudar sobre o Islã, entender as doutrinas, o código de vida e o compromisso que está assumindo com Ele após recebê-lo como Deus único. 32 Mayssa frequentou a mesquita de São Bernardo por três meses sem realizar a Chahada. “Quero aprender mais sobre a religião antes de fazer.” Mesmo antes do testemunho, ela usa o hijab e já havia escolhido um novo nome: Ayat. Um dos Sheikhs da mesquita de São Bernardo, Hajj Ismael, aconselha que pessoas com nomes de entidades de outras religiões - ou em casos que gerem confusão - troquem de nome. Para ilustrar, ele comenta sobre seu caso. Na realidade, Ismael se chamava Israel, mas durante os anos em que foi para países do Oriente Médio estudar, passou por alguns problemas por conta de seu nome, principalmente em territórios inimigos de Israel. Por isso, para não pensarem que o nome dele foi escolhido por questões políticas, ele o trocou. “Isso é um conselho para homens e mulheres, mas não podemos obrigar ninguém a trocar de nome” esclarece o Sheikh. Os sábios da comunidade colocam-se à disposição para ensinar muçulmanos e revertidos sobre o Islã. Em qualquer visita, fazem questão de tirar dúvidas e dar livros importantes, inclusive o Alcorão traduzido para português. “Charles, que é o responsável na mesquita pela divulgação, se sentou para me explicar tudo. Eu falei que tinha dúvidas e comecei a perguntar. Ele me deu uma sacola também com Alcorão e livros. Eu fiquei encantada”, comenta Ana Paula, com um sorriso largo e olhar imerso em gratidão. Ana Paula preferiu entender tudo sobre a religião, questionar sobre passagens que ela não entendia do Alcorão antes de fazer o testemunho e reverter-se ao Islã. “Não se pode brincar com as coisas de Deus”, comenta. Sua Chahada aconteceu com a presença de um Sheikh e algumas mulheres muçulmanas. “Eu já estava me programando, já sabia o básico, já sabia como que é a religião, já estava me sentindo segura com a minhafé”, diz. 33 No caso de Ana Paula, ocorreu de um Sheikh estar na mesquita e participar como testemunha, porém, é possível fazê-lo sozinha em casa, caso não tenha nenhum muçulmano conhecido ou mesquita por perto. “Nós fazemos o testemunho diante de alguém para que sejamos reconhecidos como muçulmanas, como em um casamento, mas, na verdade, isso é entre criatura e criador”, esclarece Gisela. Em um dia qualquer, Ana Paula chegou e decidiu que esse era “o” dia. Então, ela ficou parada em frente ao Sheikh com o dedo indicador levantado. Esse movimento mostra a unicidade de Deus. Em seguida, é recitado o testemunho em árabe e português. “O Sheikh fala a frase e eu vou repetindo. Depois todo mundo fica contente e as mulheres te abraçam”, relembra com felicidade. O testemunho de Gisela foi algo gradual. Ela sempre soube a verdade sobre o Islã e só faltava expressar-se verbalmente. Quando estava no Centro Islâmico, em São Bernardo, buscando informações, ela já entendia o que essa religião significava para ela, porém não pensava no testemunho já que, por um tempo, não sabia que era necessário. “Meu inconsciente já era de uma muçulmana e, por mais que percebesse essa diferença, só faltava eu admitir com a minha palavra, com a minha língua, com a minha boca, porque o coração já era muçulmano”, diz Gisela. Foi em agosto de 2011, depois de um ano do Ramadan que havia realizado antes de conhecer completamente a religião, que aconteceu. “Eu estava na mesquita do Pari e uma das irmãs perguntou se eu tinha realizado a Chahada, eu disse que não, e foi naquele momento que fiz”, explica. Esse momento marcou sua vida, principalmente porque várias pessoas testemunharam a sua demonstração de fé. “Não há nada no nosso idioma ou em outro que possa demonstrar o que eu senti na hora. Você tem a garantia que não está sozinha”, recorda. 34 Gisele Marie Rocha, de 47 anos, realizou seu testemunho em 2009. Ela conheceu o Islã por meio do seu amor por leitura, história, literatura e cultura de diversos lugares do mundo. O primeiro contato que teve com muçulmanos foi através de um turco que se casou com sua tia. “Mas, eu nunca pensei que um dia eu me tornaria muçulmana”, comenta. Com sede de conhecimento, ela encontrou um site que oferecia aulas de árabe online e sem custo nenhum. Depois de meses estudando o idioma, encontrou o Alcorão na versão bilíngue e resolveu ler para testar seu árabe. “Se alguém me dissesse que eu ia me tornar muçulmana, eu provavelmente teria rido muito disto, até que eu li a seguinte frase na Surata 2 (Al Bakara): ‘(256) – Não há imposição quanto à religião, porque já se destacou a verdade do erro. Quem renegar o sedutor e crer em Allah, ter-se-á apegado a um firme e inquebrantável sustentáculo, porque Allah é Oniouvinte, Sapientíssimo’, essa frase mudou tudo para mim”, diz, alegremente. Foi o próprio Alcorão que a levou até o Islã. Gisele Marie realizou sua Chahada em sua própria casa, com suas filhas de testemunha. “Eu fiquei muito emocionada e chorei muito depois”, conta. Depois de algum tempo que começou a frequentar mesquitas e ser introduzida na comunidade muçulmana, ela recebeu um certificado de reversão ao Islã, em inglês, Islam Embracing Certificate. “É um documento oficial emitido pelas mesquitas e registrado na Arábia Saudita, que é como um documento islâmico”, esclarece. Este documento não é obrigatório para todos os muçulmanos, não é necessário ter esse certificado para que a sociedade te reconheça como muçulmano, porém, em algumas ocasiões esses documentos servem para tirar o RG com o hijab, por exemplo. É possível mostrar esse certificado para comprovar o motivo pelo qual se está usando o véu. Na peregrinação realizada anualmente para Meca, apenas muçulmanos têm a entrada permitida, por isso o certificado pode ajudar a participar com mais facilidade, 35 como um testemunho de boa fé. Até mesmo no casamento, o certificado pode ajudar a provar que está se casando com uma mulher ou homem muçulmano. Em países de minoria islâmica, esse certificado é emitido por meio das mesquitas. Consta o nome, data de nascimento, endereço, a data da Chahada, e as testemunhas (se houver). A Chahada traz o renascimento para alma. É como se voltassem a ser bebês de colo, livres de pecados e com a página em branco para recomeçar a vida. “É recomendado voltar para casa (depois do testemunho) e tomar banho. E então, seus erros anteriores são perdoados”, explica Ana Paula. Todas que realizaram o testemunho e hoje praticam o Islã reconhecem a grande diferença que a Chahada causou em suas vidas. “Eu tenho problemas como qualquer pessoa, mas levo a vida tranquila, diferente do que eu era antes, muito ansiosa, nervosa, antissocial. Antigamente eu não sorria, hoje eu sorrio de dentro para fora”, diz Gisela, com certeza. “No Islã, eu aprendi práticas que me facilitam diariamente e tudo, absolutamente tudo, depende de Deus” finaliza, feliz. Essa mudança também foi reconhecida por Ana Paula, que se sentia muito mais desligada com o divino antes da Chahada. “Hoje em dia, leio algo no Alcorão e aquilo me emociona. É a fé que eu escolhi”, reconhece. Até mesmo em questões de conforto espiritual com as coisas materiais houve mudanças após a religião entrar em sua vida. “Eu tenho que dar graças a Deus pelo que eu tenho, o que Allah decretou para nós temos que agradecer e ficar contentes com isso”, diz. É visível a força do Islã em meio às mulheres. O Islã é uma das poucas religiões que traz a mulher como um ser precioso para sociedade e expõe a sua importância no âmbito social, familiar e até econômico. Porém, para esse tipo de afirmação, não se pode levar em consideração as interpretações 36 extremas e machistas (presentes em qualquer religião) dos livros sagrados e das leis islâmicas baseadas neles. O primeiro passo em direção à verdade que encontraram foi dado. Oração: abra os olhos e converse com Deus A quantidade de mulheres e homens presentes na mesquita era o suficiente para duvidar de uma possível organização na hora de rezar, mas, em poucos minutos, as mulheres já estavam alinhadas às marcações no carpete em direção a Meca. As mais velhas estavam sentadas em cadeiras. Uma irmã passa fila por fila verificando os pés e as linhas: tudo precisa estar perfeito, nem muito para frente, nem para trás. Ombro a ombro, a oração se inicia com todos em pé. O silêncio se faz presente, apenas o imam comanda a reza. É necessário que a intenção esteja clara. Não é preciso que seja em voz alta, mas a força do pensamento é importante. As mulheres levam as mãos com as palmas viradas para cima até a orelha, e repousam a mão direita sobre a esquerda, próximo aos seios. O movimento sincronizado cria um som em meio ao silêncio. De acordo com Rosangela, esse gesto de juntar os braços traz conforto e acalma o coração. O primeiro capítulo do Alcorão é recitado, a Surah Al-Fatiha, que significa “A abertura”. É a oração mais importante do Islã e é pronunciada em todas as rezas durante o dia. A Surata de início tem sete versos clamando por orientação, louvor e misericórdia de Deus. Um coro masculino pronuncia: “Amin23”. Elas se curvam em uma posição de 90° em relação ao carpete. As mãos ficam estendidas nos joelhos, e os olhos fixos num ponto no chão. Essa posição significa a glorificação de Deus. Por alguns segundos, nada acontece. 23 “Que assim seja”. 37 Com a posição ereta novamente, após o som produzido por levantarem suas mãos na altura da orelha, a prostração completa é realizada. Esse movimento representa, literalmente, a submissão completa a Deus. Com a testa apoiada no carpete, é difícil diferenciar quem é quem. O que as distingue são os diversos tipos e cores de hijabs. Essa variedade cria uma harmonia detons que agrada aos olhos. Cada mulher coloca um toque de personalidade na reza. Algumas, principalmente as mais velhas, mantêm o semblante mais sério, concentrado. Outras exteriorizam uma leveza, como se estivessem em uma conversa tranquila com Deus. Todas, com suas particularidades e diferenças, formam uma sincronia ensaiada. Elas se levantam parcialmente e permanecem ajoelhadas. Poucos segundos depois, ficam em pé. Esse foi o primeiro ciclo da oração, chamado de rakat. Dependendo do horário, as quantidades de repetições do ciclo mudam. Na primeira oração do dia, são dois ciclos completos de oração. Na segunda e terceira, são quatro; na oração da tarde, são três; e na última do dia, são quatro. Esse número é obrigatório, mas é possível também fazer orações não obrigatórias. “Eu faço as cinco orações e, às vezes, faço algumas recomendadas”, conta Ana Paula. Todas se conectam na mesma frequência. Iluminadas, como o sol que permeia através da janela. Em alguns momentos, apenas o som da respiração das dezenas de mulheres é escutado. Como se suas reflexões se transformassem em música. Em seus pensamentos, pedem por suas famílias, agradecem por suas conquistas e levam a Ele suas aflições. Algumas se comovem após a oração. “Eu me emociono, principalmente na mesquita, quando eu vejo todo mundo se abaixando ao mesmo tempo”, comenta Ana Paula. 38 Fatima explica que, muitas vezes, as pessoas acabam rezando por dever e, por isso, não se emocionam com frequência. Quando ela se concentra, não consegue encontrar palavra que descreva o sentimento. “Nos momentos em que estou 100% na oração, sinto que estou conversando diretamente com Deus e é uma sensação indescritível, por isso tento focar e rezar com todo o coração sempre, para estar junto com Deus”, conclui. Os horários de oração são definidos em: Fajr, a oração da alvorada; Zuhr, a oração do meio-dia; Asr, oração da tarde; Maghrib, oração do pôr do sol; Inchá, a oração da noite. Quando Ana Paula está em casa, faz a oração dentro do quarto, em um pequeno espaço atrás da porta. Com a ajuda de uma bússola, encontra a direção a Meca. Ela explica que, quando está em outros locais, procura um lugar calmo e limpo para rezar. “Se eu estiver no banco e deu o horário de rezar, eu peço para alguém se tem alguma salinha para eu ir. Se deixarem, fecho a porta e faço a reza”. É obrigatória também a ablução para o muçulmano que rezará. “Antes de fazer a ablução, eu falo a intenção. Então, lavo as mãos, a boca, o nariz, o rosto, os braços até a altura do cotovelo, passo a mão molhada na cabeça, limpo os ouvidos e lavo os pés até o tornozelo, aí estou abluída”, exemplifica Ana Paula. A higiene pessoal é indispensável no Islã, assim como a purificação completa após relações sexuais, durante o período menstrual, em feriados religiosos e às sextas-feiras. De acordo com o livro O Profeta do Islã, Muhammad, de Sam Deeb, o Profeta dava conselhos como: use perfume, 39 depile os pelos pubianos e da axila, se vista com roupas limpas, lave as mãos e não toque na comida antes de lavá-las. “Nós temos que ter essa educação porque estamos diante do criador. Do mesmo jeito que a mulher se arruma para encontrar o namorado, temos que estar limpos, de banho tomado, perfumados, para estar diante do maior de todos, por respeito”, explica Gisela. Já estava na hora da reza do meio-dia e as mulheres se arrumavam. Um pequeno número sentou-se no primeiro local livre que encontrou. Essas mulheres eram não muçulmanas ou muçulmanas menstruadas. Rosangela saiu da ordem e pediu que arrumassem outro local para sentar, ao lado ou atrás delas. A explicação veio após a oração: não pode ter nada à sua frente durante a reza. “A sua intenção está diretamente direcionada a Meca, qualquer coisa que estiver nesse caminho muda a direção desse pensamento”, esclarece Rosangela. Mulheres muçulmanas não podem rezar menstruadas. Nesse período, elas eram proibidas de entrar nas mesquitas também. “No tempo do Profeta Muhammad, não existia absorvente, então, mesmo com os panos usados, as mulheres se sujavam e sujavam ao chão da mesquita”. Com essa comparação, Rosangela explica o motivo da proibição e da nova interpretação: elas podem entrar em mesquitas, mas ainda são proibidas de orar. Para os muçulmanos, a demonstração prática da fé é a oração. O fato de serem distribuídas em cinco horários segue a explicação de que, como necessitamos comer de três a quatro vezes ao dia para não reclamar de fome, é preciso também alimentar o espírito para sobreviver. A oração é o momento em que mais se aproximam de Deus. 40 “Eu tenho orgulho de fazer parte da religião que adora Deus 24 horas por dia”, exalta Gisela, que, mesmo quando não podia rezar no trabalho, juntava as três orações que perdia para fazê-las quando chegasse em casa, muitas vezes exausta com a rotina diária. “Até o dia em que eu dormi com a testa no tapete de cansaço e acordei com meu irmão batendo na porta. Precisei pedir perdão a Deus”, diz, em meio a risadas. Najila sempre procura um local para rezar: no trabalho, no cursinho ou no shopping. “Eu tento programar quantas horas vou ficar, se terei que rezar ou não, e sempre levo o que preciso”, comenta. Ela foi criada dentro das doutrinas do Islã e em uma escola islâmica. No colégio, por exemplo, tinha o horário de oração. No local de trabalho, as orações de Najila são realizadas em uma sala separada. Depois de algumas vezes que pediu a chave para adentrar o cômodo, já providenciaram uma cópia para ela, talvez como sinal de confiança ou pela praticidade. Ela já deixa uma saia que usa para rezar no trabalho. Tudo é planejado para que as rezas sejam feitas no horário certo e da forma correta. Quando estudava, Najila ia até o último andar pelas escadas, onde funcionava uma espécie de manutenção, para rezar. Isso porque sua faculdade é presbiteriana e não tinha um lugar para ela rezar. De alguma forma, ninguém passaria por ali para perturbá-la. “Usava esse cantinho porque era mais confortável e improvável de alguém passar por lá”, explica. E assim o fez por quatro anos. No caso de Reine, as rezas se fazem em blocos. Por falta de tempo em administrar o horário de estudos e trabalho de manhã, quando acorda atrasada, precisa correr para faculdade e perde a oração antes do nascer do sol. “Quando chego em casa, faço a primeira, a do meio-dia e da tarde”. À noite, ela consegue realizar as orações no horário proposto. Por questão de hábito, Reine e sua família não rezam juntos. “Normalmente, fica cada um no seu 41 quarto mesmo”, diz. “Só de terça e quinta que tem uma oração na mesquita e então rezamos juntos lá quando dá para ir”, conclui Reine. Organizar agenda e planejar o dia são funções que, hoje em dia, os celulares têm ajudado, e muito. Em horários específicos, o aparelho de Gisela começa a vibrar e tocar o adhan, o chamado para reza, para a recordação de Deus. É uma recitação de alguma surata falada em um ritmo sequencial. “É hora de rezar”, diz Gisela. Seja na faculdade, ou enquanto conversa com outras pessoas, o smartphone toca, e enquanto desabilita o alarme, simultaneamente, um largo sorriso aparece em seu rosto. No período noturno, os colegas de classe de Gisela abriam espaço para que suas súplicas fossem feitas dentro da sala de aula. Orgulhosa, ela comenta que todos a respeitam, e respeitam seu horário de rezar. “Eles até falam: ‘reza por mim, Gisela’”, conta feliz. Porém, agora estudando em uma sala menor, ela arrumou outra forma de rezar, em sua mesa. “O Islã é facilidade. Quando tinha espaço, esticava o tapete e rezava, mas agora, para não me constranger e constranger os colegas de classe, então rezo sentada. É preciso ter bom senso”, explica o motivo da mudança. Mesmo assim, pediu permissão para suas rezas nasecretaria da faculdade. “Vai, Gisela, já deu a hora de rezar”, lembra uma de suas amigas. Porém, como a reza normalmente é em horário de aula, prefere não interromper o professor, até porque há um limite de tempo para rezar, não é totalmente necessário que seja no mesmo minuto proposto. Fatima encontrava dificuldade em rezar na universidade e preferia fazê- lo em casa quando chegasse, local em que realiza as cinco orações diárias. “Em casa, todos têm um tapete de reza, para não precisar rezar no chão. Eu rezo todas as obrigatórias e raramente as recomendadas, por falta de tempo 42 mesmo. Sempre que consigo, tento rezar a mais e ler súplicas aconselháveis”, esclarece. Ela também revela a diferença dos países, já que na faculdade de São Paulo não conseguia rezar, e agora, no Líbano, não encontra problemas. “Na faculdade tem um local de reza, então não tenho dificuldade com isso”, ressalta Fatima. Ela ainda não trabalha, mas afirma que irá se esforçar para encontrar algum cantinho limpo para rezar sempre nas horas necessárias quando começar. Mesmo chegando tarde do trabalho, Najila procura sempre estar disposta a rezar. Normalmente, ela reza sozinha em certos horários. “Eu costumo chegar à noite e rezar sozinha. Na oração antes do nascer do sol, eu estou no meu quarto, acordo, faço a ablução e rezo lá mesmo”, diz. Mesmo assim, sabe da importância de rezar em conjunto. “Às vezes, meu irmão pergunta se alguém já rezou, aí se já estou abluída, acompanho ele, porque é mais benéfico fazer a oração em conjunto do que sozinha”, reconhece. Até a forma de achar a direção correta para Meca mudou. Hoje em dia, muitas pessoas utilizam aplicativos que mostram a direção, evitando o sofrimento de entender a posição do sol e outros itens que já não são mais tão necessários. “Antigamente, usávamos a bússola, mas hoje em dia tem um aplicativo. Antes era muito difícil, tinha que saber onde nasce o sol, virar para direita, era difícil, agora com o aplicativo é melhor”, expõe Najila. Um desses aplicativos se chama Crescent Trips e informa a direção para Meca enquanto está a 10 mil metros de altitude, ou seja, em voo. É possível programar um alarme para que toque no horário correto da oração de acordo com o fuso do local. É possível encontrar dezenas de outros aplicativos que exploram o mercado muçulmano, que vem crescendo a cada dia. 43 Caridade: purifique a alma e os bens O termo zakat, do vocabulário árabe, significa purificação, pois se acredita que o coração é limpo da ganância. Essa palavra gira em torno de uma ação: a caridade. No Cristianismo, a caridade é um ato de amor ao próximo. No Judaísmo, o altruísmo é chamado de justiça: amparar os necessitados é justo, não benevolência. No Islã, é uma obrigação. Doar tempo, dinheiro e comida aos necessitados é o terceiro pilar do Islã. Anualmente, todos os muçulmanos e muçulmanas devem retirar 2,5% dos bens ou fortuna que estejam parados (que não sejam para uso próprio) para doar aos pobres. “Do que eu ganho livre, eu faço um cálculo do que recebo no ano. Na época do Profeta, calculavam em ouro e prata, e hoje em dia, o cálculo é feito em ouro”, explica Ana Paula. Esse ganho deve ser igual ou maior que 85 gramas (hoje em dia, essa quantidade equivalente a R$ 11.021,95), dessa quantia que se retira a porcentagem. Se o muçulmano não possuir essa verba, não é preciso fazer esse tipo de doação. O zakat é uma responsabilidade individual. Diferentemente de outras instituições religiosas, as mesquitas não costumam arrecadar esse dinheiro: a doação feita em segredo é ainda mais exaltada por Deus. “O correto é doar para quem você conhece, porque você sente como que é a necessidade da pessoa”, diz Ana Paula. Na religião islâmica, crê-se que Allah é o dono de todos os bens, Ele que provê a riqueza para suas criaturas e, por isso, ajudar aos necessitados é um agradecimento pelas posses adquiridas. Nada conquistado na terra é levado para o reino dos céus. 44 A doação é feita para qualquer muçulmano que esteja passando por necessidade, e pode ser paga de diferentes formas, não necessariamente em dinheiro. “Eu tenho que fazer caridade, porque ela apaga os pecados”, afirma Ana Paula. Essa doação é uma obrigação religiosa que deve ser cumprida pelo menos uma vez ao ano, porém a caridade feita ao longo dos doze meses é muito incentivada no Islã. “Pelo menos uma vez por ano, doamos roupas”, explica Fatima. A sadaqa é outra doação feita para qualquer pessoa necessitada, sendo muçulmana ou não. Fatima explica que ela e sua família se esforçam para fazer uma sadaqa todo dia. “Colocamos dinheiro num pequeno cofre, nem que seja apenas uma moeda de 25 centavos. E no fim do mês, levamos esse cofre para instituições e orfanatos, tentamos ajudar mais os órfãos já que, infelizmente, aqui (no Líbano) tem muitas crianças que perderam suas famílias nas guerras”, ressalta. Por não ter a quantia necessária que atinja as 85 gramas de ouro, Ana Paula não faz o zakat, porém, sempre que pode, doa comida e dinheiro aos que precisam. “Faço marmita de comida e vou levar para moradores de rua. Tem um (morador de rua) que sempre nos cumprimenta e, quando passo com a minha filha, dou dinheiro e peço para ela entregar a ele, assim já vou ensinando ela também”, comenta. A família de Reine também realiza algumas doações durante o ano. “Mas não podemos falar para os outros o que estamos fazendo, porque é como se estivéssemos fazendo só para os outros saberem”, conta. Além do zakat, por ser xiita, Fatima e sua família realizam mais um tipo de caridade. “O khomus é a doação de um quinto do que você possui aos necessitados e instituições islâmicas que têm o intuito de fortalecer o Islã”, e 45 acrescenta: “Nós focamos mais no khomus do que no zakat, mas ambos são obrigatórios”, conclui. Outra doação que está escrita no Alcorão é o zakat Al-fitr. É uma doação na comemoração do último dia do Ramadan. “Geralmente, os Sheikhs pedem que sejam uns 15 reais, 20 reais no mínimo, mas essa quantia deve ser revertida em comida”, explica Ana Paula que, em 2017, recebeu uma cesta básica por meio dessa doação e também doou alimentos que ela não estava precisando a outras pessoas necessitadas. Grande parte das mulheres muçulmanas realizam atividades que, de alguma forma, ajudem o próximo. Muitas se tornam professoras, tutoras para as novas revertidas entenderem o Islã, enfermeiras, socorristas, coordenadoras de projetos sociais, nutricionistas, advogadas24, entre outras profissões que as permitam ajudar aos outros. “É muito importante que todos ajudem os outros, se não for através do trabalho, que seja algo a mais”, comenta Fatima. Ramadan: um mês de euforia, luz e súplicas “Seus dias são os mais excepcionais, suas noites as mais extraordinárias e suas horas as mais singulares” (Profeta Muhammad) Por volta das quatro da manhã25, aproximadamente 1,5 bilhão de pessoas ao redor do mundo acordará para tomar o café da manhã. Não que esse seja o horário normal desses indivíduos iniciarem suas as atividades 24 Dados retirados das entrevistadas e mulheres muçulmanas que conhecemos através desse livro- reportagem. 25 Os horários para o suhoor, o café da manhã, antes de começar o jejum diário muda de acordo com o fuso horário de cada estado ou país. Esse horário foi escolhido para ilustrar um período antes do nascer do sol. 46 diárias: é que durante o dia, até o pôr do sol, eles não irão consumir mais nada. Nem comida. Nem água. Nada. Por aproximadamente 30 dias, essa será a rotina de todos os muçulmanos. O jejum é o quarto pilar do Islã, chamado de Ramadan. Foi nesse período, no ano 610, que o Alcorão foi revelado por Deus ao Profeta. Com base nos hadiths de Muhammad, quem jejuardurante o nono mês lunar do calendário muçulmano com fé e intenção será perdoado pelos pecados que cometeu. Todo ano, o dia que começa o Ramadan muda. Isso porque os muçulmanos não seguem o calendário solar gregoriano para definir as datas de seus feriados religiosos, como a maioria da população mundial. O calendário lunar islâmico tem doze meses, sendo que cada mês tem de 29 a 30 dias, antecedendo 11 dias anualmente em relação ao calendário ocidental. “Acompanhamos o calendário gregoriano por conta de negócios, do país, mas seguimos o islâmico”, conta Gisela. No ano de 2017 (1438-1439 no calendário muçulmano)26, o mês do Ramadan se iniciou no dia 27 de maio e terminou em 25 de junho. Em países de maioria muçulmana, a rotina de todos muda. Restaurantes e cafés ficam fechados durante o dia e abrem à noite. As empresas, escolas e comércios diminuem o horário de funcionamento. Dessa forma, não há “tentações” durante o período de abstinência. Enquanto o sol está alto no céu, essas cidades parecem desertas. De acordo com Fatima, no Líbano, por exemplo, muitas pessoas trocam o dia pela noite, preferindo passar o período de jejum em casa, e saindo para comer de noite até madrugada adentro. 26 O começo do calendário muçulmano não ocorreu a partir da revelação do Alcorão e, sim, da hégira, no ano de 622. Os primeiros seguidores de Muhammad eram poucos, mas conseguiram importunar a elite comercial de Meca com a ameaça de destruir as imagens de deuses politeístas – que gerava turismo e renda à nobreza de Meca. Os seguidores do Profeta - e ele mesmo - estavam sendo ameaçados e por isso precisaram fugir para uma cidade mais aberta. Eles pararam em Medina, que estava a 300 km ao norte de Meca. Essa migração marcou o começo do calendário islâmico. 47 Em países ocidentais, não há esse tipo de mobilização. Os muçulmanos se privam de comida, bebida, pensamentos hostis e mentiras, gerando autocontrole, empatia, disciplina, purificação espiritual e física. “Devemos manter uma excelente conduta moral para se aproximar mais de Deus”, explica Fatima. Já os ocidentais almoçam, tomam água, as padarias continuam funcionando, as empresas operam normalmente, a correria, o trânsito caótico, as intolerâncias, a indiferença. Tudo isso permanece. Najila precisa trabalhar durante o Ramadan e, por isso, não consegue quebrar o jejum em família. “Eu levo marmita para a agência, dá o horário, e eu vou comer sozinha no refeitório. Não tem como esperar para comer em casa, senão ficaria mais duas, três horas em jejum”, expõe. Depois que começou a trabalhar, tudo ficou um pouco “sem graça”, mas mesmo com a correria do dia a dia, Najila relembra dos momentos bons que já passou durante o Ramadan. “Você está em casa, come junto com todo mundo. Você sente uma calma, é bem gostoso”. Faz quatro anos que Ana Paula jejua no mês do Ramadan. Ela conta que logo que fez a Chahada, as irmãs já comentavam sobre a abstinência. “Comecei a pensar ‘como eu vou fazer para ficar o dia todo sem comer? Seja o que Deus quiser’. E aí começou e eu fiz direitinho os trinta dias. A partir daí, nunca deixei de fazer”, conta, orgulhosa. Crianças, idosos, pessoas enfermas, mulheres em período menstrual, viajantes, e grávidas estão isentos do jejum no mês do Ramadan, porém todos que estiverem em condições temporárias deverão ficar em abstinência quando for possível antes do próximo Ramadan. Outros que estiverem em situações permanentes devem alimentar um necessitado a cada dia que não jejuarem. Fatima diz que já precisou ficar sem jejuar e se sentiu estranha em fazê- lo. “Enquanto a mulher está menstruada, ela não pode jejuar. Como é algo 48 natural do corpo da mulher, só repomos esses dias depois. Mas, mesmo assim, é estranho não estar de jejum já que todos estão, eu sinto como se estivesse fazendo algo errado, mesmo não estando”, afirma. Desde os 7 anos, quando ainda morava no Líbano, Reine faz o jejum. “Mas acho que minha mãe não deixava eu fazer o mês todo, ou quando sentia sede, ela me dava água”, diz, se esforçando para lembrar. Para ela, esse é o melhor mês do ano. “Eu amo essa época. A família toda fica unida, vêm amigos da família, amigos dos meus irmãos, então comemos todos juntos, depois de comer ficamos na mesquita umas duas horas e voltamos para casa”, comenta, com a voz em um tom de felicidade. Para os muçulmanos, esse é o período em que Deus está mais misericordioso, além de ser um mês de grandes bênçãos, porém, é preciso que seja seguido de forma exemplar: quem quebra o jejum sem motivos deve ficar em abstinência por 60 dias seguidos ou alimentar 60 necessitados. Se o jejum for quebrado por algo haram, proibido, a pessoa deverá ficar por 60 dias em privação e alimentar 60 necessitados. Ana Paula cozinha para Carol, sua filha de 7 anos, inclusive durante o jejum. “Ela perguntou por que eu não ia almoçar e eu expliquei. Ela pensou e disse: ‘Eu também vou ficar sem comer?’, e eu falei para ela que criança não faz Ramadan, vai treinando aos pouquinhos”, revela Ana, antes de comentar a grande tentação que é sentir o cheiro da comida durante o dia. “O comer, beber e fazer sexo não me faz falta, porque Deus supre tudo, ainda mais no Ramadan porque é uma entrega total”, enfatiza Gisela, que também jejua toda terça e quinta. Tudo que faz para Deus se tornou sua rotina, seja o Ramadan, as orações ou o uso do hijab. Reine também costuma jejuar fora do mês do Ramadan, por isso, ficar sem comer não é um problema para ela. “Você se sente bem, porque você faz 49 algo pensando nos outros. Está te aproximando de Deus e fazendo você sentir o que o outro sente”, comenta. Por vezes, quando recebem convidados para a quebra do jejum, Fatima ajuda sua mãe na preparação da comida, principalmente da sobremesa. “A gente acaba se acostumando, nem nos incomodamos mais com a fome ou cansaço”, conta, após dizer que faz o jejum desde os 9 anos de idade, quando ainda morava no Brasil. “Meu primeiro Ramadan foi em 2007 e foi difícil pra mim, porque estudava em uma escola islâmica que ficava muito longe de casa, todo dia uma hora de trajeto, então, muitas vezes, acabava tendo que quebrar o jejum já que não conseguia aguentar o cansaço”. Ela ainda diz que muitas vezes o refluxo a fazia passar mal, e então precisava quebrar a abstinência. No dia 9 de junho, o programa matutino da Rede Globo, Encontro com Fatima Bernardes, abriu um espaço de 15 minutos para falar sobre o Ramadan. O Sheikh Rodrigo Rodrigues, convidado do programa, comentou sobre o intuito de jejuar desde o amanhecer até o pôr do sol. “Um dos motivos do jejum é a pessoa se dominar, se conhecer. O jejum educa a pessoa a sentir um pouco o que milhares de pessoas sentem todo dia. Nós temos o momento de quebrar o jejum, quantas pessoas nesse Brasil não têm esse momento?”, explica Rodrigo. “O jejum em si não é apenas de comida, é também dos maus hábitos da pessoa, tentar evitar fazer fofoca, xingamentos. É a renovação da alma”, acrescentou a libanesa Dunia, que mora há 13 anos no Brasil. “Quando estamos com fome e sede, costumamos nos tornar mais humanos e mais sensíveis às necessidades dos outros”, afirma Fatima. Ela também se lembra das recompensas positivas do jejum para o corpo e alma. “Cada versículo do Alcorão lido durante o Ramadan equivale à recompensa de quem leu o Alcorão inteiro em outro mês”. Fatima conta que passou os últimos dias do Ramadan de 2017 no Irã, um país islâmico. “Este ano foi incrível. Era um ambiente totalmente religioso, o 50 tempo todo vivendo o real significado da religião e desse mês sagrado. Esse ano foi quando entendi completamente o significado e o valor do jejum”, informa Fatima. Com Gisela, cada Ramadan é uma nova aventura. Em 2017, especialmente, já que foi o primeiro ano que estava
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