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LABORATÓRIO DE PRODUÇÃO EDITORIAL I Prof. Thiago Mio Salla Seleção de Originais – O Conto Bases – Forma Simples e Conto Literário Acepções da Palavra Conto 1. Relato de um acontecimento; 2. Narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3. Fábula que se conta às crianças para diverti-las (CASARES, Julio apud CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio, 1974) Ponto em comum das três abordagens: discurso integrado que trata de uma sucessão de acontecimentos de interesse humano e apresenta unidade de ação. Em regra, tal tipo de narrativa costuma também dispor de unidade de espaço e de tempo. Bases – Forma Simples e Conto Literário Forma simples – legenda, saga, mito, advinha, ditado, caso, chiste etc. – “poesia popular que sai do coração do Todo” – indeterminação histórica; possibilidade de ser recontado; moral ingênua que se opõe ao trágico real; estrutura tradicional (abertura, desenvolvimento e desfecho) – conto maravilhoso – mobilidade, generalidade, pluralidade X Forma artística – o conto literário – novela toscana – “alma individual” – marcada pela solidez, peculiaridade e unicidade – narração fragmentada. Poe Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus1, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. (POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. 3ª ed. revista São Paulo: Globo, 1999.) 1 “Ficando iguais às demais coisas”, isto é, “sem que haja modificação de outras características”. Poe Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a originalidade em vista, pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros efeitos, ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na ocasião atual escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o tom - com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom - depois de procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito. (POE, Edgar Alan. op. cit.) Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto” Definições O conto enquanto “uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência” (pp. 150-151). O conto parte da noção de limite – limite físico – não tem o tempo como aliado – parentesco com a fotografia (ao passo que o romance, desenvolvido até o esgotamento da matéria romanceada, seria análogo ao cinema, pois trabalharia pelo acúmulo de elementos parciais) – limitação ao significativo – “recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara” (p. 151) – valer por si mesmo e impactar o leitor mediante a abertura para algo que estaria além do argumento literário contido no conto. “Um escritor argentino, muito amigo do boxe, dizia-me que nesse combate que se trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por knock-out” (p. 152). O conto se mostra incisivo e mordente desde suas primeiras frases; prescinde de elementos decorativos; atuação num eixo vertical (sem a horizontalidade do romance). Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto” Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto” Tema/assunto – Intensidade – Tensão Tema/assunto – elemento significativo – escolha de acontecimento real ou fictício (caso exemplar) capaz de irradiar alguma coisa para além dele mesmo – excepcional (que pode ser insólito ou trivial), mas que como um imã atrai “todo um sistema de relações conexas” (p. 154) – o conto enquanto um sol, e o contista como um astrônomo das palavras – aglutinação de uma realidade mais vasta que a do seu mero argumento – conto enquanto “a semente onde dorme a árvore gigantesca”. Não haveria privilégio para o conto anedótico – Tchecov – acontecimento e cenas cotidianas, mas que propõem uma quebra, uma ruptura na ordem banal das coisas. Para além do tema, destaque para a técnica empregada para desenvolvê-lo – intensidade e tensão. Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto” Intensidade da ação – eliminação de tudo aquilo que não converge essencialmente para o drama: “O que chamo intensidade num conto consiste na eliminação de todas as ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige”. Tensão interna da narrativa – aproximação gradual daquilo que se conta – não sabemos o que vai acontecer, mas estamos presos a atmosfera por ele criada – destaque não propriamente para os fatos, mas para a malha sutil que os desencadeia. Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto” Intensidade da ação – eliminação de tudo aquilo que não converge essencialmente para o drama: “O que chamo intensidade num conto consiste na eliminação de todas as ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige”. Tensão interna da narrativa – aproximação gradual daquilo que se conta – não sabemos o que vai acontecer, mas estamos presos a atmosfera por ele criada – destaque não propriamente para os fatos, mas para a malha sutil que os desencadeia. Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto” Comprometimento e motivação entranhável / lucidez e segurança do ofício: “Contrariamente ao estreito critério de muitos que confundem literatura com pedagogia, literatura com ensinamento, literatura com doutrinação ideológica, um escritor revolucionário tem todo o direito de se dirigir a um leitor muito mais complexo, muito mais exigente em matéria espiritual do que imaginam os escritores e os críticos improvisados pelas circunstâncias e convencidos de que seu mundo pessoal é o único mundo existente, de que as preocupações do momento são as únicas preocupações válidas”. Cortázar – “Do Conto Breve e seus Arredores” “Decálogo do Perfeito Contista” – “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo para obter a vida no conto” (QUIROGA apud CORTÁZAR). Vida própria para além do demiurgo – autarquia – a voz narrativa não deveria se sobrepor às personagens – vantagem no emprego da primeira pessoa (união entre ação e narração) e de uma terceira pessoa que se dedica a narrar (sem se distanciar da história e emitir juízos sobre personagens e acontecimentos). Máxima economia de meios – eliminação de exórdios (prólogos), circunlóquios, desenvolvimentos – pequeno ambiente – forma fechada – esfericidade – domínio desse universo diminuto. Exorcismo – separação entre autor e criaturas – resultado batalha entre autor e expressão – a vida e a expressão escrita dessa vida – “Um contista eficaz pode escrever narrativas literariamente válidas, mas se alguma vez tiver passado pela experiência de se livrar de um conto como quem tira de cima de si um bicho, saberá a diferença que há entre possessão e cozinha literária, e por sua vez um bom leitor de contos distinguirá infalivelmente o que vem de um território indefinível e ominoso,e o produto de um mero métier” (p. 231). Fascínio e desprendimento da realidade imediata – “De um conto assim se sai como de um ato de amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco com um olhar de surpresa, de lento reconhecimento, muitas vezes de alívio e tantas outras de resignação” (idem, ibidem). Cortázar – “Do Conto Breve e seus Arredores” “Cada vez que me tocou revisar a tradução de uma de minhas narrativas (ou de tentar a de outros autores, como alguma vez com Poe) senti até que ponto a eficácia e o sentido do conto dependiam desses valores que dão um caráter específico ao poema e também ao jazz: a tensão; o ritmo; a pulsação interna; o imprevisto dentro de parâmetros previstos… essa liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda irreparável” (pp. 234-235). A comunicação entre contista e leitor – a partir do poema/conto visto como objeto autônomo que surpreende inicialmente seu primeiro leitor, o autor. Cortázar – “Do Conto Breve e seus Arredores” Piglia – Teses e Novas Teses sobre o Conto Num de seus cadernos de notas, Tchekhov registra esta anedota: "Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se". A forma clássica do conto está condensada no núcleo desse relato futuro e não escrito. Contra o previsível e o convencional (jogar-perder-suicidar-se), a intriga se oferece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa cisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias (PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o Conto”. In: Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 89). Piglia – Teses e Novas Teses sobre o Conto O sentido de um relato tem a estrutura do segredo (remete à origem etimológica da palavra: se-cernere, pôr à parte), está escondido, separado do conjunto da história, reservado para o final e em outra parte. Não é um enigma, é uma figura que se oculta. [...] Há algo no final que estava na origem, e a arte de narrar consiste em postergá-lo, mantê-lo em segredo, até revelá-lo quando ninguém o espera (PIGLIA, Ricardo. “Novas Teses sobre o Conto”. In: Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 106-107). O conto é construído para revelar artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa remota terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud. Essa iluminação profana converteu-se na forma do conto (PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o Conto”. In: Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 94). Piglia – Teses e Novas Teses sobre o Conto Atividade – “O Travesseiro de Pena” “O Travesseiro de Pena” (“El Almohadón de Plumas”, 1907), de Horacio Quiroga (1878-1937). In: ALVES-BEZERRA, Wilson. “Centenário de um Clássico de Horacio Quiroga:”. Revista USP, São Paulo, n.75, set./nov. 2007, pp. 140-147. Texto publicado inicialmente na revista Cara y Caretas, em 13 de julho de 1907, em uma página e meia (contando-se as ilustrações), e apresentando algo em torno de 1256 palavras. Originais Reprovados: Segundo Exemplo I Crê num mestre – Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov – como na própria divindade. II Crê que sua arte é um cume inacessível. Não sonha dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem que tu mesmo o saibas. III Resiste quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência. IV Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração. Decálogo de Quiroga V Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas. VI Se queres expressar com exatidão esta circunstância – “Desde o rio soprava um vento frio” -, não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupa em avaliar se são consoantes ou dissonantes. VII Não adjetiva sem necessidade, pois são inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo. Decálogo de Quiroga VIII Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distrai vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abusa do leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja. IX Não escreve sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho. X Ao escrever, não pensa em teus amigos nem na impressão que tua história causará. Conta como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto. Decálogo de Quiroga
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