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o_conto_lab_1_2020

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LABORATÓRIO DE PRODUÇÃO 
EDITORIAL I
Prof. Thiago Mio Salla
Seleção de Originais –
O Conto
Bases – Forma Simples e Conto Literário
Acepções da Palavra Conto 
1. Relato de um acontecimento;
2. Narração oral ou escrita de um acontecimento falso;
3. Fábula que se conta às crianças para diverti-las
(CASARES, Julio apud CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio, 
1974)
Ponto em comum das três abordagens: discurso integrado que 
trata de uma sucessão de acontecimentos de interesse humano 
e apresenta unidade de ação. Em regra, tal tipo de narrativa 
costuma também dispor de unidade de espaço e de tempo.
Bases – Forma Simples e Conto Literário
Forma simples – legenda, saga, mito, advinha, ditado, caso, 
chiste etc. – “poesia popular que sai do coração do Todo” –
indeterminação histórica; possibilidade de ser recontado; 
moral ingênua que se opõe ao trágico real; estrutura 
tradicional (abertura, desenvolvimento e desfecho) – conto 
maravilhoso – mobilidade, generalidade, pluralidade 
X
Forma artística – o conto literário – novela toscana – “alma 
individual” – marcada pela solidez, peculiaridade e unicidade 
– narração fragmentada. 
Poe
Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de 
uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito 
imensamente importante que se deriva da unidade de 
impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios 
do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é 
imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus1, 
nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que 
possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, 
qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade 
resultante. Digo logo que não há.
(POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton 
Amado. 3ª ed. revista São Paulo: Globo, 1999.)
1 “Ficando iguais às demais coisas”, isto é, “sem que haja modificação de outras 
características”.
Poe
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. 
Mantendo sempre a originalidade em vista, pois é falso a si 
mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão 
evidente e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: 
"Dentre os inúmeros efeitos, ou impressões a que são suscetíveis 
o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, 
na ocasião atual escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto 
novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor 
trabalhar com os incidentes ou com o tom - com os incidentes 
habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a 
especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom - depois de 
procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas 
combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem 
na construção do efeito. (POE, Edgar Alan. op. cit.)
Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto”
Definições
O conto enquanto “uma vida sintetizada, algo assim como um 
tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa 
permanência” (pp. 150-151).
O conto parte da noção de limite – limite físico – não tem o 
tempo como aliado – parentesco com a fotografia (ao passo 
que o romance, desenvolvido até o esgotamento da matéria 
romanceada, seria análogo ao cinema, pois trabalharia pelo 
acúmulo de elementos parciais) – limitação ao significativo –
“recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe 
determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue 
como uma explosão que abra de par em par uma realidade 
muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende
espiritualmente o campo abrangido pela câmara” (p. 151) –
valer por si mesmo e impactar o leitor mediante a abertura 
para algo que estaria além do argumento literário contido no 
conto.
“Um escritor argentino, muito amigo do boxe, dizia-me que 
nesse combate que se trava entre um texto apaixonante e o 
leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o 
conto deve ganhar por knock-out” (p. 152). O conto se mostra 
incisivo e mordente desde suas primeiras frases; prescinde de 
elementos decorativos; atuação num eixo vertical (sem a 
horizontalidade do romance).
Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto”
Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto”
Tema/assunto – Intensidade – Tensão
Tema/assunto – elemento significativo – escolha de 
acontecimento real ou fictício (caso exemplar) capaz de irradiar 
alguma coisa para além dele mesmo – excepcional (que pode ser 
insólito ou trivial), mas que como um imã atrai “todo um sistema 
de relações conexas” (p. 154) – o conto enquanto um sol, e o 
contista como um astrônomo das palavras – aglutinação de uma 
realidade mais vasta que a do seu mero argumento – conto 
enquanto “a semente onde dorme a árvore gigantesca”.
Não haveria privilégio para o conto anedótico – Tchecov –
acontecimento e cenas cotidianas, mas que propõem uma 
quebra, uma ruptura na ordem banal das coisas. Para além do 
tema, destaque para a técnica empregada para desenvolvê-lo –
intensidade e tensão.
Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto”
Intensidade da ação – eliminação de tudo aquilo que não 
converge essencialmente para o drama: “O que chamo 
intensidade num conto consiste na eliminação de todas as 
ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases 
de transição que o romance permite e mesmo exige”.
Tensão interna da narrativa – aproximação gradual daquilo 
que se conta – não sabemos o que vai acontecer, mas estamos 
presos a atmosfera por ele criada – destaque não 
propriamente para os fatos, mas para a malha sutil que os 
desencadeia.
Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto”
Intensidade da ação – eliminação de tudo aquilo que não 
converge essencialmente para o drama: “O que chamo 
intensidade num conto consiste na eliminação de todas as 
ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases 
de transição que o romance permite e mesmo exige”.
Tensão interna da narrativa – aproximação gradual daquilo 
que se conta – não sabemos o que vai acontecer, mas estamos 
presos a atmosfera por ele criada – destaque não 
propriamente para os fatos, mas para a malha sutil que os 
desencadeia.
Cortázar – “Alguns Aspectos do Conto”
Comprometimento e motivação entranhável / lucidez e 
segurança do ofício:
“Contrariamente ao estreito critério de muitos que confundem 
literatura com pedagogia, literatura com ensinamento, 
literatura com doutrinação ideológica, um escritor 
revolucionário tem todo o direito de se dirigir a um leitor muito 
mais complexo, muito mais exigente em matéria espiritual do 
que imaginam os escritores e os críticos improvisados pelas 
circunstâncias e convencidos de que seu mundo pessoal é o 
único mundo existente, de que as preocupações do momento 
são as únicas preocupações válidas”.
Cortázar – “Do Conto Breve e seus Arredores”
“Decálogo do Perfeito Contista” – “Conta como se a narrativa não 
tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas 
personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo 
para obter a vida no conto” (QUIROGA apud CORTÁZAR).
Vida própria para além do demiurgo – autarquia – a voz narrativa 
não deveria se sobrepor às personagens – vantagem no emprego 
da primeira pessoa (união entre ação e narração) e de uma 
terceira pessoa que se dedica a narrar (sem se distanciar da 
história e emitir juízos sobre personagens e acontecimentos).
Máxima economia de meios – eliminação de exórdios (prólogos), 
circunlóquios, desenvolvimentos – pequeno ambiente – forma 
fechada – esfericidade – domínio desse universo diminuto. 
Exorcismo – separação entre autor e criaturas – resultado batalha 
entre autor e expressão – a vida e a expressão escrita dessa vida –
“Um contista eficaz pode escrever narrativas literariamente 
válidas, mas se alguma vez tiver passado pela experiência de se 
livrar de um conto como quem tira de cima de si um bicho, saberá 
a diferença que há entre possessão e cozinha literária, e por sua 
vez um bom leitor de contos distinguirá infalivelmente o que vem 
de um território indefinível e ominoso,e o produto de um mero 
métier” (p. 231).
Fascínio e desprendimento da realidade imediata – “De um 
conto assim se sai como de um ato de amor, esgotado e fora do 
mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco com um olhar 
de surpresa, de lento reconhecimento, muitas vezes de alívio e 
tantas outras de resignação” (idem, ibidem).
Cortázar – “Do Conto Breve e seus Arredores”
“Cada vez que me tocou revisar a tradução de uma de minhas 
narrativas (ou de tentar a de outros autores, como alguma vez 
com Poe) senti até que ponto a eficácia e o sentido do conto 
dependiam desses valores que dão um caráter específico ao 
poema e também ao jazz: a tensão; o ritmo; a pulsação 
interna; o imprevisto dentro de parâmetros previstos… essa 
liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda 
irreparável” (pp. 234-235).
A comunicação entre contista e leitor – a partir do 
poema/conto visto como objeto autônomo que surpreende 
inicialmente seu primeiro leitor, o autor.
Cortázar – “Do Conto Breve e seus Arredores”
Piglia – Teses e Novas Teses sobre o Conto
Num de seus cadernos de notas, Tchekhov registra esta 
anedota: "Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha 
um milhão, volta para casa, suicida-se". A forma clássica do 
conto está condensada no núcleo desse relato futuro e não 
escrito. 
Contra o previsível e o convencional (jogar-perder-suicidar-se), 
a intriga se oferece como um paradoxo. A anedota tende a 
desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa cisão 
é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto. 
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias (PIGLIA, 
Ricardo. “Teses sobre o Conto”. In: Formas Breves. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2004, p. 89).
Piglia – Teses e Novas Teses sobre o Conto
O sentido de um relato tem a estrutura do segredo (remete à 
origem etimológica da palavra: se-cernere, pôr à parte), está 
escondido, separado do conjunto da história, reservado para o 
final e em outra parte. Não é um enigma, é uma figura que se 
oculta. [...] Há algo no final que estava na origem, e a arte de 
narrar consiste em postergá-lo, mantê-lo em segredo, até 
revelá-lo quando ninguém o espera (PIGLIA, Ricardo. “Novas Teses 
sobre o Conto”. In: Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 
pp. 106-107).
O conto é construído para revelar artificialmente algo que 
estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma 
experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca 
da vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz 
descobrir o desconhecido, não numa remota terra incógnita, 
mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud. 
Essa iluminação profana converteu-se na forma do conto 
(PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o Conto”. In: Formas Breves. São Paulo: 
Companhia das Letras, 2004, p. 94).
Piglia – Teses e Novas Teses sobre o Conto
Atividade – “O Travesseiro de Pena”
“O Travesseiro de Pena” (“El Almohadón de Plumas”, 1907), 
de Horacio Quiroga (1878-1937). In: ALVES-BEZERRA, Wilson. 
“Centenário de um Clássico de Horacio Quiroga:”. Revista 
USP, São Paulo, n.75, set./nov. 2007, pp. 140-147. 
Texto publicado inicialmente na revista Cara y Caretas, em 13 
de julho de 1907, em uma página e meia (contando-se as 
ilustrações), e apresentando algo em torno de 1256 palavras.
Originais Reprovados: Segundo Exemplo
I
Crê num mestre – Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov – como na 
própria divindade.
II
Crê que sua arte é um cume inacessível. Não sonha dominá-la. 
Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem que tu mesmo o saibas.
III
Resiste quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito 
forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da 
personalidade é uma longa paciência.
IV
Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no 
ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, 
dando-lhe todo o coração.
Decálogo de Quiroga
V
Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde 
vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a 
mesma importância das três últimas.
VI
Se queres expressar com exatidão esta circunstância – “Desde o rio 
soprava um vento frio” -, não há na língua dos homens mais 
palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas 
palavras, não te preocupa em avaliar se são consoantes ou 
dissonantes.
VII
Não adjetiva sem necessidade, pois são inúteis as rendas coloridas 
que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é 
preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é 
preciso achá-lo.
Decálogo de Quiroga
VIII
Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, 
sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distrai 
vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não 
abusa do leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos. 
Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja.
IX
Não escreve sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a 
revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, 
à metade do caminho.
X
Ao escrever, não pensa em teus amigos nem na impressão que tua 
história causará. Conta como se teu relato não tivesse interesse 
senão para o pequeno mundo de teus personagens e como se tu 
fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto.
Decálogo de Quiroga

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