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nº 1 • JAN-FEV-MAR 2020 Revista da Universidade do âncer Os desafios do Câncer Expediente Direção Geral: Simone Bonecker Revisão: Bruno Bonecker Rua Carolina Santos 119, Meier - RJ 20720-310 tel: (21) 4132-7122 www.universidadedocancer.com.br Comunicado Importante A Revista da Universidade do Câncer é uma publicação de cunho estritamente acadêmico produzida pela Universidade do Câncer e publicada pela Editora Bonec- ker, e imparcial sem nenhuma relação com indústrias farmacêuticas, hospitais, socie- dades brasileiras, universidades, organiza- ções não governamentais ou instituições de qualquer natureza. Tampouco a opinião dos entrevistados e autores dos artigos publicados espelham ou expressam as opi- niões da Universidade do Câncer. Temos como objetivo principal a democratização e divulgação do conhecimento sobre o Câncer. Os resultados aqui expostos são frutos de resultados de pesquisas acadê- micas e devem ser interpretados dentro deste contexto. Em nenhum momento estamos sugerindo ou indicando troca de tratamento, medicamento ou exames. TODA e qualquer dúvida sobre diagnósti- co, tratamento, medicamento ou acompa- nhamento de doença, deve ser direciona- da um médico especializado (clínico geral, oncologista, hematologista, geneticista clí- nico ou outro). Nada substitui a consulta ao seu clínico. Sumário PERSONAGEM por Simone Bonecker Janet Rowley (1925-2013) médica, geneticista, pesquisadora, primeira cientista a associar uma translocação cromossômica como causa de uma leucemia, a Leucemia Mieloide Crônica, mudando o entendimento da biologia do câncer na época. TEMA DA CAPA por Simone Bonecker Desafios no câncer, o que esperar para os próximos anos? Este tema aborda o aumento da incidência de câncer no Brasil e quais desafios tem que ser superados para um melhor controle desta neoplasia de alta complexidade. AVANÇOS NO CÂNCER por Simone Bonecker CAR-T: Por que essa terapia atraiu os holofotes recentemente e o que espera dela? Discuti o papel desta promissora terapia no câncer, desde seu desenvolvimento até o obstáculo de virar uma rotina clínica. FATOR DE RISCO por Simone Bonecker Fatores de risco não modificáveis para câncer de mama – São esses: gênero, idade, raça/etnia, fatores reprodutivos e hormonais, genética e histórico familiar e como estes afetam a probabilidade de desenvolvimento da doença. LEITURA DE ARTIGO CIENTÍFICO “The inherited p53 mutation in the Brazilian populations” da Maria Isabel Achatz e Gerard Zambetti 4 7 15 21 25 Editorial Mais um ano que se inicia e como todo mês de janeiro, refle- timos, planejamos, idealizamos o próximo ano. Por isso, con- vido a todos a uma reflexão sobre os desafios do câncer no Brasil, entendemos que este é um problema mundial, porém as estatísticas (taxa de incidência, taxa de mortalidade, cân- ceres mais frequentes) entre os países desenvolvidos e em desenvolvimentos são bem diferentes, assim como seus de- safios, por isso não entraremos no mérito global, e sim uma reflexão nacional do tema. Também não entraremos em debates políticos e sugestão de mudanças no sistema de saúde, apesar de concordamos que boa parte dos avanços necessários viriam dessa área de atuação. Atuamos na área Educacional e queremos incentivar o debate, a discussão, difusão e democratização do conhe- cimento. Ao divulgarmos conhecimento para os profissio- nais da saúde e população em geral, sobre os mecanismos de carcinogênese, fatores de risco, prevenção, importância do diagnóstico precoce, exames e tratamentos disponíveis, estaremos conscientizando sobre a importância das políticas de rastreamento populacional, favorecendo o diagnóstico precoce e aumentando taxas de cura. Queremos de maneira bem ambiciosa, contribuir com a redução nas taxas de inci- dência e mortalidade desta neoplasia. A ignorância e o des- conhecimento não farão esta doença sumir; o conhecimento e a informação podem identifica-la e trata-la o quanto antes. Ajude-nos na divulgação e difusão do conhecimento. Caso você deseje contribuir com alguma informação adicional ou identifique algum dado errado ou desatualizado, favor entrar enviar um e-mail para: contato@universidadedocancer.com. br. Sua contribuição é imprescindível! Nesta nossa primeira edição, trazemos como Personagem do Câncer, a pesquisadora Janet Rowley (1925-2013) por seu enorme papel não só nos estudos das leucemias, mas no en- tendimento da biologia do câncer de uma maneira geral. Sua descoberta dos cromossomos envolvidos na translocação res- ponsável pela formação do Cromossomo Filadélfia modificou a visão desta neoplasia. Antes achava-se que estes rearranjos eram uma consequência do câncer e com o tempo foi de- monstrado que na verdade eles eram a causa. Permitindo o desenvolvimento de drogas alvo específicas para o tratamen- to desta leucemia em particular, a Leucemia Mieloide Crônica e de outros tumores. Além do uso deste cromossomo e seu produto gênico como excelentes biomarcadores diagnósticos e de acompanhamento de doença residual mínima. Simone Bonecker 4 Revista UC Janet Rowley (1925-2013) Por que Janet Rowley? Por ser mulher? Por ser pioneira em sua área? Por que mudou o curso de uma doen- ça? Simplesmente quis começar a edição desta revista trazendo uma pessoa que pessoalmente me inspirou, impactou minha pesquisa e carreira. Uma renomada pesquisadora que tive a honra de conhecer pessoalmente durante um congresso. Uma pessoa gentil, simpática e extremamente inteligente que tive o prazer de conhecer, em setembro de 2012, durante um Congresso Internacional de Leuce- mia Mieloide Crônica (International Chronic Myeloid Leukemia Foudation). Ela e o também falecido e renomado John Goldman entregaram o prêmio, que leva seu nome “Rowley Prize”, para o pesquisador George Daley, por suas contribuições na área. Uma pesquisadora que pensava como tal, questionadora e intrigada, não ficava revivendo suas glórias passadas, falava sobre que estudava, sobre os avanços nos mecanismos patogenéticos da leucemia mieloide aguda. Ao final da palestra me apresentei, nem tinha entrado no doutorado ainda, faria a prova em dezembro deste mesmo ano. Reconheci o trabalho dela na área e entre outras perguntas técnicas acabei perguntando qual foi o maior desafio pessoal dela. Ela, com uma voz calma e branda disse: “Essa geração quer colher enquanto planta. Eu publiquei o artigo descrevendo a translocação 9,22 aos 48 anos, juntando as fotos em minha mesa de jantar, pois era o único lugar que meus filhos não me- xiam, eu só trabalhava meio período nesta época. Muita coisa deu errado antes de dar certo, sempre dá, mas os artigos só mostram o que o deu certo. Seja persistente, você vai errar, seus experimentos darão errado, você vai pensar em desistir. Recomece quantas vezes forem necessárias, aprenda o básico para poder aplicar, pense simples, foque em responder a sua hipótese com base nos seus resultados e só depois seus frutos estarão pron- tos para serem colhidos”. Ali percebi uma sabedoria que seria incapaz de conseguir lendo seus artigos e sua biografia, levei para o meu doutorado e para vida suas palavras. Ela estava certa, errei, os experimen- tos deram errado, tivemos que readequar objetivos, mas fizemos colaborações incríveis, aprendi, cres- ci, defendi o doutorado com três filhos depois de 5 anos, e hoje continuo plantando para colher os meus frutos mais adiante. Entendo o processo e hoje, co- meçando com esta revista, tenho o objetivo de plan- tar conhecimento sobre câncer, para que no futuro, quem sabe, possamos colher prevenção da doença, diagnósticos precoces, redução na incidência por há- bitos modificáveis e melhora na qualidade de vida! Juntos sei que podemos fazer a diferença. Personagem por Simone Bonecker 5JAN-FEV-MAR 2020 Como ela mudou o curso das leucemias? Foi ela quem definiu o seguinte paradigma: siga a alteração genética nas células cancerígenas e então encontrará uma maneirade encontrar a droga certa para o paciente. Há o câncer antes e depois de Rowley, costumavam dizer só cân- cer de pulmão, agora é câncer de pulmão não pequenas células com mutação L858R no gene EGFR sensível ao inibidor tirosina quinase. Havia sido a primeira vez que o câncer foi asso- ciado a um rearranjo cromossômico, não como causa e sim como consequência da doença. Ela permitiu uma melhor compreensão da pato- gênese tumoral. Métodos diagnósticos foram mais precisos, tratamentos foram mais asserti- vos. Suas descobertas permitiram o desenvolvi- mento do primeiro inibidor alvo específico para um tipo de câncer, mudando de vez a curva de sobrevida dos pacientes com leucemia mieloi- de crônica, que anteriormente tinha um tempo médio de sobrevivência de três a quatro anos e agora provavelmente vive sua vida normal, após a entrada deste inibidor. Janet reconheceu que o cromossomo Filadé- lfia não era uma exclusão do cromossomo 21 ou cromossomo 22, como se pensava, mas sim uma translocação recíproca entre os cromosso- mos 9 e 22. Descreveuuma versão aberrante do cromossomo 22 truncado, o cromossomo Fila- délfia (que recebeu este nome por ser a cidade dos pesquisadores que o identificaram, padrão de nomenclatura) acompanhado por um cro- mossomo 9 alongado. Observou ainda que este estava presente entre mais de 95% dos pacien- tes com leucemia mieloide crônica. Em 1977, ela identificou uma terceira translo- cação, em pessoas com leucemia promielocítica aguda. Sua descoberta ajudou no entendimen- to do mecanismo por trás de um medicamento eficaz: o ácido retinóico. Um derivado da vitami- na A, o medicamento restaura a função normal do seu receptor de proteína interrompido. Mais uma vez revolucionado o tratamento desses pa- cientes e aumentando sobrevida. Quem foi ela? Janet nasceu em Nova York, mas mudou-se com sua família para Chicago antes dos 2 anos de idade e passou maior parte de sua lá. Ela participou do que era então conhecido como uma faculdade de quatro anos, um programa instituído na Universidade de Chicago por Ro- bert Maynard Hutchins, que era o Chanceler na época, mas teve que esperar nove meses para se matricular, porque a escola já havia atingido sua cota de mulheres: três em uma classe de 65 anos. Em 1948, Janet formou-se em medicina pela Universidade de Chicago. No dia seguinte à sua graduação em 1948, ela se casou com um colega de classe, Donald Rowley, que mais tarde se tornou um patologista.Depois deum estágio no Serviço Público de Saúde e uma pequena passagemem clínicas pré-natais, ela começou a estudar neurologia. Em 1955 come- çou a trabalhar com crianças com síndrome de Down e em 1959, um artigo publicado por Lejeu- ne e colaboradores relatando a presença de um cromossomo 21 adicional na síndrome de Down, aguçaram seuinteresse pela citogenética. Quan- do o marido tirou uma licença sabática na Ingla- terra em 1961, ela recebeu uma bolsa de estudo com Laszlo Lajtha, um hematologista do Chur- chill Hospital em Oxford e começou a examinar os cromossomos no laboratório. Com base nes- sa experiência, foi apontada como pesquisadora associada da Universidade de Chicago em 1962, realizando os seus primeiros estudos de replica- ção de normale cromossomos anormais. De 1962 a 1975, passou a maior parte do tempo criando seus quatro filhos e, assim, trabalhou em sua pesquisa apenas3 dias por semana. Por causa de sua eficiência e resultados significa- tivos, ela tornou-se professora associada em 1971 e professora titular em 1978. Durante um segundo período sabático em Ox- ford, ela aperfeiçoou técnicas para manchar os cromossomos, facilitando sua identificação. Ela foi a primeira a perceber que pedaços de cromos- somos em algumas células cancerígenas huma- nas haviam se quebrado e trocado de lugar - um fenômeno conhecido como translocação. Sabe- se agora que a translocação que ela identificou 6 Revista UC entre os cromossomos 8 e 21 é responsável por até 12% dos casos de leucemia mielóide aguda. Ela publicou o trabalho em um artigo de autoria única em junho de 1973. No mesmo mês, ela publicou um artigo na Nature que caracteriza- va uma anormalidade genética encontrada em pessoas com leucemia mielóide crônica. A descrição de que a translocação 9;22 estava presente em pacientes com leucemia mieloide crônica foi encarada com ceticismo por seus pares e passou despercebida por alguns anos. Acreditavam que essa era consequência e não causa da doença. Após apresen- tar seu trabalho em uma reunião no Young Turks, em 1973, nin- guém fez nenhuma pergunta, seus resultados foram igno- rados pela plateia. É interes- sante notar que seu artigo de 1973 na revista Nature foi um artigo de autor único, algo que raramente vemos nos dias de hoje. Mais tarde, diversos capítulos sobre citogenética, especificamente de leucemias e princípios genéticos, foram es- critos e ela não foi nem mencionada ou convi- dada a escrevê-los, como é o caso da edição 2ª e 3ª, de 1977 e 1983, respectivamente da revista William Hematology. Ela e sua colega, Michelle Le Beau, foram convidadas somente na 4ª edi- ção, em 1989. Esse foi um marco importante na aplicação dos cromossomos nas análises das leucemias e na carreira de Janet. Na década de 1980, cada uma das anormalidades havia sido caracterizada molecularmente, revelando que as translocações criam proteínas de “fusão” que impulsionam o crescimento celular. Desde então, dezenas de translocações foram encon- tradas em outros tipos de câncer. Janet teve seu reconhecimento no mundo todo. Ela recebeu o Prêmio Dameshek da Sociedade Americana de Hematologia em 1982; foi eleita para a Academia Nacional de Ciências em 1983; apresentou a Palestra Stratton na Sociedade In- Druker, B. Janet Rowley (1925-2013). Nature 505, 484 (2014) doi:10.1038/505484a E Beutler. Introduction to Janet D Rowley. Leukemia 2000, 14, 511–512. Lejeune J, Gauthier M, Turpin R. Etude des chromosomes somatiques de neuf enfants mongoliens. CR Acad Sci 1959; 248: 1721. Rowley JD. A new consistent chromosomal abnormality in chronic myelogenous leukemia identified by quinacrine fluorescence and Giemsa staining. Nature 1973; 243: 290–293. Nature J. D. Rowley Nature 243, 290–293; 1973 ternacional de Hematologia em 1986; a palestra de Karnofsky na Sociedade Americana de Onco- logia Clínica em 1987; ganhou o prêmio Mott do General Fundação de Pesquisa do Câncer Motor em 1989; recebeu o Prêmio Allen da Sociedade Americana de Genética Humana1991; foi Pre- sidente da Sociedade Americana de Recursos Humanos Genética em 1993; recebeu o Prêmio Gairdner em 1996; o Prêmio de Pesquisa Clínica Albert Lasker em 1998; e a Medalha Nacional da Ciência em 1998. Além disso, ela foi reconhe- cida por receber cinco diplomas honorários. Era uma militante ativa, apesar de servir no Conselho de Bioética do ex-presidente dos EUA, George W. Bush, ela criticou fortemen- te a política do governo que proibia o financiamento fede- ral de pesquisas com células- tronco embrionárias. Em 2009, ela ficou ao lado do presidente Barack Obama quando ele sus- pendeu a proibição. Qual os desafios ainda existem? O desenvolvimento de metodologias cada vez mais sensíveis corroboraram com o avanço no conhecimento da genética do câncer. Permitin- do detectar uma única célula tumoral em meio a diversas células sadias em seu microambien- te, contribui para o desenvolvimento de medi- camentos mais específicos, com menos efeitos colaterais. Este campo da oncologia que é a me- dicina personalizada,tem desafios além dos be- nefícios citados, mas gostem dela ou não, é um caminho sem volta. O foco da discussão não é se esta é ou não útile sim como devemos nos ade- quar a ela. Principalmente levando em conside- ração as questões regulatórias, capacitação de médicos e profissionais da saúde e em como tor- ná-la acessível e sustentável para a maioria dos pacientes e para o próprio sistema de saúde.• 7JAN-FEV-MAR 2020 Desafios no CâncerO QUE ESPERAR PARA OS PRÓXIMOS ANOS por Simone Bonecker 8 Revista UC Nós vivemos em um país em desenvolvimento, que tem pas-sado por diversas mudanças, entre elas o envelhecimento da população (Figura 1) e estilos de vida com hábitos alimenta- res não-saudáveis e sedentarismo. O ônus do câncer tem aumenta- do à medida que as doenças infecciosas tem sido controladas. No Brasil, o câncer continua no pódio das principais causas de mor- te. Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA), cerca de 582 mil novos casos foram registrados em 2018 e para este ano a estimativa se mantém quase a mesma, 600 mil novos casos. Se você acha que cada vez mais pessoas têm sido diagnosticadas com câncer, sua impressão é corroborada com dados. Apesar de observarmos uma redução na mortalidade por câncer nas últimas duas décadas, o problema está longe do fim, pois o diagnóstico segue aumentando.Os resultados positivos sobre os índices de mortalidade podem ser relacionados à uma redução significativa na mortalidade por câncer de pulmão, um dos tipos mais comuns, por causa da queda no consumo de tabaco nos últimos anos. In- clusive, o Brasil é pioneiro e exemplo no combate ao tabagismo e a consequência é o decrescimento das taxas relacionadas ao câncer de pulmão. Segundo dados do INCA, a doença foi responsável por 26.498 mortes em 2015, mas desde meados da década de 1980, essa taxa de incidência vem diminuindo para os homens e desde meados de 2000 para as mulheres. Este padrão é observado devi- do a adesão e cessação tardia das mulheres ao tabaco. No fim do século XX, o câncer de pulmão se tornou uma das principais causas de morte evitáveis. No entanto, o desenvolvimento de novos tratamentos e estraté- gias de prevenção, incluindo testes de triagem como: mamogra- fias, exames de sangue e colonoscopia e os exames de rastreamen- to genético, ainda são apontados como os principais responsáveis pela redução da mortalidade, levando a diagnósticos cada vez mais precoces e maiores taxas de cura. Em contrapartida, o maior obstá- culo será adaptar os tratamentos a cada tipo de doença, a chama- da medicina personalizada, uma vez que cada pessoa terá uma va- riante única da doença, o que tornará o tratamento mais oneroso. Figura 1: Pirâmide etária da população brasileira divida por faixa etária e separada pelo sexo no ano de 2010 e as estimativas para os anos de 2020 e 2030. (Fonte: IBGE site) Fatores de risco São fatores (hábitos, am- biente ou hereditário, por exemplo) associados ao aumento do risco de se desenvolver uma doença. 9JAN-FEV-MAR 2020 A redução das desigualdades entre as regiões e classes sociais também é um obstáculo a ser su- perado. Apesar do Brasil ter conseguido aumen- tar o percentual de casos de câncer de mama diagnosticados nos estágios in situ e I de 17,3% para 27,6% em 15 anos (2000 – 2015), essa pro- porção ainda baixa se considerarmos a região Norte (12,7%), em comparação com as regiões Sul (29,2%) e Sudeste (30,8%). Isso pode ser in- terpretado tanto pela dificuldade ao acesso a mamografia quanto pela desinformação desta necessidade. O percentual de mulheres brasilei- ras, com idade entre 50 a 69 anos, que fizeram o exame em 2013, de acordo com a última Pesqui- sa Nacional de Saúde, foi de 60%, mas de ape- nas 38,7% na região Norte e 47,9% no Nordeste, bem abaixo das regiões Sul (64,5%) e Sudeste (67,9%). Quando segmentadas pelo nível de instrução, as mulheres que realizaram mamo- grafia, com a mesma faixa etária, foi observado que 80% das que tinham nível superior fizeram o exame, em contrapartida, somente 50% entre as que possuíam fundamental incompleto ou sem instrução. Outro desafio, um dos maiores talvez, seja es- clarecer os mitos que cercam a doença. Com tantas pessoas ainda acreditando em chás mi- lagrosos e sem clareza sobre a importância do estilo de vida para a prevenção desta doença. Como bem pontuou o Dr Jean Rene Clemenceau no congresso anual da sociedade americana de Oncologia Clínica de 2019 (do inglês: American Society of Clinical Oncology), PREVENÇÃO e EDUCAÇÃO são as ações fundamentais para me- lhorar o atendimento ao câncer. O investimen- to em capacitação de pessoas, equipamentos e campanhas educacionais também são desafios a serem enfrentados nós próximos anos, princi- palmente com o avanço tão rápido do conheci- mento nesta área. Manter a atualização de re- comendações, novos protocolos é um obstáculo que pode ser superada por meio de educação continuada desses profissionais. Se um terço de todos os cânceres tem quatro fatores de risco em comum (tabagismo, dieta e obesidade, álcool e sedentarismo),talvez a pri- meira ação para reduzir a incidência de alguns cânceres seja fosse a conscientização da im- portância dos hábitos de vida mais saudáveis, como: prática regular de exercícios físicos, in- gestão de alimentos saudáveis, não fumar, evi- tar a ingestão de bebidas alcoólicas, para citar alguns. Estas ações podem ser implementadas com baixíssimo custo, veja alguns exemplos so- bre a importância do combate e algumas medi- das que podem ser adotadas. Figura 2: quatro principais fatores de risco que estão associados a um terço de todos os cânceres: sedentarismo, tabagismo, consumo de bebida alcoólica e dieta e obesidade. 10 Revista UC O desafio ao tabagismo Importância Se ninguém fumasse no Brasil, 1 a cada 3 mortes por câncer se- riam evitadas! Considerando principalmente: câncer, doença cardíaca e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), 156.216 mortes anuais poderiam ser evitadas. Chocante esse número, né? Aproveito para esclarecer que isso NÃO quer dizer que: Todos as pessoas que fumam terão câncer ou que os não fumantes não de- senvolverão câncer. Quer dizer simplesmente que, estatisticamen- te os fumantes possuem uma maior probabilidade de desenvolver diversos tipos de câncer quando comparado aos não fumantes. A associação entre o tabaco e o câncer de pulmão é conhecida deste os primeiros trabalhos publicados no JAMA (Journal of the American Medical Association) em 1950. Quando falamos de ci- garro, sem dúvida o primeiro câncer que vem em nossas mentes é o de pulmão, e de fato, 90% de todos os cânceres de pulmão tem como fator de risco principal o tabagismo. Mas esse ainda é responsável pelos cânceres de: bexiga; pâncreas; fígado; colo do útero; esôfago; rins; de laringe (cordas vocais); na cavidade oral (boca); faringe (pescoço); estômago e leucemia mieloide aguda. O que é e por que faz mal? Entende-se por tabagismo uma doença crônica causada pela de- pendência à nicotina, uma das 4.720 substâncias químicas que estão presentes na fumaça do cigarro e um dos mais agressivos. Inclusive, este é classificado como doença e está inserido no Có- digo Internacional de Doenças (CID-10) no grupo de transtornos mentais e de comportamento devido ao uso de substância psi- coativa. Há diversas variedades de produtos derivados do tabaco que podem ser usados de diversas formas: fumo/inalado, aspira- do, mascado ou absorvida pela mucosa oral, sendo no Brasil, o fumado a forma predominante. Conhece-se pelo menos 70 agentes cancerígenos (= produtos, neste caso, químico, causador de câncer) presentes na fumaça, entre eles: o arsênio, amônia, níquel, benzopireno, cádmio, nitro- saminas, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAP), resíduos de agrotóxicos, substâncias radioativas, como o Polônio 210, ace- tona, naftalina e até fósforo P4/P6, substâncias usadas em vene- no para matar rato. Cigarros eletrônicos (também conhecidos como Dispositivos ele- trônicos para fumar), narguilé e derivados–estudos sobre emis- sões dos cigarros eletrônicos identificou mais de 80 compostos em seus aerossóis, entre eles: nicotina, formaldeído, acetaldeído, nitrosaminas, metais pesados, como níquel, cromo, manganês e 11JAN-FEV-MAR 2020 chumbo (associados a alguns tipos de cân- cer, danos em órgãos e danos aos sistemas imunológico e cardiovascular), compostos igualmente cancerígenos.Ainda, o uso do cigarro eletrônico quadriplicou a chance de um indivíduo começar a fumar, segundo uma revisão sistemática de estudos científicos. Usá-lo em ambientes fechados também po- de causar danos à saúde relacionados à ex- posição ao aerossol emitido, aproveitamos para lembrar que a comercialização, impor- tação e propaganda deste no Brasil é proibi- da, segundo Resolução da Diretoria Colegia- da (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nº 46 de 2009. Já o nar- guilé, o INCA alerta: “Parece inofensivo, mas fumar narguilé é como fumar 100 cigarros”. Tabagismo passivos Entende-se como a inalação da fumaça de derivados do tabaco por indivíduos não fu- mantes que convivem com fumantes em ambientes fechados respirando as mesmas substâncias tóxicas que o fumante inala. Po- de ser: cigarro, charuto, cigarrilhas, cachim- bo, narguilé ou outros. Os fumantes passivos, expostos a inalação involuntária à fumaça do tabaco, também possuem o risco, se expostos por longos pe- ríodos, a câncer de pulmão e doenças car- díacas (doença pulmonar obstrutiva crônica - enfisema pulmonar e bronquite crônica). Uma vez que a fumaça que sai da ponta do cigarro e se difunde homogeneamente no ambiente, contém em média três vezes mais nicotina, três vezes mais monóxido de carbo- no e até 50 vezes mais substâncias cancerí- genas do que a fumaça que o fumante inala. O que fazer? Como a maioria dos fumantes se torna de- pendente até os 19 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o taba- gismo uma doença pediátrica. Por isso, para conter a epidemia do tabagismo, diversas medidas fazem-se necessárias, entre elas: conscientização sobre o perigo do cigarro, principalmente para adolescentes e jovens, incluindo o alerta aos “novos” tipos de ci- garros, como cigarros eletrônicos e narguilé; controlar o avanço de vendas para menores de idade e propaganda, principalmente na internet, para esses jovens, assim como ofe- recer programas de formações específicos voltados aos profissionais da saúde, da edu- cação e outros. Controle do tabaco no Brasil Esse é um dos tópicos que devemos nos orgulhar do nosso país, temos que avançar nesta área, sem dúvida, sempre há, mas o trabalho já realizado e os resultados obtidos são notórios. Além do percentual de fuman- tes acima dos 18 anos continuar caindo, de 15,6% para 9,3%, ou redução de 40%, no pe- ríodo de 2006 a 2018.O Brasil foi o segundo país (atrás da Turquia) a implementar as seis estratégias, todos com nível de excelência das propostas no pacote de intitulado MPo- wer contra o tabagismo. Este pacote inclui: • Monitorar (Monitor) o uso do tabaco e políticas de prevenção • Proteger (Protect) a população contra a fumaça do tabaco • Oferecer (Offer) ajuda para a cessação do fumo • Advertir (Warn) sobre os perigos do tabaco • Fazer cumprir (Enforce) as proibições sobre a publicidade, promoção e patrocí- nio do tabaco • Aumentar (Raise) os impostos sobre o tabaco 12 Revista UC O desafio da obesidade Importância Sobrepeso, obesidade e o ganho de peso na fase adulta estão as- sociados a 13 tipos de cânceres: no endométrio (corpo do útero), esôfago (adenocarcinoma), estômago (cárdia), fígado,intestino (cólon e reto), mama (mulheres na pós-menopausa), meningio- ma, mieloma múltiplo, rins, ovário, pâncreas, tireóide, vesícula biliar e possivelmente linfoma difuso de grandes células B, mama (homens) e próstata (em estágio avançado). Há diversos estudos que mostram a associação entre a obesidade e os cânceres supracitados, entre eles: um que analisou 1.411 mu- lheres com câncer de endométrio (1.144 do tipo I e 267 do Tipo II) e observou que obesidade é significativamente mais prevalente no grupo com câncer endometrial de tipo I em comparação às que têm tipo II (66% versus 51%) especialmente em afro-ameri- canas, no entanto a obesidade não se associa à doença de tipo II. Outro estudou fez uma análise retrospectiva de pacientes com cân- cer de ovário e 34% delas eram obesas e a obesidade foi associada a pior sobrevida global em mulheres com câncer epitelial ovariano seroso papilar de baixo grau. Porém, não se associou à sobrevida em pacientes com formas mais graves da doença, sugerindo que outras comorbidades poderiam influenciar a mortalidade. A obesidade infantil é outro fator de extrema importância, uma que sabe-se, segundo dados do Instituto Nacional do Câncer, que quanto maior o índice de massa corporal (IMC) na infância e na adolescência, maior o risco de câncer e/ou de obesidade na fase adulta. O que é e por que faz mal? Obesidade é considerada uma doença multifatorial, ocorrendo pela interação de fatores genéticos e condições do ambiente, en- tretanto muitos dos mecanismos fisiopatológicos que levam àela são ainda desconhecidos. O excesso de gordura no corpo provoca um processo inflamatório e aumenta a produção de hormônios que podem causar danos às células, provocando ou acelerando o surgimento da doença. A obesidade, principalmente em níveis mais altos de índice de mas- sa corporal, e a obesidade abdominal, medida pela circunferência da cintura, associam-se significativamente a maior mortalidade de todas as causas do que peso normal. 13JAN-FEV-MAR 2020 O que fazer? Obesidade e sobrepeso devem ser preferencial- mente manejados com medidas não medica- mentosas, com ênfase em dieta saudável (evitar o consumo de alimentos e preparações com alto teor de gordura saturada, gordura trans, açúcar livre e sal, como lanches e fast foods salgados ou açucarados; o consumo rotineiro de bebidas açucaradas) e atividade física (a recomendação é que todos se exercitem regularmente durante uma média de 3 a 4 horas por semana), segundo recomendação da Organização Mundial da Saú- de. Assistir televisão também pode influenciar no ganho de peso corporal, uma vez que as pro- pagandas e o hábito de ficar sentado por muitas horas favorecem o comportamento sedentário e o consumo de alimentos ricos em calorias, gordura, açúcar e sal como biscoitos, salgadi- nhos, doces, entre outros. Ainda, o estímulo a que profissionais da saúde se aprimorem nos cuidados de pessoas com sobrepeso e obesidade parece constituir-se em fator positivo no controle dessas manifestações. Há ausência de treinamento em estratégias de mudança de comportamento e escassa expe- riência em trabalhar em equipe multiprofissio- nal com pacientes obesos. Combate a obesidade no Brasil Segundo dados do Ministério da Saúde, o nú- mero de obesos no país aumentou 67,8% ente 2006 e 2018. Ao mesmo tempo, a população passou a adquirir hábitos mais saudáveis, au- mentando o consumo de legumes, verduras e frutas. Uma pesquisa realizada em 2018, nas ca- pitais brasileiras e DF mostrou que a frequência de adultos obesos foi de 19,8%, sendo ligeira- mente maior entre as mulheres (20,7%) do que entre os homens (18,7%). A frequência de obe- sidade aumentou com a idade até os 44 anos para homens e até os 64 anos para mulheres. Se separamos os níveis de escolaridade em três estratos: 0 a 8 anos, 9 a 11 anos e 12 ou mais anos de escolaridade, foi observada uma redu- ção na frequência da obesidade, para ambos os sexos, com o aumento do nível de escolaridade, de forma notável para mulheres. Melhorar os hábitos alimentares das crianças e incentivá-las a prática de esportes também são medidas necessárias que evitarão a obesidade infantil, adulta e aparecimento de doenças não transmissíveis. E será o consumo alimentar em idade precoce que defi¬nirá os padrões de con- sumo ao longo da vida. 14 Revista UC CHENG, T. Chemical evaluation of electronic cigarettes. Tob. Control [Internet]. 2014 May [cited 2017 Jun 2];23(Supl. 2):ii11-7. Disponível em: https://tobaccocontrol.bmj.com/content/23/suppl_2/ii11. Acesso em: 19/12/2019 HAJEK, P et al. A Randomized Trial of E-cigarettes versus Nicotine-Replacement Therapy. The New England Journal of Medicine. 2019. 380: 629-637. Disponívelem: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1808779.Acesso em:19/12/2019. http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_46_2009_COMP.pdf/2148a322-03ad-42c3-b5ba- 718243bd1919. 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Vacinação Outro fator importante que vale a pena ser destacado são os cânceres que podem ser evitados através da vacinação, como os que são causados por vírus: vírus da he- patite B (HBV, do inglês hepatitis B virus), que pode levar ao carcinoma hepatocelular (câncer de fígado) e o papiloma vírus humano (HPV, do inglês humanpapillomavirus) associado ao câncer cervical (também conhecido como câncer de colo do útero). Para ambos, já há disponível, na própria rede pública, vacinação contra os vírus supracita- dos. O desafio talvez seja a conscientização na população de risco de que esses são cânceres de fácil prevenção e esclarecimentos tanto sobre a segurança do processo de vacinação, com combate a fakenews e divulgação da gravidade da doença. Apesar dos enormes desafios em combater o câncer, pode-se perceber através da conscientização da população e divulgação do conhecimento correto já conseguire- mos lidar com essa doença por uma outra perspectiva. Conseguiremos evitar e reduzir a incidência de vários tipos de cânceres e mais recursos poderão ser disponibilizados para o diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos cânceres com fatores de ris- cos não modificáveis, como por exemplo: gênero, idade, raça e etnia, fatores reprodu- tivos e hormonais, histórico familiar e genética.• 15JAN-FEV-MAR 2020 avanços no câncer CAR-T Receptor de Antígeno Quimérico de Células T Por que esta terapia atraiu os holofotes recentemente? O que esperar dela? por Simone Bonecker 16 Revista UC Durante anos, os fundamentos do tratamento do câncer eram: cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Nas últimas duas décadas, terapias alvo específicas, que são medi-camentos direcionados às células cancerígenas, por se concentrarem em alterações moleculares específicas vistas principalmente nessas células – também se consolidaram co- mo tratamentos padrão para muitos tipos de câncer. Entre eles: Imatinibe (Gleevec®), para o tratamento de leucemia mieloide crônica, tumores estromais gastrointestinais (GISTs) e outros e o Trastuzumabe (Herceptin®), que é um anticorpo monoclonal anti-HER-2 para câncer de mama. Mas, nos últimos anos, a imunoterapia – terapia que recruta e fortalece o poder do sistema imunológico de um paciente para atacar tumores – surgiu como o que muitos na comunidade de câncer chamam agora de “quinto pilar” do tratamento do câncer. Até recentemente, o uso da terapia com células T, o CAR-T, era restrito a pequenos ensaios clínicos, principalmente em pacientes com leucemias agudas em estágio avançado, que já haviam falhado a todas as terapias anteriores. No entanto, esses tratamentos atraíram a atenção dos pesquisadores e do público devido às respostas notórias que eles produziram em alguns pacientes – crianças e adultos – para os quais todos os outros tratamentos pararam de funcionar. Apesar dos primeiros ensaios clínicos publicados com essa metodologia serem com pa- cientes de tumores sólidos, os primeiros resultados satisfatórios foram no tratamento de linfomas, com CARs anti-CD19, sob o comando do grupo do Dr. Steven Rosenberg e leucemias agudas. A terapia com CAR-T foi aclamada como uma cura para o câncer por alguns meios de co- municação, mas o que realmente é essa “tecnologia milagrosa” e o que realmente podemos esperar dela? 17JAN-FEV-MAR 2020 O que são as terapias com CAR-T (receptor de antígeno qui- mérico de células T)? É uma imunoterapia que utiliza células T (um tipo de célula do sistema imunológico) autólogas ou alogênicas modifica- das geneticamente em laboratório que passam a expressar, em sua superfície, receptores quiméricos de antígeno (do inglês: Chimeric Antigen Receptors, CARs) específico pa- ra um antígeno tumoral. Após uma expansão celular ex vivo e reinfusão no paciente. Essas células, agora são capazes de reconhecer especificamente o tumor e ata- ca-lo (Figura 3). CARs são proteínas quiméricas de um fragmento de cadeia única variável de um anticorpo monoclonal específico com um ou mais domínios de sinaliza- ção intracelular de receptores de células T. As terapias celulares em si não são recentes, já vem sendo utilizadas na medicina desde a déca- da de 50 através do transplante de medula ós- sea que envolve a infusão de células – tronco hematopoiéticas. A imunoterapia com células CAR-T insere-se no grupo das Terapias Celu- lares Adotivas (ACTs, do inglês: adoptive cell transfer), juntamente com os linfócitos infiltran- tes de tumor (TILs, do inglês: tumor-infiltrating lymphocytes) e receptor específico de células T (TCR, do inglês: T-cell receptor). As ACTs são um ti- po de imunoterapia de extrema complexidade que se baseia na administração de células T anti-tumo- rais autólogas (células do próprio paciente) ou alogê- nicas (células de um dador) modificadas geneticamen- te ou não, dependendo da sua origem. Em linhas gerais, após a ligação entre o antígeno alvo e o CAR, a célula CAR-T ficará ativada, proliferando e des- truindo a célula cancerígena alvo, independentemente do nível de expressão das moléculas MHC (Complexo Principal de Histocompatibilidade, do inglês: Major Histocompatibi- lity Complex). Permitindo então a manutenção da atividade anti-tumoral, mesmo em situações de escape do sistema imu- ne típicas dos microambientes tumorais imunossupressores. Figura 3: Representação gráfica de uma célula T modificada para expressar o CAR (receptores quiméricos de antígeno. 18 Revista UC Como funciona? A obtenção da matéria-prima para a produção das células CAR-T varia de acordo com o tipo de transfe- rência celular – na via alogênica as células recolhidas provêm de um doador saudável e na via autóloga as células são recolhidas do próprio paciente. A partir de amostras do sangue periféricodo paciente, o material celular é coletado através de um processo de filtração sanguínea (leucaferese) que permite a obtenção de amostra não seletiva de células sanguíneas mononucleares periféricas (PBMC). Apesar da mistura policlonal dos linfócitos T (inclui linfócitos de função efetora (Tcitox), reguladora (Treg) e auxiliar (Thelper) serem maioria, es- te filtrado contém outros tipos de células. Essa variabilidade na composição celular é um fator incontrolável e com um grande impacto no processo de fabricação das células CAR-T. Por isso, posteriormente a separação o passo seguinte é a remoção ou diluição desses outros grupos celulares, através de processos de enriquecimento do produto com linfócitos T, promovendo sua expansão e ativação. Após a expansão ex vivo, os linfócitos são transduzidos por meio de um vetor viral que con- tém o gene codificante do CAR. Vários vetores podem ser utilizados, outro diferencial cru- cial no protocolo, preferencialmente para a transdução das células CAR-T são utilizados os vetores retrovirais (exemplo: lentivírus ou sleeping beauty), isso devido à sua capacidade de integração genética estável, que possibilita a expressão prolongada do transgene na célula infetada. A inserção do transgene (gene contendo o CAR) ocorre a partir da infeção viral dos lin- fócitos T in vitro. A taxa de infeção e a consequente expressão do CAR dependem do título infeccioso do vírus e devem ser bem quantificadas para que se possa atingir o resultado esperado. As células T modificadas são identificadas contendo o antígeno alvo, e amplificadas, em meio de cultura até atingirem os níveis terapêuticos, para depois serem infundidas no paciente. Por fim, as células T CAR são infundidas no paciente, precedida por um regime de quimioterapia com “linfodepletação”. As células recém infundidas se multiplicam in vivo, reconhecem e matam as células do tumor que expressam o antígeno em suas superfícies (Figura 4). Figura 4: Fluxograma ilustrativo da terapia com receptor de antígeno quimérico de células T. 19JAN-FEV-MAR 2020 Por que o CAR utilizado nas terapias é anti-CD19? Porque a expressão extracelular da proteína CD19 es- tá restrita à linhagem das células B, incluindo células precursoras, saudáveis, malignas e plasmócitos. Lo- go, a super expressão desta proteína à superfície dos linfócitos malignos torna esta terapia específico para estas doenças, particularmente leucemias e linfomas. Essa é uma terapia que tem como alvo anti-CD19, logo a presença destes antígenos em células sadias, acar- retará em igual destruição, levando à aplasia medular e periférica de células B. Esse é um efeito adverso ine- vitável associado ao sucesso da terapia com células CAR-T anti-CD19, que normalmente é controlado com a administração intravenosa mensal de imunoglobuli- nas como terapêutica de substituição. Outros CAR estão em ensaios clínicos, como para o tratamento de leucemia mieloide aguda, o CD123 e CD33, antígenos de maturação das células B e mielo- ma múltiplo, o CD138. EfEitos advErsos Como toda e qualquer terapia, o paciente pode apresentar efeitos colaterais leves até graves, entre os efei- tos relatos com este tratamento durante ensaios clínicos, os mais comuns foram: síndrome de liberação de citocinas, principalmente enquanto as células com CAR se multiplicam para combater a doença (entre os sin- tomas estão: febre, diminuição da pressão arterial); neurotoxicidade ou alterações cerebrais que provocam confusão, convulsões e dores de cabeça, além de infecções, diminuição das taxas sanguíneas, fadiga, lesão renal, entre outros. CAR-T aprovados para uso nos EUA Em 2017, dois novos produtos com célu- las T CAR foram aprovados pela agência regulamentar Norte Americana (FDA, do inglês: Food and Drug Administration) uma para o tratamento de crianças com leucemia linfoblástica aguda e a outra para adultos com linfomas avançados. KYMRIAH® lançado pela Novartis, é a úni- ca terapia aprovada para duas indicações distintas: linfoma não-Hodgkin e leucemia linfoblástica aguda de células B e YESCAR- TA® pela Kite Pharma3 para tratamento de linfomas não Hodgkin. Segundo especialistas, ainda é cedo para afirmar que resultados similares serão en- contrados contra tumores sólidos, como câncer de mama e colorretal. Desafios para sua incorporação na prática clínica Segundo Dr. Rosenberg após décadas de pesquisas minuciosas, o progresso com as células CAR-T e outras abordagens acelerou bastante nos últimos anos, com os pesquisadores desenvolvendo uma me- lhor compreensão de como essas terapias funcionam nos pacientes e traduzindo esse conhecimento em melhorias na maneira como são desenvolvidas e testadas. Por isso, ele acredita que nos próximos anos veremos um progresso dramático que forçará os limites do que muitas pessoas pensavam ser possível com esses tratamentos adotados baseados em transferência de células. Ainda, o desenvolvimento de células T CAR representa uma convergência de ideias vários campos cien- tíficos, mas o sucesso até agora foi limitado às neoplasias das células B. Estender essa abordagem a ou- tros tipos de câncer exigirá o desenvolvimento de estratégias baseadas em compreender os obstáculos colocados pela heterogeneidade do tumor e pelo microambiente do tumor que está surgindo de sofis- ticadas ferramentas analíticas e modelos superiores. Essas estratégias tirarão proveito da capacidade sem precedentes de manipular geneticamente células T para conferir novas funções, permitindo-lhes atingir células tumorais e persistir e funcionar de maneira hostil circunstâncias. 20 Revista UC BONIFANT, C. L., JACKSON, H. J., BRENTJENS, R. J., CURRAN, K. J. - Toxicity and management in CAR T-cell therapy. Mol. Ther. - Oncolytics 3, (2016) 1–6 DAI, H., ZHANG, W., LI, X., HAN, Q., GUO, Y., ZHANG, Y., WANG, Y., WANG, C., SHI, F., ZHANG, Y., CHEN, M., FENG, K., WANG, Q., ZHU, H., FU, X., LI, S., HAN, W. - Tolerance and efficacy of autologous or donor-derived T cells expressing CD19 chimeric antigen receptors in adult B-ALL with extramedullary leukemia. Oncoimmunology 4, (2015) 1–49. HARTMANN, J., SCHÜßLER-LENZ, M., BONDANZA, A., BUCHHOLZ, C. J. - Clinical development of CAR T cells - Challenges and opportunities in translating innovative treatment concepts. EMBO Mol. Med. 9, (2017) 1183–1197 https://www.cancer.gov/about-cancer/treatment/research/car-t-cells. Acessoem 29.12.2019 JACKSON, H. J., RAFIQ, S., BRENTJENS, R. J. - Driving CAR T-cells forward. Nat. Rev. Clin. Oncol. 13, (2016) 370–383 KERSHAW, M. H., WESTWOOD, J. A., PARKER, L. L., WANG, G., ESHHAR, Z., MAVROUKAKIS, S. A., WHITE, D. E., WUNDERLICH, J. R., CANEVARI, S., ROGERS-FREEZER, L., CHEN, C. C., YANG, J. C., ROSENBERG, S. 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Segundo Kenneth Anderson, presidente da Sociedade Americana de Hematologia, aprovação desses medicamentos pelo FDA deve ser comemoradas, mas lembrou que mais pesquisas são necessárias para tornar esta terapia mais eficaz para uma popu- lação maior, reduzir os efeitos colaterais graves durante o tratamento e, finalmente, encontrar uma aplicação mais ampla além dos tumores hematológicos. No Brasil, essa terapia só pode ser utilizada dentro de ensaios clínicos controlados e o primeiro caso de sucesso no Brasil foi realizado pelo Dr. Renato Luiz Cunha do Centro de Terapia Celular (CTC-Fapesp-USP) do Hemocentro em um paciente com linfoma não Hodgkins que já havia falhada a diversas terapias. Há outras iniciativas no Brasil, inclusive no INCA, sob a orientação do Dr. Martin Bonamino.• *Nota: O paciente em relatado veio a falecer meses depois por traumatismo encefálico grave provocado por queda em casa. Aproveitamos a oportunidade para prestar solidariedade para a família. 21JAN-FEV-MAR 2020 Fatores de Risco PARA CÂNCER DE MAMA NÃO MODIFICÁVEIS IMPORTANTE Se você, leitor (a), tiver fatores de risco para câncer de mama, converse com seu médico sobre maneiras de diminuir seu risco e sobre como rastrear o câncer de mama, lembre-se que as informações aqui são mera- mente educativas e devem ser interpretadas dentro deste contexto. por Simone Bonecker 22 Revista UC Terminologias como “aumento do risco” ou “maior probabilidade de desenvolver cân-cer de mama” são confundidas com “terei câncer de mama” se não forem bem contextua- lizadas. Para poder avaliar quão alto é o risco, precisa primeiro saber em que linha de base o “risco aumentado” se baseia. Estudos demonstraram que o risco para o de- senvolvimento de câncer de mama é devido a uma combinação de fatores. Os principais fato- res que influenciam o risco incluem: ser mulher e envelhecer, uma vez que a maior incidência deste câncer acomete mulheres com 50 anos ou mais.Ter um fator de risco não significa que o indivíduo terá a doença e vale ressaltar que ca- da fator de risco possui efeito próprio. A maioria das mulheres tem alguns fatores de risco, mas a maioria não tem câncer de mama. Fator de risco é qualquer situação que aumente a probabilidade de ocorrer uma doença, neste caso câncer de mama. Este pode ser divido em dois tipos: os modificáveis e os não-modificáveis. Os modificáveis, como o próprio nome já diz es- tá relacionado aos hábitos de vida de um indiví- duo e podem ser alterados ao longo de sua vida, entre eles: sedentarismo, obesidade, excesso de consumo de bebida alcoólica, radiação ioni- zante em tórax, uso de tabaco, algumas formas de terapia de reposição hormonal (aquelas que incluem estrogênio e progesterona) tomadas durante a menopausa por mais de cinco anos e certos contraceptivos orais (pílulas anticoncep- cionais) também podem aumentar o risco de câncer de mama. Enquanto que os não modificáveis seriam os que inerentes às pessoas e não podem ser alterados por mudança de hábitos ou por vias conhecidas até o momento, como: gênero, idade, raça/et- nia, fatores reprodutivos e hormonais, genética (presença de mutações herdadas, por exemplo) e histórico familiar de câncer de mama ou ou- tros tipos de cânceres (Figura 5). FATORES REPRODUTIVOS E HORMONAIS Menarca (primeiro fluxo menstrual) pre- coce, antes dos 12 anos e o início da menopausa após os 55 anos, expõem as mulheres a hormônios por mais tempo, aumentando o risco de câncer de mama. Um estudo caso-controle indicou que quanto mais precoce a menarca, aumen- ta o risco de câncer de mama em duas vezes, e dados chineses, com 11.889 mu- lheres corroboram este estudo mostran- do que também demonstrou associação entre a menarca precoce e desenvolvi- mento desta neoplasia. Porém, não há unanimidade, uma pesquisa publicada com 151 mulheres japonesas, os auto- res não demonstraram associação entre o risco de câncer de mama e a idade na menarca ou na menopausa. O mesmo foi observado em um estudo italiano do tipo caso – controle com mais de 1.000 mu- lheres (1.041 com diagnóstico de câncer de mama comparado com 1.002 contro- les – mulheres com doenças agudas não neoplásicas e não hormonais). Já no Brasil, alguns estudos corroboram com a associação entre uma menarca precoce, mas considerando esta antes dos 11 anos, com o aparecimento do cân- cer de mama. Figura 3: Fatores de risco não modificáveis para câncer de mama. 23JAN-FEV-MAR 2020 GÊNERO O câncer de mama geralmente é uma doença exclusiva das mulheres e é uma doença maligna rara em homens, responsável por menos de 1% de todos os casos de câncer. O câncer de mama ocorre com mais frequência em idosos homens adultos que tiveram desequilíbrio hormonal, ex- posição à radiação e história familiar de câncer de mama, sendo mutação do gene BRCA2 o fa- tor de risco mais comum. No geral, cerca de 130 em 1.000 mulheres terão câncer de mama durante a vida, enquanto que 1 em cada 1.000 homens também terão em al- gum momento de suas vidas. IDADE Após o gênero, a idade é o fator de risco conhecido mais importante para câncer de mama. A taxa de incidência aumenta signi- ficativamente com a idade e atinge seu pico por volta dos 50 anos de idade, depois dimi- nui ou permanece gradualmente constante, como pode ser observado na tabela 1. Ape- sar disso, tumores de mama em mulheres mais jovens aparecem em tamanho maior, estágios avançados, linfonodos positivos e sobrevivência mais fraca. Tabela 1: Número de mulheres que desenvolverão câncer de mama dentro dos próximos dez anos classificadas de acordo com a idade ao diagnóstico. Idade Número de mulheres que desenvolverão câncer de mama dentro dos próximos dez anos 30 anos 5 a cada 1.000 mulheres 40 anos 15 a cada 1.000 mulheres 50 anos 25 a cada 1.000 mulheres 60 anos 36 a cada 1.000 mulheres 70 anos 34 a cada 1.000 mulheres RAÇA/ETNIA Dados americanos mostram que mulhe- res brancas são um pouco mais propensas a desenvolverem câncer de mama quando comparado a mulheres afro-americanas, his- pânicas e asiáticas. No entanto, as mulheres afro-americanas, normalmente apresentam um subtipo mais agressivo da doença, em estágio avançado e diagnosticado em uma idade jovem e maior probabilidade de mor- rer de câncer de mama. Algumas dessas diferenças nos resultados podem ser devi- do à dificuldade de acesso à mamografia e atendimento médico precário, bem como a vários padrões de estilo de vida (hábitos ali- mentares e questões de peso, por exemplo) que são mais comuns em alguns grupos étni- cos do que em outros. Esses fatores podem ser alterados e aprimorados. Vale notar que muitos estudos tem como ba- se a população americana ou europeia, que não são tão miscigenadas quanto a nossa. HISTÓRICO FAMILIAR Este é um fator de risco que depende de algu- mas informações adicionais, porque o simples fato de um indivíduo ter um parente com câncer de mama não necessariamente aumenta o ris- co. Por exemplo, se avó ou prima do probando (indivíduo que está sendo analisado) tiveram câncer de mama (ou seja, um parente de segun- do grau ou um parente de terceiro grau), o ris- co deste dificilmente será afetado. Porém, se a mãe ou irmã (parente de primeiro grau) desen- volverama doença, isso duplicará o risco. Mas se apenas um dos parentes próximos teve cân- cer de mama, isso não significa necessariamen- te que o probando tem predisposição genética causada por um gene mutado. O risco de ocor- rência do câncer de mama praticamente dobra e, quando se trata de dois parentes de primeiro grau, aumenta para cerca de três vezes. O risco para as mulheres que já tiveram um câncer de mama, mesmo sem história familiar, é aumen- tado em de três a quatro vezes para um novo câncer de mama. A presença de câncer de mama em vários pa- rentes próximos pode realmente sugerir que o câncer foi causado por uma mutação genética transmitida na família ou ainda vários cânce- res sem necessariamente ser câncer de mama, também podem indicar que há uma mutação familiar que aumente a predisposição do apare- cimento desta doença. 24 Revista UC GENÉTICO Não é o principal fator de risco, visto que somente 5 a 10% dos casos de câncer de mama são atribuídos a fatores hereditários como as mutações germinativas nos genes BRCA1 e BRCA2, que são responsáveis pela síndrome de cânceres de mama e ovário he- reditários. A presença de mutações genéticas patogênicas nesses genes está associada a uma maior probabilidade de desenvolvimento de câncer de mama e ovário e o resul- tado genético pode ajudar ao geneticista clínico e ao oncologista a definirem meios de prevenção e a melhor indicação de tratamento para este indivíduo e seus familiares. O câncer surge quando os genes de uma célula mudam (se transformam). O corpo geralmente pode impedir ou reparar essas alterações. Em pessoas com maior probabi- lidade de contrair câncer por causa de seus genes, esses mecanismos de proteção não são tão eficazes. Fioretti F, Tavani A, Bosetti C, et al. Risk factors for breast cancer in nulliparous women. Br J Cancer. 1999;79(11–12):1923– 1928. InformedHealth.org [Internet]. Cologne, Germany: Institute for Quality and Efficiency in Health Care (IQWiG); 2006-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK65083/ Ko EM, Walter P, Clark L, Jackson A, Franasiak J, Bolac C, et al. The complex triad of obesity, diabetes and race in Type I and II endometrial cancers: prevalence and prognostic significance. Gynecol Oncol 2014; 133 (1): 28-32. Nguyen J, Le QH, Duong BH, et al. A matched case-control study of risk factors for breast cancer risk in Vietnam. Int J Breast Cancer. 2016;2016(8):1–7. 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Portanto, quando mutados, esses “permitem” erros no DNA está correlacionada com o aparecimento do câncer. O câncer de mama possui vários subtipos, mas normalmente, mulheres mais jovens, com mutações em BRCA1 é comum a associação ao subtipo triplo ne- gativo (negativo para os receptores hormonais de estrogênio e progesterona e baixa expressão de HER2 (ERBB2)), de pior prognóstico. Porém, somente 15% dos casos triplos negativos são associados ao BRCA1. Enquanto que cerca de 55 a 65% das mulheres com a mutação no BRCA1 e 45% das mulheres com a mutação no BRCA2 desenvolverão câncer de mama até os 70 anos de idade. Esses genes também estão associados a outros tipos de câncer, assim como os cânceres de mama e ovário estão associados a outros genes. Em mulheres, mutações no BRCA1 podem aumentar o risco de câncer nas trompas de Falópio e câncer de peritônio, enquanto que em homens, a presença de mutações no BRCA2 e em menor número no BRCA1 aumentam o risco de câncer de mama e também risco maior de câncer de próstata. Importante lembrar que a presença de mutação por si só deve ser interpretada dentro de um contexto clínico, pois esta pode variar de acordo com a história familiar, com diferentes mutações genéticas e com outros fatores de risco, co- mo a história reprodutiva.• 25JAN-FEV-MAR 2020 Apesar de não ser um artigo recente, particularmente o considero revolucioná-rio em termos de ciência brasileira e com uma história incrível entre o conheci-mento de base e o impacto clínico desse achado. Falaremos nesta seção, sobre o artigo “The inherited p53 mutation in the Brazilian populations” da Maria Isabel Achatz e Gerard Zambetti. Maria Isabel Achatz é medica e pesquisadora do Instituto AC Camargo em São Paulo e trabalhou em sua tese de doutorado com a síndrome de Li Fraumeni e sua variante Like. Leitura de • • • • • • • • • • • • • • • • • • Artigo Científico Síndrome de Li Fraumeni e sua variante Like Síndrome de Li Fraumeni (SLF) e sua variante Like (SFL) são sín- dromes hereditárias associadas à mutação germinativa no gene TP53 de alta penetrância, na qual portadores destas mutações apresentam um alto risco cumulativo vital para o desenvolvi- mento de câncer. A caracterização inicial desta síndrome inclui famílias que tenham indivíduos com sarcomas de partes moles, osteosarcomas, câncer do sistema nervoso central, carcionama adenocorticais e câncer de mama com menos de 45 anos. Es- tima-se que portadores da SLF tenham 50% a mais de chances de desenvolverem tumores antes dos 40 anos de idade quan- do comparada a 1% da população em geral e que 90% dos por- tadores desenvolverão câncer até 60 anos de idade. Em geral, é comum que tenham um histórico de diversos familiares que morreram de câncer, sendo os mais característicos, o câncer de mama antes dos 35 anos, os sarcomas ósseos ou de partes mo- les (que podem aparecer em diversos tecidos do corpo, como os músculos) antes dos 45 anos, leucemias, tumores nas glândulas adrenais (que ficam acima dos rins) e no sistema nervoso central. Quem é o gene TP53? O gene TP53 codifica uma proteína de mesmo nome, proteína tumoral p53 (ou p53). Essa proteína atua como um supressor de tumor, o que significa que regula a divisão celular, impedindo que as células cresçam e se dividam (proliferem) muito rápido ou de maneira descontrolada. A proteína p53 está localizada no núcleo das células do corpo, onde se liga diretamente ao DNA. Quando o DNA de uma célu- la é danificado por agentes como substâncias químicas tóxicas, radiação ou raios ultravioleta (UV) da luz solar, essa proteína de- po r S im on e Bo ne ck er 26 Revista UC sempenha um papel crítico na determinação se o DNA será reparado ou se a célula danificada sofrerá apoptose. Caso o DNA possa ser reparado, o p53 ativa outros genes para corrigir o dano. Se o DNA não puder ser reparado, essa proteína impede que a célula se divida e sinaliza que ela sofra apoptose. Ao impedir a divisão de células com DNA mutado ou danificado, a p53 ajuda a impedir o desenvolvimen- to de tumores. Como a p53 é essencial para regular a divisão celular e prevenir a formação de tumores, ela foi apelidada de “guardiã do genoma”. As mutações somáticas no gene TP53 são uma das alterações mais frequentes nos cânceres humanos, e as mutações germinativas são a causa subjacente da síndrome de Li-Fraumeni. A história da Síndrome de Li-Fraumeni e Li-Fraumeni Like no Brasil Logo no início de sua carreira ela tratou de uma paciente que havia tido seis tumores primários (independentes um do outro), e apesar de suspeitarda SLF, foi desacreditada por seus pares, por ser uma síndrome muito rara, tendo aproximadamente 200 casos no mundo. Posteriormente, logo no seu primeiro ano, diagnosticou 35 pacientes com essa doença. Encorajada por um pesquisador francês, Maria Isa- bel começou a pesquisar a mutação no gene TP53 em seus pacientes com diagnóstico de SLF. A priori não encontrou as mutações clássicas descritas para este gene nesta síndrome, eram em sua maioria muta- ções em uma região de ligação ao DNA. Resolveu então procurar no gene inteiro e identificou a mutação R337H em seus pacientes. Essa variante foi primeiro descrita anos antes em uma paciente francesa de 10 anos de idade com tumor no cérebroe era conhecida dentro do carcinoma adenocortical pediátrico, uma doença rara, que nor- malmente ocorre dentro do contexto da SLF, porém com incidência extremamente alta no Sul do país quando comparada aos outros paí- ses, aparecendo em uma incidência 10 a 15 vezes maior. No estudo da Dra. Isabel, foram incluídas 45 famílias brasileiras que preencheram os critérios clínicos da síndrome e a mutação R337H ocorreu em frequência elevada (46,1%) nas famílias SLF brasileiras, predispondo ao amplo espectro tumoral. Tumores adrenocorticais foram 2,3 vezes mais frequentes em famílias com a mutação R337H se comparado a famílias com outras mutações, sugerindo efeito te- cido-específico. Observou-se então que a presença desta mutação fazia com que esta síndrome tivesse características específicas e mais “brandas”, o que inclusive justifica a alta prevalência, uma vez que acomete indivíduos depois da idade reprodutiva, quando essa mutação já foi passada para as gerações seguintes, enquanto que no resto do mundo, pela mutação “clássica”, esses indivíduos desenvolvem câncer precoce- mente e evoluem a óbito antes da reprodução. Entre algumas carac- terísticas estão: 27JAN-FEV-MAR 2020 R337H Variantes clássicas Penetrância do câncer é um pouco menor, 15% a 20% dos indivíduos com essa mutação desenvolvem cân- cer até os 30 anos de idade Penetrância maior, 50% desen- volvem câncer até os 30 anos de idade O carcinoma adenocortical pediátri- co representa uma proporção maior de todos os cânceres (8% a 10%) O carcinoma adenocortical pe- diátrico representa uma propor- ção menor (4%) Mediana de idade ao diagnóstico de câncer de mama é mais tardio, apro- ximadamente 40 anos Mediana de idade ao diagnóstico de câncer de mama é mais pre- coce, aproximadamente 32 anos Maior ocorrência de câncer de tireóide papilar em adultos jovens, cânce- res renais e adenocarcinomas de pulmão do que os portadores clássicos O Ancestral tropeiro Após descobrir que a mutação que encontrava em seus pacientes fa- zia desta uma doença diferenciada e única, a Dra. Maria Isabel come- çou a estudar as famílias de todos os pacientes que possuíam essa mutação e explicar a razão pela qual a incidência de câncer era tão alta entre os parentes. Essa mutação é autossômica dominante, logo não há uma geração em que ela não se esteja presente. Enquanto ela explicava para as famílias sobre a síndrome, uma das pessoas sugeriu que isso era coisa do avô tropeiro (eram homens que conduziam tropas de cavalos por estradas regiões Sudeste e Sul do Brasil fazendo o comércio de mercadorias durante o século 18). Disse que o avô sumia e reaparecia, que achava que ele havia deixado famílias pelo caminho. Nunca esquecendo aquele relato a doutora resolveu estudar a rota dos tropeiros e percebeu que esta se sobrepunha as famílias que possuíam a SLF. Através de um estudo com polimorfismos intragênicos* testaram as nove famílias grandes e encontraram esse mesmo padrão em todas elas, conseguiam pro- vas a sua hipótese de que um mesmo homem, um tropeiro, havia “espalhado” o gene mutado por diversas famílias.• *são marcas específicas nos genes que só pessoas da mesma família apresentam, funciona como uma espécie de teste de paternidade. 28 Revista UC
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