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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CAMPUS DE VOLTA REDONDA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CADERNOS DE AULA DA DISCIPLINA DE ENTREVISTA PSICOLÓGICA PROF. DRA. CLAUDIA HENSCHEL DE LIMA 2016 2 1. A Sedução pelo Transtorno. Abordarei a disciplina de Entrevista Psicológica a partir da perspectiva do método clínico. E, para tal, especificarei essa perspectiva por meio da interrogação sobre a posição do psicanalista, feita pelo Dr. Jacques Lacan no escrito A Direção de Tratamento e os Princípios de seu Poder (1958/1998)1: como o psicanalista se orienta em sua prática e o que ele objetiva? Lacan se refere diretamente à prática clínica de sua época e cuja orientação era bastante diferente daquela que decorria de seu ensino, centrada nos conceitos de inconsciente e de pulsão e da localização do ponto de desestabilização sintomática pela avaliação do conteúdo discursivo do paciente. Nos anos de 1950, testemunhamos o avanço da tecnologia de psicotrópicos para o tratamento das formas de sofrimento psíquico, com a síntese dos primeiros antipsicóticos e antidepressivos - a Clorpromazina e a Imipramina – e, em 1957, com o desenvolvimento do clorperidóxido (os benzodiazepinicos2). Essa expansão tecnológica, aliada à formulação de novas classificações diagnósticas, permitiu ao saber psiquiátrico, a partir dos anos de 1950, se libertar da sombra da baixa origem moral de sua direção de tratamento – pautada no isolamento manicomial, no trabalho, no olhar vigilante, na infantilização e na produção de um ideal disciplinar concentrado na autoridade do médico (Machado, Loureiro, Luz, & Muricy, 19783).Qual é, então, a relação entre essa configuração da psiquiatria, a partir dos anos de 1950, e o domínio de pesquisa e intervenção clínica em psicologia? Retomando a interrogação de Jacques Lacan (1958/1998), podemos ainda tornar mais complexa as relações entre psiquiatria e psicologia: como o psicólogo clínico se orienta em sua prática e o que ele objetiva em uma época dominada pela elaboração crescente de novos diagnósticos4 para o sofrimento psíquico, em psiquiatria, e pelo avanço da tecnologia dos medicamentos no campo da direção de tratamento? 1 Lacan, J. A Direção de Tratamento e os Princípios de seu Poder (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998. 2 Diazepan, Nitrazepam, FLurazepam, Flunitrazepam, Oxazepam, Temazepam, Clonazepam, Orazepam, Lorazepam, CLorazepate, Nordiazepam. 3 Machado, R., Loureiro, A., Luz, R., & Muricy, K. (1978). Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal. 4Trata-se da ocorrência de um agrupamento de sintomas clínicos distintos em torno de uma mesma categoria diagnóstica. É o caso, por exemplo, do transtorno bipolar e do transtorno por uso de substâncias, que são aplicadas indistintamente à psicose e à neurose, diluindo, assim, a especificidade etiológica de cada estrutura e uniformizando a direção de tratamento. 3 Essa interrogação está no título das primeiras aulas de nosso curso: a sedução pelo transtorno. A sedução pelo transtorno se refere diretamente ao modo como o método clínico é definido pela psiquiatria contemporânea: uma clínica da prescrição de psicofármacos com objetivo de cura. A entrevista clínica apresenta três objetivos fundamentais, elencados na tabela 1 abaixo: Tabela1. Os objetivos da entrevista clínica. 1. A formulação do diagnóstico diferencial. 2. A formulação da direção de tratamento a partir da especificidade do diagnóstico diferencial. 3. A elaboração do planejamento terapêutico em conformidade com os dois objetivos acima. Ao longo da disciplina, estudaremos separadamente cada um desses objetivos. E já à título de introdução ao diagnóstico diferencial, reconhecemos que, atualmente, os fundamentos para sua formulação tem se deslocado das teorias descritivas (por ex. a fenomenologia e a psicanálise) - que se dedicam à pesquisa aprofundada dos sinais e sintomas psicopatológicos e dos determinantes de seus desencadeamentos – para uma listagem das alterações comportamentais características de cada psicopatologia tal como encontramos no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde). Esses manuais são sistemas classificatórios dos transtornos. A tabela 2 sintetiza a evolução das edições do DSM desde 1952 até 2013. Tabela 2. Síntese das edições do DSM Edições do DSM Ano de Publicação Número de Páginas Categorias Diagnósticas Fundamentação Epistemológica DSM I 1952 132 106 Modelo Psicanalítico DSM II 1980 134 182 Modelo Psicanalítico DSM III/ DSM-III-TR 1980/1989 494/597 265/292 Modelo Médico/biológico DSM IV/ DSM IV-TR 1994/2000 886/** 374/** Modelo Médico/biológico DSM V 2013 947 300 Modelo Médico/biológico Encontramos no DSM as alterações comportamentais de cada transtorno, mas não encontramos uma referência a respeito dos determinantes causais dos sinais e sintomas e sequer uma orientação acerca da forma de reconhecimento de sinais e sintomas na prática. O que isso significa? Significa que não encontramos no DSM (e no CID) uma pesquisa semiológica. Tomando como exemplo a definição do objeto da 4 psicopatologia e a importância concedida à semiologia, apresentada por Karl Jasper (1913) em Psicopatologia Geral, entendemos a redução que a clínica sofre com a expansão desses sistemas classificatórios no marco dos anos de 1950. Jaspers (1913) afirma que seu objeto é o fenômeno consciente e ressalta a relevância clínica do conhecimento da realidade psíquica e de suas condições causais. Da mesma forma, Freud (19245) alertara para a necessidade de se estabelecer uma distinção entre neurose e psicose como base para a especificação da direção de tratamento para cada caso. O autor propõe uma distinção a partir da avaliação clínica acerca da consideração da realidade pelo conteúdo discursivo do paciente: Tabela 3. Estrutura discursiva a ser encontrada na avaliação clínica da neurose e psicose (psicanálise). Categorias classificatórias Posição do sujeito diante da realidade Neurose O paciente se posiciona não querendo saber nada sobre a realidade Psicose O paciente se posiciona recusando a realidade O DSM e o CID seduzem em função da delimitação do domínio de investigação do transtorno em torno de um posicionamento científico que valoriza a observação comportamental e a investigação de determinantes biológicos dos transtornos ao preço da supressão ideológica da avaliação clínica a partir do campo discursivo. Com relação a esse ponto, retomo alguns eixos da discussão em torno da elaboração da terceira edição do DSM (final dos anos de 1970). Um dos eixos da discussão dessa terceira edição era aprimorar a uniformidade e validade do diagnóstico psiquiátrico dos transtornos, resultando na formulação de critérios para o diagnóstico. 5 Respectivamente: Freud, S. (1924). Neurose e psicose. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 19, pp. 189-193. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Freud, S. (1924). A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 19, pp. 229-234. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 5 Tabela 4. Critérios para o diagnóstico no DSM-III 1.Descrição clínica 2. Estudos de laboratório 3. Critérios de exclusão de outras doenças 4.Estudo do curso da doença 5.Estudos referentes a família do doente O outro eixo da discussão consistiu no reconhecimento da necessidade de padronizar a disciplina dodiagnóstico diferencial pelo estabelecimento de uma base de categorização em inglês descritivo, ocupando assim o lugar das hipóteses etiológicas com base em referenciais teóricos. Dessa forma, a formulação do DSM-III estava assentada sobre a necessidade de se obedecer ao princípio científico da generalização das hipóteses diagnósticas ao preço da supressão dos referenciais teóricos que orientavam, até o momento, a disciplina do diagnóstico diferencial (a fenomenologia e a psicanálise, por exemplo). Minha hipótese de trabalho, com relação a esse assunto, é que tal necessidade obedecia à ideologia oitocentista do homem normal. E, para mim, pensar inicialmente essa ideologia é fundamental para que ela não contamine o trabalho clínico que se inicia nas entrevistas psicológicas. 1.1. A ideologia do homem normal no domínio da psicologia O estado de enfermidade se estabelece a partir da irrupção do mal-estar, do sofrimento, e da urgência que dele decorre. Essa frase sintetiza todo o trabalho epistemológico, que Georges Canguilhem desenvolve no livro clássico, publicado em 1943, O Normal e o Patológico6 e em uma conferência de 1980 conduzida na Sorbonne pelo mesmo autor e intitulada A Saúde: conceito vulgar e questão filosófica7. Nestas obras, o autor concede relevância ao fator de subjetividade presente na avaliação do que é saúde ou doença e na forma como a medicina insiste em suprimir esse fator na consideração do normal e do patológico - ou o que ainda podemos entender como descrição em primeira pessoa e descrição em terceira pessoa. Canguilhem analisa o conceito de saúde a partir de uma perspectiva distinta da perspectiva da validação científica (que estaria presente, nos anos de 1980, na elaboração do DSM-III). Ele propõe pensar o conceito de saúde a partir do testemunho 6 Canguilhem,G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária,1995. 7 Canguilhem, G. A saúde: conceito vulgar e questão filosófica. In: Canguilhem,G. Escritos sobre a medicina .Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 35-48. 6 das impressões subjetivas, criticando a medicina que rejeita o testemunho dado pelo paciente em nome da visibilidade e transparência dos exames. Esse ponto não é uma arbitrariedade de Canguilhem (do tipo “Ignoremos a ciência. E viva a singularidade!!!” – esse tipo de afirmação está totalmente fora de nossos objetivos). O autor problematiza o modo de definição do normal e do patológico, herdado da fisiopatologia do século XVIII. No final do século XVIII, acreditou-se que era possível encontrar um elemento comum entre a fisiologia dedicada ao estudo dos fenômenos da vida, e a patologia, dedicada à análise das doenças. Esse elemento comum permitiria pensar processos normais e processos mórbidos como uma unidade. É o momento em que a fisiopatologia se consolidava como uma prática que objetivava esclarecer os estados mórbidos (patológicos) a partir da investigação dos estados normais. Esquema 1: As Diretrizes da fisiopatologia (final do século XVIII): Normalidade morbidade Organismo sadio estados patológicos Canguilhem localiza a preservação desta herança na medicina no ponto em que esta concederia, na prática da entrevista clínica, um papel cada vez mais secundário ao conteúdo discursivo do paciente, ao saber que o próprio paciente tem de seus sintomas, em nome de um modelo de normalidade: Medicina: normal vital patológico É nesse quadro que Canguilhem localizará a medicina como uma disciplina sobre o normal e o patológico. Esse estatuto ficará particularmente claro com a consolidação do método clínico na psiquiatria a partir do século XIX. No artigo publicado em 1966 e intitulado O que é a psicologia?, o autor interrogará a presença deste vetor no campo da Psicologia, pela evidência da influência dos trabalhos de Alphonse de Quételet, em torno da definição de homem médio – um conjunto de propriedades estatísticas que são estáveis nas principais ações humanas (o matrimônio e o crime) – na psicologia. Canguilhem (1966) esclarece que a Psicologia se constitui, no século XIX, como disciplina do comportamento humano, com o objetivo de determinar quantitativamente a capacidade técnica do indivíduo - em um contexto de época em que se articulam, de um lado, o modelo biológico organizado na forma de uma teoria geral das relações entre organismo vivo e meio e, de outro, uma ideologia dos valores da 7 sociedade industrial direcionada para a abordagem instrumental das habilidades humanas. E considera que de muitas pesquisas conduzidas na psicologia, extrai-se a impressão de que “misturam uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigências e uma medicina sem controle”8 1.2. A progressão do sistema classificatório pelo DSM No decorrer da conversa com um médico ligado à estação de águas, o qual havia assistido meu parente, perguntei, entre outras coisas, acerca de seu relacionamento com os aldeões (...) que constituíam uma clientela durante o inverno. Contou-me que sua clínica médica se fazia da seguinte maneira. Em suas horas de atendimento, os pacientes entravam em sua sala e ficavam de pé numa fila. Um após o outro adiantava-se e descrevia suas queixas: dor lombar, dor de estômago, cansaço nas pernas, e assim por diante. O médico então o examinava e após contentar-se com o que observara, fazia o diagnóstico era o mesmo para todos os casos. Ele me traduziu a palavra: significava mais ou menos ‘enfeitiçado’. Surpreso, perguntei se os aldeões não faziam objeção ao fato desse veredicto ser o mesmo para cada paciente. ‘Não!’, replicou ele, eles ficam muito contentes: é o que esperavam. Cada um deles assim que volta ao seu lugar na fila, mostra aos outros, pela fisionomia e pelos gestos, que eu sou um sujeito que entende das coisas.” (Sigmund Freud. Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIV- Explicações Aplicações e Orientações). Comecei essa seção de nosso estudo com uma citação de Freud por considerá-la atual para explicitar o estado da arte do diagnóstico clínico na contemporaneidade. Freud evoca esse encontro no contexto de uma crítica que, na época, endereçara à psicologia do indivíduo desenvolvida por Alfred Adler e cuja hipótese explicativa geral para a causalidade das mais diversas formas de sofrimento psíquico seria a vontade de passar da linha feminina para a linha masculina. Essa crítica tinha sua razão de ser na especificidade da disciplina do diagnóstico diferencial, formulada por Freud9 a partir dos processos psíquicos de recalcamento e foraclusão. Para a psicanálise, uma classificação diagnóstica é entendida como uma hipótese sobre os determinantes psíquicos que estão na base da formação de um sintoma, sendo de fundamental importância para o estabelecimento das diretrizes do tratamento. E o que Freud criticara 8 Canguilhem, G. (1966). Qu’est-ce que la Psychologie? Cahiers pour l’Analyse, 1(2), 77-86. 9 Respectivamente: Freud, S. (1911). Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 14, pp. 267-284. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Freud, S. (1915). O Inconsciente. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 15. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Freud, S. (1924). Neurose e psicose. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 19, pp. 189-193. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Freud, S. (1924). A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 19, pp. 229-234. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 8 na forma com que Alfred Adler conduzia o diagnósticoclínico era a dissolução da especificidade do sintoma conversivo na histeria, da defesa obsessiva e da formação da fobia como solução para a angústia, em nome da afirmação de um mecanismo geral de autoafirmação, de supercompensação, da inferioridade: “Mal adivinhava eu, naquele tempo, em que circunstâncias haveria de encontrar novamente uma situação análoga.” 10 Da mesma forma, o psicanalista francês Jacques Lacan ao longo de seu ensino sustenta a importância do diagnóstico diferencial. Para ele, o modo como um sujeito, endereça e relata seu sofrimento a um profissional funciona obedecendo à uma estrutura psíquica: neurose, psicose ou perversão. Tabela 5. Categorias classificatórias (estruturas clínicas) segundo o referencial da psicanálise. Neurose Psicose Perversão Essa consideração acerca da relação íntima existente entre sintoma e estrutura psíquica fica evidente no próprio modo como o psicanalista abordará a psicose. Ao contrário de uma tradição psiquiátrica que não considerava a possibilidade de saber na loucura, Lacan pontua a identidade estrutural entre o fenômeno alucinatório, o delírio e o mecanismo psíquico da foraclusão típico da psicose. Tomando, como exemplo, a relação entre a folha e a planta (a nervura de uma folha reproduz a estrutura, a totalidade da planta), ele formula uma analogia com o campo do diagnóstico: o delírio e o fenômeno elementar respondem à uma mesma força estruturante. Essa posição ética da psicanálise diante das formas de sofrimento psíquico é bastante distinta da posição ética subjacente à formulação do diagnóstico genérico “enfeitiçado”, elaborado pelo médico da estação de águas, e relatado por Freud. E, no entanto, esse diagnóstico genérico, ganha sua atualidade diante da progressão da disciplina classificatória do sofrimento psíquico, em psiquiatria, e de sua equivalência ao diagnóstico diferencial, por meio das sucessivas edições do DSM. Retomando atentamente os dados da tabela 2, é possível depreender que a partir da terceira edição do DSM fica claro: 1. A dimensão empírica: os fenômenos geram, por si só, grades classificatórias. 10 Freud, S. (1932). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIV- Explicações Aplicações e Orientações. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 22, p. 173. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 9 2. O divórcio do campo de pesquisa psicopatológica: a caracterização como a- teórico e a hipótese da causalidade orgânica confere a ilusão de unidade para cada fenômeno e uniformidade linguística. 3. A direção medicamentosa de tratamento: a hipótese da causalidade orgânica realiza a hipótese organicista e a direção de tratamento do sofrimento psíquicos aí implícita. 1.3. A expansão psiquiátrica num contexto de desenvolvimento dos psicofármacos Durante o século XIX, numa época em que ainda não se sabia as causas físicas da loucura, já se encontram registros de prescrição de uso de medicamentos como: ópio, nitrato de amila, clorofórmio e éter, todos usados para acalmar estados de agitação. Essas medicações e as contenções de caráter físico, como as cauterizações, duchas frias, cadeira rotatória, eram prescritas com base na ideia de que as doenças mentais possuíam uma causa orgânica. Diante disso, tais procedimentos físicos eram executados com o intuito de descongestionar o corpo e fazer circular sangue, enquanto as prescrições de drogas eram para acalmar o sistema nervoso do paciente. Esses procedimentos tinham a função de levar para o interior do corpo do doente o regime disciplinar do sistema asilar, de modo que a calma do interior do asilo se estabelecesse no corpo do sujeito (Ferrazza, 200911). A partir dos anos 50, com a síntese da clorpromazina e o desenvolvimento de outros medicamentos psicofarmacológicos, a psiquiatria entrou na era da farmacologia. Os psicofármacos utilizados atualmente têm suas primeiras descobertas datadas nessa época. E ainda com suas descobertas, a ênfase dada no tratamento com base no modelo manicomial permaneceu. Diante de um agradável resultado do uso da clorpromazina e com a conquista de uma “enfermaria silenciosa”, em 1952, Delay e Deniker, na França, começam a usar oficialmente o medicamento para conter as agitações psicomotoras de pacientes que possuíam o diagnóstico de esquizofrenia. (Ferrazza, 2009). Podemos verificar que, na segunda metade do século XX, com o desenvolvimento da psicofarmacologia e da neurologia, a psiquiatria conquistou uma nova identidade, 11 Ferrazza, D. A medicalização do social: um estudo sobre a prescrição de psicofármacos na rede pública de saúde. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp), Campus de Assis, 2009. . 10 mostrando uma aproximação ainda maior da medicina. Nesse contexto, a psiquiatria busca enfrentar as disfunções biológicas supostamente inerentes à loucura, a psiquiatria se torna uma ciência biológica e os medicamentos psicofármacos se caracterizam como os principais dispositivos para tratamentos e cura dos transtornos mentais. Tal processo deixa clara a extrema valorização da concepção biológica do sofrimento psíquico, onde o tratamento passa também a ser reduzido ao biológico e fundamentado nos recursos químicos produzidos nos laboratórios farmacêuticos. Nesse contexto de produção de psicofármacos, a psiquiatria moderna expande seus discursos a práticas a um número cada vez maior de pessoas, processo nomeado como “medicalização da população” e que pode ser comparados às intervenções da época do movimento higienista (Ferrazza, 2009). As classificações atuais, geralmente relacionadas a comportamentos socialmente indesejados, acabam por classificar quase todos os nossos sofrimentos e reduzi-los a termos médicos. Tal consideração fica claramente exposta por Ferrazza (2009, p.44) Nessa configuração, qualquer sinal de sofrimento psíquico pode estar suscetível a ser transformado em objeto das práticas médicas constituídas de rotulações diagnósticas, de terapêuticas medicamentosas, de práticas de tutela e internações psiquiátricas. Nesse processo de transformar qualquer mal-estar psíquico em doença pode-se perceber uma tendência geral da medicina em tornar médico aquilo que é da ordem do social. Dessa maneira, o conceito de doença mental pode ser pensado como uma construção do saber médico psiquiátrico que criou uma ampla produção discursiva que veio a constituir a psicopatologia moderna. Atualmente vivemos um contexto em que a medicina faz um gerenciamento dos corpos a partir da prescrição de psicofármacos e, diante disso, podemos evidenciar o conceito da Biopolítica, elaborado por Foucault, onde o controle dos corpos visa a supressão de qualquer tipo de desvio social. A crítica exposta aqui, faz menção a uma produção de sujeitos medicados sem a abordagem do sintoma como manifestação subjetiva, resultando em um não aprofundamento das relações entre paciente e profissional. As práticas médico-psiquiátricas, que no século XIX eram restritas ao âmbito hospitalar, agora se expandem para um número cada vez maior de pessoas num processo de expansão do fenômeno de medicalização do social. Além disso, vem se consolidando como autoridade de saber para disciplinas com aplicabilidade na área da saúde e da saúde mental (serviço social, psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia). No caso específico da Psicologia, a presença da medicina como saber de autoridade vem evidenciando o processo de recusa da especificidade da experiência subjetiva em nome: 1. Da exigência, no campo da Psicologia, de quantificação das habilidades instrumentais. 11 2. Da elaboração,no campo da psiquiatria, de um modelo explicativo das psicopatologias fundamentado na neurofisiologia e solidário da tecnologia de síntese de medicamentos. Um caso clássico é a invalidação do diagnóstico diferencial neurose-psicose, com base na prescrição da Imipramina para ambas as psicopatologias. De fato, a publicação, em 1962, do artigo de Donald Klein sobre os padrões de reação à Imipramina demonstrou a futilidade, para a psiquiatria biológica, de uma pesquisa clínica em torno do diagnóstico diferencial. Sobre as implicações de uma farmacologia, indissociável dos interesses de mercado, sobre a disciplina do diagnóstico diferencial, é possível concordar com Laurent (1995, p. 15612). Certamente, uma das contribuições fundamentais da psicofarmacologia é ter podido mostrar a eficácia do tratamento antes reservado à psicose maníaco-depressiva clássica em outras patologias, tais como as esquizofrenias distímicas, bem como nos distúrbios do comportamento alimentar ou nas chamadas patologias neuróticas tão bem definidas, em termos semiológicos, quanto os distúrbios obsessivo-compulsivos. Nesse quadro, de uma psicofarmacologia orientada pelos interesses de mercado, a American Psychiatry Association (APA) extraiu, no final da década de 1970, o fundamento biológico para o DSM-III, em ruptura com o modelo psicanalítico, ainda predominante no DSM-II, até chegar ao extremo da investigação sobre a causalidade da psicose para o DSM-V. * Nas próximas aulas trataremos da especificidade da entrevista clínica a partir dessas considerações. O conjunto de aulas 2, intitulado A noção de saúde e transtorno mental no fundamento da entrevista clínica em psiquiatria, tratará dos fundamentos da noção de saúde e transtorno no campo da psiquiatria clínica. 12 Laurent, E. Melancolia, dor de existir, covardia moral. In: Laurent, E. Versões da clínica psicanalítica. (pp. 155-166). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 12 2. A noção de saúde e transtorno mental no fundamento da entrevista clínica em psiquiatria. Após as considerações acerca da consolidação do método clínico em psiquiatria a partir da pesquisa sobre o fundamento biológico das psicopatologias e da direção do tratamento privilegiar a prescrição de medicamentos, cabe estabelecer uma reflexão acerca do que vem a ser saúde. Levemos em consideração a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946). Para a OMS, a saúde é definida em termos positivos como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades: A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados13. A partir da leitura do trecho da Constituição da OMS, é possível depreender que a noção de saúde ganha, a partir do ano de 1946, um sentido associado à comunidade (o bem- estar é um estado que depende de fatores físicos, mentais e sociais), sendo um direito fundamental do indivíduo que deve ser assegurado sem distinção de raça, religião, ideologia política ou condição sócio-económica. Neste sentido, o documento da OMS frisa que a saúde não é um bem individual, mas um valor coletivo, um bem de todos, associado à comunidade, localizando no campo de decisões e ações do indivíduo, a responsabilidade pela garantia da saúde da comunidade: cada indivíduo deve gozar individualmente de sua saúde, sem prejuízo de outrem e, solidariamente, com todos. A Constituição da OMS (1946), elaborada no processo de finalização da II Guerra Mundial, suprime um fator crucial na análise da formação do laço social em tempos de guerra conferindo à associação entre saúde e bem-estar um status utópico: a irrupção no campo de decisões, de uma ética que independe do bem-estar e que se alicerça na destruição do próximo. Com relação a esse ponto, Freud (1908 e 193014), sensível às transformações do laço social de sua época, situou o paradoxo imanente à crença no bem-estar, na felicidade 13 Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) – 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da- Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html 14 Respectivamente: Freud, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 9. Rio de Janeiro: Imago, 1996. http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html 13 individual na civilização. A civilização, para Freud, passou a existir quando os homens fizeram um pacto entre si, pelo qual trocaram uma parcela de sua liberdade pulsional, de suas satisfações mais íntimas e individuais, por uma parcela de segurança. Desta forma, o laço social e a condição mesma da existência do homem no laço baseiam-se em uma renúncia que, ainda que assegure ao indivíduo certos benefícios, resulta em uma experiência de mal-estar. A própria formação do laço social tem, dede a eclosão da I Guerra, dado mostras da fragilidade imanente à promessa civilizatória de segurança e paz. Levando em consideração essa análise teórica de Freud, manter a articulação entre felicidade e saúde significa sustentar que a doença se mede pelo grau de desvio com relação ao ideal comunitário de que a tomada de decisões individuais deve, conscientemente, incluir a responsabilidade pela garantia da saúde da comunidade. Avançando na argumentação da OMS para a saúde em direção à particularização na saúde mental, esse ideal comunitário, ganha o aspecto da ordem pública. Nessa perspectiva, a saúde mental deve ser medida pelo grau de adaptação à ordem pública. Essa perspectiva de que a saúde mental se mede pelo grau de adaptação à ordem pública, responde à uma orientação teórica na psiquiatria que remonta à hipótese naturalista das psicopatologias, formulada por Emil Kraepelin15. Essa hipótese supõe uma fronteira precisa entre normalidade e psicopatologia e define as psicopatologias como doenças verdadeiras, processos da natureza que se desenvolvem independentemente do funcionamento subjetivo e de condições sociais; elas nada têm a ver com construções discursivas, sendo antes fatos objetivos que a ciência psiquiátrica tem o objetivo de elucidar: Unicamente é possível estabelecer o conceito de enfermidade psíquica e fixar com precisão seus limites quando se conhece exatamente as causas, a sintomatologia, o curso da doença e suas eventuais alterações anatomopatológicas. Essa definição naturalista da psicopatologia invalida a atitude metodológica de escuta e análise do conteúdo discursivo do paciente, e de determinação dos pontos de desestabilização do funcionamento mental, a partir da história narrada pelo paciente. Ao contrário, para a concepção naturalista, é fundamental considerar como parte do método clínico a supressão da avaliação clínica da narrativa do paciente por considerá- Freud, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: Freud,S. Edição Standard Brasileira das ObrasPsicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 15 Kraepelin, E. As formas de manifestação da insanidade Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, v. 12, n. 1, p. 167-194, mar. 2009. 14 la o veículo de erros e simulações decorrentes do quadro psicopatológico. Conforme afirma Kraepelin (2009, p. 17416): Contudo, o mais importante nessa relação é descobrir o papel decisivo que cabe àquilo que é constitucional no próprio sujeito, principalmente as influências da hereditariedade [...]. Fica claro, portanto, que a compreensão das manifestações patológicas deverá passar primordialmente pela pesquisa das disposições herdadas. Ou seja, para os kraepelinianos do século XIX, a observação da evolução da doença e a busca de uma etiologia biológica (hereditariedade) deveriam orientar a posição ética do psiquiatra na condução do diagnóstico e nas diretrizes do tratamento das psicopatologias. A recuperação da hipótese naturalista de Emil Kraepelin ocorrerá no início dos anos 1970 por um grupo de psiquiatras da Universidade de Washington, preocupados em: Retomar a hegemonia da psiquiatria biológica como ciência e alinhar o método clínico segundo a objetividade da ciência, suprimindo do domínio de pesquisa clínica em psiquiatria, as referências que pudessem vinculá-la a discursos considerados pouco científicos (por exemplo, a sociologia, a fenomenologia ou a psicanálise). Formular um novo modo de pensar as psicopatologias que tomasse como modelo os procedimentos clínicos utilizados para diagnosticar uma patologia biológica, que fosse aceito e utilizado uniformemente pelos psiquiatras do mundo inteiro como referência - como uma espécie de vocabulário universal. A elaboração das sucessivas edições do DSM, conforme vimos ao longo da seção 1 (A Sedução pelo Transtorno) deste curso, respondia à esse projeto de erguer uma ciência no âmbito da clínica. A publicação do DSM III, em 1980, foi o marco da consolidação deste modo de entender as psicopatologias (como desordens ou transtornos) e conduzir o diagnóstico e a direção de tratamento em psiquiatria: 1. Novo modo de entendimento: em relação às edições anteriores (DSM-I e DSM- II, orientados pela psicanálise). 2. Antigo modo de entendimento: pois retoma ideias clássicas da psiquiatria biológica, tributárias do século XIX, centradas na explicação biológica dos 16 Kraepelin, E. As formas de manifestação da insanidade Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, v. 12, n. 1, p.174, mar. 2009. 15 comportamentos considerados desviados (hipótese da hereditariedade, da localização cerebral). A publicação do DSM- III teve como eixo articulador o artigo de John Feighner (1970), intitulado Diagnostic criteria for use in psychiatric research17. O artigo fundamentou a elaboração da classificação das psicopatologias publicada a partir do DSM-III, defendendo os dados empíricos, afastando a avaliação subjetiva e rompendo com a fundamentação teórica da psicanálise (conforme é possível visualizar na tabela 2 deste material de aula - síntese das edições do DSM). O DSM-III ressalta a necessidade de observar cinco critérios para a classificação das psicopatologias (transtornos). A tabela 6 abaixo reapresenta os critérios considerados pelo DSM-III, na tabela 4 deste material de estudo. Tabela 6. Critérios para a classificação dos transtornos no DSM-III (reprodução da tabela 4) 1) descrição clínica 2) estudos de laboratório 3) critérios de exclusão de outras doenças 4) estudo do curso da doença 5) estudos referentes à família dos doentes Dessa forma, a estrutura do DSM-III obedece ao neokraepelinianismo, cujos postulados são reproduzidos pelo artigo crítico de Caponi (201118) e expostos abaixo: 1. A psiquiatria é um ramo da medicina. 2. A psiquiatria deve utilizar metodologias científicas modernas e estar baseada em conhecimentos científicos. 3. A psiquiatria trata pessoas que estão doentes e que requerem tratamento para doenças mentais. 4. Existe uma fronteira ou limite entre normalidade e doença. 5. As doenças mentais não são mitos. Existem muitas doenças mentais. A tarefa da psiquiatria científica, como especialidade médica, é pesquisar as causas, o diagnóstico e o tratamento das doenças mentais. 6. O alvo da psiquiatria deve estar, particularmente, nos aspectos biológicos das doenças mentais. 7. Deve existir uma preocupação explícita com o diagnóstico e a classificação. Os critérios diagnósticos devem ser codificados e deve existir uma área de pesquisa para validar esses critérios com diversas técnicas. 17 Feighner, J.P. et al. Diagnostic criteria for use in psychiatric research. Archives of General Psychiatry, v. 26, p. 57-63, 1972. 18 Caponi, S. A hereditariedade mórbida: de Kraepelin aos neokraepelinianos. Physis v.21 no.3 Rio de Janeiro, 2011. 16 8. Os departamentos de psiquiatria nas escolas médicas devem ensinar esses critérios, e não depreciá-los. 9. Com a finalidade de aumentar a validade dos diagnósticos e das classificações, as técnicas estatísticas devem ser utilizadas. Esses princípios definem o modo como a psiquiatria procede a partir de uma hipótese do que é ciência desde o ano de 1978 até hoje. Esses princípios definem a pesquisa clínica em psiquiatria da seguinte forma: integrando as pesquisas conduzidas em outros domínios da biologia, pesquisando as causas, o diagnóstico e a terapêutica de cada transtorno psiquiátrico, reproduzindo os mesmos procedimentos da medicina, utilizando metodologia estatística e estudos comparativos. NOTAS DE AULA 17 18 19 3. A Entrevista psicológica e sua especificidade em relação a psiquiatria contemporânea O conjunto de aulas anteriores nos permitiu extrair uma primeira noção fundamental: no domínio da investigação psicológica, não é possível pensar em um diagnóstico naturalista ou seja em uma mera descrição de fenômenos que teriam entre si um nexo causal estabelecido desde sempre. Conforme veremos, o próprio fato da entrevista conter como uma de suas características, a dependência ao mundo da linguagem torna a formulação do diagnóstico, uma prática orientada pela linguagem e não pela observação do comportamento. A classe que reúne os fenômenos clínicos observáveis não é um dado real, ela é efeito direto de uma construção. Por esse motivo, a metodologia entrevista precisa estar bem alicerçada nesse mundo da linguagem. A entrevista é um instrumento metodológico fundamental nos diversos domínios de atuação do psicólogo: na seleção (domínio da psicologia organizacional), na orientação (domínio da psicologia escolar), na formulação do diagnóstico em psicopatologia (clínica). A despeito da diversidade de sua importância, podemos isolar um núcleo de características próprias à entrevista, independentemente de seu domínio de aplicação. São elas: A entrevista ocorre por intermédio da relação entre duas ou mais pessoas. Na entrevista, predomina a comunicação simbólica. A entrevista se fundamenta em objetivos preestabelecidos orientados pelo marco teórico do entrevistador: avaliação, diagnóstico terapia, orientação. Essas características apontam para o fato da entrevista diferenciar-se de uma conversa informal. O que de antemão, impõe uma retificação do entendimento que o estudante de psicologia possa ter de termos muito difundidos no senso comum a respeito do curso de psicologia e da atividade do psicólogo: psicólogo escuta, psicólogo faz um acolhimento, a escuta é mais importante do que qualquer teoria. Ora, as características da entrevista tornam evidente que acolher e escutar são aspectos da metodologia da entrevista e esta, por sua vez, não se confunde com uma conversaporque depende do marco teórico do profissional. De acordo com esta perspectiva, podemos elencar as seguintes funções da entrevista: 20 Tabela 7. Funções Gerais da Entrevista Psicológica Levantamento das informações do paciente Aqui, são privilegiadas as seguintes informações sobre o paciente: história evolutiva, história laboral e profissional, história familiar, história de uso de medicação. Esclarecimento e motivação São privilegiadas ações como: esclarecimento junto ao paciente dos problemas por ele apresentados, orientações quanto a metodologia empregada. Terapêutica São privilegiadas ações de esclarecimento e direção de tratamento para a estabilização do quadro clínico – obedecendo às diretrizes da hipótese diagnóstica. Temporalidade Longitudinal A entrevista ocorre ao longo de todo o processo psicoterapêutico. Além das funções, elencamos também os objetivos mais gerais da entrevista psicológica na tabela 8. Tabela 8. Objetivos da entrevista psicológica Anamnese Reconstrução da história do sujeito Orientação Avaliação das aptidões para uma aprendizagem Seleção Levantamento das aptidões para um emprego Arguição Oral Levantamento de conhecimentos Entrevista preliminar a uma psicoterapia Formulação da hipótese diagnóstica para a indicação e tratamento das psicopatologias Aconselhamento Psicológico Ajuda para o enfrentamento de uma dificuldade pontual na existência Formação Aprimorar a comunicação com outrem As características, funções e objetivos da entrevista psicológica, conforme já foi considerado aqui, dependem de um marco teórico. Neste sentido, a entrevista psicológica deve estar articulada à um dos três marcos teóricos que o estudante aprende no curso de psicologia: a psicanálise, a psicologia fenomenológica e a psicologia cognitivo-comportamental. Ao longo do curso, aprenderemos os procedimentos da entrevista psicológica a partir do marco da psicanálise aplicado ao dispositivo clínico exercido tanto no campo da atenção psicossocial como no consultório. 21 De acordo, então, com esse marco teórico já podemos adiantar que Freud (1913)19 denominara o momento da entrevista de análise de prova ou tratamento de ensaio e que Jacques Lacan o denominara de entrevistas preliminares. Sem ainda detalhar o modo como Freud concebe a metodologia da entrevista ou do tratamento de ensaio, podemos apreender que o fundador da psicanálise sustenta a importância de um momento necessário para o analista conhecer o caso e decidir sobre a direção para o tratamento dos problemas apresentados pelo paciente e à ele endereçados. Conforme estudaremos mais adiante, esse momento do tratamento de ensaio é ele próprio o início da análise, obedecendo assim à função longitudinal da entrevista. Apresentaremos os norteadores gerais para a formulação da entrevista psicológica (independente do referencial teórico) e a especificidade desses aspectos a partir do referencial teórico da psicanálise. • Primeiro norteador da entrevista psicológica – preparando a entrevista: Em linhas gerais, a preparação da entrevista exige que o estudante de psicologia domine suficientemente seu marco teórico para a determinação do domínio de interesse na entrevista. No caso da entrevista clínica, isso significa que o estudante precisa conhecer seu marco teórico, ter conhecimento de psicopatologia e da compreensão que seu marco teórico oferece para a direção de seu tratamento. Considerando esses pontos, referidos ao marco teórico da psicanálise mais detidamente, temos que as entrevistas preliminares dependem do conhecimento: 1. Dos processos de constituição do funcionamento psíquico: recalcamento e foraclusão. 2. Das psicopatologias que decorrem da desestabilização desses processos e seu impacto no funcionamento subjetivo: neurose e psicose. 3. Dos aspectos técnicos referentes à direção de tratamento na neurose e na psicose. Esses três pontos apontam para a valorização da teoria psicanalítica como instrumento conceitual para definir a direção de tratamento em cada caso. A psicanalista Lêda 19 Freud, S. Sobre o início do tratamento (1913). In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.137-158. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.12). 22 Guimarães (2008, p. 73)20 expõe com precisão a importância da teoria na condução do caso clínico desde as entrevistas preliminares em psicanálise: Será a leitura dos dados clínicos, do que ocorre a cada sessão de análise, utilizando os instrumentos conceituais da psicanálise para efetivar esta leitura, que permitirá ao analista um trabalho constante de formulação da direção da cura para cada caso. Assim, a teoria da psicanálise instrumentaliza a posição analítica para que o analista venha a operar. A preparação da entrevista também supõe o cuidado do profissional com relação a posição que ocupará diante de seu paciente, evitando ocupar uma posição hierarquicamente superior ao paciente, típica das relações no senso comum, e que acabam por reproduzir uma estrutura de poder. Conforme a consideração de Jacques Lacan, em A Direção do Tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998)21, o psicanalista dirige a cura e não dirige o paciente. Esse ponto é de fundamental importância para a psicanálise. Em sua perspectiva teórica, o momento das entrevistas preliminares (tratamento de ensaio, conforme Freud) possibilita ao analista: 1. Situar-se diante do tipo de demanda do paciente. 2. Interrogar-se sobre suas próprias possibilidades de assumir a função de analista para aquele paciente. Essa interrogação que o analista faz sobre suas próprias possibilidades coloca, de saída, que a pertinência do método psicanalítico depende da disponibilidade do analista em se autorizar a assumir essa função. Assim, não há restrições clínicas quanto a psicanálise - independentemente de estarmos diante de uma demanda de tratamento direcionada a partir de uma neurose, a partir de uma psicose (em situações em que ambas se apresentem com maior campo de elaboração psíquica) ou de um sintoma contemporâneo (toxicomanias, depressão, pânico, déficit de atenção, anorexia, bulimia) em que as passagens ao ato são predominantes. • Segundo norteador da entrevista psicológica – a fase inicial/ as condições de abertura para o ato analítico: Em linhas gerais, a fase inicial se caracteriza pela explicação do processo da entrevista e seus objetivos. É também o momento em que se esclarece o que vem a ser o tratamento, a necessidade de, eventualmente, solicitar a presença de membros da família e de 20 Guimarães, L. Como formalizar um caso clínico?. Asephallus. Revista eletrônica do núcleo sephora. v.3,n.6, mai-out, 2008, p.73-82 21 Lacan, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 591-652. 23 encaminhamento à avaliação psiquiátrica. È também, aí que se estabelecem o acordo referente aos honorários e a regularidade das sessões de terapia. Considerando o marco teórico da psicanálise, nessa fase inicial reside as condições de abertura para o ato analítico. De acordo com a psicanálise, o início de um atendimento psicanalítico requer a verificação da abertura, da autorização subjetiva, para o ato analítico. Essa abertura é verficada por meio da demanda do paciente que procura um tratamento: o que esse paciente demanda e o modo como formula sua demanda no campo discursivo, ou seja, o modo como o paciente situa o Outro em sua demanda. Tomando mais uma vez como referência as considerações de Lêda Guimarães (2008, p.75) em relação a formalização do caso clínico, temos o seguinte exemplo: Karine, com idade em torno de trinta anos, chegou ao consultórioapresentando-se por meio de um pedido que consistia numa condição de suportabilidade, que dependia de uma ressalva em relação ao modo como a analista deveria operar. Quando interrogada sobre as razões da sua vinda, disse: “vim porque sei que preciso muito fazer análise”, “sempre precisei”. Afirmou ainda que levou muito tempo para reunir toda a coragem e se decidir a dar esse passo. Justificou esse pedido apoiada numa posição subjetiva de um certo pavor controlado, dizendo que há mais de cinco anos havia iniciado uma análise na qual só pôde suportar permanecer em torno de quatro ou cinco meses, pois se sentia encurralada com o modo de intervenção do analista e com o fato de fazer as sessões deitada no divã. Passou a sofrer de uma doença psicossomática que precipitou sua saída. Karine chegou a considerar que a doença teria alguma coisa a ver com essa experiência de análise. O que dizer desse modo de formular uma demanda ao analista? Que Karine chega impondo uma restrição à maneira como a analista deverá operar com ela. Esses dados indicam, desde a primeira entrevista, o modo sintomático da relação dessa paciente com o Outro ao qual ela dirige uma demanda que pode ser interpretada do seguinte modo: “Peço que você me responda, mas que você responda como eu decido. Você tem que me permitir e aceitar que eu domine, quer dizer, que eu possa controlá-la para que nada do que você disser ou fizer seja imprevisível para mim. E, sobretudo, nada de surpresas”. A partir do estudo do caso de Karine, depreende-se que na verificação das condições de abertura ao ato analítico, é necessário trabalhar para: 1. Localizar, na demanda do paciente, a parceria que ele estabelece, ao longo da vida, com o Outro (denominada de parceria-sintomática). 2. Delimitar o ponto de desestabilização da estrutura psíquica e que o levou à buscar tratamento: Qual foi o fator mobilizador da demanda? Em que circunstâncias esse fator emergiu? Desde quando? No exemplo clínico de Karine, isolamos afirmações do tipo “vim porque sei que preciso muito fazer análise”, “sempre precisei” – indicando a ocorrência de um ponto de 24 desestabilização. Levando adiante as palavras da paciente, temos ainda que num dado clínico, o motivo que levou esse sujeito ao analista anterior e a partir do qual verificamos que sua questão dirigida à análise foi sobre o amor. Ainda que, nesse novo pedido de análise, Karine não se ocupasse inicialmente em falar sobre essa questão, o modo como foi traçada a direção da cura lhe permitiu retomá-la seriamente mais adiante. O que nos permitirá verificar que o ponto de desestabilização da sua estrutura situava-se no campo do amor. 4. Eixos e Norteadores da Entrevista Clínica em Psicanálise No caso específico da psicanálise, as entrevistas clínicas (tratamento de ensaio ou entrevistas preliminares) se organizam em três eixos: EIXO 1: AVALIAÇÃO CLÍNICA EIXO 2: LOCALIZAÇÃO SUBJETIVA EIXO 3: INTRODUÇÃO AO INCONSCIENTE. Esses três eixos estão presentes em cada norteador das entrevistas preliminares, expostos na tabela 9: Tabela 9. Os Norteadores das Entrevistas Preliminares Preparação da entrevista Fase inicial/ as condições de abertura para o ato analítico O modo de funcionamento da identificação imaginária e da suplência A modalização da transferência O modo de defesa e o imperativo do supereu Determinação da função do significante na regulação pulsional (no caso clínico) O foco central do caso clínico • Primeiro norteador da entrevista psicológica – preparando a entrevista: Em linhas gerais, a preparação da entrevista exige que o estudante de psicologia domine suficientemente seu marco teórico para a determinação do domínio de interesse na entrevista. No caso da entrevista clínica, isso significa que o estudante precisa conhecer seu marco teórico, ter conhecimento de psicopatologia e da compreensão que seu marco teórico oferece para a direção de seu tratamento. Considerando esses pontos, referidos 25 ao marco teórico da psicanálise mais detidamente, temos que as entrevistas preliminares dependem do conhecimento: 4. Dos processos de constituição do funcionamento psíquico: recalcamento e foraclusão. 5. Das psicopatologias que decorrem da desestabilização desses processos e seu impacto no funcionamento subjetivo: neurose e psicose. 6. Dos aspectos técnicos referentes à direção de tratamento na neurose e na psicose. Esses três pontos apontam para a valorização da teoria psicanalítica como instrumento conceitual para definir a direção de tratamento em cada caso. A psicanalista Lêda Guimarães (2008, p. 73)22 expõe com precisão a importância da teoria na condução do caso clínico desde as entrevistas preliminares em psicanálise: Será a leitura dos dados clínicos, do que ocorre a cada sessão de análise, utilizando os instrumentos conceituais da psicanálise para efetivar esta leitura, que permitirá ao analista um trabalho constante de formulação da direção da cura para cada caso. Assim, a teoria da psicanálise instrumentaliza a posição analítica para que o analista venha a operar. A preparação da entrevista também supõe o cuidado do profissional com relação a posição que ocupará diante de seu paciente, evitando ocupar uma posição hierarquicamente superior ao paciente, típica das relações no senso comum, e que acabam por reproduzir uma estrutura de poder. Conforme a consideração de Jacques Lacan, em A Direção do Tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998)23, o psicanalista dirige a cura e não dirige o paciente. Esse ponto é de fundamental importância para a psicanálise. Em sua perspectiva teórica, o momento das entrevistas preliminares (tratamento de ensaio, conforme Freud) possibilita ao analista: 3. Situar-se diante do tipo de demanda do paciente. 4. Interrogar-se sobre suas próprias possibilidades de assumir a função de analista para aquele paciente. Essa interrogação que o analista faz sobre suas próprias possibilidades coloca, de saída, que a pertinência do método psicanalítico depende da disponibilidade do analista em se 22 Guimarães, L. Como formalizar um caso clínico?. Asephallus. Revista eletrônica do núcleo sephora. v.3,n.6, mai-out, 2008, p.73-82 23 Lacan, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 591-652. 26 autorizar a assumir essa função. Assim, não há restrições clínicas quanto a psicanálise - independentemente de estarmos diante de uma demanda de tratamento direcionada a partir de uma neurose, a partir de uma psicose (em situações em que ambas se apresentem com maior campo de elaboração psíquica) ou de um sintoma contemporâneo (toxicomanias, depressão, pânico, déficit de atenção, anorexia, bulimia) em que as passagens ao ato são predominantes. NOTAS DE AULA 27 28 29 5. Segundo norteador da entrevista psicológica – a fase inicial/ as condições de abertura para o ato analítico: Em linhas gerais, a fase inicial se caracteriza pela explicação do processo da entrevista e seus objetivos. É também o momento em que se esclarece o que vem a ser o tratamento, a necessidade de, eventualmente, solicitar a presença de membros da família e de encaminhamento à avaliação psiquiátrica. È também, aí que se estabelecem o acordo referente aos honorários e a regularidade das sessões de terapia. Considerando o marco teórico da psicanálise, nessa fase inicial residem as condições de abertura para o ato analítico. De acordo com a psicanálise, o início de um atendimento psicanalítico requer a verificação da abertura, da autorização subjetiva, para o ato analítico. Neste sentido, esse norteador já está integrado, segundo a psicanálise, ao início do tratamento. Essa abertura é verificada por meio da demanda do paciente que procura um tratamento:o que esse paciente demanda e o modo como formula sua demanda no campo discursivo, ou seja, o modo como o paciente situa o Outro (o tesouro dos significantes) em sua demanda. Essa demanda, normalmente, se apresenta como um pedido, feito pelo paciente, de restituição de um saber que lhe falta para amenizar o conflito e o mal-estar, supondo previamente que ali encontrará um Outro que saiba sobre o significado de seu mal- estar24 – por exemplo: “não sei o que está acontecendo comigo... eu não era desse jeito”; “minha vida era diferente...tudo caminhava bem...até que terminei um namoro e as coisas começaram à não dar mais certo...eu já nem sei quem eu sou”. Este norteador, das condições de abertura para o ato analítico, é o marco da demonstração do conhecimento especializado das estruturas psíquicas e da fórmula da transferência, por parte do profissional. Consideraremos ao longo dos demais norteadores esse conhecimento especializado. Neste segundo norteador, trabalharemos os aspectos teóricos que são cruciais para o entendimento e acolhimento da demanda do paciente. 4.1. As estruturas psíquicas. O discernimento da estrutura psíquica constitui um dos eixos do procedimento das entrevistas preliminares sustentando de maneira decisiva a direção do tratamento. De 24 Eis a fórmula da transferência: o paciente destituído de um saber sobre seu mal-estar supõe que o profissional ou analista detenha um saber sobre as causas desse mal-estar. Lacan escreve a posição do analista na transferência da seguinte forma: SSS – sujeito suposto saber. 30 fato, a fundação da psicanálise a partir dos problemas epistemológicos que a clínica das neuroses histéricas direcionava à psiquiatria do século XIX, abrira a possibilidade de se investigar problemas referentes ao diagnóstico diferencial de quadros de sofrimento a partir da identificação dos princípios de formação da extensa variedade de sintomas que um mesmo caso pode comportar e dos processos psíquicos que estão em jogo em seu desencadeamento. Conforme já mencionei anteriormente, as estruturas psíquicas em psicanálise se distinguem entre neurose, psicose e perversão. Aqui, trabalharemos fundamentalmente, a distinção entre neurose e psicose. A tabela 10 abaixo retoma a tabela 3, anterior, e apresenta um detalhamento maior em relação às estruturas psíquicas. Tabela 10. Estruturas Psíquicas e seus processos psíquicos constitutivos. Estrutura Psíquica Formas ou Tipos Processo Psíquico Formação do sintoma na neurose /fenômeno elementar na psicose Posição do sujeito diante da realidade Neurose • Histeria • N. obsessiva • Fobia Recalcamento • Conversão • Deslocamento • Deslocamento/ transformação em seu oposto/ substituição. O paciente se posiciona não querendo saber nada sobre a realidade psíquica. Psicose • Paranoia • Esquizofrenia • Melancolia Recusa ou Foraclusão • Rancor • Ironia • Remorso O paciente se posiciona recusando a realidade psíquica. Deixando, então, de lado a discussão clínica sobre a perversão, nosso estudo centrar-se- á em torno dos aspectos diferenciais entre neurose e psicose. A psicanálise constrói um saber clínico sobre o funcionamento psíquico a partir dos processos de recalcamento e foraclusão. O ensino de Lacan, a partir da elaboração conceitual da lógica do significante e do significante do Nome-do-Pai como regulador das pulsões, possibilitou maior formalização do diagnóstico diferencial entre neurose e psicose, indicando que: 1. O funcionamento psíquico não pode pertencer a duas estruturas e nem se deslocar de uma estrutura para outra: cada estrutura funciona de acordo com processos psíquicos específicos. 2. Os fenômenos clínicos apresentados por um paciente e endereçados ao analista no quadro de sua demanda de tratamento (insônia, uso de drogas, declínio da vontade e do sentimento de vida, ansiedade, tristeza, medo, conflitos internos) só 31 ganham sentido na medida em que são inteligíveis no quadro de funcionamento de uma estrutura. Uma vez determinada, a estrutura indica a maneira que este sujeito tem de ser diferente de todos. Um diagnóstico de neurose histérica, por exemplo, só tem valor para a psicanálise porque indica o ponto em que, na estrutura, os fenômenos dependem da lógica de funcionamento dos significantes nessa estrutura e do modo como essa lógica regula as pulsões. 3. A estrutura psíquica só pode ser reconstruída pelo tratamento psicanalítico. Ou seja, o diagnóstico de estrutura ocorre segundo as condições do trabalho analítico. O diagnóstico fora da transferência tende a dar uma consistência inconveniente ao analista25. 4. O diagnóstico diferencial depende de um saber clínico que envolve a psiquiatria: em Freud, a clínica das convulsões para a pesquisa dos processos psíquicos envolvidos na formação da neurose histérica; em Lacan, a paranoia de autopunição da paciente Aimée para a pesquisa dos processos psíquicos envolvidos na formação das psicoses. Consideremos em primeiro lugar, as neuroses. 4.1.1. Neuroses. A tabela 11 sintetiza a pesquisa etiológica de Freud com relação às neuroses. Tabela11. A estrutura psíquica da neurose para a psicanálise. Formas ou Tipos Processo Psíquico Formação do sintoma na neurose Casos clínicos de referência na Obra freudiana Posição do sujeito diante da realidade Histeria N. obsessiva Fobia Recalcamento Conversão Deslocamento Deslocamento/ transformação em seu oposto/substituição. Estudos sobre Histeria O Homem dos Ratos O Pequeno Hans O paciente se posiciona não querendo saber nada sobre a realidade psíquica. O destaque à pesquisa sobre a histeria ocorrerá a partir dos trabalhos clínicos de Jean Martin Charcot, dedicados ao diagnóstico diferencial entre histeria e epilepsia e ao aprofundamento da especificidade da histeria. Dessa forma, ao longo de todo o século 25 Em Lacan Elucidado (1997), Jacques-Alain Miller cita uma situação que envolveu Winnicott. O relato é de Maksoud Khan e reproduzido por Miller (1997, p.226): “Fizeram à Winnicott uma pergunta bastante simples. Quando devemos encaminhar um paciente ao hospital psiquiátrico e quando não? Depois de pensar, Winnicott respondeu-lhes. ‘É fácil: se o paciente aborrecê-lo, encaminhe-o ao hospital psiquiátrico, caso contrário, conserve-o’. Parece piada, mas não é. É consequência da posição ética (...)”. Resposta que evidencia a interferência dos sentimentos pessoais na avaliação clínico do paciente. 32 XIX, evidencia-se o aprofundamento da pesquisa clínica em torno da distinção entre epilepsia e histeria segundo os marcos: 1. Da revisão da categoria de histeroepilepsia, levando Charcot à concentrar a pesquisa clínica das convulsões em torno do diagnóstico diferencial entre histeria e epilepsia. 2. Do passo essencial de aprofundamento da pesquisa sobre a causalidade da histeria, por Freud, conduzindo ao isolamento do traço diferencial da histeria e à formulação da causa sexual da neurose. 3. Da elaboração dos fundamentos metapsicológicos a partir da hipótese da causa sexual: no nível econômico e dinâmico, Freud elaborara o recalcamento e a conversão do afeto como hipótese explicativa para a formação dos sintomas na neurose histérica; no nível tópico, estrutural, da inscrição das representações psíquicas no inconsciente, ele sustentara a identificação ao pai como agente regulador da satisfação pulsional. Tomando como referência os textos clínicos iniciais de Freud (1893/1976)26, sua pesquisa etiológica indica uma abordagem positiva do sintoma, distinta da tradição médica do século XIX, que o caracterizava como o negativo dos sintomas de uma doença orgânica, com a carga pejorativa do termo “simulação”. Nessa pesquisa etiológica de Freud,o sintoma primordial da neurose – e, em particular na neurose histérica – é a conversão. No mesmo quadro epistemológico da delimitação do sintoma primordial da histeria, Freud já insinua uma hipótese etiológica, que só ficará clara com a publicação de O Recalcamento (1915/1996)27 e O Mal-estar na civilização (1930/1996)28: o sintoma resulta do processo psíquico de recalcamento. Poder-se-ia afirmar que ele é o índice do consentimento do sujeito à ação do ideal civilizatório sobre a regulação pulsional. Esse consentimento se manifesta, clinicamente, como uma defesa contra a interrogação sobre o feminino. O caso de Elizabeth Von Ritter permitira a verificação dessa hipótese, conforme a indicação do próprio Freud (1893- 1895/1976): 26 Freud, S. Esboços para a “Comunicação Preliminar” (1893). In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.02). 27 Freud, S. O Recalcamento (1915). In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.02). 28 Freud, S. O Mal-estar na civilização (1930).In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.02). 33 1. Elisabeth localiza sua posição de filha amada identificando-se ao conteúdo do lapso cometido por seu pai ao endereçar à ela a declaração “és o filho que eu sempre desejei”. 2. A declaração amorosa, do cunhado para a irmã, como o ponto em que a paciente localiza a emergência do feminino para além da identificação ao filho desejado pelo pai: ali o coração de gelo – produto da identificação ao pai – começara a derreter. 3. O agravamento do sintoma conversivo de hemiplegia como defesa contra o feminino. Nos textos Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade (1908) e Algumas Observações Gerais sobre Ataques Histéricos (1909[1908])29, Freud estabelecerá a constituição lógica da estrutura psíquica a partir do autoerotismo. Essa constituição lógica consiste no seguinte processo: 1. TEMPO 1: vigora o autoerotismo, que consiste no funcionamento das pulsões parciais concentradas em zonas erógenas. 2. TEMPO 2: • O autoerotismo funde-se a uma representação psíquica, pertencente à esfera de amor objetal, ou seja, funde-se à uma fantasia. • A condição para essa fusão é o processo de recalcamento. • As fantasias inconscientes são os precursores psíquicos imediatos do sintoma histérico. • O sintoma é a exteriorização da fantasia inconsciente por meio da conversão. Reproduzo a citação onde encontramos essa constituição lógica da estrutura: (...) o ato masturbatório (no sentido mais amplo da palavra) compunha-se de duas partes. Uma era a evocação de uma fantasia e a outra um comportamento ativo para, no momento culminante da fantasia, obter autogratificação. Como sabemos, esse composto estava em si simplesmente soldado junto. Originalmente o ato era um processo puramente auto-erótico que visava obter prazer de uma determinada parte do corpo, qye pode ser denominada de erógena. Mais tarde, esse ato fundiu-se a uma idéia plena de desejo pertencente à esfera do amor objetal, e serviu como realização parcial da situação em que culminou a fantasia. (...) Dessa forma, as fantasias 29 Freud, S. Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade (1908). In:______ Obras psico- lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.09). Freud, S. Algumas Observações Gerais sobre Ataques Histéricos (1909[1908]). In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.09). 34 inconscientes são os precursores psíquicos imediatos de toda uma série de sintomas histéricos. Estes nada mais são do que fantasias inconscientes exteriorizadas por meio da ‘conversão’.” (p.165). No entanto, em 1908, a clínica das neuroses atuais introduz uma nova abordagem para o diagnóstico no campo das neuroses. De fato, em Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna, Freud (1908/1976)30 formula uma distinção diagnóstica importante entre psiconeuroses e neuroses atuais. Ele define as psiconeuroses como condizentes aos efeitos dos conteúdos ideativos inconscientes, e as neuroses atuais, como neuroses que não possuem relação com o infantil, e caracterizam-se por manifestações clínicas que surgem no corpo, mediante um excesso ou escassez de pulsão. Com as neuroses atuais, Freud depara-se com uma clínica da desestabilização pulsional e do declínio do funcionamento do inconsciente. Assim, se por um lado à abertura do inconsciente permitiu à Freud isolar o amor ao pai como sustentador da formação sintomática na histeria, a própria subjetividade de época testemunhou seu fechamento a ponto de Freud, em 1908, em uma carta a Jung, admitir que esta categoria se diluíra diante de seus olhos, em função da extensão clínica assumida pelo diagnóstico de demência precoce. A própria direção de tratamento da neurose histérica, inicialmente afinada com a interpretação do sentido subjacente ao sintoma, cede progressivamente lugar, à evidência de que o sujeito neurótico pode ser recalcitrante, ou seja, resistente à análise devido a ocorrência de uma exigência superegoica de não curar denominada de reação terapêutica negativa (Freud, 1913/1976). A elaboração do conceito de pulsão de morte, a partir dos anos de 1920, permitirá um entendimento sobre as condições de funcionamento desta instância superegoica típica do processo psíquico subjacente à histeria. E que, contemporaneamente, ainda se verifica para a elucidação dos quadros contemporâneos de desestabilização da estrutura neurótica. O maior detalhamento sobre o que vem a ser os processos psíquicos de suplência, identificação imaginária, na neurose e nas psicoses, e a formação do supereu será feito no momento em que trabalharmos os norteadores do modo de funcionamento da identificação imaginária e da suplência e do modo de defesa e o imperativo do supereu. 30 Freud, S. Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna (1909). In:______ Obras psico- lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.09). 35 Para finalizar esse norteador das condições de abertura para o ato analítico, e já orientados pelo problema clínico levantado pelas neuroses atuais, retomando mais uma vez como referência as considerações de Lêda Guimarães (2008, p.75) em relação a formalização do caso clínico. A autora cita o estudo de caso de Karine, indicativo de uma neurose sem a princípio evidenciar as coordenadas da formação do sintoma histérico: Karine, com idade em torno de trinta anos, chegou ao consultório apresentando-se por meio de um pedido que consistia numa condição de suportabilidade, que dependia de uma ressalva em relação ao modo como a analista deveria operar. Quando interrogada sobre as razões da sua vinda, disse: “vim porque sei que preciso muito fazer análise”, “sempre precisei”. Afirmou ainda que levou muito tempo para reunir toda a coragem e se decidir a dar esse passo. Justificou esse pedido apoiada numa posição subjetiva de um certo pavor controlado, dizendo que há mais de cinco anos havia iniciado uma análise na qual só pôde suportar permanecer em torno de quatro ou cinco meses, pois se sentia encurralada com o modo de intervenção do analista e com o fato de fazer as sessões deitada no divã. Passoua sofrer de uma doença psicossomática que precipitou sua saída. Karine chegou a considerar que a doença teria alguma coisa a ver com essa experiência de análise. O que dizer desse modo de formular uma demanda ao analista? Que Karine chega impondo uma restrição à maneira como a analista deverá operar com ela. Esses dados indicam, desde a primeira entrevista, o modo sintomático da relação dessa paciente com o Outro ao qual ela dirige uma demanda que pode ser interpretada do seguinte modo: “Peço que você me responda, mas que você responda como eu decido. Você tem que me permitir e aceitar que eu domine, quer dizer, que eu possa controlá-la para que nada do que você disser ou fizer seja imprevisível para mim. E, sobretudo, nada de surpresas”. Leda Guimarães opera sobre a verificação das condições de abertura ao ato analítico no sentido de: 3. Localizar, na demanda do paciente, a parceria que ele estabelece, ao longo da vida, com o Outro (denominada de parceria-sintomática). 4. Delimitar se já houve na estrutura desse sujeito uma estabilização bem fixada ou não. 5. Delimitar o ponto de desestabilização da estrutura psíquica e que o levou à buscar tratamento: Qual foi o fator mobilizador da demanda? Em que circunstâncias esse fator emergiu? Desde quando? 6. Delimitar os indicadores dos modos de suplência que tentam solucionar, na vida psíquica, o ponto de desestabilização da estrutura. No exemplo clínico de Karine, isolamos afirmações do tipo “vim porque sei que preciso muito fazer análise”, “sempre precisei” – indicando a ocorrência de um ponto de desestabilização. Levando adiante as palavras da paciente, temos ainda que num dado clínico, o motivo que levou esse sujeito ao analista anterior e a partir do qual 36 verificamos que sua questão dirigida à análise foi sobre o amor. Ainda que, nesse novo pedido de análise, Karine não se ocupasse inicialmente em falar sobre essa questão, o modo como foi traçada a direção da cura lhe permitiu retomá-la seriamente mais adiante. O que nos permitirá verificar que o ponto de desestabilização da sua estrutura na neurose situava-se no campo do amor – uma pista clínica importante para o manejo da neurose atual. A leitura de Sobre o narcisismo: uma introdução (1914)31 e O Ego e o Id (1923)32, oferecem uma chave de leitura importante, e cada vez mais aprofundada, acerca da organização dos tempos de constituição da estrutura psíquica. Esse texto representa, no marco da pesquisa teórico-clínica em psicanálise, um tratado sobre o Eu derivado diretamente dos problemas clínicos colocados pela direção de tratamento da esquizofrenia. No primeiro capítulo de Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Freud retoma os achados pertinentes à clínica da histeria, sobre o que é um corpo. Um sintoma histérico afetao corpo, produzindo, por exemplo, um sintoma de paralisia, mas não afeta, não corrói, o organismo. Com isso, Freud indica uma distinção importante à se fazer entre corpo e organismo vivo: o corpo é secundário em relação ao organismo vivo. E, para o corpo se constituir é necessário um processo psíquico para que se constitua o corpo a partir do organismo vivo. Essa afirmação freudiana a respeito do caráter construído do corpo será intimamente relacionado ao narcisismo. É importante notar que, em Sobre o Narcisismo: Uma introdução (1914), Freud já deixa bem clara a existência de uma relação entre o corpo e o eu. Essa relação entre o eu e o corpo será deduzida a partir da clínica da esquizofrenia e ganhará aprofundamento em O Ego e o Id (1923): o eu é, inicialmente, um eu corporal. 31Freud, S. Sobre o narcisismo; Uma Introdução (1914). In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.14). 32Freud, S. O Ego e o Id(1923). In:______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.14). 37 Tabela 12. Desdobramento na pesquisa freudiana sobre a relação entre o corpo e o eu entre os Estudos sobre Histeria(/) e Sobre o Narcisismo: Uma introdução (1914) Referências em Freud Pesquisa sobre o corpo Estudos sobre Histeria (/) A clínica do sintoma conversivo na histeria implica na elaboração da distinção entre corpo e organismo vivo. Sobre o Narcisismo: Uma introdução (1914) / O Ego e o Id (1923) A clínica da esquizofrenia implica na elaboração da articulação entre corpo e eu / o eu incialmente é um eu corporal. Nessas referências fica clara, portanto, a relação estreita, existente para Freud, entre o eu e o corpo. O autor sustenta a escandalosa que uma unidade comparável ao eu não está presente, no indivíduo, desde o início. Daí a condição de funcionamento ser o autoerotismo. E esse fato só pôde ser evidenciado por meio da clínica da psicose e, em específico, da esquizofrenia. Conforme foi dito mais acima, em Sobre o Narcisismo: Uma introdução (1914),Freud se refere à parafrenia - dementiapraecox (segundo a nomenclatura de Kraepelin) ou esquizofrenia (segundo a classificação de Bleuler). O autor ressalta que essa condição psíquica apresenta 2 traços de caráter que torna a parafrenia imune à intervenção psicanalítica, conforme sintetiza a tabela 13. Tabela 13. Traços de caráter nas parafrenias (conforme Freud, 1914). Delírio de grandeza Declínio do interesse com relação ao mundo exterior Nesse texto, Freud dá continuidade à interrogação, que já fazia em Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade (1908) e Algumas Observações Gerais sobre Ataques Histéricos (1909[1908])33, a respeito do destino da pulsão que se retrai em relação ao investimento dos objetos. No texto sobre o narcisismo, o foco é a retração da pulsão na esquizofrenia. A hipótese de Freud (1914) é que a pulsão subtraída do mundo exterior foi conduzida ao eu e, assim, surgiu uma atitude que ele denomina de narcisismo. O delírio de grandeza é a amplificação de um estado que já existira. Isto conduz Freud à conceber o narcisismo 33 Freud, S. Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade (1908). In:______ Obras psico- lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.09). Freud, S. Algumas Observações Gerais sobre Ataques Histéricos (1909[1908]). In:______ Obras psico- lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas Sigmund Freud, Vol.09). 38 que se constitui pela retração do investimento pulsional no objeto como narcisismo secundário. Este narcisismo secundário está sobre a base do narcisismo primário. Então, Freud (1914) sustentou a hipótese de um investimento da pulsão originariamente no eu e cedida, posteriormente, aos objetos. Freud recorre à metáfora da ameba e de seus pseudópodes para elaborar a hipótese de que esse investimento originário persiste e é a partir dele que ocorre a distribuição do investimento no objeto. A mobilidade e equivalência entre libido do eu e libido do objeto é crucial no texto sobre o narcisismo, fundamentando o entendimento clínico dos traços de caráter na esquizofrenia e na própria paranoia conforme tabela 14. Tabela 14. Traços de caráter na esquizofrenia e na paranoia a partir do investimento pulsional. Formas clínicas da psicose Distribuição pulsional Efeito de ruptura com o Outro Esquizofrenia Retração da pulsão sobre o eu O Outro não existe: delírio de grandeza e declínio do interesse com relação ao mundo exterior Paranoia Retração da pulsão sobre o objeto O Outro existe: delírio persecutório. A complexidade de Sobre o narcisismo: uma Introdução (1914)
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