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1 LINGUAGEM, INTERAÇÃO E SOCIEDADE DIÁLOGOS SOBRE O ENEM 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA REITORA MARGARETH DE FÁTIMA FORMIGA DINIZ VICE-REITOR EDUARDO RABENHORST CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES Diretor do CCTA JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES Vice-Diretor ELI-ERI LUIZ DE MOURA Editora do CCTA Conselho Editorial CARLOS JOSÉ CARTAXO GABRIEL BECHARA FILHO HILDEBERTO BARBOSA DE ARAÚJO JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES MARCÍLIO FAGNER ONOFRE Editor JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES Secretário do Conselho Editorial PAULO VIEIRA Laboratório de Jornalismo e Editoração Coordenador PEDRO NUNES FILHO 3 LINGUAGEM, INTERAÇÃO E SOCIEDADE DIÁLOGOS SOBRE O ENEM LEILANE RAMOS DA SILVA RAQUEL MEISTER KO.FREITAG Organizadoras Coleção Gelins Volume II Editora do CCTA João Pessoa 2015 4 © Copyright by Gelins, 2015 Produção Gráfica e Capa DAVID FERNANDES Revisão DÉBORA REIS AGUIAR Ficha catalográfica 5 Sumário Apresentação ................................................................................................. 9 Introdução ............................................................................................... 15 Linguagem, interação e sociedade: o Enem como foco de pesquisas Gelins Raquel Meister Ko. Freitag, Leilane Ramos da Silva, Denise Porto Cardoso, Isabel Cristina Michelan de Azevedo & Taysa Mércia dos Santos de Souza Damaceno .......................................... 25 Seção I As Competências da Prova de Redação A competência I na prova de redação do Enem Raquel Meister Ko. Freitag ................................................................................................................. 23 Organização de textos dissertativo-argumentativos em prosa: o que se percebe em dez anos de realização do Enem? Isabel Cristina Michelan de Azevedo ................................................................................................. 33 O estatuto da leitura na redação do Enem 2014: o caso da fuga ao tema Solange dos Santos & Débora Reis Aguiar ........................................................................................ 51 Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da competência III no livro didático em Sergipe Leilane Ramos da Silva, Danillo da Conceição Pereira Silva, Layane Mayara Dantas da Cruz & Nathalia da Silva Paixão ................................................................................................................... 63 6 A produção escrita em processos seletivos e o desenvolvimento de competências e capacidades Aline Malaquias da Silva & Regina Celi Mendes Pereira ................................................................. 79 Exercício da cidadania e direitos humanos: as funções da competência v na redação do Enem Ricardo Nascimento Abreu ................................................................................................................ 97 Seção II A prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias O estatuto da variação linguística nas provas do Enem Sammela Rejane de Jesus Andrade ................................................................................................... 111 Performatividade e modalização na prova do Enem Leilane Ramos da Silva, Jaqueline dos Santos Nascimento, Layane Mayara Dantas da Cruz & Nathalia da Silva Paixão ................................................................................................................... 129 Alternância gênero/texto nas questões da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do Enem Denise Porto Cardoso, Fabíola dos Santos Lima & Francielle Santos Araújo .................................. 139 Seção III Impactos e percepções do Enem O Enem enquanto política pública Marlucy Mary Gama Bispo ................................................................................................................ 151 7 O desempenho na prova de redação do Enem da rede estadual de Sergipe Raquel Meister Ko. Freitag, Fernando da Cunha Mendonça & José Júnior de Santana Sá ............ 163 Impactos do Enem sobre o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe Maria Josefa de Menezes Almeida ..................................................................................................... 173 O Enem: mal estar contemporâneo Onireves Monteiro de Castro ............................................................................................................. 179 8 9 Apresentação A Coleção Gelins firma-se na proposta de divulgar à comunidade acadêmica resultados das pesquisas que têm sido desenvolvidas no âmbito do grupo de estudos de nome homônimo, cujo foco é intercambiar áreas do saber linguístico, fomentando abordagens centradas na tríade ‘linguagem, interação e sociedade’. Neste seu segundo volume, a ideia é trazer à baila pesquisas que têm sido desenvolvidas, no escopo da linha ‘Competências comunicativas: formação docente ensino de língua materna’, sobre o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem, dada a importância que este instrumento de aferição das habilidades dos egressos da educação básica assume nos dias atuais. Incurso num conjunto de políticas públicas que sistematicamente instituem avaliações seletivas e/ou diagnósticas em larga escala, o Enem é, sem dúvida, um dos instrumentos mais comentados junto às escolas, secretarias de educação, universidades e demais espaços sociais e, como tal, tem despertado estudos nos diversos segmentos que legitimam a educação no país. A par dessa emergência, o Gelins, desde 2009, subsidia e incentiva estudos que vão desde a observação do estatuto da leitura, do tipo de gênero e de questão na prova do Enem, até àqueles cujo olhar se volta para a ideologia que perpassa a formulação desse exame como política pública, passando pelos que analisam como a sua inserção vem, gradativamente, contribuindo para uma mudança na práxis educacional em Sergipe. Considerada, então, a relevância social da temática e, claro, em razão do bom número de projetos já executados com foco no Enem, com alegria, a equipe Gelins aprovou a publicação em livro do que tem desenvolvido sobre tão impactante teste diagnóstico e seletivo da educação básica brasileira. Este livro abriga, então, a introdução da proposta de trabalho, intitulada “Linguagem, interação e sociedade: o Enem como foco de pesquisas Gelins”, assinada pelas pesquisadoras sêniores do grupo, a qual situa o Enem como um exame em larga escala e aponta alguns dos estudos realizados pelo Gelins, 12 capítulos e um ensaio, distribuídos em três seções: i) Competências da prova de redação; ii) A prova de Linguagem, códigos e suas tecnologias; e iii) Impactos e percepções do Enem. 10 Abrindo a seção I, Raquel Freitag, em seu “A competência I na prova de redação do Enem”, analisa os documentos norteadores do Enem, as diretrizes desse exame seletivo e a matriz de competência para a avaliação da prova de redação, especificamente no que diz respeito ao tratamento da norma e da diversidade linguística no cenário brasileiro, e mostra que a competência I da referida matriz não condiz com o que preveem os Parâmetros Curriculares Nacionais e o Programa Nacional de Livro Didático. A autora aponta, entre outras, que essa divergência penaliza o estudante da escola pública, de modo a ampliar o abismo social em terras brasileiras. Em “Organização de textos dissertativo-argumentativos em prosa: o que se percebe em dez anos de realização do Enem?”, Isabel Azevedo apresenta uma discussão sobre o escopo da competência II, enfatizando como sua respectiva evolução no processo avaliativo parece estar alinhada ao reconhecimento do gradativo valorque a argumentação passou a ter na sociedade. Em sendo a intepretação da proposta o elemento primeiro da competência II, e dado o número expressivo de redações avaliadas com nota 0 pelo critério ‘fuga ao tema’, na edição de 2014, Solange dos Santos e Débora Aguiar, em “O estatuto da leitura na redação do Enem 2014: o caso da fuga ao tema”, trazem questionamentos sobre os motivos que provocaram esse desempenho deficitário dos egressos do ensino médio. Em linhas gerais, validam que o deslocamento temático na prova, que se traduz como ‘fuga ao tema’, relaciona-se às dificuldades afetas ao tratamento da leitura, na medida em que o candidato não identifica adequadamente o eixo temático sobre o qual o seu texto deve versar. Também na linha de destaque para o estatuto da argumentação, Leilane Ramos da Silva, Danillo Pereira, Layane Cruz e Nathalia Paixão reconhecem, no capítulo “Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da competência III no livro didático em Sergipe”, a definição da competência III da matriz de avaliação das redações do Enem enquanto habilidade cognitiva e voltam-se para a análise do espaço que esse expediente linguístico-discursivo ocupa nas atividades voltadas para a produção do texto dissertativo-argumentativo da coleção de língua portuguesa/ensino médio mais adotada na Grande Aracaju. Grosso modo, os autores evidenciam a dissociação entre o que preveem os documentos oficiais que legitimam o Enem, o currículo de língua portuguesa considerado nesse tipo de avaliação e a concepção de linguagem respaldada no livro didático selecionado para análise. À luz de aportes teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo, em “A produção escrita em processos seletivos e o desenvolvimento de 11 competências e capacidades”, Aline Malaquias e Regina Pereira apresentam, focando os eixos avaliativos propostos pela matriz do Enem, especificamente os relacionados à Competência IV, referente ao conhecimento dos mecanismos gramaticais necessários à construção da argumentação, uma análise de redações elaboradas por candidatos inscritos no Processo Seletivo Seriado 2012 da Universidade Federal da Paraíba. O último capítulo da seção I, intitulado “Exercício da cidadania e direitos humanos: as funções da competência V na redação do Enem”, de Ricardo Abreu, a par de uma discussão necessária sobre a formação cidadã do indivíduo como meta da educação, discute as peculiaridades da competência V da matriz de avaliação da redação do Enem e faz emergir a responsabilidade de a escola garantir ao indivíduo uma formação menos apegada a preconceitos e mais consciente de uma sociedade plural, em que todos têm direito à dignidade humana. A seção II é aberta com o capítulo “O estatuto da variação linguística nas provas do Enem”, de Samella Andrade, cuja finalidade é observar as competências exigidas na prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem, do período compreendido entre 2000 e 2012, a partir da ênfase nos aspectos sociolinguísticos, de modo a responder se a prova aplicada nessas edições mantém (ou não) um diálogo com as diretrizes dos PCN, com as do PNLD e com a própria matriz de avaliação das redações do Enem. Em “Performatividade e modalização na prova do Enem”, Leilane Ramos da Silva, Jaqueline Nascimento, Layane Cruz e Nathalia Paixão, a par de uma perspectiva acional, apresentam uma análise dos atos de fala incursos na prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem 2011. Tal análise focaliza aspectos inerentes à estruturação dos atos de fala impressos nas referidas questões, à expressão de modalização que atualizam, aos mecanismos de definição dos lugares do locutor e do interlocutor nesse tipo de situação e, por fim, à própria relação que o tipo de ato de fala em avaliação mantém com cada uma das questões formuladas na prova. Ainda com foco em edições de prova na área de Linguagens, códigos e suas tecnologias, Denise Porto Cardoso, Fabíola Lima e Franciele Araújo conduzem o capítulo “Alternância gênero/texto na prova de questões de Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem”. De modo prático, as autoras espelham os gêneros e os domínios discursivos característicos das questões que integram a prova de 2013, observando como tais categorias estão incursas no exame e em que medida contribuem para a avaliação das competências e habilidades conquistadas pelos egressos da educação básica. 12 A terceira e última seção tem início com a leitura de “O Enem enquanto política pública”, de Marlucy Bispo. O capítulo guarda como característica principal analisar, a partir da consideração de fenômenos que envolvem conceitos técnicos do modelo teórico de avaliação da policy cicle, de que modo a política de avaliação em larga escala que legitima o Enem tem sido implementada e como este exame se delineia nos dias atuais. No limiar dessa questão, em “O desempenho na prova de redação do Enem da rede estadual de Sergipe”, Raquel Meister Ko. Freitag, Fernando da Cunha Mendonça & José Júnior de Santana Sá apresentam dados acerca dos impactos e reflexos das avaliações externas do INEP no currículo da rede escolar, analisando o desempenho dos estudantes da rede pública estadual de Sergipe na prova de redação/Enem aplicada em 2012 e exibindo percepções e avaliações de alunos e professores dessa esfera sobre esse desempenho. A propósito desse olhar sobre ‘impactos’, Maria Josefa Almeida realça, no capítulo “Impactos do Enem sobre o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe”, o significado que o Enem tem na atualidade, dando vez a um diálogo cujo foco reside em destacar a atuação (ou não) desse instrumento de avaliação na organização curricular do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe. O desfecho desta edição se concretiza com o capítulo “O Enem: mal estar contemporâneo”, de Onireves Castro, que traz algumas considerações peculiares ao Enem, enquanto processo seletivo, focando o modo como este exame tem impactado no ingresso de estudantes do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande, em Cajazeiras-PB. Agora que as linhas norteadoras deste volume já foram apresentadas, ressaltamos o que há de mais protocolar: a alegria de estarmos cumprindo nosso papel como professoras e pesquisadoras trazendo a lume mais uma publicação na área de estudos linguísticos aplicados à prática pedagógica e de, para isso, contar com outras tantas mãos. Sem dúvida, a produção é de todos, assim como a alegria também o é, porque, para além de dedicação e compromisso diários, empreendemos amor ao que fazemos. Nossos agradecimentos, então, a todos que integram a família Gelins, que não mediram esforços para compilar os dados de seus projetos e nos enviar um capítulo e, também, aos colegas que, não integrando formalmente este grupo, também se dispuseram com zelo e atenção ao nosso pedido. De modo especial, registramos nossa gratidão aos colegas de outros centros universitários, na torcida por futuras parcerias de sucesso. A você, que, como nós, dedica-se ao exercício do magistério, prepara-se para esta atuação profissional ou simplesmente nos respeita pela singular 13 contribuição social que deixamos para as gerações, dedicamos este livro, um dos frutos de nossa preocupação em dirimir a suposta distância entre a universidade e o ensino promovido na educação básica. Boa leitura! São Cristóvão, 08 de setembro de 2015. Leilane Ramos da Silva e Raquel Meister Ko. Freitag -organizadoras- 14 15 Introdução LINGUAGEM, INTERAÇÃO E SOCIEDADE: O ENEM COMO FOCO DE PESQUISAS GELINS Raquel Meister Ko. Freitag Leilane Ramos da Silva Denise Porto Cardoso Isabel Cristina Michelan de Azevedo Taysa Mércia dos Santos Souza DamacenoNo bojo das mudanças operacionalizadas na estrutura educacional brasileira, especialmente do final dos anos de 1990 para cá, está a adoção de uma série de políticas públicas que legitimam avaliações (seletivas e diagnósticas) em larga escala, como Provinha Brasil, Prova Brasil e Enem. Desses instrumentos, sem dúvida, este último tem merecido um destaque à parte, sendo foco de discussões em diferentes segmentos da sociedade nacional e, também, internacional, já que outros países passaram a usar a nota que o candidato tirou no exame para ingresso em suas universidades. Neste capítulo, uma espécie de introdução dialogada com uma memória sobre o Enem, fazendo jus ao título que lhe foi atribuído, o propósito é listar algumas das ações que o Grupo de Estudos em Linguagem, Interação e Sociedade – Gelins executou (ou ainda executa) em torno de tão discutido exame de aferição das competências e habilidades dos egressos da educação básica nacional. Avante! Seguindo a mesma premissa das demais avaliações em larga escala, a de avaliar a educação do país, e em consonância com documentos norteadores da educação nacional, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, em sua edição de 1996, e dos Parâmetros Curriculares Nacionais, instituídos em 1997, em 1998, por intermédio da Portaria Ministerial Nº 438 de 28 de maio, o Inep criou o Enem, um exame cuja proposta é definir políticas públicas voltadas para o ensino médio, tal como a disseminação da interdisciplinaridade por meio de habilidades e competências. Com a portaria nº 109, de 27 de maio de 2009, este exame tornou-se mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior, especialmente das instituições que aderiram ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e 16 Expansão das Universidades Federais (REUNI), com o decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007. Nesse cenário de democratização de acesso aos cursos superiores, a Universidade Federal de Sergipe, conforme a Resolução nº 21/2009/CONEPE, regulamentou que o seu processo seletivo passaria a utilizar as notas do Enem para classificar os candidatos ao ingresso nos cursos de graduação, o que foi implementado somente em 2013. No entanto, o Enem tem múltiplas finalidades. Segundo o edital nº 12, de 08 de maio de 2014, as informações obtidas a partir dos resultados do Enem podem ser utilizadas para: compor a avaliação de medição da qualidade do ensino médio no país; subsidiar a implementação de políticas públicas; criar referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio; desenvolver estudos e indicadores sobre a educação brasileira; estabelecer critérios de acesso do participante a programas governamentais; constituir parâmetros para a autoavaliação do participante, com vista à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho; certificar nível de conclusão do ensino médio; servir como mecanismo de acesso à educação superior ou em processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho. Ainda como efetivação de políticas públicas, o Enem compõe o documento do Plano Nacional de Educação – (PNE), que, por intermédio da lei presidencial nº 13.005, de 25 de junho de 2014, apresenta a nota do exame como uma das estratégias previstas para a garantia da meta de número 13 do plano: “Elevar a qualidade da educação superior, a medida que propõe “substituir o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE aplicado ao final do primeiro ano do curso de graduação pelo Exame Nacional do Ensino Médio – Enem, a fim de apurar o valor agregado dos cursos de graduação”, e principalmente, no que se refere à educação básica, a estratégia de “incorporar o Exame Nacional do Ensino Médio, assegurada a sua universalização, ao sistema de avaliação da educação básica, bem como apoiar o uso dos resultados das avaliações nacionais pelas escolas e redes de ensino para a melhoria de seus processos e práticas pedagógicas” está vinculada à meta 7: “Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades”. Dada sua amplitude e relevância no cenário educacional, é de se esperar que o exame tenha se tornado alvo de estudos e críticas, o que fez com que passasse por mudanças e adaptações e chegasse aos moldes do que conhecemos hoje. Desde o ano de 2009, as proporções da avaliação se tornaram ainda maiores, tendo em vista que o resultado do exame está sendo utilizado pela maioria das 17 universidades federais do país como forma de ingresso ao Ensino Superior, em substituição aos exames vestibulares. A multifuncionalidade do exame teve como consequência o aumento na participação (figura 1) e cabe às escolas considerar, em sua proposta político-pedagógica, as especificidades do exame. Figura 1: Evolução na participação no Enem (nacional, 1998-2014) Diferentemente dos tradicionais vestibulares, cujo foco são os conteúdos, a matriz de avaliação do Enem está estruturada em competências e habilidades. Segundo o documento básico, as competências podem ser concebidas como modalidades estruturais da inteligência, ou seja, evidenciam, por meio de ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas, as capacidades que cada um possui para responder aos desafios cotidianos. As habilidades, por sua vez, decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Nesse sentido, é por meio dessas ações e operações que as habilidades podem ser articuladas e aperfeiçoadas, o que possibilita nova reorganização das competências. A fundamentação do exame se dá através de uma matriz que indica a associação de conteúdos, competências e habilidades, que devem ser de domínio dos jovens concluintes dessa etapa de ensino. Para estruturar o exame, concebeu-se uma matriz com a indicação de competências e habilidades associadas aos conteúdos do ensino fundamental e médio que são próprias ao sujeito na fase de desenvolvimento cognitivo, correspondente ao término da escolaridade básica. Tem como referência a LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a Reforma do Ensino 18 Médio, bem como os textos que sustentam sua organização curricular em Áreas de Conhecimento, e, ainda, as Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB. (BRASIL, 2000, p. 2). Atualmente, o exame é configurado em quatro provas objetivas – Linguagens, códigos e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias, e Ciências Humanas e suas Tecnologias – e uma prova discursiva, a prova de redação. As provas têm em comum cinco eixos cognitivos, que correspondem às áreas de conhecimentos adquiridos ao longo da vida escolar do candidato. Para avaliar a aprendizagem e o modo com que cada um interpreta as questões, os eixos apresentam uma mescla entre os domínios da linguagem, fenômenos naturais e ciências exatas. Os eixos cognitivos da prova, comuns a todas as áreas de conhecimento, são: I. Dominar linguagens (DL): dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa. II. Compreender fenômenos (CF): construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas. III. Enfrentar situações-problema (SP): selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações- problema. IV. Construir argumentação (CA): relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente. V. Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos desenvolvidosna escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. (BRASIL, 2009, p.34). Além desta classificação cognitiva, cada área possui matrizes de referência. A da prova de redação do Enem é tratada a partir de cinco competências distintas: I - Demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita (0 a 200 pontos) II - Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro 19 dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo (0 a 200 pontos) III - Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista (0 a 200 pontos) IV - Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação (0 a 200 pontos) V - Elaborar proposta de solução para o problema abordado, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural (0 a 200 pontos) (BRASIL, 2009, p. 63) Enquanto as provas objetivas do Enem são avaliadas pela metodologia da Teoria de Resposta ao Item, de modo que duas provas, ainda que tendo o mesmo quantitativo de acertos, não obterão a mesma nota, a prova de redação apresenta critério objetivo e aplicado do mesmo modo a todos os participantes. Por conta deste fator, os ranqueamentos das instituições participantes consideram paritariamente o peso da nota de redação. Desde a edição de 2013, o aluno pode ter acesso ao espelho da sua prova, motivando divulgações e julgamentos externos ao exame, extensíveis à instituição escolar. Por esses motivos, consideramos que a prova de redação apresenta visibilidade maior no espaço escolar, merecendo uma investigação mais acurada, o que foi objeto do projeto “Impactos da prova de redação do ENEM no currículo da rede pública estadual”, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa e Inovação Tecnológica de Sergipe – FAPITEC, proposto em função das demandas da Secretaria Estadual de Educação de Sergipe, que tem interesse em estudos sobre impactos e reflexos das avaliações externas do INEP no currículo da rede escolar (edital FAPITEC NAP 13/2012). Esse projeto foi desenvolvido pelo Gelins, no período de 2012 a 2015, e envolveu, se associou a outras iniciativas e ainda se desdobra em diferentes ações, como os projetos de Iniciação Científica “Impacto da prova de redação do Enem no currículo escolar da rede estadual de Sergipe” (2013-2014), “Performatividade e modalização: o pacto acional nas questões de língua portuguesa do Enem” (2013-2014), “Os gêneros textuais na prova do Enem” (2014-2015), “Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da competência III no livro didático de LP/Sergipe” (2014-2015), “Argumentação, livro didático de língua portuguesa e redação do Enem: o estatuto da competência III nas coleções adotadas em Sergipe” (em andamento desde agosto de 2015), a dissertação de mestrado de Sammela Rejane de Jesus Andrade “Competências linguísticas na prova do ENEM: uma abordagem sociolinguística”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe, em 2015, e a tese de doutorado de Marlucy Mary Gama Bispo, “Políticas públicas para o ensino 20 médio: impacto do ENEM no currículo de Língua Portuguesa da escola pública do estado de Sergipe”, em andamento junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Para tal empreendimento, contamos com a interação com outros grupos de pesquisa, a exemplo do Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (GELIT/CNPq/UFPB), que tem investigado processos de ensino- aprendizagem da escrita em vários contextos, buscando analisar, dentre outras realidades, as estratégias de didatização desenvolvidas, o contexto de produção, os parâmetros dos gêneros e os elementos linguísticos-discursivos presentes na materialidade textual. Sem receio com a modéstia, urge reafirmar que a equipe Gelins, seja com um projeto-piloto focado no impacto que a prova de redação do Enem tem causado no currículo do Estado de Sergipe, seja com ações desdobradas e/ou paralelas a ele associadas, que se voltaram, entre outras, para a avaliação do tipo de questões e de gêneros incursos da prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias, para o espaço das competências da matriz de avaliação da redação no livro didático adotado na rede pública da Grande Aracaju, cumpre seu papel de fomentar e prolongar um conjunto de discussões legítimas sobre a problemática da avaliação do Enem, ao tempo que também se debruça sobre outros vieses inerentes a avaliações em larga escala e, claro, sobre os diferentes campos conceituais tratados nas pesquisas descritivas e analíticas contempladas pelas linhas investigativas que congrega. Enfim, a proficuidade na formação de recursos humanos, por si só, já é um indicador do impacto e da relevância acadêmica das ações desses projetos. No entanto, destacamos outro: a inserção social do Gelins, que vem contribuindo para a melhoria da qualidade do ensino em Sergipe. Desde 2007, ano de sua criação, o grupo tem se dedicado a temáticas relacionadas ao currículo de Língua Portuguesa, que, com todo o respeito acadêmico que se deve ter às diferentes filiações teóricas com as quais lida, subsidiam propostas de aplicação em programas de ensino e, em última instância, na sala de aula. Eis o que a sociedade espera de uma universidade centrada na tríade ensino/pesquisa/extensão. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio: fundamentação teórico-metodológica. Brasília, 2000. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Matriz de Referência do Enem 2009. Brasília, 2009. 21 Seção I AS COMPETÊNCIAS DA PROVA DE REDAÇÃO 22 23 A competência I na prova de redação do Enem Raquel Meister Ko. Freitag Introdução 1 O cenário atual da educação básica no Brasil é modelado por uma série de políticas públicas que vem sistematicamente instituindo avaliações (seletivas e diagnósticas) de larga escala, como Provinha Brasil, Prova Brasil e Enem. Tais políticas educacionais são pautadas em diretrizes curriculares que, em muitos casos, não dialogam com as diretrizes da academia (universidades e centros de pesquisa e de formação docente), e, em caso mais grave, não dialogam sequer entre si, configurando um cenário tenso e dissonante que impacta, diretamente, na sala de aula e nas decisões do professor. 2 A partir da análise dos documentos norteadores do Enem, as diretrizes do exame seletivo e a matriz de competência para a avaliação da prova de redação, especificamente no que tange ao tratamento da norma e da diversidade linguística no cenário brasileiro, mostramos que a matriz de competência para avaliação da prova de redação do Enem não está em consonância com as diretrizes dadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e com o Programa Nacional do Livro Didático. 1 Este texto é uma versão do que se encontra publicado na Interdisciplinar: Revista de Estudos de Língua e Literatura, v. 20, n . 20 (FREITAG, 2014). 2 Por exemplo, como resultado do projeto “Ler+Sergipe: Leitura para o letramento e cidadania” (Observatório da Educação – CAPES/INEP/2012), constatamos que, nas diretrizes de exame de avaliação diagnóstica de leitura, especificamente na Provinha Brasil, o conteúdo da matriz de competências está alinhado com os resultados de pesquisas internacionais, quepreconizam o trabalho com a consciência fonológica para o aprendizado inicial da leitura, o que, no entanto, não é componente curricular dos cursos de formação docente, nas licenciaturas em Pedagogia (FREITAG, 2013; 2010; FREITAG; ALMEIDA; ROSÁRIO, 2013). 24 1 O tratamento da diversidade linguística nos documentos oficiais Num país de dimensão continental como o Brasil, a ideia de que todos falamos o mesmo português é efeito de planificação linguística. O reconhecimento e o tratamento da diversidade são basilares nos documentos oficiais. Tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais, quanto o edital do Programa Nacional do Livro Didático apresentam concepção convergente no que diz respeito ao ensino de língua, focado na relação entre uso e reflexão. Enquanto o primeiro documento traça as diretrizes curriculares, o segundo avalia a sua operacionalização; a coerência entre ambos é uma consequência desejável, que mostra o alinhamento entre as propostas. Vejamos, a seguir, como se dá a avaliação da implementação dessa proposta, examinando a matriz de referência do Enem e os critérios de avaliação da prova de redação. No que diz respeito às competências e habilidades, a matriz de referências cognitivas do exame prevê que, quanto à linguagem, o candidato deve “dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa”. (BRASIL, 2012b). Por trás das competências da Matriz de Referência, há objetos de conhecimento associados que, em Língua Portuguesa, voltam-se, primordialmente, ao “estudo dos aspectos linguísticos da língua portuguesa: usos da língua: norma culta e variação linguística - uso dos recursos linguísticos em relação ao contexto em que o texto é constituído”. (BRASIL, 2009, p. 62). A prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias segue a matriz de referência apresentada na figura 1. Figura 1: Matriz de Referência de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias http://vestibulardemedicina.files.wordpress.com/2010/10/062.jpg 25 A competência de área 8 prevê que o estudante deve “Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade”, implementada pelas habilidades 25-27: Observamos que, na matriz de referência, a habilidade privilegiada pelo Enem é o reconhecimento das variedades da Língua Portuguesa, conceito parcialmente convergente com os Parâmetros Curriculares Nacionais e com o Programa Nacional do Livro Didático: ambos os documentos preconizam uma noção mais ampla de domínio da norma, seja com o conceito de “norma urbanas de prestígio” presente no Programa Nacional do Livro Didático, seja com o reconhecimento da pluralidade de normas. No entanto, a habilidade 27 retoma o conceito de norma padrão “em uso”, uma condição que diverge dos conceitos assumidos em outros documentos, que a concebem como idealizada, referencial e atemporal, e, portanto, desvinculada do uso. A ênfase da norma padrão é retomada na matriz de avaliação da redação no Enem. 2 A prova de Redação do Enem A prova de Redação do Enem avalia o desempenho do candidato em cinco competências: 1) demonstrar domínio da modalidade escrita formal na língua portuguesa; 2) compreender a proposta e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema; 3) selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista; 4) demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação, e 5) elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos. O tratamento da norma e da diversidade linguística no cenário brasileiro, preconizado nas competências e habilidades da matriz do Enem, é desviado para o domínio da norma padrão, implementado na competência 1 da matriz da prova de redação. 26 O Guia do Participante do Enem na edição de 2012, cujo objetivo é, em suas palavras “tornar o mais transparente possível a metodologia de correção da redação, bem como o que se espera do participante em cada uma das competências avaliadas” (BRASIL, 2012, p. 3), avalia o candidato, na competência 1, sua capacidade de “demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita” (BRASIL, 2012, p. 10, grifos acrescidos). A habilidade cobrada na competência 1 contrasta com o que preconiza o Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL, 2011), com o domínio das normas urbanas de prestígio, especialmente em sua modalidade escrita; contrasta ainda com a própria matriz cognitiva geral do Enem, que cobra o domínio da norma culta da Língua Portuguesa. Diferenças de terminologias ou diferenças de propósito? No detalhamento da matriz de avaliação por competência, o Guia do Participante do Enem 2012 reitera que “a primeira competência a ser avaliada no seu texto é o domínio do padrão escrito formal da língua [...] Na escrita formal, por exemplo, deve-se evitar o emprego repetido de palavras, como ‘e’, ‘aí’, ‘daí’, ‘então’, próprias de um uso mais informal, para relacionar ideias”. (BRASIL, 2012, p. 11, grifos acrescidos). 3 Outro conceito é apresentado, já que “padrão escrito formal” é diferente de “norma padrão da língua escrita”, no início do mesmo documento. Formal e informal (e suas gradações) constituem um contínuo, que é diferente da modalidade falada e escrita. Podemos ter fala formal e fala informal, assim como escrita formal e escrita informal, em todas as variedades de uma língua. A confusão terminológica, dissonante dos documentos oficiais que norteiam inclusive o próprio exame, como o caso da matriz cognitiva geral do Enem, fica mais evidente no seguinte excerto: “Na redação do seu texto, você deve procurar ser claro, objetivo, direto; empregar um vocabulário mais variado e preciso do que o que utiliza quando fala e seguir as regras prescritas pela norma padrão da Língua Portuguesa”. (BRASIL, 2012, p. 11, grifos acrescidos). O termo “norma” pode tanto remeter a preceito, ou seja, aquilo que é normativo; como a descrição de usos recorrentes, ou seja, aquilo que é normal. Faraco (2008) faz uma distinção interessante entre norma culta, norma-padrão, norma gramatical e norma curta. A norma culta é definida como “conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Refere- 3 Especificamente sobre “e”, “aí”, “daí”, “então”, itens linguísticos que atuam na função de sequenciação discursiva, é interessante observar os resultados de estudos descritivos (TAVARES, 2008; 2010; BARRETO; FREITAG, 2009) que apontam tendências de uso de cada uma das formas associadas a um contínuo de formalidade e informalidade, na fala e na escrita. 27 se aos usos linguísticos socialmente prestigiados, vistos pelos falantes como pertencentes a uma variedade superior em relação às chamadas variedades não- padrão ou populares. O prestígio não decorre de propriedades gramaticais, ou linguísticas, mas de características extralinguísticas relacionadas a processos sócio-históricos: enquanto algumas variedades são socialmente avaliadas positivamente, outras recebem valoração negativa, podendo até ser estigmatizadas. Essa noção de norma culta se aproxima à noção de normas urbanas de prestígio, do Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL, 2011). Já a norma-padrão não é uma variedade da língua (como é a norma culta), mas “uma codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização linguística” (FARACO, 2008, p. 75). Regulando explicitamente os comportamentosdos falantes, a norma-padrão funciona como coerção social em busca de um efeito unificador e como uma referência suprarregional e transtemporal. Norma culta e norma padrão são conceitos distintos; não há quem escreva na norma padrão, pois esta não é uma variedade da língua, diferentemente do que é previsto na Habilidade 27 da Competência 8 da matriz do Enem, como vimos anteriormente. Tal confusão conceitual tem implicações na abordagem do estudante no que tange às escolhas a serem feitas no decorrer do exame. O guia do participante do Enem 2012 (BRASIL, 2012, p. 12-13) tipifica o que considera como prescrição de norma padrão – tais como concordância nominal e verbal, regência nominal e verbal, pontuação, flexão de nomes e verbos, colocação de pronomes átonos, grafia das palavras, acentuação gráfica, emprego de letras maiúsculas e minúsculas; e divisão silábica na mudança de linha – e ainda estabelece uma gradação de penalidades (desvios mais graves, graves e leves) que não apresenta respaldo na literatura: ATENÇÃO! Seguem algumas inadequações do uso linguístico ao registro formal escrito que são penalizadas na Competência 1. Desvios mais graves: - falta de concordância do verbo com o sujeito (com sujeito antes do verbo); - períodos incompletos, truncados, que comprometem a compreensão; - graves problemas de pontuação; 28 - desvios graves de grafia e de acentuação (letra minúscula iniciando frases e nomes de pessoas e lugares); e - presença de gíria Desvios graves: - falta de concordância do verbo com o sujeito (com sujeito depois do verbo ou muito distante dele); - falta de concordância do adjetivo com o substantivo; - regência nominal e verbal inadequada (ausência ou emprego indevido de preposição); - ausência do acento indicativo da crase ou seu uso inadequado; - problemas na estrutura sintática (frases justapostas sem conectivos ou orações - subordinadas sem oração principal); - desvios em palavras de grafia complexa; - separação de sujeito, verbo, objeto direto e indireto por vírgula; e - marcas da oralidade. Desvios leves - ausência de concordância em passiva sintética (exemplo: uso de “vende-se casas” em vez de “vendem-se casas”); e - desvios de pontuação que não comprometem o sentido do texto. Tal posicionamento prescritivista esbarra no que preconizam os Parâmetros Curriculares Nacionais: [...] por exemplo, professores e gramáticos puristas continuam a exigir que se escreva (e até que se fale no Brasil!): O livro de que eu gosto não estava na biblioteca, Vocês vão assistir a um filme maravilhoso, O garoto cujo pai conheci ontem é meu aluno, Eles se vão lavar / vão lavar-se naquela pia, quando já se fixou na fala e já se estendeu à escrita, independentemente de classe social ou grau de formalidade da situação discursiva, o emprego de: O livro que eu gosto não estava na biblioteca, Vocês vão assistir um filme maravilhoso, O garoto que eu conheci ontem o pai é meu aluno, Eles vão se lavar na pia. (BRASIL, 1998, p. 31) As inconsistências no guia do participante 2012 não passaram desapercebidas; o guia do participante 2013, ao invés de avaliar o domínio da norma padrão, busca avaliar o “domínio da modalidade escrita formal da Língua 29 Portuguesa” (BRASIL, 2013), sinalizando uma mudança de postura e revisão dos equívocos conceituais apresentados no documento do ano anterior. A mudança pode ser percebida na explicação acerca do que é modalidade escrita formal, com a explicitação das dimensões formalidade e informalidade, oral e escrito: Você já aprendeu que as pessoas não escrevem e falam do mesmo modo, uma vez que são processos diferentes, cada qual com características próprias. Na escrita formal, por exemplo, deve-se evitar, ao relacionar ideias, o emprego repetido de palavras, como “e”, “aí”, “daí”, “então”, próprias de um uso mais informal. Por isso, para atender a essa exigência, você precisa ter consciência da distinção entre a modalidade escrita e a oral, bem como entre registro formal e informal. Outra diferença entre as duas modalidades diz respeito à constituição das frases. No registro informal, elas são muitas vezes fragmentadas, já que os interlocutores podem complementar as informações com o contexto em que a interação ocorre, mas, no registro escrito formal, em que esse contexto não está presente, as informações precisam estar completas nas frases. A entoação, recurso expressivo importante da oralidade, e as pausas, que conferem coerência ao texto, são muitas vezes marcadas, na escrita, por meio dos sinais de pontuação. Por isso, as regras de pontuação assumem também essa função de organização do texto. (BRASIL, 2013, p. 11) Na edição de 2013, o edital do Enem apresentou duas especificidades em relação à prova de redação: a anulação de redações que tragam “parte do texto deliberadamente desconectada com o tema proposto”; e o tratamento como “excepcionalidade” de desvios gramaticais desde que “não caracterizem reincidência” (BRASIL, 2013). A edição de 2014 voltou, novamente, à concepção de escrita em norma padrão, conforme o enunciado da proposta de redação da prova. Ainda persiste a desarticulação entre o que preconizam os documentos que orientam as práticas de ensino, como os Parâmetros Curriculares Nacionais e o Programa Nacional do Livro Didático, e os documentos que embasam a avaliação do Enem. Tal desarticulação, em última instância, prejudica os estudantes da escola pública, cujo currículo e seleção de materiais didáticos são direcionados por estes documentos. Escolas privadas tendem a balizar seu currículo pelos editais de seleção: antes o vestibular, agora o Enem. 30 Considerações finais A prova de redação do Enem, apesar das modificações na edição de 2013, ainda precisa ser mais bem analisada, pois, nas diretrizes de exame seletivo, a matriz de competência para a avaliação da redação não considera as discussões sociolinguísticas e os resultados de investigação no Brasil, nem apresenta coerência com as diretrizes dadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, ao cobrar norma padrão (e não norma culta) e tipificar os erros em “leves”, “médios” e “graves”, sem, no entanto, apontar justificativas ou embasamento linguístico (seja teórico, seja empírico). Este cenário penaliza o estudante da escola pública e amplia ainda mais o abismo social existente hoje no Brasil. Entender como está estruturada a prova de redação, considerando os aspectos linguísticos elencados para a avaliação da competência do candidato (norma culta/norma padrão, tipos de textos/gêneros textuais; propostas de intervenção; autoria), é essencial para o planejamento de ações e adequações nos currículos escolares. Ainda não há estudos que avaliem o impacto da prova de redação do Enem na modelagem dos currículos, menos ainda estudos sobre as percepções e anseios dos atores escolares diretamente envolvidos com o exame – alunos e professores. Os resultados destes estudos são essenciais para embasar decisões que, em última instância, determinam o futuro do estudante, ao lhe abrir (ou fechar) as portas de acesso ao ensino superior. Referências BARRETO, E. A.; FREITAG, R. M. K. Procedimentos discursivos na escrita de Itabaiana/SE: estratégias de sequenciação de informação. Scientia Plena, v. 5, p. 115801-1, 2009. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. A redação no Enem 2012: Guia do participante. Brasília: Ministério da Educação, 2012. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. A redação no Enem 2013: Guia do participante. Brasília: Ministério da Educação, 2013. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais do ensino médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação,1998.BRASIL. Programa nacional do livro didático. Edital de convocação para inscrição no processo de avaliação e seleção de coleções didáticas para o PNLD 2011. Brasília: Ministério da Educação, 2011. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 1998. 31 FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. FREITAG, R. M. K. Entre norma e uso, fala e escrita: contribuições da Sociolinguística à alfabetização. Nucleus, n. 8, v. 1, p.1-10, 2010. FREITAG, R. M. K. Leitura, Letramento e Cidadania: explorando a Provinha Brasil. Curitiba: Appris, 2013. FREITAG, R. M. K. Prova de redação do Enem: divergências entre as orientações para a prática e as diretrizes de avaliação. Interdisciplinar, n.20, v.20, p. 61-72, 2014. FREITAG, R. M. K.; ALMEIDA, A. N. S.; ROSARIO, M. M. S. Contribuições para o aprimoramento da Provinha Brasil enquanto instrumento diagnóstico do nível de alfabetização e letramento nas séries iniciais. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 94, n. 237, p. 390-416, 2013. TAVARES, M. A. Aí especificador na fala, na escrita e na escola. Odisseia, v. 1, p. 45-58, 2008. TAVARES, M. A. Conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO na fala de Natal (RN): indícios de especialização funcional. Interdisciplinar: Revista de Estudos em Língua e Literatura, v. 12, p. 195-213, 2010. 32 33 Organização de textos dissertativo-argumentativos em prosa: o que se percebe em dez anos de realização do Enem? Isabel Cristina Michelan de Azevedo Introdução O Enem, desde sua primeira edição, em 1998, tem o objetivo de medir e qualificar as estruturas responsáveis pelas interações cognitivas mobilizadas diariamente no mundo físico e social, por isso focaliza, especificamente, as competências e habilidades básicas desenvolvidas, modificadas e fortalecidas pela mediação da escola. Segundo o documento básico (BRASIL, 2000), as competências podem ser concebidas como modalidades estruturais da inteligência, ou seja, evidenciam, por meio de ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas, as capacidades que cada um possui para responder aos desafios cotidianos. As habilidades, por sua vez, decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Nesse sentido, é por meio dessas ações e operações que as habilidades podem ser articuladas e aperfeiçoadas, o que possibilita nova reorganização das competências. O modelo de avaliação do Enem foi desenvolvido com ênfase na aferição das estruturas mentais com as quais construímos continuamente o conhecimento e não apenas na memória, que, importantíssima na constituição dessas estruturas, sozinha não consegue fazer-nos capazes de compreender o mundo em que vivemos. Há uma dinâmica social que nos desafia, apresentando novos problemas, questiona a adequação de nossas antigas soluções e exige um posicionamento rápido e adequado ao cenário de transformações imposto pelas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas com as quais nos deparamos nas 34 últimas décadas. Este cenário permeia todas as esferas de nossa vida pessoal, mobilizando continuamente nossa reflexão acerca dos valores, atitudes e conhecimentos que pautam a vida em sociedade (BRASIL, 2005, p. 7). Apesar de haver mudanças na matriz do Enem 1 , a redação continua sendo elaborada a partir de uma questão problematizadora que suscita a escrita de uma reflexão acerca de um tema de ordem política, social, cultural ou científica. Os relatórios pedagógicos são organizados pelo INEP a cada ano, e o de 2004 declara que o participante é um escritor, autor de um texto que deve atender à proposta apresentada. A situação-problema é colocada para que cada participante selecione um recorte apropriado a partir da leitura dos textos motivadores 2 que compõem a proposta de redação e de seu acervo pessoal, reorganizando os conhecimentos já construídos para enfrentar a proposição, tendo por base uma reflexão própria da realidade, transcrevendo-a em seu projeto de texto. Além disso, a redação sempre foi avaliada em relação às cinco competências da primeira Matriz, transpostas para produção de um texto escrito. Cada uma delas foi subdividida inicialmente em quatro níveis (critérios de avaliação da competência), sendo que atualmente são cinco (BRASIL, 2013), além de explicitarem os motivos que anulam a redação (tangenciar o tema, fugir totalmente do tema, não cumprimento ao tipo textual, uso de impropérios, inserção de parte desconectada ao assunto em questão e desrespeito aos direitos humanos). Os elementos analisados nas competências passaram por modificações ao longo do tempo, mas é possível perceber regularidades, quando se compara a proposta de avaliação de 2001 (sutilmente alterada em relação à versão de 1998) com a de 2004, e mesmo quando se considera as indicações da segunda Matriz. A comparação das informações mostra que as mudanças periódicas visavam garantir o maior grau de uniformização. 1 A primeira matriz do Enem (de 1998 a 2008) era composta por cinco competências, que correspondiam a domínios específicos expressos em vinte e uma habilidades; a segunda Matriz (a partir de 2009) passou a ter cinco eixos cognitivos, entre sete a nove competências e trinta habilidades para cada uma das áreas, totalizando 120 distribuídas igualmente nas quatro áreas de conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. 2 Os textos motivadores são pequenos textos verbais e não-verbais que constituem um acervo mínimo que contextualiza o tema proposto para discussão na prova de redação do Enem. 35 Também foi mantida a exigência da competência 5 3 , ou seja, ao organizar a conclusão do texto, o autor tem que necessariamente apontar soluções para a situação-problema, que respeitem os direitos humanos. As competências gerais foram adequadas à análise das redações, por isso, desde 1998, temos as seguintes competências na avaliação dos textos produzidos em prosa: I - demonstrar domínio da norma culta da língua escrita; II - compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturas do texto dissertativo- argumentativo; III - selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista; IV - demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação; V - elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, demonstrando respeito aos direitos humanos. O Enem focaliza as competências e habilidades básicas que são estimuladas e transformadas pelas práticas pedagógicas. Entende-se que os conhecimentos são construídos por meio das interações contínuas realizadas pelo sujeito na sociedade. Assim, os conceitos, ideias, teorias, leis, fatos, pessoas, história, manifestações artísticas, meios de comunicação, políticas, etc., traduzidos em conteúdos curriculares das diferentes áreas, são mobilizados pelo participante ao produzir um texto que discuta uma temática em uma perspectiva contextualizada, que valorize os conhecimentos construídos na escola e também fora dela (BRASIL, 2004). 3 As cinco competências avaliadas até 2008 são: I. dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica; II. construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensãode fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas; III. selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema; IV. relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente; V. recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. Essas competências passaram a ser tratadas como eixos cognitivos na nova Matriz em vigor desde 2009. 36 Quadro 1: Competências e critérios para análise da Redação do Enem. (BRASIL,2001, p. 53-54) Em todas as edições, o participante precisou produzir um texto dissertativo-argumentativo, pois os organizadores do exame consideram que é o tipo que mais atende à representatividade das tarefas usualmente presentes na escola e na vida em sociedade. Observa-se no quadro 1 que a competência 2, que é destaque neste capítulo, é a que reúne os conteúdos relacionados a esse tipo do texto por avaliar: diferenças entre pontos de vista, mobilização de variados conceitos e os tipos de argumentos (por meio citações, alusões, analogias, exemplificações, etc.) na discussão do tema, a estrutura composicional característica dessa modalidade de escrita e as posições assumidas no e pelo discurso. 37 Ao sobressair a importância da autoria, torna-se claro que é a maneira como o participante reflete acerca das relações sociais e o modo como se posiciona na materialidade linguística que evidenciam seu protagonismo na produção textual. Além disso, a interligação interdisciplinar entre saberes e contextos em um certo sentido indica a compreensão crítica elaborada pelo autor. Em 2004 4 , os indícios de autoria ganham maior relevância uma vez que foi transformado em um tópico destacado dos outros aspectos, embora os aspectos argumentativos tenham sido minimizados e os textuais, realçados. Quadro 2: Competências e critérios para análise da Redação do Enem (BRASIL, 2004. p. 73) Como está descrito no quadro 2, a competência II está diretamente ligada à compreensão da proposta de redação e à aplicação de conceitos de várias áreas de conhecimento para discutir um tema, por isso considera: como o desenvolvimento do conteúdo temático instaura a problemática que será discutida 4 Optamos por analisar o ano de 2004 para que pudéssemos comparar com as redações produzidas dez anos depois, em 2014. 38 pelo texto; como o encadeamento das partes do texto promove a progressão temática; bem como as marcas pessoais manifestadas na organização textual. Em função dessas exigências, essa competência permite a análise e a interpretação dos dados reunidos, a observação das informações e dos conceitos selecionados, tendo em vista a construção de uma argumentação consistente. Como o participante deve ler uma coletânea de textos e considerar o repertório de informações oferecido, além de outras informações obtidas na escola e fora dela, a construção de argumentos revela também as estratégias persuasivas acionadas pelo autor. O aprimoramento dos critérios relativos à competência 2 é bastante evidente no quadro 3, pois, além de apresentar descrição específica para seus cinco níveis de análise, há uma pontuação única para cada um deles. CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO DA REDAÇÃO NÍVEL Pont. DESCRIÇÃO Nível 0 0 Desenvolve texto que não contempla a proposta de redação, desenvolve outro tema e/ou elabora outra estrutura textual que não a dissertativo- argumentativo. Nível I 200 Desenvolve de maneira tangencial o tema ou apresenta inadequação ao tipo texto textual dissertativo-argumentativo. Nível II 400 Desenvolve de forma mediana o tema a partir de argumentos do senso comum, paráfrases dos textos motivadores ou apresenta domínio precário do tipo textual dissertativo-argumentativo. Nível III 600 Desenvolve de forma adequada o tema, a partir de argumentação previsível e apresenta domínio adequado do tipo textual dissertativo-argumentativo. Nível IV 800 Desenvolve bem o tema a partir de argumentação consistente e apresenta bom domínio do tipo textual dissertativo-argumentativo. Nível V 1000 Desenvolve muito bem o tema a partir de um repertório sociocultural produtivo e de argumentação consistente e apresenta excelente domínio do tipo textual dissertativo-argumentativo. Quadro 3: Critérios de avaliação da redação – Competência 2 (BRASIL, 2011, p. 5) adaptado. Excetuando o nível 0 que anula a redação, do nível I ao V há uma gradação em relação ao desenvolvimento de um texto de tipo dissertativo- argumentativo. Embora no nível I haja a indicação de que textos com problemas na estruturação receberão uma pontuação mínima, não está claro o que seja “tangenciar o tema”. O nível II faz referência direta aos textos que apresentam meras retomadas dos textos motivadores e que mantêm graves problemas de estruturação; e a partir do nível III ocorre a diferenciação entre argumentação 39 previsível e consistente, mas não se explica exatamente como isso pode ser identificado. Quadro 4: Exigências de elaboração de um texto dissertativo-argumentativo. (BRASIL, 2013, p. 16) Dois anos depois, visando responder a muitos questionamentos, o Ministério da Educação lançou um guia para orientar os participantes do Enem na escrita da redação. Nesse documento a competência 2 é detalhadamente explicada. O tema, por exemplo, é definido como o “núcleo das ideias sobre as quais a tese se organiza. Em âmbito mais abrangente, o assunto recebe a delimitação por meio do tema, ou seja, um assunto pode ser abordado por diferentes temas” (BRASIL, 2013, p. 13). Também se encontram trechos de redações reunidas em 2012 para exemplificar o que é tangenciar ou fugir totalmente de um tema; o que é um texto dissertativo-argumentativo e como pode 40 ser composto. Por fim, há um esquema montado para esclarecer os dois princípios de estruturação desse tipo de texto, como se vê no quadro 4. Nota-se que o documento relaciona a tese aos argumentos na composição de justificativas para compor um ponto de vista, ou seja, ressalta-se que a elaboração de argumentos em função da tese apresentada tem a função de colaborar para a constituição do processo argumentativo da justificação (LEITÃO, 2007). A especificação das estratégias argumentativas é apresentada como um recurso importante para a discussão do problema proposto. Por meio do acionamento de exemplos, dados estatísticos, pesquisas, fatos comprováveis, citações ou depoimentos, alusões, comparações são constituídas não apenas como formas de sustentação, mas também como de negociação de ideias e sentidos, o que promove a possibilidade de revisão das próprias concepções acerca de objetos, fenômenos, ideias ou pessoas, articulada a um processo de autorregulação do pensamento pelo autor do texto (LEITÃO, 2007, 2011). Essa evolução no processo de avaliação da competência 2 parece estar alinhada ao reconhecimento do crescente valor que a argumentação passou a ter na sociedade atual. Em nossos tempos, basta ser estabelecida alguma conexão na internet, ser ligada a televisão, ocorrer a leitura de um jornal, a audição de um político ou de alguma mensagem publicitária para se constatar que a todo instante os discursos estão tentando apresentar uma imagem ou um ponto de vista que visa agradar, seduzir, provocar ou persuadir o outro, a partir de um conjunto de recursos que há muito tempo foi estudado pela retórica, mas ultimamente vem sendo atualizado devido às inúmeras demandas sociaiscontemporâneas. Segundo Meyer (1998), tudo se tornou comunicação persuasiva. [...] Da amizade ao amor, da política à economia, as relações fazem-se e desfazem-se por falta ou por excesso de retórica. A fragilidade do homem ocidental, demasiado mimado, exige atenções, e por conseguinte, formas. Para fazermos parte de um grupo que nos aceite, precisamos de boa etiqueta, bom vestuário e de um bom automóvel: outros tantos sinais de reconhecimento nos quais cada um, por semelhança, sentirá que faz parte dos eleitos. O look, a aparência, introduziram a retórica na mente dos nossos contemporâneos: tudo é sinal, mensagem e vontade de persuadir que se conforma com uma convicção comum cujo credo é, justamente, a preocupação de persuadir por persuadir e de agradar por agradar [...] (MEYER, 1998, p. 11-12). 41 Diante desse cenário, os organizadores do Enem propõem ao autor que ao apresentar uma opinião ou um ponto de vista suponha outros que se encontram em circulação na sociedade, por isso deve acionar ao mesmo tempo o conjunto de crenças ao qual está ligado, os valores que possui e as representações de mundo, construídos sócio-historicamente, colocando-os em prol dos posicionamentos assumidos no texto. Assim, a escrita é argumentativa porque defende uma tese ou opinião e dissertativa porque apresenta explicações para justificá-la (BRASIL, 2013, p. 15-16). 1 Caracterização do texto dissertativo-argumentativo A discussão em torno do texto dissertativo-argumentativo em situação de exame escolar, particularmente em exames vestibulares e em exames nacionais de medida da aprendizagem, ocorre há bastante tempo e em diferentes perspectivas, ou seja, são vários os pesquisadores que discutem formas de caracterização dessa modalidade de escrita (HAAS; GUIMARÃES, 2014; AGUSTINI; BORGES, 2013; SOUZA, 2007; PILAR, 2002; entre outros). Esses estudos tomam por base referências teóricas diversas que orientam para opções distintas de classificação. Em comum, as perspectivas reconhecem ser um tipo ou gênero que circula principalmente no espaço escolar, seguindo uma tradição que tem início por volta do ano 1.000, com o surgimento das universidades, período em que as disputationes serviam para colocar à prova a capacidade de mestres e alunos. Segundo Alain Viala (1990, p. 108-109), a dissertação, com características próximas ao gênero que utilizamos hoje, torna-se mais frequente nas práticas de ensino a partir do século XVIII, quando a retórica e os exercícios latinos de caráter dissertativo começaram a ser realizados sistematicamente. Tais exercícios eram decompostos em três partes: 1. praelectio (preleção) – explicação dos textos; 2. eruditio (erudição) – análise de textos históricos; 3. disputatio (disputa) – exercício de argumentação, herança da retórica clássica. Contudo, a dissertação era prática da filosofia, mais do que das humanidades, evidenciando que é ao lado da latinidade que se encontra o modelo escolar stricto sensu da dissertação. Chama-nos a atenção o fato de já no século XVII a dissertação ser da prática corrente na ordem das Letras Francesas, fato que 42 possibilitou a construção de exemplos muito familiares que influenciaram a definição desse gênero na escola. Ao analisar as características dos textos dissertativo-argumentativos, encontra-se, por um lado, um grupo de pesquisadores que os consideram na perspectiva da tipologia textual (CITELLI, 1994; SAYEG-SIQUEIRA, 1995, entre outros). A ênfase dessa perspectiva é o caráter explicativo, analítico e interpretativo do texto, cujo viés temático possibilita avaliar as situações sociais e articular conceitos amplos, muitas vezes abstraídos do tempo e do espaço, e a estrutura textual: apresentação de tese ou premissa inicial (proposição), construção de justificativas/argumentos em prol do ponto de vista apresentado, discussão de possíveis contra-argumentos (argumentação) e conclusão. Nesse sentido, é considerado um texto mais abstrato – em relação ao tipo narrativo e descritivo que podem ser utilizados para ilustrar as afirmações –, que explica os dados concretos da realidade. Enfatizam-se os elementos coesivos e os fatores de coerência que colaboram com a organização textual. Por outro lado, há os que consideram o texto dissertativo-argumentativo um gênero de texto escolar. Essa perspectiva crescente destaca o fato de esse gênero ser “feito para o ensino da escrita”, ter saído de sua esfera comunicativa, sendo integrada a outras práticas sociais, como: processos seletivos de empresas públicas e privadas, concursos públicos e exames vestibulares, por exemplo (SOUZA, 2007). Além disso, são considerados nessa produção sociocultural os aspectos contextuais envolvidos na discussão dos temas e/ou questões propostos e as formas como os escritores tomam a palavra para estabelecer posicionamentos, ou seja, as relações sócio-históricas incluem as dissertações, seus propósitos comunicativos e os diálogos que os alunos-escritores estabelecem com os outros participantes da interação sócio-discursiva. Como na vida cotidiana os sujeitos se confrontam com inúmeras situações de argumentação, cuja finalidade última é a partilha de crenças e valores, o participante do Enem acaba por se inscrever nas “ciências da comunicação” que, segundo Breton (1999, p. 25-26), envolve três elementos essenciais: argumentar é comunicar, isso quer dizer que em toda “situação de comunicação” existem parceiros em interação pela linguagem, de acordo com uma dinâmica própria; argumentar não é convencer a qualquer preço, é preciso saber se restringir em nome de uma ética; argumentar é raciocinar, propor uma opinião aos outros dando-lhes boas razões para aderir a ela. 43 Dessa forma, ao tomar a perspectiva do texto dissertativo-argumentativo como um gênero escolar, a interação entre diferentes sujeitos, ideias e recursos torna-se uma característica fundamental, pois permite estabelecer relações diversas entre o sujeito-escritor e leitor de seu texto, entre enunciação e discurso e entre os elementos constitutivos do contrato estabelecido entre eles. Assim, espera-se que o participante seja capaz de: identificar o assunto a ser desenvolvido a partir do tema indicado para estímulo da produção; relacionar as partes ao todo e as partes entre si, mantendo a coerência lógica com a unidade temática; articular os temas envolvidos, de acordo com a natureza requerida na proposta de texto dissertativo; separar argumento/fato e opinião/hipótese; utilizar recursos linguísticos adequados à natureza da proposta textual (vocabulares, sintáticos e semânticos); utilizar as convenções (escrita correta das palavras, acentuação, paragrafação, pontuação, maiúsculas e minúsculas, recursos gráficos), as regras da concordância, regência e colocação pronominal e as regras de emprego de formas gramaticais, como tempo/modo verbais, pronomes e advérbios. Tais procedimentos exigem levar em conta se a opinião é verossímil e quais argumentos seriam mais adequados frente aos sujeitos que se tem em mente, pois esses elementos orientarão a construção do plano argumentativo, a seleção das estratégias de sedução, bem como os tipos de argumentos e de figuras a serem utilizadas na argumentação. Como a dissertação está relacionada à defesa de posicionamentos em diferentes contextos sociais, é preciso saber argumentar. Espera-se, então, que os participantes do exame compreendam a proposta apresentada, consigam aplicar conceitos, revelem reflexão crítica e sejam capazes de exercer sua cidadania por meio de ideias bem articuladas, que indiquem caminhos para a solução dos problemas apresentados, considerando também a pluralidade cultural que caracteriza a sociedade brasileira, uma vez que, ao final da educação básica, o participante precisa revelar a capacidadede ter uma participação responsável na realidade na qual se encontra inserido. Para ilustrar quanto os participantes do Enem têm correspondido a essas exigências, propomos a seguir uma análise de produções realizadas em 2004 e em 2014. Nesse período de tempo, foi visível o crescimento da importância desse 44 exame nas práticas escolares, a cada dia o efeito retroativo 5 do Enem torna-se mais evidente (VICENTINI, 2014; AZEVEDO, 2015), por isso, se busca observar se houve mudanças significativas nas produções dos participantes. Contudo, é importante sublinhar que esta análise é sugestiva, pode e deve ser confrontada com outros textos produzidos nos exames. 6 2 Análise de textos Com o intuito de comparar redações produzidas em dois períodos, distantes em dez anos, foram selecionados textos na prova do Enem em 2004 7 e em 2014 8 . Nas duas edições, os temas em debate suscitaram polêmica e a assunção de posicionamentos por meio dos participantes. Em 2004, foi proposta uma reflexão acerca de Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação? e, em 2014, propôs-se discutir a Publicidade infantil em questão no Brasil. Seguindo o padrão da prova, os escritores, em ambos os exames, tiveram acesso a textos motivadores que buscaram iniciar a problematização dos temas. Como as redações divulgadas pela mídia em 2014 receberam nota 1000, buscou-se entre as disponíveis em 2004 um texto bem avaliado. Segundo Bakhtin e Volochinov (1995), o tema de uma produção discursiva pode ser entendido como o sentido da enunciação, ou seja, é único, individual e não reiterável, posto que “ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1995, p. 128). Assim, quando as ideias são retomadas em uma enunciação, assumem sentidos diferentes, próprios, constituindo uma certa visão de mundo. Dessa forma, nota-se que o tema não é determinado apenas pelas formas linguísticas que colaboram com a composição do texto, mas pelos 5 Conceito proposto por Alderson e Wall, em 1992, para explicar o efeito (positivo ou negativo) que os exames institucionais têm sobre as ações dos professores. 6 Na amostra fornecida pelo INEP, em 2004, não haver nenhuma com nota 1000, e as que obtiveram 800-900 constituírem um grupo com apenas 6,4% das redações recebidas (AZEVEDO, 2009). Também inquieta verificar que, em 2014, após a publicação de vários documentos orientadores ao longo de dez anos e do aumento do efeito retroativo do Enem nas escolas, há apenas um conjunto com 250 redações com nota 1000, em 5,9 milhões dos textos corrigidos (0,004%), e do total 4.444 não atendem ao tipo textual. 7 Os textos reunidos neste trabalho são provenientes do (composto por textos representativos de produções oriundas de diversos estados brasileiros), organizado por Azevedo (2009) para a pesquisa que investigou as capacidades linguístico-discursivas observadas em textos produzidos para o Enem, em 2004. 8 Devido à dificuldade em ter acesso aos textos produzidos em 2014, foram aproveitados apenas os que foram divulgados pelo meio jornalístico. 45 elementos não verbais presentes na situação discursiva. O tema da enunciação, então, é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence. Apesar disso, o recorte temático produzido pelo sujeito-escritor faz uso de formas e lugares conhecidos, reiteráveis, por vezes fundados sobre convenções, que permitem a retomada de variadas práticas de linguagem pelos sujeitos. Quando se observa a abertura dos textos selecionados para a análise, é evidente que os autores partem de situações bastante divulgadas na sociedade brasileira para apresentar o ponto de vista que serve de base para a argumentação que em andamento. Texto 1, produzido em 2004 9 Texto 2, produzido em 2014 10 Um canal mostra um assalto, o outro mostra um assassinato, enquanto um último faz uma visita para um presídio de segurança máxima para entrevistar um traficante. É isto que se vê na televisão brasileira, com o intuito de mostrar e não informar, vender e não educar. Mas como associar liberdade de expressão com direitos humanos? É comum vermos comerciais direcionados ao público infantil. Com a existência de personagens famosos, músicas para crianças e parques temáticos, a indústria de produtos destinados a essa faixa etária cresce de forma nunca vista antes. No entanto, tendo em vista a idade desse público, surge a pergunta: as crianças estariam preparadas para o bombardeio de consumo que as propagandas veiculam? Ambos partem do lugar do existente (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 106), isto é, estão apoiados na realidade, em fatos possíveis e eventuais que ocorrem em sociedade e são facilmente identificados pelo leitor. As imagens recortadas de experiências observadas pelos escritores, e possivelmente pelos leitores, são mobilizadas para criar um contraponto para a premissa inicial, anunciada por meio de uma pergunta retórica. Essa estratégia persuasiva parte de uma interrogação que não espera uma resposta direta, mas que visa estimular a reflexão do leitor acerca do tema que está sendo anunciado. Esse procedimento também é capaz de atuar junto às mentes e aos corações do interlocutor, pois introduz questionamentos que podem estar inquietando-o, servindo, portanto, como um eficiente mecanismo de envolvimento do outro na discussão proposta. As constatações de partida preparam o leitor para a argumentação que é desenvolvida ao longo de cada texto. O texto 1 retoma a questão problematizadora 9 A redação n. 0130000-8, produzida em Campo Grande/MS, com nota 925, constitui o organizado com 249 textos. 10 Texto recolhido e divulgado pelo jornal O Globo, em 21 de janeiro de 2015, produzido por um participante do Rio de Janeiro/RJ, que recebeu nota 1000. 46 proposta pelo exame, com ênfase para o desafio de os meios de comunicação respeitarem os direitos humanos; o texto 2 revela a reação do sujeito frente as circunstâncias sociais e a preocupação que quer dar destaque. São formas parecidas de organização discursiva, distinguindo-se apenas pelo conteúdo temático mobilizado. Texto 1 – 2004 Texto 2 - 2014 A lei de liberdade de expressão foi um direito conquistado depois de muita luta contra a censura que retirava a voz da imprensa, deixando-a calada diante de grandes problemas sociais, além de fazer dela apenas uma propagandista do governo ditatorial. Mas com a conquista desse direito a imprensa começou a manipular a população com seus noticiários e programas e a abusar do seu poder, passando por cima de artigos da constituição federal brasileira que asseguram que a privacidade é inviolável, invadindo lares e vidas que anseiam por serem deixados em paz. Além disso a televisão brasileira está deixando de fazer seu principal papel, que é educar e informar, para se tornar apenas uma forma de se ganhar dinheiro, mostrando programas absurdamente imorais e sem conteúdo intelectual e informativo. Há quem duvide da capacidade de convencimento dos meios de comunicação. No entanto, tais artifícios já foram responsáveis por mudar o curso da História. A imprensa, no século XVIII, disseminou as ideias iluministas e foi uma das causas da queda do absolutismo. Mas não é preciso ir tão longe: no Brasil redemocratizado, as propagandas políticas e os debates eleitorais são capazes de definir o resultado de eleições. É impossível negar o impacto provocado por um anúncio ou uma retórica bem estruturada. O problema surge quando tal discurso é direcionado ao público infantil. Comerciais para essa faixa etária seguem um
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