Logo Passei Direto
Buscar
LiveAo vivo
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

COVID-19: ciência não é opinião, é conhecimento SAB, 11 ABR 2020 | 12:35 
TEXTO 
PETER SCHULZ 
 Durante essa pandemia da COVID-19 nunca se leu, ouviu ou assistiu tantos pronunciamentos, 
declarações, reportagens e depoimentos em favor da ciência. Isso é bem-vindo, mas algumas 
observações precisam ser feitas e, talvez principalmente, uma lição pode ser aprendida. Das 
observações, a principal é que os grupos que até o mês retrasado atacavam e negavam a ciência, 
continuam a atacá-la e negá-la. Deixam, por exemplo, a terra plana de lado e investem no novo 
tema com desinformações e teorias de conspiração. Uma segunda observação é a de que muitos 
dos defensores da ciência, que têm se manifestado, talvez não saibam de fato do que se trata, 
quando se fala em ciência. A lição que pode ser aprendida é a de que esse estado de coisas pode 
levar a uma melhor educação sobre ciência. 
A ciência, quando admirada, é vista pelo público pelos seus resultados, que vêm moldando, desde 
o século XIX, o imaginário do que chamamos de progresso. Quase todos pareceram contentes com 
essa maneira de ver a ciência. No entanto, é uma visão muito restrita e perigosa, pois essa 
percepção deixa de lado o principal: a ciência é o seu processo de obter os tais resultados que são 
admirados. Ciência é episteme, não doxa, repetindo assim, com outros termos, o título deste texto. 
O que é episteme, segundo o Dicionário Online de Português? “Conhecimento real e verdadeiro, 
de caráter científico, que se opõe a opiniões insensatas e sem fundamento” E doxa? “Reunião dos 
pontos de vista que uma determinada sociedade elabora numa dada circunstância histórica, 
julgando ser uma ação evidente, contudo para a filosofia isso seria uma crença sem comprovação”. 
Com esses dois conceitos em mente, cuja utilização empresto (mais uma vez) de Bernadette 
Bensaude-Vincent em sua análise sobre o abismo crescente entre ciência e público[I], podemos 
identificar o embate que temos assistido, infelizmente, em torno da COVID-19 em dois aspectos 
fundamentais: a persistência da negação da absoluta necessidade do isolamento social e a 
insistência numa medicação providencial, que, no entanto, não existe. Nos dois casos o 
conhecimento científico(episteme) enfrenta uma dura batalha “contra as opiniões insensatas e sem 
fundamento” (lembrar a definição acima) no seu papel de informar a sociedade na elaboração de 
seus pontos de vista. O caso da cloroquina/hidroxicloroquina e similares é emblemático para 
entender o que é a ciência, com o seu processo de obter conhecimento, e o que ela não é: uma 
opinião. 
A atual campanha pelo uso da cloroquina/hidroxicloroquina, associadas ou não a isso ou aquilo, 
nasceu com a divulgação ao público de um trabalho preliminar, que sugeria efeitos positivos de 
tratamento da COVID-19[II]. O que aconteceu? Na época, mas não muito tempo atrás nesses 
tempos acelerados, o artigo ainda não havia sido revisado, mas hoje está publicado numa revista 
científica, embora os próprios editores expressassem publicamente ressalvas à qualidade científica 
ao artigo[III]. Aviso tardio demais para evitar os potenciais problemas. Então o que é e não é 
ciência? 
Em tempos normais, aos quais estávamos acostumados, o artigo do grupo francês provavelmente 
não teria sido publicado Trabalhos científicos são julgados por outros cientistas para verificar se há 
erros e se a metodologia e o rigor estão ali inequivocamente demonstrados. E o artigo em questão 
não demonstra isso: é cientificamente inadequado. Mas vamos em frente e imaginemos que ele 
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#1
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#2
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#3
tivesse passado pelo crivo e sido publicado. Outros cientistas leriam e, talvez, considerando a 
hipótese razoável, apesar do trabalho ser ruim, tentariam reproduzir e levar o estudo adiante. Disso 
sairia um outro artigo e assim por diante. Apenas após muito tempo é que se forma um consenso 
e só então é que o próximo passo seria dado: desenvolver um tratamento. Palavras chave da 
ciência: rigor e método. Na urgência da situação e com pressões externas, constrói-se o desafio: 
como responder a isso? Como dizer claramente que o tal remédio não funciona e, além disso, 
prejudica? Ou, como poder anunciar que sim, funciona, mas apenas em tais e tais circunstâncias 
restritas? Como manter o rigor, o método e ser ciência construindo conhecimento e não opiniões? 
A resposta já está dada: são os mega ensaios do qual participam ou participarão milhares de 
pacientes em todo o mundo. São os “megatrials” anunciados pela Organização Mundial da Saúde, 
uma maneira de obter milhares de dados necessários, no menor intervalo de tempo. Sim, é urgente, 
mas é preciso manter o rigor e o método, senão não é ciência. 
Resumindo uma mensagem importante até aqui: ciência para ser usada para o bem comum é um 
consenso da comunidade científica, construído cuidadosamente com muitos estudos validados 
pelos colegas anônimos que analisam cada trabalho. Ou, tentando ser mais rápida, com muitos 
grupos trabalhando ao mesmo tempo para ter os vastos resultados necessários para se construir 
conhecimento e não opiniões. Ou seja, ciência não é o resultado anunciado de um único trabalho, 
é a construção de um consenso pela comunidade científica. 
O que também se nota nessa época de ciência acelerada é que alguns cientistas, atentos ao rigor, 
em geral, na sua, muitas vezes diminuta especialidade de pesquisa cotidiana, começam a emitir 
opiniões insensatas e sem fundamento sobre assuntos científicos que lhe são alheios. Cientistas 
não tem o direito de preconizar o rigor e o método apenas no seu trabalho. É missão do cientista 
promover a ciência e seu modo de produzir conhecimento como um todo. Esse valor é universal, 
não depende da especialidade. Um físico não tem o que dizer sobre protocolos em Biologia 
Molecular, mas percebe quando o rigor e o método são desrespeitados. Aprendemos também que 
o público ainda enxerga muitas vezes a ciência como produto de cientistas isolados, que ao darem 
voz a uma opinião, e não mais ao conhecimento (episteme) que deveriam produzir, tornam-se 
porta-vozes da ciência como um todo para parte da sociedade. Não, não são porta-vozes da 
ciência, pois deixaram de agir como cientistas. Por isso, instituições, que raramente se pronunciam 
durante o debate de teorias e experimentos dentro da comunidade científica, precisam se 
manifestar, como o fez, por exemplo, por meio de um editorial da prestigiosa revista the BMJ[IV]: 
“o uso dessas drogas é prematuro e potencialmente nocivo”. 
Esses mega ensaios clínicos encontrarão uma resposta para um tratamento? Não sabemos, mas 
a ansiedade faz com que se queira que a ciência dê uma resposta rápida. Mas respostas rápidas 
sem as verificações necessárias não seriam ciência, seriam apenas opiniões, que não valem nada 
e não salvam vidas. Possivelmente matariam mais. E como vão indo esses testes clínicos? Uma 
análise publicada em 9 de abril de 2020 por pesquisadores do Imperial College de Londres adverte 
em relação à cloroquina e hidroxicloroquina[V]: 
“há muito interesse na cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19, com mais 
34 estudos clínicos registrados; no entanto, apenas quatro relatam o uso de protocolos duplo-cego 
randomizados robustos para investigar a eficiência”. 
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#4
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#5
E já há relatos de hospitais em diferentes países interrompendo os testes clínicospor falta de 
evidências de eficácia, associadas à manifestação de efeitos colaterais. 
Um lembrete histórico sobre o perigo de disseminar medicamentos considerados “mágicos” sem os 
devidos testes preliminares (que acabam, na grande maioria dos casos, desaprovando o uso[VI]) 
é a tragédia da Talidomida[VII]. Para tirar dúvidas sobre as inadequações, ilusões e notícias falsas 
sobre a cloroquina e outras frentes, uma boa fonte é a Revista Questão de Ciência[VIII] Por ora, 
acrescento um aviso do jornalista Henry Louis Mencken (1880-1956) aos negacionistas e 
opinadores: “Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e completamente 
errada”. Só não se aplica um adjetivo de Mencken: não há nada elegante no que está acontecendo. 
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#6
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#7
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/covid-19-ciencia-nao-e-opiniao-e-conhecimento#8