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DIREITO DO CONSUMIDOR - proteção jurídica da dignidade do consumidor

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2020 - 04 - 30 PAGE RB-2.1 
Dano moral no direito do consumidor - Ed. 2019
PROTEÇÃO JURÍDICA DA DIGNIDADE DO CONSUMIDOR
1. Proteção jurídica da dignidade do consumidor
1.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O princípio da dignidade da pessoa humana constitui a essência do sistema jurídico brasileiro.
Cuida-se de noção originária que confere sustentação e legitimidade aos demais princípios e regras
jurídicas. Os direitos da personalidade constituem uma categoria que desafia o jurista moderno,
reportando-se aos interesses e valores imateriais do ser humano, que são tutelados pelo sistema
jurídico. A exata significação e extensão das normas jurídicas (princípios e regras) que envolvem
as noções de dignidade da pessoa humana e direitos da personalidade são premissas indispensáveis
ao estudo do dano moral no Direito do Consumidor.
A ideia de princípio tem sido examinada por diversos setores do conhecimento humano.
Entretanto, ainda não há um conceito unânime de princípio, fato que revela a necessidade de um
constante exame do tema, sobretudo em razão de seu extenso uso no campo científico. A Ciência
do Direito enfrenta o mesmo problema. Não havendo um conceito jurídico pacífico para o padrão
princípio, constata-se que diversos autores ainda se ocupam do assunto.1 Porém, a marcante
dissidência doutrinária sobre o assunto tem reflexos significativos nas diversas soluções
apresentadas pela jurisprudência.
A imprecisão terminológica é uma realidade da Ciência do Direito quanto ao vocábulo
princípio.2 Não raro identifica-se a utilização do termo princípio com o mesmo significado de
direitos fundamentais. Em outra passagem dispensa-se tratamento idêntico tanto a princípio como
a princípios gerais de direito, quando são admitidos como critérios de supressão das lacunas
existentes no direito positivo,3 conforme autoriza o art. 4.o, da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, com redação determinada pela Lei 12.376/2010 (Dec.-lei 4.657/1942).4
Américo Plá Rodrigues5 define o princípio jurídico como a linha diretriz que informa e embasa
as regras jurídicas em vigor, mas que também tem como finalidade a sustentação da aprovação de
novas regras jurídicas. O princípio também interfere na decisão do caso concreto, pois orienta a
atividade interpretativa e a solução dos conflitos humanos não regulados por regras jurídicas
específicas, nesta função exercendo atividade integrativa do sistema jurídico.
Apoiado em estudo sobre várias posições doutrinárias, Wilson Engelmann6 destaca o caráter
polêmico e polissêmico do conceito de princípio, admitindo que este representa as linhas gerais do
direito, sendo o alicerce, a fonte de inspiração, enfim, a sua alma. O princípio é o responsável pela
formação do sistema jurídico. Sustenta que o princípio pode ser identificado em algumas regras
jurídicas, quando concretizados em seus respectivos enunciados e realizados por atividade
interpretativa do Poder Judiciário.
Ainda no propósito de fornecer elementos para o conceito de princípio jurídico, Alessandra
Elias Queiroga7 entende que este não tem um conteúdo fático; contudo, é dotado de afirmações
valorativas, mas não prescreve efeitos jurídicos determinados. Esclarece que a regra jurídica
diferencia-se do princípio, porque aquela é formatada a partir da ideia de que há um suporte
fático hipotético, ao qual se vincula uma prescrição com específico efeito jurídico. O princípio
jurídico não orienta apenas a atividade do legislador, mas deve balizar toda decisão judicial. Toda
regra jurídica aplicada encontra sua legitimidade e validade na vinculação que guarda com a
principiologia regente do caso concreto.
A autora acima referida entende que o princípio jurídico tem duas características de destaque.
A primeira e mais importante versa sobre a sua normatividade; vale dizer que o princípio é
considerado como norma fundamental do sistema jurídico, sendo que todas as demais regras
derivam de seu comando. A segunda característica se refere à generalidade, que significa um
conteúdo aberto ou provido de alto grau de indeterminação, cuja concretização exige atividade
interpretativa do operador do direito.
Ronald Dworkin8 elabora consistente estudo de teoria geral do direito e, a partir da crítica ao
modelo de positivismo jurídico defendido por Herbert L. A. Hart, faz a necessária distinção entre
princípios e regras jurídicas.9 Considera que o positivismo se relaciona simplesmente a um sistema
de regras jurídicas, que por sua vez ignora o relevante papel desempenhado pelo princípio.
O autor em referência sustenta que o princípio jurídico é um padrão a ser observado como
exigência de justiça, de equidade ou de moralidade. A distinção básica entre princípios e regras
jurídicas é de natureza lógica, vinculada aos modos de aplicação. Porém, o princípio e a regra
jurídica são normas destinadas às decisões de casos concretos ou situações particulares. Entende
que a regra jurídica admite o juízo sobre a sua validade ou não, vale dizer que se duas regras
entram em conflito, somente uma poderá ser válida.
  A regra inválida deve ser abandonada ou reformulada para adaptar-se ao sistema. A
antinomia das regras jurídicas é solucionada por critérios eleitos pelo legislador, sendo que este
pode preferir o critério da prevalência da regra editada pela autoridade hierarquicamente
superior, prestigiar a regra elaborada mais recentemente, estabelecer a prioridade da regra
especial sobre a regra geral ou preferir a regra jurídica que está assentada em princípios mais
importantes.
O princípio tem dimensão diversa da regra jurídica, porquanto aquele é analisado na
perspectiva de seu peso ou importância que exerce dentro do sistema jurídico. A colisão de
princípios deve ser solucionada mediante a avaliação da força relativa ou valor que cada um
detém para viabilizar o correto julgamento. Por fim, Ronald Dworkin admite que a mensuração da
força relativa que cada princípio exerce na solução dos casos concretos poderá frequentemente
acarretar controvérsias, do mesmo modo que nem sempre será tarefa fácil ao operador do direito
estabelecer a distinção entre princípio e regra jurídica.
A lição de Ronald Dworkin acima alinhada mostra-se imprescindível para destacar a
importância desempenhada pelo padrão princípio dentro do sistema jurídico brasileiro, sobretudo
quanto à proeminência do princípio da dignidade da pessoa humana na sustentação da tese
relativa ao dano moral no Direito do Consumidor.
A dimensão da expressão dignidade da pessoa humana requer uma análise filosófica que
antecede o seu significado estritamente jurídico. José Afonso Silva,10 apoiado na doutrina de Kant,
estabelece a distinção entre dois conceitos fundamentais, uma vez que revelam valores jurídicos
específicos: a pessoa humana e a dignidade.
O autor ensina que o ser humano é dotado de racionalidade, cuja existência revela um fim em
si mesmo, chamando-o de pessoa. Sustenta que não há distinção entre os seres humanos, pois
todos têm racionalidade, caracterizando-os pela espiritualidade inerente, sendo fonte e imputação
de todos os valores, bem como dotados de dignidade. Os seres desprovidos de razão são
considerados como meios, denominando-os de coisas, sendo que estas não possuem dignidade,
mas sim preço, expressando a ideia de valor relativo e possibilidade de substituição por outras
equivalentes.
A dignidade é um valor interno e absoluto que não admite substituição por outro valor
equivalente. Não há preço para a dignidade. Trata-se de um atributo inerente ao ser humano,
superior a todos os outros e que se confunde com a natureza do ser racional, que existe como um
fim e não apenas como um meio.
A noção de dignidade é localizada em passagens remotas da história da humanidade, todavia
sem os contornos mais elaborados da atualidade. João Baptista Herkenhoff11 informa, conforme
narra a Bíblia Sagrada,12 que Deus considerou o ser humano o ponto alto da criação do universo.
Noticia, ainda, que a antiga cultura persa orientava-se pelo respeito e proteção ao ser humano;diversas culturas africanas também estavam voltadas para a tutela do ser humano, sobretudo pelo
destaque dispensado à velhice; e a cultura grega considerava o ser humano como a maior das
maravilhas do mundo.
Apesar de sua remota abordagem, o tema relativo à dignidade da pessoa humana ganhou
contornos mais específicos a partir do século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Os
lamentáveis fatos ocorridos durante este conflito bélico representaram uma expressiva ruptura na
tendência mundial de promoção dos direitos humanos.
Registre-se que a ação nazista foi marcada pelo desprezo completo do ser humano. Houve a
relativização do ser humano em prol da existência de um Estado Superior, ideia que autorizou a
morte de milhões de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais, deficientes físicos, dentre outros
não pertencentes à denominada raça pura ariana, bem como o confinamento de outros milhões de
seres humanos em campos de concentração.
Além das atrocidades nazistas, o mundo viu a implacável destruição em massa provocada pelas
bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos da América sobre o Japão. Esse ato não foi apenas
um confronto militar, uma ação de exércitos, mas a eliminação de milhares de vidas de cidadãos
comuns, ou seja, de idosos, mulheres e crianças que muitos deles jamais estiveram envolvidos em
quaisquer atos de guerra.
Após a Segunda Guerra Mundial, houve a necessidade de se firmar um pacto entre as nações
que tivesse como objetivo a manutenção da vida na terra, pois havia prova mais do que suficiente
de que o ser humano já reunia condições para destruí-lo de forma irremediável. Partindo desta
premissa, os valores foram reavaliados, os objetivos foram redefinidos e as medidas pragmáticas
foram implementadas.
Neste contexto, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, por Resolução da III Sessão
Ordinária da Assembleia Geral, realizada em Paris em 10.12.1948, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, estabelecendo a proteção do ser humano como orientação prioritária da ordem
jurídica internacional. Em seu preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê
que a liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e
dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana. Mais adiante, ainda no
preâmbulo, há o registro da proposta de que os povos das Nações Unidas ratificam a crença nos
direitos fundamentais do ser humano, observada a dignidade da pessoa humana.
A referência mais relevante da dignidade do ser humano está contida no art. 1.º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, nestes termos: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns com os outros com espírito
de fraternidade. Referido artigo forma a base filosófica de todos os sistemas jurídicos positivados
após a sua edição. Por fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos mais uma vez se reporta
à dignidade do ser humano por via do art. 22, com a seguinte redação: Toda pessoa, como membro
da sociedade, tem direito à segurança social e à obtenção, mediante o esforço nacional e cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, da satisfação dos direitos
econômicos, sociais e culturais, indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua
personalidade.
Flavia Piovesan13 destaca que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco na
reconstrução dos direitos humanos, uma vez que introduz uma concepção contemporânea
baseada nas premissas da universalidade e da indivisibilidade. A universalidade deve ser aferida
como a extensão dos direitos humanos, ou seja, é a característica ínsita à própria condição de
pessoa humana. De outro lado, a indivisibilidade é a garantia de observância do conjunto de
direitos fundamentais do ser humano, seja no plano social, econômico ou cultural. Considera que a
primazia da pessoa, na órbita jurídica, decorre do princípio da dignidade da pessoa humana,
sendo que este mitiga a aplicação das normas desprovidas de valoração, próprias do positivismo
jurídico.
Conforme destacado acima, no conjunto das nações, sobretudo no plano constitucional, houve a
aceitação do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento de diversos sistemas
jurídicos que passaram por uma revisão conceitual após a aprovação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. A Constituição da Alemanha, também conhecida como Lei Fundamental de
Bonn, datada de 23.05.1949, teve inserido em seu artigo inaugural que a dignidade da pessoa
humana é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la.
A Constituição da República de Portugal foi promulgada em 1976 e exerceu forte influência na
construção da atual ordem constitucional brasileira. O ex-presidente do Tribunal Constitucional de
Portugal, José Manuel M. Cardoso da Costa,14 destaca que o art. 1.º da Constituição portuguesa
reconhece e proclama expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana como a base ou
fundamento daquele Estado.
A revisão constitucional de 1989 reforçou o princípio da dignidade da pessoa humana ao
conferir nova redação ao art. 1.º, nestes termos: Portugal é uma república soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade
livre, justa e solidária. Outras constituições também consagraram o princípio da dignidade da
pessoa humana, a exemplo de Angola (art. 17), da Coreia do Sul (art. 10), da Espanha (art. 10, n. 1),
da Grécia (art. 2.º), da Índia (preâmbulo) e do Peru (preâmbulo).
O fim do comunismo determinou a reestruturação de diversos países do leste europeu. Houve o
abandono do regime totalitário, sendo que os países da denominada cortina de ferro aproveitaram
aquela mudança e efetivaram a promulgação de novas constituições fundadas na primazia do ser
humano, consagrando-se definitivamente o princípio da dignidade da pessoa humana, a exemplo
da Constituição da República da Croácia, de 22.12.1990 (art. 25); Constituição da Bulgária, de
12.07.1991 (Preâmbulo); Constituição da República da Romênia, de 08.12.1991 (art. 1.º); Lei
Constitucional da República da Letônia, de 10.12.1991 (art. 1.º); Constituição da República
Eslovena, de 23.12.1991 (art. 21); Constituição da República da Estônia, de 28.06.1992 (art. 10);
Constituição da República da Lituânia, de 25.10.1992 (art. 21); Constituição da República Eslovaca,
de 01.09.1992 (art. 12); Constituição da República Tcheca, de 16.12.1992 (Preâmbulo); e
Constituição de República da Rússia, de 12.12.1993 (art. 21).15
Na mesma linha adotada internacionalmente, a atual ordem constitucional brasileira também
consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como regente do sistema jurídico nacional. O
título I da Constituição Federal (CF/1988) versa sobre os princípios fundamentais da República
Federativa do Brasil, que são vinculantes para toda atividade estatal administrativa, legislativa e
judiciária.
O art. 1.º da CF/1988 delineia a estrutura da República Federativa do Brasil, considerando-a
como um Estado Democrático de Direito, formado pela união indissolúvel dos Estados, Municípios
e Distrito Federal, tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político.
Deste modo, o art. 1.º, III, da CF/1988, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana
como fundamento de todo o sistema jurídico brasileiro, auxiliando na interpretação de outros
princípios e regras jurídicas, bem como servindo de meio de integração das lacunas verificadas no
direito positivado. Cuida-se de princípio constitucional absoluto, associado à ideia de que o ser
humano tem primazia sobre todos os outros aspectos regulados pelo direito.
Afirma-se que a supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana não comporta
confrontação com os demais princípios e regras do sistema jurídico. Nessa linha de argumentação,
Inocêncio MártiresCoelho16 concorda que não há hierarquia entre os diversos valores
constitucionais, mas esclarece que a dignidade da pessoa humana deve ser admitida como fonte
axiológica do sistema jurídico. Em sentido contrário, Edílson Pereira de Farias17 afirma que o
princípio da dignidade da pessoa humana não é absoluto, mas relativo, e está sujeito, como os
demais princípios constitucionais, à lei de colisão, podendo não prevalecer em determinados casos
concretos.
A concretização do princípio da dignidade da pessoa humana apresenta dificuldade em razão
da ausência de conceito de seu conteúdo pelo direito positivo. Trata-se, pois, de norma aberta, cujo
conteúdo deve ser extraído do sistema constitucional. Jorge Miranda18 esclarece que a expressão
dignidade da pessoa humana reporta-se ao ser humano enquanto entidade individual e concreta.
Portanto, a dignidade do ser humano não tem o mesmo significado da noção de direitos humanos,
pois estes se dirigem a toda humanidade, de natureza transpersonalista, característica comum ao
conjunto dos seres humanos.
O valor dignidade não está vinculado à noção do ser humano como integrante de uma
determinada coletividade, mas visa a realçar a importância da pessoa humana enquanto ente
individualmente considerado. Desta forma, o sistema jurídico não pode preterir o ser humano
considerado na sua acepção particular em favor do grupo ao qual pertence. Não há justificativa
para privilegiar o interesse coletivo quando a dignidade da pessoa humana (individual) estiver
comprometida.
Miguel Reale19 ensina que o ser humano é o único ente que pode recepcionar valores, cuja
noção não se limita apenas a um conjunto de fatores biológicos e psicológicos, mas tem capacidade
de inovação e superação, vez que pode dar sentido aos atos e às coisas. O ser humano caracteriza-
se pela autoconsciência, não é um mero acontecimento natural, e sua existência está associada à
ideia de pessoa dotada de dignidade.
Diante da textura aberta do princípio da dignidade da pessoa humana, a sua aplicação exige do
operador do direito uma atividade interpretativa sistemática, levando-se em conta os valores que
prevalecem no momento de sua apreciação. Não é uma concepção estática, previamente
estabelecida, mas mutante, que evolui e agrega dados de acordo com a conscientização da própria
sociedade.
Assim como o princípio da dignidade da pessoa humana, também o Direito do Consumidor tem
sede constitucional. O art. 5.º, XXXII, da CF/1988, inserido no título dos direitos e garantias
fundamentais, portanto, cláusula pétrea, impõe ao Estado o dever de agir no sentido de proteger a
parte mais fraca da relação de consumo, cuja regulamentação específica transfere para a lei
ordinária. Nesse sentido, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), de caráter
principiológico e vinculante de todas as relações jurídicas estabelecidas entre o fornecedor e o
consumidor no mercado.20
O Código de Defesa do Consumidor é considerado um dos grandes feitos legislativos do Brasil,
pois acolhe a melhor doutrina nacional e internacional, mostra-se adequado ao modelo da
economia brasileira e outorga efetiva proteção à parte mais fraca da relação jurídica de consumo.
Neste contexto, adotando moderna técnica legislativa, o Código de Defesa do Consumidor
disciplinou os objetivos e princípios da política nacional de relações de consumo.
Cumpre destacar que o art. 4.º do CDC, que dispõe sobre a política nacional de relações de
consumo, não tem a estrutura tradicional da norma jurídica que descreve uma conduta e comina
uma sanção. Trata-se de norma-objetivo21 ou norma-narrativa22 que foi positivada no sentido de
indicar os fins pretendidos pelo legislador, auxiliar na interpretação teleológica, guiando o
operador do direito para alcançar o efeito útil das normas (princípios e regras).
O respeito à dignidade do consumidor é um dos objetivos da política nacional das relações de
consumo, conforme art. 4.º, caput, do CDC. Deste modo, o sistema jurídico brasileiro
(constitucional e infraconstitucional) estabelece de forma inequívoca que toda atividade estatal ou
privada realizada no mercado deve atentar para a necessária proteção da dignidade do
consumidor, que não se vincula ao aspecto material, mas refere-se aos interesses e direitos
imateriais, extrapatrimoniais ou morais.
1.2. DIREITOS DA PERSONALIDADE
A doutrina desenvolveu intensa atividade para delimitar o campo de incidência dos direitos da
personalidade, ressaltando-se que existem variadas opiniões sobre a sua terminologia, conceito,
natureza jurídica, objeto, classificação, características, entre outros relevantes aspectos. As
codificações civis elaboradas nos séculos XIX e XX foram caracterizadas pela preocupação central
de proteção ao patrimônio material do sujeito de direito individualmente considerado. Após as
violações ocorridas na Segunda Guerra Mundial, conforme destacado no item anterior, houve a
mudança do enfoque jurídico no sentido de priorizar a proteção do ser humano.
O direito internacional promoveu a reestruturação dos valores até então imperantes, centrando
a sua regulamentação na primazia dos direitos humanos. Igualmente, no âmbito interno dos
Estados houve a constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana. Porém,
remanescia lacuna no plano infraconstitucional a respeito da tutela da pessoa humana nas
relações privadas, especialmente na legislação civil, uma vez que os códigos civis em vigor no
século XIX e metade do século XX ainda sofriam influência da concepção individualista e liberal,
todos aqueles voltados essencialmente para a tutela patrimonial do sujeito de direito.
É certo que os direitos da personalidade não são uma categoria desconhecida na história do
direito. J. de Oliveira Ascensão23 esclarece que o Código Civil alemão de 1900 (BGB) desconhece a
figura dos direitos da personalidade; contudo, no § 823, I, versa sobre a responsabilidade civil
decorrente de ofensas a bens pessoais, tais como a vida, o corpo, a saúde e a liberdade. Considera
que o Código Civil alemão prevê de forma taxativa os casos de responsabilidade civil, utilizando
técnica legislativa de tipificar os bens da vida de natureza extrapatrimonial sujeitos à imposição
de sanção pecuniária em caso de violação. A doutrina alemã teve a oportunidade de desenvolver
estudos relativos aos direitos da personalidade a partir dos tipos normativos identificados no
Código Civil.
O autor supramencionado destaca que o Código Civil português de 1867 tratou diferentemente
a questão dos direitos da personalidade. A adoção da classificação dos direitos subjetivos em
direitos originários e adquiridos representou a positivação da tutela dos direitos da personalidade.
O direito positivo brasileiro não conheceu a disciplina dos direitos da personalidade até a edição
do CC/2002. O CC/1916 não seguiu o modelo alemão no que tange à tipicidade dos direitos pessoais
protegidos, nem inseriu a categoria de direitos originários prevista no direito português. O
legislador brasileiro de 1916 preferiu adotar uma cláusula geral de responsabilidade civil (art.
159), fato que dificultou a enumeração e desenvolvimento teórico-científico dos direitos da
personalidade.
A questão terminológica acerca dos direitos da personalidade apresenta diversas variações.
Rubens Limongi França24 esclarece que, a partir dos estudos dos juristas alemães ocorridos na
segunda metade do século XIX, a presente categoria de direitos foi denominada de direitos
individuais ou direitos da personalidade (Individualrechte ou Personalitatsrechte). Registra que
ainda foram utilizadas outras denominações, como direitos da individualidade
(Individualitatsrechte), direitos sobre a própria pessoa (Persönlichkeitsrechte), direitos essenciais ou
fundamentais da pessoa, direitos da própria pessoa, direitos de estado e direitos personalíssimos.
Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho25 informam que várias denominações da
matéria foram propostas pela doutrina, tais como “direitos subjetivos”, “direitos essenciais”,“direitos fundamentais”, “direitos pessoais”, “direitos individuais”, “direitos personalíssimos”,
“direitos privados da personalidade”, “direitos da personalidade” e “direito da personalidade”. A
doutrina majoritária tem adotado a expressão “direitos da personalidade” no âmbito do direito
privado e a prevalência da expressão “liberdades públicas” na esfera do direito público.
A etimologia do vocábulo personalidade está vinculada ao latim personalitas ou persona
(pessoa), indicativo da noção de atributos exclusivos da pessoa, que distingue um indivíduo do
outro no aspecto morfológico, fisiológico e psicológico. A personalidade opõe-se à noção de
generalidade e indica o sentido de individualidade, particularidade e singularidade do ser
humano. Cada pessoa é um ser individual, dotado de ego próprio, com variados estados
psicológicos, por meio dos quais tem consciência de sua existência. Portanto, a personalidade é a
qualidade de um ente que lhe caracteriza como pessoa.26
Adriano de Cupis27 inicia seu clássico trabalho sobre os direitos da personalidade fazendo uma
distinção fundamental à delimitação da matéria. O autor entende que a personalidade (capacidade
jurídica) tem acepção diversa dos direitos da personalidade, pois aquela é uma suscetibilidade do
sujeito que detém a titularidade de direitos e obrigações jurídicas. Ensina que a personalidade é
uma pré-condição, fundamento e pressuposto do direito subjetivo. Todos os direitos que conferem
conteúdo à personalidade poderiam ser considerados direitos da personalidade, todavia reserva
esta condição somente àqueles que exercem uma função essencial no sentido de realizar um valor
concreto do ser humano.
Nessa perspectiva teórica, variadas definições foram apresentadas pela doutrina.28 Orlando
Gomes29 argumenta que, “sob a denominação de direitos da personalidade, compreendem-se
direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina,
a fim de resguardar a sua dignidade”. O Código Civil (art. 52) estende a proteção desses direitos, no
que couber, às pessoas jurídicas. Carlos Alberto Bittar30 entende que os direitos da personalidade
devem ser compreendidos como: a) os próprios da pessoa em si (ou originários), existentes por sua
natureza, como ente humano, com o nascimento; b) e os referentes às suas projeções para o
mundo exterior (a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a
sociedade).”
A natureza jurídica dos direitos da personalidade experimentou variações no curso do tempo.
Alguns doutrinadores negavam a existência dos direitos da personalidade ao fundamento de que
não seria possível existir direitos sobre a própria pessoa, argumento que poderia legitimar o
suicídio. Outros consideram que os direitos da personalidade são direitos sem sujeito. Porém, a
doutrina mais atual, de forma majoritária, reconhece a existência e relevância dos direitos da
personalidade. Carlos Alberto Bittar defende a tese de que os direitos da personalidade são direitos
subjetivos inatos do ser humano e decorrentes da concepção naturalista que não os limita aos
direitos positivados.31
A investigação sobre a faculdade de agir em relação a um determinado bem da vida induz à
análise do objeto do direito regulamentado expressamente pelo sistema jurídico. O objeto dos
direitos da personalidade são as manifestações interiores do ser humano, os atributos físicos e
morais, bem como as projeções pessoais no meio social, aspecto externo ou extrínseco. A ausência
dos atributos internos e externos do ser humano tornaria impossível a sua existência, faltaria
dignidade para o seu desenvolvimento, razão pela qual os direitos da personalidade são
considerados como pressuposto de todos os demais direitos subjetivos.32
Os direitos da personalidade são classificados em relação ao elemento corporal do indivíduo,
tais como os direitos à vida, ao próprio corpo vivo ou morto, ou quanto à parte imaterial ou moral.
33 A classificação dos direitos da personalidade elaborada por Rubens Limongi França34 tem sido
reiteradamente invocada pela doutrina nacional. O autor citado formulou classificação inicial
arrimada nos atributos relativos à integridade física (direitos à vida, aos alimentos, sobre o próprio
corpo vivo ou morto, sobre o corpo alheio vivo ou morto e sobre as partes separadas do corpo vivo
ou morto), à integridade intelectual (direitos à liberdade de pensamento, direito pessoal de autor
científico, artístico e de inventor) e à integridade moral (direitos à honra, à honorificência, ao
recato, ao segredo pessoal, doméstico e profissional, à imagem, à identidade pessoal, familiar e
social) do ser humano.
Posteriormente, o autor concluiu que, diante da complexidade apresentada, o tema não
comportava apenas uma classificação. Então, elaborou nova classificação com apoio em quatro
critérios distintos sobre: (1) extensão (sentidos estrito e lato); (2) esfera do direito (público, social e
privado); (3) estado (faixa vital e validez); (4) relações entre as categorias (expressando as
interpenetrações das diversas espécies de direitos da personalidade).
Diversas características identificadoras dos direitos da personalidade são alinhadas pela
doutrina. São direitos inatos ou originários, uma vez que acompanham o ser humano desde o
momento de seu nascimento, independentemente de reconhecimento expresso pelo direito
positivo. São direitos essenciais e vitalícios. A essencialidade significa que tais direitos são
imprescindíveis à fruição da vida em sua mais ampla acepção. A vitaliciedade significa que os
direitos da personalidade acompanham o ser humano durante todo o curso de sua vida,
contrapondo-se à ideia de direitos temporários. São extrapatrimoniais na medida em que não têm
expressão econômica imediata. São geralmente indisponíveis, uma vez que não admitem a
transmissibilidade, exceto em casos expressamente previstos em lei. Outra característica marcante
se refere à irrenunciabilidade, ou seja, não permitem a extinção por vontade de seu titular. Os
direitos da personalidade também são considerados intransmissíveis, inalienáveis, inexecutáveis,
impenhoráveis, inexpropriáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes. 35
A construção teórica dos direitos da personalidade elaborada no campo do direito privado deve
ser transportada para o Direito do Consumidor, merecendo adaptação ao princípio da
vulnerabilidade do consumidor no mercado. O Direito do Consumidor não visa tão somente à
tutela da esfera patrimonial da parte mais fraca da relação jurídica de consumo. A proteção da
esfera extrapatrimonial ou moral do consumidor é uma exigência do próprio microssistema
consumerista.
O Código de Defesa do Consumidor não destina regramento específico aos direitos da
personalidade do consumidor, mas a interpretação sistemática conduz à conclusão de que os
direitos imateriais da parte vulnerável têm guarida legal. Destaque-se que a lei consumerista
prevê a tutela da vida, integridade física, segurança, honra, intimidade, imagem, dentre outros
direitos da personalidade do consumidor. A violação a tais direitos enseja a reparação de danos
morais, conforme disciplina do art. 6.º, VI e VII, do CDC.
Posição acertada é alinhada por Carlos Alberto Bittar Filho,36 que enfatiza a necessidade de
proteção dos direitos da personalidade do consumidor, concluindo que, “(...) no atual contexto
histórico-social, a moralidade tem-se mostrado objeto de frágil e, portanto, amplamente suscetível
de sofrer danos, e isso em função de relações contratuais e extracontratuais, de modo que toda e
qualquer conduta contra ius, afora as hipóteses de abuso de direito, caso fortuito, força maior e
fato da vítima, enseja o direito à reparação civil por lesão a atributos da personalidade. [...] o fato
de que a personalidade é objeto de proteção na legislação dedicada à proteção do consumidor e à
regulamentação das relações de consumo, e isso de várias formas, por variados mecanismos,
dentro das órbitas federal, estadual, municipal, com atribuições distintas entreos poderes
públicos. Acentuou-se, no entanto, o importante papel levado a cabo pela ação civil de reparação
por danos morais nas relações de consumo, e isso com fito de se demonstrar uma aplicação prática
da presença dos direitos da personalidade no Direito do Consumidor.”
Reconhece-se a ausência de sistematização legislativa do fundamental tema que é a tutela dos
direitos da personalidade do consumidor, ao contrário da adequada regulamentação da
responsabilidade civil por danos materiais no CDC. Constata-se uma crescente demanda
jurisdicional por intermédio das ações de reparação de dano moral, que têm suportes fáticos
variados nas relações de consumo, fato que demonstra a premente necessidade de seu
particularizado desenvolvimento no campo teórico.
1.3. RELAÇÃO JURÍDICA DE CONSUMO
A relação jurídica constitui-se em tema fundamental da Ciência Jurídica. Cuida-se de assunto
vinculado à teoria geral do direito, sendo que a compreensão do conceito de relação jurídica é
pressuposto para o conhecimento da Ciência Jurídica em geral. Observa-se que o direito público e
o direito privado utilizam o conceito de relação jurídica como ponto de partida para a
configuração de seus respectivos limites e especificidades. Deste modo, a análise da estrutura e
dinâmica da relação jurídica é premissa necessária para o adequado entendimento do sistema
jurídico em geral, bem como se mostra indispensável ao conhecimento particular do
microssistema das relações jurídicas de consumo.
O ser humano é sociável por natureza, razão pela qual está em contato permanente com os
demais integrantes da comunidade. O inter-relacionamento humano promove o nascimento de
diversas relações sociais, sendo estas consideradas o gênero, cujas espécies são a relação religiosa,
a relação moral, a relação artística, a relação de amizade, a relação desportiva, a relação cultural, a
relação econômica, a relação jurídica, dentre outras.37
Maria Helena Diniz38 ensina que o homem está em permanente interação na sociedade, fato
que possibilita o nascimento de diversas relações sociais. Os comportamentos humanos são
disciplinados por intermédio de normas jurídicas, que transformam as genéricas relações sociais
em relações jurídicas.
A relação jurídica nasce da atividade legislativa, que por sua vez destaca algumas relações
sociais consideradas dominantes num determinado espaço e tempo. A partir da identificação de
específicas relações sociais relevantes para o direito, o legislador regula-as juridicamente,
atribuindo-lhes sanções dotadas de coercibilidade estatal, circunstância que marca a distinção
entre as demais espécies de relações sociais e a relação jurídica.39
Portanto, como regra geral, a relação jurídica surge como a normatização de certos
comportamentos humanos, e decorre de obra legislativa que incorpora as fundamentais relações
sociais ao sistema jurídico. Ocorre que há exceções à regra geral, pois algumas relações jurídicas
não decorrem de comportamentos humanos ou inter-relacionamentos dos integrantes da
sociedade, mas sim de uma opção do legislador em adotar determinado suporte fático como
relevante para o direito. Cite-se como exemplo a relação jurídica tributária, que a lei atribui a
determinado sujeito de direito a obrigação de pagar quantia em dinheiro aos cofres públicos em
razão da verificação do fato gerador tributário.
Uma vez fixado pela norma jurídica o fato gerador da relação jurídica, mister indagar sobre as
causas do surgimento da relação jurídica. Os fatores naturais, admitidos como aqueles em que não
há concorrência da vontade humana para a sua consumação, podem motivar o nascimento de
uma relação jurídica. Uma forte chuva, um raio, a modificação natural do curso de um rio ou um
terremoto podem provocar o surgimento de uma relação jurídica.
O ato jurídico em sentido lato, considerado como aquele em que há a interferência da vontade
humana para a sua formação, é o meio mais usual de constituição de uma relação jurídica. De
forma mais específica, o ato ilícito também é admitido como meio hábil para promover o vínculo
jurídico (relação jurídica) entre o sujeito ativo e o sujeito passivo da responsabilidade.40
A origem da relação jurídica é localizada no direito romano, mas foi por intermédio da
atividade da Escola da Pandectística, na Alemanha, que os limites da matéria foram fixados de
forma mais científica. A intensa atividade doutrinária dos pandectistas influenciou decisivamente
a elaboração do Código Civil alemão de 1900 – Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), este caracterizado
pelo rigor conceitual e noção de sistema fechado de direito, ideologia do positivismo científico
dominante no século XIX. Referido diploma legal prevê, nos Livros I e II, as definições dos
elementos da relação jurídica e que foram precedentemente desenvolvidos pela própria doutrina
alemã.41
O intenso labor da doutrina alemã do final do século XIX influenciou decisivamente os diversos
sistemas jurídicos vinculados à família romano-germânica. O Código Civil brasileiro de 1916
observou o modelo legislativo civil da Alemanha e, consequentemente, estruturou o sistema
nacional com apoio na teoria da relação jurídica desenvolvida pelos pandectistas. O Código Civil
de 2002 manteve a mesma estrutura do Código Civil de 1916, confirmando a permanência da
teoria da relação jurídica como fundamento do sistema jurídico brasileiro.
O conceito de relação jurídica é ponto controvertido na doutrina.42 Giorgio Del Vecchio43
aborda a questão a partir da premissa de que a norma jurídica promove uma relação entre os
sujeitos de direito. Considera que a relação jurídica é caracterizada por um vínculo intersubjetivo,
em que a pretensão do titular de um direito tem correspondência com a obrigação (dever) do
outro sujeito desta mesma relação jurídica.
Os termos direito subjetivo, dever e sujeição são utilizados por Manuel A. Andrade44 para a
formulação do conceito de relação jurídica. Na acepção mais ampla, entende que a relação jurídica
é toda situação da vida social que tem repercussão para o direito. O sentido estrito de relação
jurídica refere-se à relação social regulada pelo direito, caracterizada pela atribuição a uma pessoa
de um direito subjetivo e a outra de um dever ou sujeição.
O autor em referência define direito subjetivo como a faculdade ou o poder conferido pela lei,
ou constituído mediante ato de vontade, para que um sujeito de direito possa exigir ou pretender
de outrem um comportamento positivo (fazer) ou negativo (não fazer ou abstenção). O dever
jurídico e a sujeição são termos com significados próximos, todavia inconfundíveis. Ambos são
atribuídos ao sujeito de direito que figura na relação jurídica no polo oposto ao do titular do
direito subjetivo. O poder de exigir ou pretender conferido ao titular do direito subjetivo
contrapõe-se ao dever do outro sujeito da relação jurídica. Refere-se à sujeição quando versa sobre
direitos potestativos, destacando que a produção do efeito previsto pelo sistema jurídico opera-se
independentemente da vontade do sujeito passivo.
Francisco Amaral45 entende a relação jurídica como um vínculo entre sujeitos de direito
(pessoas ou grupos) que confere poderes e deveres recíprocos sobre bens ou interesses jurídicos.
Sustenta que há bilateralidade na relação jurídica, expressando a ideia de que um sujeito
encontra-se na posição de poder, enquanto o outro sujeito detém uma posição correlata de dever.
A concepção clássica de relação jurídica como o vínculo entre sujeitos de direito, caracterizada
por uma correspondência entre direitos e deveres, é criticada por Hans Kelsen,46 que, por sua vez,
assume uma posição normativista, ou seja, considera que a própria norma jurídica é a criadora da
relação jurídica. Nega a possibilidade de existir relação jurídica entre a conduta humana e a
norma jurídica. A conduta humana é o conteúdo da norma jurídica, razão pela qual sustenta
tratar-se de uma unidade incindível.
Apoiado na premissa acima indicada, Hans Kelsen47 não leva em conta as relações entre os
sujeitos dedireito, mas tão somente as relações existentes entre as normas jurídicas. Cita como
exemplo o contrato de compra e venda, no qual a obrigação de entregar a coisa está vinculada à
obrigação de pagar o preço respectivo. Conclui que neste caso a relação jurídica estabelece-se
entre as condutas prescritas pela ordem jurídica, vale dizer, há relação tão somente entre a norma
que obriga o comprador a pagar o preço e a norma que obriga o vendedor a entregar o bem.48
A doutrina apresenta diversas classificações de relação jurídica, uma vez que vários critérios
são utilizados para a sua configuração, dentre eles o tipo de norma ou o bem jurídico tutelado.
Segundo Orlando Gomes,49 as relações jurídicas são classificadas de acordo com o seu conteúdo,
podendo ser simples ou complexas. As relações jurídicas simples vertem apenas um direito
subjetivo. As relações jurídicas plúrimas são aquelas compostas de vários direitos subjetivos a um
mesmo titular de direito. As relações jurídicas complexas são caracterizadas pela presença de
vários direitos conferidos aos sujeitos, havendo uma correlação entre direitos e deveres.
Há divergência doutrinária quanto aos elementos da relação jurídica. Os sujeitos e o objeto
constituem pontos pacíficos da questão. Entretanto, alguns autores acrescentam o vínculo de
atributividade, o fato propulsor e a proteção jurídica como elementos integrantes do conceito de
relação jurídica. Maria Helena Diniz50 alinha que a configuração da relação jurídica exige os
seguintes elementos: 1. relação intersubjetiva, em que o sujeito ativo é o titular do direito subjetivo
de ter ou fazer algo não vedado pela norma jurídica, e o sujeito passivo é aquele que deve
respeitar o direito do sujeito ativo; 2. o objeto pode ser: 2.1. imediato, consistente na prestação
devida pelo sujeito passivo; 2.2. mediato, o próprio bem da vida (imóvel, móvel ou semovente)
vinculado aos sujeitos; 3. fato propulsor idôneo à produção de efeitos jurídicos, podendo ser
decorrente da vontade humana (fato jurídico stricto sensu, ato jurídico ou negócio jurídico) ou
não.
O sujeito ativo de uma relação jurídica pode ser a pessoa física ou natural, a pessoa jurídica de
direito público interno ou externo, a pessoa jurídica de direito privado, nacional ou estrangeira, os
entes despersonalizados e a coletividade, esta última na tutela de direitos transindividuais ou
individuais homogêneos. Considerado o sujeito ativo como o titular do direito subjetivo, o sistema
jurídico confere-lhe a proteção judiciária quando houver ameaça ou lesão ao próprio direito,
conforme autoriza o art. 5.º, XXXV, da CF/1988, que por sua vez encerra o princípio da
inafastabilidade da proteção judiciária.
O sujeito passivo é caracterizado pela imposição normativa de atribuir-lhe um dever jurídico
em face do sujeito ativo. A relação jurídica obrigacional, por exemplo, não apresenta dificuldade
de identificação do sujeito passivo. Exige-se apenas a indicação do credor (sujeito ativo) e do
devedor (sujeito passivo).
Entretanto, a questão da identificação do sujeito passivo da relação jurídica envolve
controvérsia quando versa sobre os direitos da personalidade ou os direitos reais. Nestes casos,
não há um sujeito passivo previamente individualizado, mas todos os integrantes da coletividade,
seja pessoa natural ou jurídica, têm o dever jurídico de abstenção, ou seja, devem pautar os
respectivos comportamentos no sentido de não violar o direito do sujeito ativo. Nomina-se de
sujeito passivo universal aquele que inicialmente é indeterminado, contudo é determinável. No
momento em que ocorre a violação do direito da personalidade ou do direito real, o sujeito
violador passa da condição de componente da universalidade (sujeito passivo universal) para a
condição de sujeito passivo determinado, sendo-lhe dirigida toda a consequência jurídica que a
norma estipular.
O objeto da relação jurídica é o bem da vida sobre o qual incidem os direitos do sujeito ativo e
os deveres do sujeito passivo. Luiz Antonio Rizzatto Nunes51 divide, na mesma linha da doutrina
majoritária, o objeto da relação jurídica em imediato e mediato. A prestação é o objeto imediato da
relação jurídica. É o poder do sujeito ativo de exigir do sujeito passivo uma ação, fazer algo ou dar
um determinado bem da vida, ou omissão, prestação negativa ou abstenção da prática de algum
ato. O objeto mediato é o próprio bem da vida que vincula os sujeitos, podendo ou não ter valor
econômico.
O fim da escravidão determina o momento em que o ser humano não é mais admitido como
objeto da relação jurídica. O ser humano é reconhecido exclusivamente como sujeito de direito.
Porém, a regra geral comporta algumas exceções, a exemplo da Lei 9.434/1997 – que dispõe sobre a
remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento52 –, a
qual permite, desde que necessariamente gratuito e para os objetivos acima indicados, a inclusão
como objeto da relação jurídica os tecidos, os órgãos e as partes do corpo vivo ou morto, excluídos
o sangue, o esperma e o óvulo.
As relações jurídicas podem ser identificadas em espécies distintas. A relação jurídica
tributária, que nasce exclusivamente da vontade do legislador e não em decorrência da
observância de comportamentos humanos, estabelece o vínculo entre o fisco e o contribuinte,
tendo como objeto uma obrigação tributária. O contrato de trabalho estabelece a relação jurídica
trabalhista, figurando o empregador e o empregado como sujeitos, cujo objeto consiste na
prestação de um trabalho subordinado mediante remuneração. A relação jurídica civil estabelece-
se de diversas formas e versa sobre direito da personalidade, direito obrigacional, direito real,
direito de família, direito sucessório, entre outros. A relação jurídica empresarial regula a
atividade profissional do empresário. A relação jurídica penal é o vínculo entre o Estado, titular do
direito de punir, e o cidadão, no exercício do direito de liberdade. A relação jurídica processual
regula os direitos e deveres das partes – juiz, autor e réu – em juízo.53
As noções supra-apresentadas sobre relação jurídica em geral, dentro do campo da teoria geral
do direito, são utilizadas na formação do conceito de relação jurídica de consumo. A extensão do
campo de aplicação do microssistema de Direito do Consumidor está necessariamente vinculada
ao adequado conceito de relação jurídica de consumo. Afirma-se, pois, que o Direito do
Consumidor visa a regulamentar exclusivamente a relação jurídica de consumo, aspecto que
destaca a essencialidade do conhecimento de seus respectivos elementos integrantes – sujeitos
(fornecedor e consumidor) e objeto (produtos e serviços).54
O Código de Defesa do Consumidor e a legislação consumerista extravagante constituem um
corpo de normas jurídicas aplicável às relações de consumo. O microssistema legal de defesa do
consumidor permite a aplicação de normas pertencentes a outro microssistema jurídico nos casos
de lacunas na legislação consumerista e desde que não incorra em conflito principiológico com o
Código de Defesa do Consumidor.
A identificação da relação jurídica de consumo é premissa para o desenvolvimento de qualquer
tema vinculado ao protetivo ramo do Direito do Consumidor, inclusive na questão do dano moral.
A não configuração da relação jurídica de consumo afastará o operador do direito da aplicação das
normas protetivas previstas no microssistema de Direito do Consumidor, transportando o
regramento da relação para outro campo do direito, podendo ser uma relação civil, empresarial,
administrativa, trabalhista, ambiental, entre outras, cujo enquadramento adequado também será
realizado mediante a identificação dos elementos específicos de cada relação jurídica.
As definições de relação jurídica de consumo fornecidas pela doutrina têm como pontos
comuns a existência de um vínculo jurídico entre o sujeito-fornecedor e o sujeito-consumidor,
considerando objeto somente um produto ou um serviço. Refuta-se a possibilidade de uma relação
de consumoentre o sujeito de direito (fornecedor ou consumidor) e o bem da vida (produto ou
serviço). Vale dizer que a relação jurídica de consumo, na mesma estrutura das demais relações
jurídicas, é eminentemente intersubjetiva, e o bem da vida (produto ou serviço) será
necessariamente o seu objeto.
Noção correlata consiste em afirmar que o Código de Defesa do Consumidor e a legislação
consumerista extravagante têm como objeto de regulamentação a relação de consumo, esta
considerada como a relação jurídica existente entre o sujeito-fornecedor e o sujeito-consumidor,
compondo o seu objeto a aquisição de produtos ou a utilização de serviços pelo consumidor,
conforme destacado acima.55
Ideia mais ligada à proteção contratual é apresentada por Roberto Senise Lisboa,56 pois afirma
que a relação jurídica de consumo está vinculada, no que tange à esfera conceitual, ao negócio
jurídico celebrado entre fornecedor e consumidor.
Não obstante a constatação de que a maioria das relações jurídicas de consumo decorre de um
vínculo contratual, tem-se que não se trata de uma ocorrência peremptória ou terminante, uma
vez que em diversos casos a relação jurídica de consumo nasce de fatos jurídicos (eventos da
natureza) em que não há concorrência da intervenção humana ou, de outro lado, decorre de atos
ilícitos (responsabilidade extracontratual). Nestes casos a relação jurídica de consumo manifesta-
se independentemente da vontade humana dirigida à celebração de um negócio jurídico válido
(contrato de consumo).
A relação jurídica de consumo é caracterizada, na lição de Maria Antonieta Zanardo Donato,57
pela relação que o direito estabelece entre o fornecedor e o consumidor, tendo como objeto um
produto e um serviço. Acrescenta que o fornecedor tem um poder e o consumidor um vínculo
correspondente. O conceito retro aproxima-se da noção de direito potestativo ao sustentar que o
fornecedor detém um poder em relação ao consumidor. Consequentemente, afasta-se da ideia
clássica de relação jurídica, que preconiza a existência de sujeitos com direitos e deveres
recíprocos.
Newton de Lucca58 conclui, após minucioso estudo sobre o assunto, que não é viável a
formulação de um conceito único de relação de consumo, como se constata quanto à relação
jurídica em geral, porquanto é necessário fazer uma classificação dicotômica. Considera relação
jurídica de consumo em sentido estrito o vínculo entre o fornecedor e o consumidor-padrão (art.
2.º, caput, do CDC); a relação jurídica de consumo em sentido amplo é aquela estabelecida entre o
fornecedor e o consumidor por equiparação (art. 2.º, parágrafo único, art. 17 e art. 29, todos do
CDC).
O Código de Defesa do Consumidor não apresenta o conceito de relação jurídica de consumo.
Diferentemente de outras leis brasileiras, a lei consumerista optou por enunciar as definições dos
elementos integrantes da relação jurídica de consumo. Abandonou-se a concepção de que a lei não
comporta enunciar definições de institutos jurídicos, e houve por trazer as noções jurídicas de
todos os elementos da relação jurídica de consumo.
Algumas críticas foram lançadas à opção do legislador em definir os elementos integrantes da
relação jurídica de consumo, principalmente sob o argumento de que as definições prefixadas na
lei provocariam uma imobilização dos institutos jurídicos, fato que comprometeria a dinâmica e a
necessidade de adaptação dos mesmos às inexoráveis transformações sociais.
Comunga-se da ideia de que os institutos jurídicos devem ser adaptados à realidade social, que
por sua vez é extremamente mutante. O conceito dos elementos integrantes da relação jurídica de
consumo certamente não buscou obstar o desenvolvimento, atualização ou adaptação da noção de
consumidor, fornecedor, produto ou serviço. O tempo de vigência do Código de Defesa do
Consumidor demonstra a correção do caminho escolhido pelo legislador brasileiro.
O objetivo do legislador consumerista foi alcançado na medida em que as referidas definições
dos elementos básicos da relação jurídica de consumo foram desenvolvidas pela doutrina e
jurisprudência, encerrando várias e profícuas discussões, com avanços e retrocessos, mas que
efetivamente possibilitou a implantação definitiva do microssistema de defesa do consumidor no
cenário jurídico brasileiro.
Não obstante a expressa inclusão das definições dos elementos integrantes da relação jurídica
de consumo, ataques foram lançados ao microssistema de defesa do consumidor, inclusive
afrontando uma primária interpretação literal do Código de Defesa do Consumidor. Registre-se o
inconformismo de muitas instituições integrantes do sistema financeiro nacional em admitir que
as suas respectivas atividades estão incluídas dentre aquelas caracterizadas como prestação de
serviço de consumo, mesmo diante da inequívoca e expressa previsão do art. 3.º, § 2.º, do CDC.59
O Superior Tribunal de Justiça uniformizou entendimento de que o Código de Defesa do
Consumidor é aplicável às instituições financeiras, nos termos da Súmula 297, publicada no DJU de
9 de setembro de 2004, p. 149. A tese da inconstitucionalidade do art. 3º, § 2º, do Código de Defesa
do Consumidor foi apresentada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) ao
Supremo Tribunal Federal por intermédio da ADIn 2.591-1/DF, cujo pedido foi julgado
improcedente (2006), reafirmando a constitucionalidade do microssistema de defesa do
consumidor, em especial quanto à sujeição das instituições financeiras às normas veiculadas pelo
Código de Defesa do Consumidor.
O exame destacado de cada um dos elementos integrantes da relação jurídica de consumo será
feito nos itens seguintes. Justifica-se tal procedimento pelo fato de que o âmbito de aplicação do
Direito do Consumidor é fixado estritamente em virtude da caracterização da relação jurídica de
consumo, inclusive o tema relativo às violações praticadas pelo sujeito (fornecedor), que ocupa
posição de superioridade na relação jurídica de consumo, em face dos direitos da personalidade
do consumidor, as quais ensejam a reparação do dano moral.
1.4. CONCEITO DE CONSUMIDOR
O consumidor é o sujeito da relação jurídica de consumo que está em posição de inferioridade
diante do fornecedor e a quem é destinada a proteção legal. O conceito de consumidor apresenta
diversas vertentes e está diretamente ligado à extensão do próprio microssistema jurídico
denominado Direito do Consumidor.
O vocábulo “consumidor” vincula-se etimologicamente ao verbo “consumir”, que é uma
derivação do latim consumere, 60 cujo significado é o ato de gastar ou destruir pelo uso. A acepção
comum do termo “consumidor” está ligada à pessoa que adquire, possui ou utiliza qualquer bem
da vida para uma satisfação pessoal, excluindo a sua utilização em atividade de intermediação
empresarial.
A noção de consumidor é desenvolvida por vários ramos do conhecimento. A psicologia ocupa-
se do consumidor com o objetivo de identificar as reações internas do ser humano que levam à
preferência por determinados produtos ou serviços, especialmente considerando os efeitos do
marketing e da publicidade. A sociologia trata o consumidor como o sujeito integrante de uma
determinada classe social, cuja respectiva conceituação é associada à qualidade de vida e à
possibilidade de fruição de produtos e serviços.61
Dentre diversas outras classificações, considera-se que a atividade econômica é realizada em
três ciclos distintos: produção, circulação ou distribuição, e consumo. A ciência econômica
considera o consumidor como o último partícipe do ciclo produtivo, não se confundindo com os
agentes econômicos denominados produtor e intermediário. O consumidor pratica ato de
consumo (terminal) consistente na retirada do bem do mercado com vista a destruí-lo ou gastá-
lo.62 A partir da noção econômica do termo consumidor, a Ciência Jurídica desenvolveu o seu
próprio significado.
O sistema jurídico da common law exclui do conceito de consumidor o sujeito que adquire
determinado bem da vida com a finalidade de revenda. Entende-se que consumidoré toda pessoa
que compra, usa ou mantém produtos ou serviços fora da cadeia de produção, quando ocupa
posição distinta do produtor e do empresário. É o sujeito de direito afetado pela política de preços,
serviços bancários, concessão de crédito, qualidade dos produtos e serviços, e outras práticas
relativas ao mercado de consumo.63
Expressiva doutrina francesa considera consumidor a pessoa física ou jurídica que adquire ou
utiliza um bem ou serviço com finalidade não profissional. O conceito de consumidor não está na
lei, mas decorre de construção doutrinária e jurisprudencial, compreendendo três aspectos
distintos.64
O aspecto subjetivo refere-se à pessoa física como consumidora, desde que a aquisição ou
utilização de produtos e serviços seja feita fora da atividade profissional. Admite-se a pessoa
jurídica na posição de consumidor somente quando desenvolver uma atividade não profissional, a
exemplo da associação sem fins lucrativos.
O segundo elemento do conceito de consumidor versa sobre os produtos e serviços. Todos os
produtos adquiridos ou utilizados de forma não profissional são passíveis de consumo, tais como
os que são destruídos com o primeiro uso (alimentos), os duráveis (automóveis e aparelhos
domésticos) e os imóveis. Os serviços são prestações remuneradas em dinheiro e podem ser de
natureza material, financeira ou intelectual.
A natureza não profissional da aquisição ou utilização de bens e serviços caracteriza o terceiro
elemento do conceito de consumidor. O ato de consumo deve visar à satisfação de um interesse
pessoal ou familiar, excluindo-se do conceito a atividade voltada para suprir uma necessidade
profissional.65
Thierry Bourgoignie66 registra que não há no direito belga ou em outro país estrangeiro
conceito único do termo consumidor. O legislador utiliza critérios variados e circunstanciais para a
delimitação da noção de consumidor. Esclarece que a Resolução 39/248, da Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas, realizada em 09.04.1985, estabelece os objetivos da política de
consumo, todavia não traz o conceito de consumidor. Alinha que o direito europeu vale-se de dois
critérios para firmar o conceito de consumidor, a saber: a) critério subjetivo, quando fala em uso
privado do bem ou serviço utilizado; b) critério negativo, quando se reporta à ideia de uso estranho
ao exercício de uma atividade profissional. Portanto, o ponto de convergência do conceito de
consumidor reside na circunstância de que o produto ou serviço não deve estar na esfera
profissional do adquirente ou utente.
A Alemanha não tem um código específico disciplinador das relações jurídicas de consumo. A
proteção do consumidor alemão ocorre em duas esferas distintas, sendo a primeira relativa à
proteção contratual feita por intermédio da AGBG (Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen
Geschäftsbedingungen), ou Lei de Proteção Geral ao Contrato, editada em 09.12.1976, alterada em
19.07.1996; pela Lei de Crédito ao Consumo (Verbraucherkreditgesetz – VerbrKrG), publicada em
17.12.1990 e modificada em 20.12.1996; e pela Lei sobre a Revogação de Negócios Realizados na
Porta de Casa e Negócios Semelhantes (Gesetz über den Widerruf von Haustürgeschäften und
ähnlichen Geschäften – HausTWG), publicada em 16.01.1986 e modificada pela VerbrKrG em
17.12.1990.
A segunda forma de proteção ao consumidor alemão opera-se pela disciplina da
responsabilidade extracontratual, especificamente por intermédio da lei sobre produtos
defeituosos (Gesetz über die Haftung für fehlerhafte Produkte – Produkthaftungsgesetz – ProdHaftG),
publicada em 15.12.1989 e alterada em 25.10.1994.
A noção de consumidor no direito contratual alemão limita-se à pessoa física que celebra
negócio jurídico com um fornecedor de produtos ou serviços, contudo fora da finalidade
relacionada à sua atividade industrial ou profissional própria (Verbraucher – consumidor).67
Claudia Lima Marques e Ulrich Wehner68 informam que o Código Civil e diversas leis esparsas
da Alemanha sofreram substanciais modificações em 29.06.2000. As relações jurídicas de consumo
passaram a ser regidas pelo Código Civil com a inclusão do conceito de consumidor (§ 13 BGB –
Verbraucher), considerado como qualquer pessoa física, que conclui um negócio jurídico, cuja
finalidade não tem ligação comercial ou com sua atividade profissional.
Os autores mencionados sustentam que se cuida de conceito coerente com a linha mais adotada
internacionalmente, ou seja, a não profissionalidade da pessoa física que contrata ou utiliza
produtos e serviços como destinatário final. O fornecedor também foi definido (§ 14 BGB –
Unternehmer) como a pessoa física ou pessoa jurídica ou uma sociedade de uma pessoa que, na
conclusão de um negócio jurídico, está usando de sua atividade profissional ou negocial em função
dessa atividade, própria ou comercial.
Afirmam que as modificações noticiadas representam a preferência da Alemanha em incluir no
Código Civil as regras atinentes ao Direito do Consumidor do que regular o tema em leis especiais e
dispersas, como optou o legislador consumerista brasileiro.
A doutrina italiana encontra dificuldade no conceito de consumidor, especialmente em razão
da ausência de uma lei geral de consumo na Europa. Guido Alpa69 assinala que o consumidor tem
diversas definições na Europa, mas é considerado como o sujeito que pratica ato de consumo para
a satisfação própria ou de sua família, com fim privado, excluindo aquele que atua no âmbito de
sua atividade profissional.
Ressalta que o jurista italiano enfrenta dois problemas principais quanto ao conceito de
consumidor. O primeiro versa sobre o motivo da aquisição do produto ou serviço, ou seja, a
circunstância de a operação econômica estar estritamente vinculada a uma satisfação de
necessidade própria ou familiar. O segundo problema reside na unificação do Código Civil e do
Código Comercial, uma vez que o conceito de consumidor não encontra correspondência com o
conceito de comerciante, da mesma forma que o conceito referente ao ato de consumo não tem
correlação normativa com o conceito de ato de comércio.
Carlos Ferreira de Almeida,70 após a abordagem da concepção socioeconômica de consumidor,
realizou minucioso estudo sobre o conceito jurídico de consumidor na Europa e identificou alguns
elementos comuns e outros característicos de concepções distintas. Os elementos comuns são
subjetivo, objetivo e teleológico.
O elemento subjetivo consiste na análise da qualificação da pessoa que integra a relação de
consumo como destinatário da proteção jurídica. Admite que as pessoas físicas ou naturais são
consideradas consumidoras; todavia, questiona a compatibilidade do conceito de consumidor em
relação à pessoa jurídica.
Constata que as diversas definições examinadas reconhecem como elemento objetivo a
referência do consumidor ao uso de produtos ou serviços. A questão encontra divergência no que
tange à extensão atribuída aos bens, especialmente quanto à inclusão de bens imóveis, serviços
públicos de natureza administrativa e bens livres da natureza (ar, água, espaços verdes).
A destinação pessoal ou privada de bens e serviços é outro ponto incontroverso no conceito de
consumidor e refere-se ao elemento teleológico ou finalístico. Em Portugal, o art. 2.º da Lei de
Defesa do Consumidor (Lei 24/1996) define consumidor considerando os elementos subjetivo,
objetivo e teleológico, nestes termos: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam
fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não
profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise
a obtenção de benefícios.”
O conceito de consumidor no direito argentino está previsto no art. 1092 do Código Civil (Lei
26.994/2014). Considera-se consumidor a pessoa física (natural) ou pessoa jurídica que adquire ou
utiliza, de forma gratuita ou onerosa, bens e serviços, como destinatário final, em benefício
próprio ou de seu grupo familiar ou social. A lei argentina prevê, ainda,a figura do consumidor
equiparado, reconhecendo a proteção jurídica especial ao sujeito de direito (pessoa física ou
jurídica) que, mesmo não sendo parte de uma relação de consumo, adquire ou utiliza bens e
serviços como consequência ou em razão de determinada relação de consumo, de forma gratuita
ou onerosa, como destinatário final, em benefício próprio ou de seu grupo para familiar ou social.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro introduz o conceito padrão ou standard de
consumidor e, ainda, mais outras três definições por equiparação, circunstância que facilita a
aplicação do referido microssistema aos variados casos concretos verificados na prática, o que
será analisado nos itens seguintes.
1.4.1. Padrão ou standard
O conceito jurídico de consumidor consta do art. 2.º, caput, do CDC, cuja análise mostra-se
imprescindível para a compreensão de todos os temas integrados ao microssistema
consumerista.71 O conceito padrão ou standard enuncia que o consumidor é toda pessoa física ou
jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
A pessoa física é admitida unanimemente, tanto na doutrina brasileira quanto na estrangeira,
como o protagonista por excelência da relação jurídica de consumo. O intérprete encontra a noção
de pessoa física nas regras do Código Civil, portanto, fora dos limites estreitos da matéria
consumerista. O Código Civil adota a terminologia pessoa natural, em detrimento da locução
pessoa física, esta acolhida, por exemplo, pelas legislações italiana, francesa, bem como a
brasileira, para fim de regulamentação do imposto sobre a renda.72
A par da disputa terminológica, é certo que a pessoa física ou natural corresponde ao ser
humano titular de direitos e deveres na órbita jurídica. Todo ser humano é dotado de
personalidade, sendo que esta encontra seu termo inicial no momento do nascimento com vida,
resguardados os direitos do nascituro, nos termos do art. 2.º do CC. Sílvio de Salvo Venosa73
considera que a personalidade é um conjunto de poderes conferidos ao ser humano para figurar
em uma relação jurídica; é uma projeção íntima e psíquica do ser humano no seio social, com
repercussões jurídicas. O citado autor esclarece a noção de pessoa física ou natural quando aponta
a distinção entre capacidade de direito, inerente a todas as pessoas, da capacidade de exercício,
entendida como a aptidão de um sujeito de direito de adquirir pessoalmente direitos e contrair
obrigações.
A pessoa jurídica é acolhida expressamente na lei brasileira como consumidora. Nesse ponto
reside a maior controvérsia da questão. Igualmente à pessoa física ou natural, o Código de Defesa
do Consumidor não se ocupa de traçar os limites do conceito de pessoa jurídica. Mais uma vez o
intérprete deve valer-se da legislação civil para dar operatividade ao microssistema consumerista.
O Código Civil, no Livro I (Das Pessoas), Título II (Das Pessoas Jurídicas), regula a matéria por
intermédio dos arts. 40 a 69. O ser humano é caracterizado por sua capacidade de se relacionar
socialmente. A agregação humana em torno de variados objetivos é reconhecida pelo direito, que
por sua vez distingue o ser humano individualmente considerado do resultado da associação de
seres humanos.
O agrupamento humano tem diversas causas, dentre elas a necessidade de conjugação de
esforços para realização de tarefa de grande porte, a exemplo da produção em série de bens de
consumo que incorpora alta tecnologia, obra que o ser humano sozinho não seria capaz de
executar. Nasce, portanto, a pessoa jurídica como realidade jurídica válida para adquirir,
modificar e extinguir direitos.
Diversas teorias procuram justificar a existência da pessoa jurídica. A teoria da ficção,
desenvolvida por Windscheid e sustentada por Savigny, nega existência real à pessoa jurídica,
admitindo-a apenas como uma criação ou ficção da lei, ou seja, uma abstração desprovida de
vontade própria. Somente o ser humano é dotado de vontade, característica ausente na pessoa
jurídica.
A teoria da realidade objetiva ou organicista concebe a pessoa jurídica de forma diversa da
teoria da ficção. Reconhece que a pessoa jurídica tem existência própria como corpo orgânico,
idêntico ao ser humano. Há conjunção dos elementos corpus (coletividade ou conjunto de bens) e o
animus (vontade do instituidor). Posição intermediária é representada pela teoria da realidade
técnica, que considera a pessoa jurídica como uma construção da técnica jurídica com vistas ao
estabelecimento de relações jurídicas lícitas.74
O conceito legal ou jurídico de consumidor estipula as ações desempenhadas pelas pessoas
físicas ou jurídicas por intermédio dos verbos adquirir e utilizar. O microssistema consumerista
veda uma interpretação restritiva dos verbos adquirir e utilizar, porquanto a finalidade do texto
legal é ampliar a proteção dos consumidores.
A pessoa física ou jurídica que celebra contrato com determinado fornecedor de produto ou
serviço, mediante uma contraprestação, é consumidora em razão do vínculo jurídico oneroso
estabelecido. A aquisição a título gratuito, a exemplo de uma doação pura ou sem encargo,
igualmente caracteriza a figura do consumidor, desde que o bem da vida seja um produto ou
serviço disponível no mercado.
A título de exemplo, uma geladeira dada ao noivo como presente de casamento coloca-o na
posição de consumidor e, portanto, passível de proteção pelo microssistema de defesa do
consumidor, afastando a incidência do direito civil clássico na regulação de eventuais conflitos
que a espécie comportar. Destarte, consumidor é todo sujeito de direito que adquire produto ou
serviço, seja a título oneroso ou gratuito.
Entretanto, o consumidor não se resume apenas à figura do contratante direto com o
fornecedor. O Código de Defesa do Consumidor supera a concepção estrita de consumidor-
contratante e contempla ainda a pessoa física ou jurídica que tão somente utiliza um produto ou
serviço disponibilizado por um determinado fornecedor.
O simples utente de produtos e serviços está amparado pelo microssistema de defesa do
consumidor, como na hipótese de uma pessoa física que utiliza o automóvel de um amigo
(contratante direto com o fornecedor) e sofre um acidente de consumo (fato do produto). Note-se
que não há vínculo contratual entre o utente e o fornecedor; todavia, a proteção legal está
garantida pela previsão da ação utilizar no conceito jurídico de consumidor.
Finalmente, remanesce a análise da locução destinatário final prevista no conceito legal ou
jurídico de consumidor. Cuida-se de tema essencial no estabelecimento do âmbito de aplicação do
próprio Direito do Consumidor aos casos concretos; todavia, se apresentava como o ponto central
das mais intensas controvérsias doutrinárias.
Apesar da divergência acima mencionada, a doutrina é uníssona no sentido de que a locução
destinatário final exclui do conceito legal de consumidor os agentes econômicos que desenvolvem
atividades de produção (sentido amplo do vocábulo), intermediação ou distribuição. Todo aquele
que participa do ciclo econômico, mas que não é o destinatário final de produtos e serviços, não
pode invocar a seu favor as normas protetivas do Direito do Consumidor.
Os diversos agentes econômicos celebram múltiplos contratos entre si, mas cuida-se de relações
jurídicas empresariais e não consumeristas. O empresário que adquire bens como insumo para a
elaboração de seu produto não é o destinatário final na concepção consumerista. O empresário
adquirente é o destinatário fático do insumo, mas, como introduz o objeto da compra na sua
atividade produtiva, dando-lhe finalidade econômica profissional, resta descaracterizada a
destinação final do bem produzido, razão pela qual não se amolda ao conceito legal de
consumidor.
Restando assentada a premissa de que o consumidor é aquele que figura no polo extremo da
cadeia de produção, que não incorpora os produtos ou serviços na produção de outros bens da
vida ou outras prestações de serviço, surgem as teorias finalista e maximalista acercada
interpretação da locução destinatário final, prevista no art. 2.º, caput, do CDC.
Claudia Lima Marques75 ensina que os pioneiros do consumerismo no Brasil filiam-se à teoria
finalista, minimalista ou restritiva do campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Exige-se uma proteção especial do consumidor, baseada em uma interpretação restritiva e aliada
ao princípio da vulnerabilidade do destinatário final de produtos e serviços no mercado de
consumo.
A pessoa física ou jurídica, para ser considerada destinatária final do ciclo produtivo, deve
retirar o produto ou serviço do mercado de consumo e dar-lhe destinação diversa da revenda ou
utilização profissional. Comporta, pois, a locução destinatário final uma análise em suas duas
vertentes, ou seja, o significado de destinatário final fático e destinatário final econômico.
O destinatário final fático é considerado o sujeito da relação jurídica de consumo que
efetivamente retira o produto ou serviço do mercado, encerrando a cadeia de produção, não se
cogitando acerca da sua utilização, seja pessoal, familiar ou profissional. O destinatário final
econômico envolve a ideia de que, além da retirada do produto ou serviço do mercado de
consumo, não haverá utilização dos mesmos para revenda ou com finalidade profissional. Nesse
caso, veda-se nova introdução do produto ou serviço na atividade de produção. Argumenta-se que,
na prática, o preço do produto ou serviço utilizado no ciclo produtivo (intermediário) será
transferido para o preço (final) do produto ou serviço a ser disponibilizado pelo fornecedor ao
consumidor.
Sustenta-se, em reforço à teoria finalista, que a interpretação da locução destinatário final deve
considerar sempre o fim da norma, ou seja, a proteção especial daqueles inferiorizados nas
relações de mercado. A vulnerabilidade é reconhecida ao consumidor que adquire ou utiliza
produto ou serviço para uso pessoal ou familiar. Não permite a ampliação da noção de
vulnerabilidade ao profissional que adquire ou utiliza produto ou serviço dentro da área
específica de sua atividade.
Admite-se, todavia, que, em determinados casos concretos, o Poder Judiciário pode reconhecer
a pequena empresa ou o profissional como sujeito vulnerável da relação jurídica e, interpretando
teleologicamente a regra legal, outorgar a proteção consumerista.
Os adeptos da teoria finalista associam o conceito de consumidor ao princípio da
vulnerabilidade. Não há que se confundir a vulnerabilidade, critério de direito material e noção
ínsita ao conceito de consumidor, com a hipossuficiência, critério de direito processual vinculado
ao campo da prova. A hipossuficiência é uma condição para o exercício do direito básico do
consumidor, previsto no art. 6.º, VIII, do CDC, relacionado como um meio de facilitação de sua
defesa em juízo, que autoriza a inversão do ônus da prova, a critério do juiz. Afirma-se que todo
consumidor é vulnerável, contudo, nem todo consumidor é hipossuficiente.
A inclusão da pessoa jurídica no conceito de consumidor, orientação diversa de alguns países
europeus, acrescenta dificuldade na interpretação da locução destinatário final e também na
delimitação e aplicação do Direito do Consumidor. Parcela da doutrina entende que a pessoa
jurídica é consumidora quando adquire um bem e utiliza-o como insumo na elaboração de outro
produto, a exemplo da montadora de automóveis, que adquire peças diversas e que são utilizadas
na montagem. Toda aquisição de bens, à exceção dos casos exclusivos destinados à revenda, é
considerada como relação de consumo.
Opinião contrária mais restritiva associa o conceito de consumidor à destinação econômica do
bem adquirido. Aproveitando o exemplo da montadora de automóveis, segundo esta corrente mais
restritiva, as peças utilizadas no veículo não serão bens de consumo, mas sim bens de produção.
Sustenta-se que a pessoa jurídica não será consumidora até mesmo quando adquirir bens diversos
daqueles específicos de produção, a exemplo de alimentos e vestuários dos funcionários, pois os
custos destes serão certamente repassados ao consumidor final.
Terceiro ponto de vista, mais coerente com o microssistema de defesa do consumidor, reside na
admissão da pessoa jurídica como consumidora em determinados casos, tais como a aquisição de
produtos e serviços que não componham o fundo do fornecimento, ou seja, os referidos produtos e
serviços não sejam considerados insumos ou a respectiva utilização ocorra fora de sua atividade
específica.76
Não obstante a existência de respeitáveis opiniões em contrário, afirma-se que a pessoa jurídica
de direito público não se enquadra no conceito de consumidor.77 Inegável que o art. 2.º, caput, do
CDC contempla, sem exceção, a pessoa jurídica como consumidora de produtos e serviços.
Entretanto, a pessoa jurídica de direito público, ao contratar produtos ou serviços, está regida
por norma própria – Lei 8.666/1993. Inaplicável o Código de Defesa do Consumidor à pessoa
jurídica de direito público quando adquire ou utiliza produtos e serviços, em razão da
inviabilidade de considerá-la vulnerável no mercado de consumo, uma vez que a superioridade
estatal no ato da contratação é reconhecida pela doutrina, legislação e jurisprudência
administrativas.
Claudia Lima Marques e Eduardo Turkienicz78 afirmam que a teoria finalista foi acolhida pelo
STF por ocasião do julgamento do pedido de homologação de SE 5.847-1. O caso concreto versa
sobre a pretensão da empresa irlandesa Aiglon Dublin Limited, consistente na homologação do
laudo arbitral elaborado pela Liverpool Cotton Association Limited, que condenou a empresa
brasileira Teka – Tecelagem Kuenrich S/A a pagar a importância de US$ 1.893.318,09, referente à
diferença de preço na compra de algodão.
A empresa brasileira contestou a ação e alinhou, dentre outros argumentos, a condição de
consumidora de algodão para tentar afastar cláusulas contratuais limitadoras de direitos do
consumidor, violação do direito de informação e nulidade da cláusula de eleição do juízo arbitral.
Entretanto, o STF, em sessão plenária e à unanimidade, não acolheu os argumentos da empresa
brasileira e homologou o laudo arbitral estrangeiro.
Os autores acima citados fazem a análise do caso concreto e apresentam argumentos
importantes para a delimitação do conceito jurídico de consumidor, especialmente quanto à
interpretação da locução destinatário final, prevista no art. 2.º, caput, do CDC. Sustentam que o STF
afastou a pretensão da empresa brasileira ao considerar que a compra do algodão importado com
fim de produção retira-lhe a condição de consumidora.
Consideram, pois, que no caso concreto acima noticiado houve uma interpretação finalística,
sistemática e teleológica do art. 2.º, caput, do CDC, necessária à elucidação do conceito de
consumidor. Sustentam que a mera interpretação literal é insuficiente, pois a compreensão do
conceito de consumidor exige uma interpretação mais restritiva, não se resumindo à destinação
final fática dos produtos e serviços, mas também à identificação da destinação econômica dos
mesmos, tudo em harmonia com o princípio da vulnerabilidade.
A teoria maximalista propõe uma interpretação mais ampla à locução destinatário final. Os
adeptos desta corrente doutrinária entendem que o Código de Defesa do Consumidor é o novo
regulamento do mercado brasileiro, um código geral para o consumo, que deve abranger o maior
número de casos possíveis. Rejeitam a posição de que a destinação final dos produtos e serviços
deve ser fática e econômica.
Os maximalistas sustentam que o art. 2.º, caput, do CDC não faz distinção entre a destinação
final de produtos e serviços para finalidade pessoal, familiar ou não profissional, sob o argumento
de que onde a lei não faz a distinção, não compete ao intérprete fazê-la. Deste modo, basta a
destinação final fática do produto ou serviço para a configuração jurídica de consumidor, ou seja,
verifica-se tão somente com a retirada do produto ou serviço do mercado.79
A teoria finalista aprofundada é a mais acolhida

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