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Abusos/Copy of v42n3a13.pdf R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 JEANE LESSINGER BORGES & DÉBORA DALBOSCO DELL’AGLIO 528 A R T IC U LO S 1 Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 115, Santana, Porto Alegre, RS, Brasil, CEP 90035-003. E-mail: jelessinger@ig.com.br Abuso Sexual Infantil: Indicadores de Risco e Conseqüências no Desenvolvimento de Crianças Jeane Lessinger Borges1 Débora Dalbosco Dell’Aglio Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil Resumo Este estudo investigou as características do contexto do abuso sexual infantil (ASI) e da revelação, as conseqüências no desenvolvimento das crianças e a presença de indicadores de risco nas famílias. Par- ticiparam 16 meninas vítimas de ASI, entre sete e 13 anos, e suas mães. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e foi aplicada a versão brasileira da Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged-Children (K-SADS). Foi observada a presença de indicadores de risco nas famílias (intergeracionalidade, doença mental dos pais e uso de álcool e drogas) e de uma variedade de sintomas emocionais e comportamentais nas meninas, incluindo o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Conclui-se que o ASI está associado a severas conseqüências no desenvolvimento, necessitando inter- venção psicológica às vítimas e suas famílias. Palavras-chave: Abuso sexual infantil; indicadores de risco; sintomas; TEPT. Child Sexual Abuse: Risk Factors and Consequences on Development of Children Abstract This study investigated characteristics of the context of child sexual abuse (CSA) and context of disclosure, consequences on children’s development, and the presence of family’s risk factors. In this study 16 girls victims of CSA, aged between 7-13 years old, and their mothers were interviewed. Semi-structured interviews were carried out and the Brazilian version of Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged-Children (K-SADS) was used. The presences of family’s risk factors (intergenerationality, parental mental disease, and parental substance abuse) and of wide range of emotional and behavior symptoms in the girls, including the posttraumatic stress disorder (PTSD), were observed. The CSA is associated to severe consequences on development, and psychological interventions with victims and their families are necessary. Keywords: Child sexual abuse; risk factors; symptoms; PTSD. O abuso sexual infantil (ASI) é considerado um evento traumático e pode ser um fator de risco para o desenvolvimento, devido às severas seqüelas emocio- nais, comportamentais, sociais e cognitivas associadas a sua ocorrência (Cicchetti & Toth, 2005; Kendall- Tackett, Williams, & Finkellor, 1993; Paolucci, Genuis, & Violato, 2001). Conforme a World Health Organi- zation (WHO, 2004), o ASI é definido como o envol- vimento de uma criança ou adolescente em atividade sexual inapropriada com um adulto, sendo que a ati- vidade sexual é destinada à gratificação sexual desta outra pessoa. Pode variar desde atos em que não exista contato sexual (voyeurismo, exibicionismo), até dife- rentes atos com contato sexual sem penetração (toques, carícias, masturbação) ou com penetração (vaginal, anal e oral). Estas práticas eróticas e sexuais são impostas à criança ou ao adolescente pela força física, ameaças ou indução de sua vontade (Araújo, 2002; De Antoni & Koller, 2000; Habigzang, Koller, Azevedo, & Macha- do, 2005). No Brasil, o relatório do sistema nacional de com- bate à exploração sexual infanto-juvenil (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência [ABRAPIA], 2003) refere que, no perío- do de janeiro de 2000 a janeiro de 2003, foram reali- zadas 1547 denúncias de abuso sexual. Do total de denúncias realizadas, 54% representavam casos de abu- sos intrafamiliares, sendo que em 42% dos casos o pai era o principal suspeito. Em relação ao perfil das víti- mas, a maioria das denúncias envolveu o sexo femini- no (76%) na faixa etária entre os 12 e 18 anos (47%). No estado do Rio Grande do Sul (RS, Brasil), um estu- do realizado junto à Secretaria da Justiça e da Segu- rança (Pfeiffer & Salvagni, 2006) indicou um total de 1.400 casos de crianças vítimas de violência, no ano de 2002, sendo que em 872 casos se referiam ao ASI (62%). No ano de 2003, foram denunciados 1.763 casos de crianças vítimas de violência, que envolviam 1.166 Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology - 2008, Vol. 42, Num. 3 pp. 528-536 R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 ABUSO SEXUAL INFANTIL: INDICADORES DE RISCO E CONSEQÜÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS 529 A R T IC U LO S casos de ASI (66,14%) (Pfeiffer & Salvagni, 2006). Em outro estudo, sobre a descrição do perfil das vítimas e dos abusadores em 71 expedientes judiciais, de Porto Alegre (RS), Habigzang et al. (2005) apontaram que em 80,9% dos casos as vítimas eram meninas e 19,1% meninos. Em 83% dos casos o perpetrador era um adulto familiar à criança, sendo o pai biológico (57,4%) e o padrasto (37,2%) descritos como as figuras abusivas. De um modo geral, estes dados suportam a evidência de que: (a) o ASI seja considerado um sério problema de saúde pública; (b) ocorre predominantemente no contexto familiar da vítima, caracterizando uma situa- ção incestuosa; (c) meninas tendem a serem mais ví- timas deste tipo de maus-tratos; e (d) explicita um se- gredo familiar, sendo em muitos casos perpetuado ao longo de anos ou de gerações, devido à dificuldade da criança e da família em romper o ciclo de violência. A literatura tem apontado a presença de fatores de risco associada à ocorrência de ASI (Nurcombe, 2000; Putnam, 2003). Prematuridade ao nascimento, baixo nível educacional dos pais, número maior de filhos, pais separados, intergeracionalidade da violência, práticas disciplinares coercitivas, famílias “isoladas”, com uma pobre rede de apoio social e a presença de alcoolismo e abuso de outras drogas têm sido considerados como fatores de risco (Flores & Caminha, 1994; Koller & De Antoni, 2004). Fatores de risco para a família incestu- osa foram descritos no estudo de Habigzang et al. (2005), indicando a presença de padrasto, abuso de ál- cool ou drogas, desemprego, mãe passiva ou ausente, pais desocupados e cuidando dos filhos por longos pe- ríodos de tempo, dificuldades econômicas, violência doméstica e violência física conjugal como de maior prevalência nestes casos. Outro ponto a ser destacado nos casos de ASI refere-se à falta de materialidade do fato, uma vez que na maioria destes casos não são observadas marcas físicas (Araújo, 2002; Pfeiffer & Salvagni, 2006). Nesse sentido, a avaliação das alterações emocionais e comportamentais torna-se um elemento importante à identificação dos casos. Estudos apontam a presença de uma diversidade de sintomas clínicos associados ao ASI, incluindo seqüelas emocionais, comportamen- tais, cognitivas e sociais (Briere & Elliott, 2003; MacMillan et al., 2001; Tyler, 2002). Comportamento sexual inapropriado, baixa auto-estima, sentimentos de desamparo, ódio e medo, relações interpessoais disruptivas, tendências suicidas, isolamento, fugas de casa, dificuldade de confiar no outro e estabelecer relações interpessoais têm sido descritos como as principais conseqüências (Amazarray & Koller, 1998; Kendall-Tackett et al., 1993; Tyler, 2002). Entre as psicopatologias mais associadas à ocorrência de ASI estão os transtornos de humor, transtornos de ansie- dade, transtornos dissociativos, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos alimen- tares e o transtorno de abuso de substâncias (Briere & Elliott, 2003; MacMillan et al., 2001; Putnam, 2003). O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) tem sido citado como o quadro mental mais freqüente em vítimas de ASI, sendo que sua prevalência pode variar entre 20 a 70% dos casos (Ackerman, Newton, McPherson, Jones, & Dykman, 1998; Nurcombe, 2000; Paolucci et al., 2001). O diagnóstico de TEPT é realizado após a pessoa vivenciar, testemunhar ou ter sido confrontada com um ou mais eventos traumáticos (critério A1) e reagir com intenso medo, pavor ou com- portamento de esquiva (critério A2). É caracterizado pela presença de três categorias de sintomas: (a) re- experiência intrusiva (critério B); (b) evitação e entor- pecimento (critério C); e (c) excitabilidade fisiológica aumentada (critério D) (American Psychiatric Association [APA], 2002). Os sintomas devem estar presentes por um período superior a um mês (critério E), após a exposição ao evento traumático, estar inter- ferindo em diferentes áreas do desenvolvimento infan- til e provocar prejuízos no funcionamento cognitivo, emocional, social e acadêmico das crianças (critério F). Nos Estados Unidos, a presença do diagnóstico de TEPT foi de 36,3% entre as crianças abusadas sexual- mente (Ruggiero, McLeer, & Dixon, 2000) e, em outro estudo, no Canadá, foi de 46% numa amostra com me- ninas vítimas de ASI (Collin-Vézina & Hébert, 2005). Estes dados se mostram relevantes quando compara- dos à prevalência da população geral, que varia entre 6% para os homens e 14% para as mulheres (Breslau, 2002). Contudo, ressalta-se que tais estudos incluem crianças vítimas de ASI em um contexto clínico, jus- tificando uma alta prevalência. Destacam-se ainda elevadas taxas de comorbidade entre as vítimas com TEPT, em torno de 80% dos casos (Margis, 2003). Crianças vítimas de ASI com TEPT podem apresentar ainda alta freqüência de outros transtornos de ansieda- de, transtornos de humor, ideação suicida, transtorno psicótico breve e TDAH (Famularo, Fenton, Kinscherff, & Augustyn, 1996). Apesar da alta prevalência de TEPT em vítimas de ASI, este não deve ser considerado uma “síndrome” específica do ASI. Conforme proposto por Kendall-Tackett et al. (1993), no Modelo Multifacetado do Trauma, mais do que um quadro específico, em geral, observa-se a heterogeneidade dos sintomas emo- cionais e comportamentais em crianças vítimas de abuso sexual. Estes autores ainda mencionam que algumas crianças podem ser assintomáticas e que os sintomas podem variar de acordo com o período de desenvol- vimento. Algumas variáveis podem funcionar como media- doras do impacto do ASI ao ajustamento psicológico da criança, como, por exemplo, o tipo de abuso, dura- ção, idade de início, vínculo com o abusador, presença R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 JEANE LESSINGER BORGES & DÉBORA DALBOSCO DELL’AGLIO 530 A R T IC U LO S de ameaça e a exposição a múltiplos eventos estressores (Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999; Nurcombe, 2000). Crianças com maior número de sintomas tinham abusador mais próximo, alta freqüência dos episódios de abuso, longa duração, uso de força, abuso sexual com penetração (Kendall-Tackett et al., 1993). A pre- sença de segredo foi um fator de risco para o desenvol- vimento de Depressão e Ansiedade em crianças víti- mas de ASI (Ackerman et al., 1998), e proximidade com abusador, duração e severidade do ASI foram positivamente correlacionadas com mais sentimentos de culpa (Quas, Goodman, & Jones, 2003). Em contra- partida, variáveis como gênero, nível socioeconômico, tipo de abuso, idade de início, relação afetiva com o abusador e a freqüência do abuso não foram conside- radas mediadoras dos efeitos do ASI (Paolucci et al., 2001). Especificamente, em relação ao desenvolvimento de TEPT, se por um lado, maior freqüência e duração do ASI e idade de início tardia contribuíram para maior severidade do TEPT (Ruggiero et al., 2000), por outro lado, idade de início do abuso e a severidade não foram fatores capazes de predizer o desenvolvimento de TEPT (Ackerman et al., 1998). Desta forma, os dados não são conclusivos sobre a direção das características específicas do abuso na sintomatologia do ASI. Alguns fatores de proteção têm sido associados a uma resposta positiva após a exposição ao ASI. A pre- sença e a qualidade dos fatores de proteção foram res- saltadas como mais importantes para a saúde mental do que a quantidade de fatores de risco (Hanson et al., 2006; Jonzon & Lindblad, 2004). O contexto da reve- lação do abuso parece ser um importante fator para os efeitos psicológicos do ASI (Elliott & Carnes, 2001; Jonzon & Lindblad, 2004), sendo que crianças que receberam suporte materno apresentaram um ajusta- mento psicológico mais adaptativo do que as crianças sem suporte (DiLillo & Damashek, 2003; Pintello & Zuravin, 2001). Reação familiar positiva frente ao abuso, suporte materno, vínculo afetivo com um cuidador não-abusivo e a presença de uma rede de apoio social e afetiva têm sido apontados como fatores de proteção aos efeitos do ASI (De Antoni & Koller, 2000; Lynskey & Fergusson, 1997; Pintello & Zuravin, 2001; Spaccarelli & Kim, 1995). Nesse sentido, a interação de fatores de risco e fatores de proteção, no nível individual, familiar e social, pode aumentar ou minimizar o efeito das conseqüên- cias do ASI, direcionando um melhor ou pior ajusta- mento psicológico (De Antoni & Koller, 2000; Masten & Garmezy, 1985; Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004). A interação destes fatores tem sido considerada como um aspecto central nos processos de resiliência, ou seja, uma adaptação positiva dentro de um contexto de significativa adversidade (Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000). Nessa concepção, “adaptação positiva” refere-se às capacidades individuais (ou do grupo fa- miliar) para enfrentar adversidades, “ser transformado por elas, mas conseguir superá-las” (Pinheiro, 2004, p. 68). Embora o ASI esteja associado a múltiplas conse- qüências ao desenvolvimento infantil, algumas crianças vítimas tendem a apresentar uma maior capacidade de superação e um melhor ajustamento psicológico. Considerando tais aspectos, este estudo investigou as características do contexto do abuso e do contexto da revelação de casos de meninas vítimas de ASI, assim como a presença de sintomas emocionais e com- portamentais, TEPT e comorbidades psiquiátricas nestas meninas. Além disso, foram investigados indi- cadores de risco à ocorrência do ASI presentes nas famílias das participantes. Método Participantes Participaram deste estudo exploratório 16 meninas vítimas de abuso sexual intra e/ou extrafamiliar, com idades de sete anos e oito meses a 13 anos e seis meses (M=9,68; SD=1,58) e suas mães e/ou cuidadores legais. As meninas tinham uma escolaridade média de terceira série do Ensino Fundamental, estudavam em escolas públicas e residiam em Porto Alegre (62,5%) ou municípios da região metropolitana (37,5%), do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A amostra é de conveniência, sendo que as participantes se encontra- vam em atendimento em três serviços públicos especia- lizados a situações de maus-tratos infantis: um serviço interdisciplinar de triagem inicial e de notificação dos casos de abuso sexual; um serviço de atendimento psi- cológico às vítimas de violência (ambos pertencentes a um hospital público); e um centro de pesquisa e de aten- dimento psicológico para casos de abuso sexual num município da região metropolitana de Porto Alegre (RS - Brasil). Este estudo faz parte de um projeto maior de pesquisa, em que foi desenvolvida uma parceria entre o Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil, e os três ser- viços públicos de atendimento à criança vítima de ASI. Foram utilizados como critérios de inclusão: ser vítima de abuso sexual intra ou extrafamiliar; o abuso ter ocorrido há mais de um mês; estar no máximo na segunda sessão de avaliação psicológica e/ou atendi- mento psicoterápico; e contar com a presença de um familiar não-abusador ou cuidador legal, responsável pela participante, que participasse da pesquisa. O tem- po mínimo de um mês após o abuso foi utilizado como critério, tendo em vista que para a avaliação do TEPT é necessário o tempo de um mês após a exposição ao even- to estressor, de acordo com o DSM-IV-TR (APA, 2002). Nenhuma participante estava fazendo uso de medica- ção psicotrópica no período da coleta de dados. R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 ABUSO SEXUAL INFANTIL: INDICADORES DE RISCO E CONSEQÜÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS 531 A R T IC U LO S Instrumentos e Procedimentos de Coleta de Dados Avaliação do ASI. Para este estudo foi adotada a definição de ASI proposta pela WHO (2004), que considera o abuso de forma ampla, incluindo contatos sexuais com e sem penetração. A coleta de dados foi realizada, em todos os casos, num período entre um mês e quatro meses, após a revelação do ASI, totalizando três sessões de coleta de dados, sendo duas sessões de entrevistas com as mães e/ou cuidadores e uma entre- vista com a menina. A entrevista de avaliação do abuso sexual com a criança foi realizada pela equipe técnica dos locais, por psicólogos e assistentes sociais, mediante denúncia policial e/ou no Conselho Tutelar. Após esta avaliação, a equipe e a pesquisadora realizavam discussão dos casos em que o ASI era confirmado, observando se os mesmos se enquadravam nos critérios de composição da amostra. A partir disto, as mães e/ou cuidadores legais das meninas eram encaminhados para um pri- meiro contato com a pesquisadora, quando eram expli- cados os objetivos da pesquisa e, diante da concordân- cia em participar do estudo, um próximo contato era agendado. Na primeira sessão de coleta de dados, com a mãe e/ou cuidador responsável, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foi realizada uma entrevista semi-estruturada, de forma individual, com o objetivo de investigar os indicadores sociodemográficos das participantes (idade, escolari- dade, cidade de origem) e questões referentes à saúde mental (transtornos psiquiátricos e neurológicos, uso de medicações). Além disso, características do ASI (idade do primeiro episódio, tempo de exposição, pre- sença de ameaça, proximidade afetiva com o abusador e encaminhamentos legais sobre o caso) e do contexto da revelação (para quem a criança revelou pela primei- ra vez o abuso, reação da família e presença de suporte familiar após a revelação) foram avaliadas. Ainda foi investigada a presença de indicadores de risco à ocor- rência do ASI (intergeracionalidade do AS, violência doméstica, abuso de substâncias dos pais, transtornos psiquiátricos na família e separação dos pais). Avaliação Clínica. Para avaliação de sintomas comportamentais e emocionais, associados à exposição ao ASI, foi elaborada uma versão adaptada da lista de sintomas proposta por Flores e Caminha (1994). Para cada sintoma, foi solicitado à mãe que respondesse sobre a ocorrência de cada sintoma na menina (na segunda sessão de coleta de dados). Nesta sessão, também foi avaliada a presença de sintomas e/ou do diagnóstico de TEPT, através da versão brasileira da Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged-Children, Kiddie – Sads - K-SADS-PL (Brasil, 2003), que consiste em uma entrevista clínica diagnóstica, baseada nos critérios do DSM-IV, para verificar e registrar episódios psicopatológicos, passa- dos ou correntes em crianças e adolescentes. A versão brasileira da Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia Epidemiological version for School-Age - K-SADS-E (Mercadante et al., 1995), baseada no DSM-III, foi utilizada para a avaliação das comorbidades psiquiátricas. A aplicação destes instru- mentos foi realizada com a mãe e/ou cuidador respon- sável. Com as meninas foram aplicados apenas os cri- térios de TEPT, propostos pelo K-SADS-PL, em uma entrevista individual (na terceira sessão). Questões Éticas. Este estudo foi submetido e apro- vado junto aos Comitês de Ética do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, obtido junto aos pais e/ou responsáveis legais pelas meninas, atendendo à Resolução nº 016/ 2000 do Conselho Federal de Psicologia e a Resolução nº 196 do Conselho Nacional de Saúde. Ainda, foi soli- citada a cada menina a concordância em participar da pesquisa, assegurando-lhe sigilo e confidencialidade dos dados. As participantes foram claramente informadas de que sua participação no estudo era voluntária e poderia ser interrompida em qualquer etapa. Com as meninas, foi explicado que a participação na pesquisa envolveria responder uma entrevista sobre sintomas de ansiedade e uma lista de eventos estressores. Não foi realizada nenhuma entrevista a fim de abordar as características do ASI, diretamente com a criança, buscando evitar dano psicológico diante de um novo relato da menina sobre esta experiência e/ou de revitimilizá-la. Critérios de Análise dos Dados. Os dados foram analisados qualitativamente, através da análise de con- teúdo (Bardin, 1977) das entrevistas semi-estruturadas. As categorias “Contexto do Abuso”, “Contexto da Re- velação” e “Indicadores de Risco” foram construídas a priori, a partir dos dados de literatura (De Antoni & Koller, 2000; Koller & De Antoni, 2004; Kristensen, 1996). A presença de sintomas e o diagnóstico de TEPT foram avaliados a partir da entrevista clínica e do K- SADS, além da lista de sintomas (Flores & Caminha, 1994). No K-SADS, para avaliação do TEPT, foram considerados dois critérios: (a) a presença de diag- nóstico atual do transtorno, sendo que se optou em estabelecer a data do último abuso sexual sofrido como ponto de corte; e (b) presença de TEPT no momento passado, que se refere à etapa anterior ao abuso. Para as comorbidades psiquiátricas também foi avaliado o tempo presente e passado através dos critérios diag- nósticos (K-SADS-E). R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 JEANE LESSINGER BORGES & DÉBORA DALBOSCO DELL’AGLIO 532 A R T IC U LO S Resultados Contexto do Abuso Esta categoria envolve as características da situa- ção abusiva, descrevendo o contexto onde esta ocorreu, os abusadores, o tipo, a idade de início, a duração e a presença de ameaças. Em 87,5% dos casos (n=14), o ASI foi perpetrado por alguma pessoa afetivamente próxima às meninas, sendo que os principais abusadores identificados foram: padrastro (n=4), tio (n=4), avô (n=3), pai (n=2) e primo (n=1). Em um caso, a meni- na foi violentada por um tio paterno e por um vizinho. Dos 16 casos, apenas um se refere a abuso extrafamiliar (um vizinho). A idade de início do ASI variou entre três anos e 13 anos (M=7,16 anos; SD=2,35 anos) e o tempo de dura- ção variou entre episódio único e quatro anos, com tem- po médio de um ano. O tipo de ASI identificado nos casos estudados variou de toques e carícias (n=7) à pe- netração vaginal, anal e oral (n=9). Ressalta-se que em muitos casos houve uma sobreposição destas práticas sexuais, e um agravamento do tipo de abuso ao longo do tempo, isto é, inicialmente com toques e carícias até o abuso com intercurso completo. Foi observada a presença de ameaças em sete casos (43,8%) e do uso de recompensas por parte do abusador (dinheiro, presentes, balas, retirar filme na locadora) em cinco casos (31,3%). De um modo geral, ameaças de morte (à menina, à mãe ou a outro familiar), desqualificação do relato da menina (“se tu contar nin- guém vai acreditar em ti”) e a presença de um contex- to de terror (amordaçar a boca da menina para ela não gritar, deixar uma arma próxima à cama, enquanto abu- sava da menina, ou ainda “eles vão tirar você da tua mãe e levar para um abrigo”) caracterizavam os epi- sódios de abuso, fazendo que o segredo se mantivesse ao longo do tempo. Contexto da Revelação Esta categoria aponta características presentes no momento da revelação do ASI, enfocando as estraté- gias utilizadas pelas meninas, a primeira pessoa a tomar conhecimento do fato e a reação da família (prin- cipalmente da mãe). Diferentes maneiras foram en- contradas pelas meninas para revelarem as situações abusivas, tais como relato oral ou escrito, bem como comportamento de fuga da casa. De um modo geral, as meninas revelaram o abuso a uma figura afetiva, na maioria das vezes a própria mãe e avós. Em nove ca- sos, a mãe foi a primeira pessoa a tomar conhecimento do abuso. Diante deste fato, foram constatados dois tipos de comportamento: a) em 62,5% dos casos (n=10) as mães acreditaram no relato de suas filhas e promo- veram ações protetivas, bem com realizaram denúncia em algum órgão institucional competente (delegacia, conselho tutelar e hospital); e b) 37,5% dos casos (n=6) apresentaram sentimentos de ambivalência e de des- crédito frente ao relato das filhas, não providenciaram suporte de proteção e/ou buscaram preservar o vínculo afetivo com o suposto abusador. Em um caso, a menina revelou o abuso para a avó materna e relatou que “Minha mãe não me ama, ama mais ele do que eu”, diante da atitude da mãe em não acreditar em seu re- lato e permanecer convivendo com o companheiro (abusador). Sintomatologia e TEPT Esta categoria diz respeito à sintomatologia observada no comportamento das meninas deste estu- do. Além disso, refere-se ao diagnóstico de TEPT e demais comorbidades de transtornos psicológicos, avaliados pela entrevista clínica K-SADS-PL. Entre os principais sintomas observados pelas mães e/ou cuidadores estão:) dificuldade de concentração (n=11); b) medos (n=9); c) choro freqüente (n=9); d) pesade- los (n=7); e) comportamento sexualizado (n=7); e f) enurese (n=7). O diagnóstico de TEPT atual foi observado em 10 dos 16 casos investigados (62,5%). A presença de sintomas de TEPT foi encontrada em todas as partici- pantes, apesar de que em seis casos não preencheram os critérios diagnósticos do DSM-IV. Todavia, estas participantes apresentaram elevados sintomas, o que poderia ser descrito como TEPT parcial. Em apenas um caso foi observada a presença de TEPT no momento passado da história de vida da menina, provavelmente relacionada à violência física sofrida e ao testemunho de violência doméstica. A análise da freqüência dos sintomas de TEPT atual, conforme as três categorias do transtorno do DSM-IV (revivência, evitação e hiperexcitabilidade fisiológica), apontou que a excitabilidade fisiológica aumentada (Critério D), particularmente sintomas de insônia, irritabilidade, dificuldade de concentração e hipervigilância, foi mais prevalente neste grupo de meninas (M=3,50; SD=1,83). A média do critério de revivência (Critério B) foi de 2,5 sintomas (SD=1,00) e do critério de evitação e entorpecimento (Critério C) foi de 2,7 sintomas (SD=1,10). Ainda, foi identificada a presença das seguintes comorbida- des psiquiátricas ao TEPT, no momento atual da vida das participantes: Transtorno de Ansiedade de Sepa- ração (n=4), Transtorno de Ansiedade Generalizada (n=5), Depressão Maior (n=4), Distimia (n=3), Fobia Social (n=2) e Transtorno de Déficit de Aten- ção e Hiperatividade (n=1). Dois casos apresentavam Transtorno de Ansiedade de Separação no momento passado. R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 ABUSO SEXUAL INFANTIL: INDICADORES DE RISCO E CONSEQÜÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS 533 A R T IC U LO S Indicadores de Risco na Família Esta categoria envolve a presença de indicadores de risco na família associada à ocorrência do ASI. Em quatro casos foi observada a intergeracionalidade do ASI, pois as mães destas meninas também tinham his- tória de abuso sexual na infância. Em todos os casos, os abusadores das filhas eram os mesmos das mães, sendo todos afetivamente próximos às vítimas. Parti- cularmente, num caso, a mãe e suas duas filhas foram abusadas sexualmente por um mesmo abusador (cunha- do da mãe), cuja idade de início do abuso foi aos sete anos de idade para todas elas e a forma como estes ocor- reram foram muito semelhantes (primeiro toques e ca- rícias e, após determinado tempo, com intercurso se- xual completo). Ressalta-se que, neste caso, na época em que a mãe era criança a família manteve o abuso em segredo e não protegeu a mãe deste abusador. Esta mãe, ao tomar conhecimento do abuso da primeira fi- lha, ficou imobilizada e também não conseguiu tomar nenhuma atitude de proteção, apesar de acreditar no relato da filha. Após, quando a segunda filha relatou a mesma situação, então, esta mãe conseguiu denunciar o abusador e afastá-lo de suas filhas. A história de vida destas mães ainda foi caracteri- zada pela presença de outras formas de violência, incluin-do abuso físico e abandono (n=10), indicando a intergeracionalidade destes tipos de violência. Ainda observou-se a presença de conflitos conjugais (n=5), entre os pais e/ou mãe e companheiro, destas meninas, principalmente devido às constantes agressões físicas e verbais. Pais com algum transtorno psiquiátrico (n=9), principalmente transtornos de humor, de ansiedade e psicose, bem como o uso de álcool e drogas (n=5). A trajetória de vida das meninas foi caracterizada por rupturas de vínculos afetivos, seja pelo rompimento do contato emocional com a figura de cuidado (n=3), pela separação dos pais (n=5) ou pela morte de um dos pais (n=4). Também foi observada a exposição das meni- nas a outros tipos de maus-tratos, incluindo abuso físico, psicológico, negligência e abandono (n=11). Discussão Este estudo apontou as características do contexto e da revelação de casos de meninas vítimas de ASI, bem como sintomas emocionais e comportamentais asso- ciados a sua ocorrência. Além disso, investigou a pre- sença de indicadores de risco na família que podem aumentar a vulnerabilidade da criança ao ASI. Em relação ao contexto do abuso, observou-se que a maioria dos casos de ASI ocorreu dentro da própria família (87,5%), o que pode indicar que este é o princi- pal contexto de ocorrência de ASI, corroborando os re- sultados de outros estudos (Habigzang et al., 2005). A exposição ao ASI intrafamiliar pode ser ainda mais pre- judicial à criança vitimada, pois envolve quebra de con- fiança com as figuras parentais e/ou de cuidado, que, a princípio, deveriam promover segurança, conforto e bem-estar psicológico (De Antoni & Koller, 2002). Foram também observadas a presença de ameaças e a pouca idade das vítimas, nos episódios de ASI ava- liados. De acordo com Araújo (2002), estes fatores tornam mais difícil para a criança conseguir revelar a situação abusiva, pelo medo de ser desacreditada, punida e/ou afastada de casa. Para Kellogg e Menard (2003), medo do abusador, medo de provocar confu- são, de não acreditarem em seu relato, medo dos efei- tos na família e no que pode acontecer ao abusador são as razões mais freqüentes para que as crianças não revelem o abuso. A idade precoce de início do abuso, observada nos casos estudados, pode ter contribuído para uma maior duração do ASI (de até quatro anos). Crianças menores podem ter mais dificuldade em com- preender a situação abusiva em que são introduzidas pelo adulto perpetrador, devido à imaturidade emocio- nal da criança e à presença de atos menos severos e intrusivos (Pfeiffer & Salvagni, 2006). Os abusos mais severos, em geral, ocorrem quando o abusador já con- seguiu envolver a criança dentro de seu jogo de sedu- ção e coação (Araújo, 2002; Habigzang et al., 2005). Os achados deste estudo indicam que a maioria das mães acreditou no relato de suas filhas. Tal resultado corrobora a preposição de que as mães não-abusivas frequentemente acreditam no relato das crianças frente à revelação do ASI (Elliott & Carnes, 2001; Jonzon & Lindblad, 2004). Ressaltando este ponto, Pintello e Zuravin (2001) argumentam que dois componentes são importantes para o suporte materno, após a revelação do ASI: (a) acreditar no relato da criança; e (b) providen- ciar ações de proteção. Estes componentes, apesar de serem complementares, são independentes. Sugere-se que a presença de uma história de vida marcada por um padrão de abandono e negligência, na família de origem da mãe; a falta de suporte familiar após a revelação, o abuso de substâncias da mãe e a dependência finan- ceira dos companheiros abusadores podem ser conside- rados preditores para a falta de suporte materno nas si- tuações de ASI (Elliott & Carnes, 2001; Leifer, Kilbane, & Grossman, 2001). Desta forma, é importante compre- ender que estas variáveis podem influenciar a reação da figura materna, após a revelação do abuso, principal- mente em mães com sentimentos ambivalentes frente ao relato de suas filhas e que apresentam dificuldades em tomar ações protetivas. O suporte materno pode ser um importante fator de proteção no bem estar psicoló- gico das crianças vítimas de ASI (DiLillo & Damashek, 2003; Pintello & Zuravin, 2001). Uma variedade de sintomas clínicos, incluindo medo, choro, comportamento sexualizado e enurese, foi observada nos casos investigados. Estudos anteriores dos efeitos do ASI no desenvolvimento infantil desta- caram a presença destes sintomas como as principais R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 JEANE LESSINGER BORGES & DÉBORA DALBOSCO DELL’AGLIO 534 A R T IC U LO S alterações emocionais e comportamentais de crianças abusadas sexualmente (Kendall-Tackett et al., 1993; Tyler, 2002). Estes dados podem fornecer elementos importantes à avaliação de casos e/ou suspeitas de abu- so, indicando que a presença deste quadro sintoma- tológico pode ser um forte indicativo de ASI. Todavia, a heterogeneidade dos sintomas e as psicopatologias em crianças vítimas de abuso sexual impedem uma visão simplista do tipo causa-efeito (Putnam, 2003). A literatura sobre as conseqüências do ASI direciona seus principais achados ao Modelo Multifacetado do Trauma (Kendall-Tackett et al., 1993), indicando que a variedade de resultados negativos ao desenvolvimen- to seria mais apropriada do que uma síndrome espe- cífica do ASI (Paolucci et al., 2001; Tyler, 2002). Particularmente, uma alta prevalência de TEPT foi encontrada nos casos investigados (62,5%), com um predomínio maior dos sintomas do critério D. Este resultado suporta a evidência de que o TEPT pode ser descrito como a psicopatologia mais freqüentemente associada aos casos de ASI (Ackerman et al., 1998; Kendall-Tackett et al., 1993; Ruggiero et al., 2000). Pode-se então sugerir que os sintomas do critério D são um componente central do TEPT, uma vez que estes podem estar associados à avaliação cognitiva constan- te de perigo, fazendo com que a vítima mantenha-se em alerta aos estímulos do ambiente. Apesar disso, não está claro se maior excitabilidade fisiológica é uma evidência de TEPT ou se faz parte de outros quadros psicopatológicos (Kendall-Tackett et al., 1993), uma vez que diferentes queixas psicossomáticas são fre- qüentes em crianças que apresentam Transtornos de Ansiedade e de Humor. Desta forma, estudos indicam a necessidade de uma maior discussão sobre a sobre- posição de sintomas de TEPT, como, por exemplo, do critério D em outros transtornos, o que poderia preju- dicar a validade descritiva do quadro (Breslau, 2002; Câmara Filho & Sougey, 2001). Alta comorbidade do TEPT foi encontrada nos ca- sos investigados, sendo associada a outros transtornos de ansiedade, transtornos de humor e TDAH, corrobo- rando a literatura do TEPT (Ackerman et al., 1998; Famularo et al., 1996). Estudos ainda indicam uma prevalência maior de transtornos internalizantes (an- siedade e depressão) em meninas e mulheres vítimas de ASI (Briere & Elliott, 2003; MacMillan et al., 2001), o que poderia estar associado à atribuição interna de culpa e vergonha (Banyard, Williams, & Siegel, 2004). Nesse sentido, pode-se compreender que o TEPT é um fator de risco para diferentes psicopatologias, e a pre- sença de comorbidades pode cronificar um resultado negativo ao desenvolvimento. Indicadores de risco na família, incluindo intergera- cionalidade do ASI, conflitos conjugais, doença mental em um dos pais e uso de álcool e drogas, foram apontados neste estudo. Famílias incestuosas são caracterizadas pela presença de estilo parental negligente, história de doença mental, abuso de substâncias, intergeraciona- lidade e multidirecionalidade da violência doméstica (Dixon, Hamilton-Giachritsis, & Browne, 2005; Hanson et al., 2006; Koller & De Antoni, 2004). Estudo de revi- são sobre os indicadores de risco apontou, entre outros aspectos, que (a) a reprodução das experiências de violência na infância; e (b) a presença de conflitos fa- miliares e uso de álcool como importantes variáveis explicativas para a ocorrência de maus tratos infantis (Gomes, Deslandes, Veiga, Bhering, & Santos, 2002). Ressalta-se a importância de analisar os fatores de risco intrafamiliares dentro de uma perspectiva mais compreensiva, a qual inclua os demais contextos de desenvolvimento humano, nos casos de trauma na in- fância (Zavaschi et al., 2006). A interação de fatores de risco e de proteção pode contribuir para uma maior vulnerabilidade individual, familiar e social ou para um processo de resiliência, mesmo diante de um con- texto de adversidades (Koller & De Antoni, 2004). Nesse sentido, a falta de fatores de proteção poderia ser mais importante para a ocorrência de ASI, em famílias violentas, do que a presença de fatores de risco (Hanson et al., 2006). A quebra de vínculos afetivos na infância, observa- da nos casos investigados, pode ter contribuído para a ocorrência do ASI. Em decorrência destas rupturas, as meninas foram expostas a um risco maior para a ocor- rência do ASI, seja pela entrada de um novo compa- nheiro da mãe (com comportamento violento) no ambiente familiar, por ficarem mais horas sob os cui- dados do pai ou ainda por serem cuidadas por outros familiares e/ou por uma família substituta, que não as protegeram. De acordo com Cicchetti e Toth (2005), crian- ças vítimas de ASI podem apresentar dificuldade na regulação do afeto e no estabelecimento de relações de apego seguro. Nesse sentido, estas crianças tendem a desenvolver apego ansioso e evitativo, devido à inte- ração afetiva ambivalente estabelecida com seus cui- dadores (Alexander et al., 1998). Este modelo interno de funcionamento pode estar presente nas relações interpessoais estabelecidas na adolescência e na vida adulta, o que pode contribuir para a revitimização ou ainda para a intergeracionalidade do ciclo de violência intrafamiliar (Banyard et al., 2004; DiLillo & Damashek, 2003). Em contrapartida, a presença de apego seguro pode ser caracterizada como um fator de proteção, forta- lecendo uma adaptação mais positiva (Heller et al., 1999). Considerações Finais Os resultados deste estudo indicam que o ASI é um fator de risco para uma variedade de seqüelas emocio- nais e comportamentais. Dificuldade de concentração, medos, choro freqüente, pesadelos, comportamento sexualizado e enurese podem ser considerados sinto- R. Interam. Psicol. 42(3), 2008 ABUSO SEXUAL INFANTIL: INDICADORES DE RISCO E CONSEQÜÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS 535 A R T IC U LO S mas de ASI e, nesse sentido, ser investigados na perí- cia psíquica destes casos. Uma alta prevalência de TEPT foi encontrada nesta amostra, suportando a evidência de que este é o transtorno mental mais comumente en- contrado em vítimas de ASI. Ressalta-se, contudo, que algumas crianças não desenvolvem psicopatologias. Na mediação do impacto do ASI, variáveis da criança, do contexto familiar e social podem se constituir como fato- res de proteção e, desta forma, podem mitigar os efeitos negativos da violência, possibilitando uma adaptação mais positiva. Sobretudo, destaca-se a importância da participação das mães no processo terapêutico, tendo em vista as repercussões do suporte materno no bem estar psicológico da criança. Algumas limitações metodológicas podem ser des- tacadas no presente estudo. O número pequeno de par- ticipantes, a escolha da amostra por conveniência e a característica de ser um estudo transversal não possibi- litam uma maior discussão e generalização dos resul- tados. Os resultados podem estar enviesados devido ao tamanho pequeno e a heterogeneidade da amostra, uma vez que foi observada uma grande variação no que se refere à presença de sintomas de TEPT, idade de início e duração do ASI. Nesse sentido, novos estudos com um número maior de participantes, com amostra rando- mizada e acompanhamento longitudinal dos sintomas e quadros psicopatológicos podem fornecer conhecimen- to específico da evolução e/ou remissão dos sintomas. Destaca-se ainda que os sintomas observados nestas meninas foram avaliados através de informações da mãe e/ou cuidador responsável. Pine e Cohen (2002) ressal- tam que uma maior valorização dos sintomas e conse- qüências pode ser observada pelos pais devido a seu próprio sofrimento psíquico e, portanto, as respostas dadas por estes podem estar enviesadas. Finalmente, pesquisas com meninos vítimas de ASI também podem contribuir para uma maior discussão sobre a variável gênero nestes casos, uma vez que diferenças e similari- dades têm sido citadas na literatura sobre as caracterís- ticas do abuso e de suas seqüelas (Banyard et al., 2004). Os indicadores de risco à ocorrência do ASI, aqui identificados, devem ser compreendidos dentro de uma perspectiva dinâmica e complexa, sem uma visão reducionista. No entanto, a identificação destes indica- dores pode direcionar trabalhos de intervenção junto a esta população. Sugere-se, ainda, o fortalecimento de fatores de proteção, tais como, os vínculos afetivos com um cuidador não abusador e a ampliação da rede de apoio social destas famílias, que possam atuar como mediadores do impacto da situação de abuso vivenciada. O fornecimento de suporte psíquico nestes casos pode contribuir para diminuir os efeitos psicossociais que a violência sexual produz nas crianças, nos adolescentes e nas famílias. Nesse sentido, esses serviços de saúde podem funcionar como uma rede de apoio social a es- sas famílias, que muitas vezes encontram-se fragili- zadas, sendo que o foco do atendimento psicológico não deve ser apenas a criança, mas também sua família. Referências Ackerman, P. T., Newton, J. E. O., McPherson, W. B., Jones, J. G., & Dykman, R. A. (1998). Prevalence of post traumatic stress disorder and other psychiatric diagnoses in three groups of abused children (sexual, physical, and both). Child Abuse & Neglect, 22(8), 759-774. Alexander, P. C., Anderson, C. L., Brand, B., Schaeffer, C. M., Grelling, B. Z., & Kretz, L. (1998). Adult attachment and longterm effects in survivors of incest. Child Abuse & Neglect, 22(1), 45-61. Amazarray, M. R., & Koller, S. H. (1998). Alguns aspectos observados no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica, 11(3), 559-578. American Psychiatric Association. (2002). 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Abusos/Copy of v9n1a16.pdf ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 196 ARTIGOS Analisando e (des)construindo conceitos: pensando as falsas denúncias de abuso sexual Analyzing and (de)constructing concepts: thinking about the false allegations of sexual abuse Marcia Ferreira Amendola Doutoranda em Psicologia Social do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-PPGPS/UERJ – Rio de Janeiro, Brasil Resumo O objetivo deste artigo é analisar os vários conceitos de violência sexual contra a criança a fim de se discutir as falsas denúncias de abuso sexual envolvendo pais e filhos no contexto da separação conjugal. A proposta visa levar o leitor a explorar e questionar paradigmas e a realizar uma reflexão crítica acerca da prática da avaliação psicológica em casos de denúncia de abuso sexual contra crianças, desafiando-os para uma mudança de postura profissional diante de temas de grande complexidade. Palavras-chave : Abuso sexual contra a criança, Falsa denúncia de abuso sexual, Avaliação psicológica. Abstract The objective of this article is to analyze some concepts of child sexual abuse in order to discuss the false allegations of child sexual abuse in the context of the conjugal separation. The proposal intends to take the reader to explore and to question paradigms and to carry through a critical reflection concerning the practical of the psychological evaluation in cases of child sexual abuse allegations, defeating them for a change of professional position before subjects of great complexity. Keywords : Child sexual abuse, False allegations of sexual abuse, Psychological evaluation. Introdução Pela indiscutível seriedade da matéria, a violência sexual contra crianças tem sido tema intensamente debatido por profissionais de saúde e pesquisadores da área e afins, no que se refere à identificação, ao tratamento e à prevenção dos mecanismos de ação e efeitos da violência na criança. Não obstante existam primorosos trabalhos e estudos sobre o assunto em nosso país, estes não exploram, suficientemente, a perspectiva das falsas denúncias de abuso sexual. ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 197 A partir de um levantamento bibliográfico relativo às duas últimas décadas, foi possível verificar que a literatura internacional é extensa e sustenta que as falsas alegações de abuso sexual de pais contra filhos surgem durante a separação (e/ou divórcio), com ou sem disputa judicial pela guarda dos filhos, e são feitas, essencialmente, pelas mães guardiãs, visando ao afastamento do ex-companheiro da vida dos filhos. Nesse sentido, alguns pais, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil, vem se mobilizando, por meio de inúmeras Organizações Não-Governamentais (ONG’s) e associações de pais, a fim de protestar contra a obstrução do convívio entre pais e filhos, assim como alertar para a problemática das falsas alegações de abuso sexual promovidas por suas ex-mulheres, envolvendo os filhos em comum. Considerando a possibilidade de existirem falsas denúncias de abuso sexual no contexto da separação conjugal e de a Psicologia haver tomado para si o estudo sobre o fenômeno da violência contra a criança, sendo responsável pela práxis da avaliação psicológica nesses casos, foi desenvolvida uma pesquisa de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa visou compreender como os psicólogos, que atuam em instituições de referência na avaliação de casos de suspeita de abuso sexual contra criança, desempenham suas atividades. Analisando e (Des) Construindo Conceitos A violência sexual contra criança, também designada: abuso sexual, agressão sexual, vitimização sexual, maus-tratos, sevícia sexual, crime sexual e outros tantos termos utilizados, indiscriminadamente, na literatura como sinônimos, reflete, não apenas uma questão de terminologia, mas, principalmente, uma questão epistemológica, segundo a qual, a complexidade e a diversidade das manifestações da violência, associada à falta de clareza de conceituação, permitem que o fenômeno da violência sexual seja tratado conforme opiniões e ideologias individuais e/ou compartilhadas pela cultura na qual o indivíduo está inserido. Partindo da origem etimológica de abuso, Faleiros e Campos (2000) concluíram pela definição de abuso sexual como uma situação de transposição de limites, da lei, do poder, de papéis, regras e tabus sociais e familiares, considerando, ainda, que as situações de abuso infringem maus-tratos às vítimas. Na opinião das autoras, para conceituar abuso sexual contra crianças é preciso compreender a natureza do processo que irá conferir um caráter sexual à violência, salientando que esta: (a) adultera as relações socioafetivas e ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 198 culturais entre adultos e crianças, transformando-as em relações genitalizadas, erotizadas; (b) inverte a natureza dessas relações definidas socialmente, tornando-as não-protetoras; (c) gera confusão com relação à representação social dos papéis dos adultos (de pai, mãe, irmão/ã, avô/ó, tio/a, professor/a, etc.), implicando em perda de legitimidade de seus papéis e funções sociais; (d) confunde os limites intergeracionais. As autoras admitem, no entanto, que não há um conceito único e preciso para se aplicar ao abuso sexual, de modo que estudiosos da temática assentem que o atual conhecimento acerca da violência sexual ainda está em processo de elaboração devido à sua complexidade e controvérsia (Assis, 1994; Minayo, 1999; Gonçalves, 2003; Ribeiro, Ferriani & Reis, 2004). Nesse contexto, Gonçalves (2003) alerta que é preciso cuidado ao se analisar todo e qualquer comportamento que, hipoteticamente, possa ser considerado violento, pois, tanto a expansão do conceito de violência sexual quanto a sua contração serão percebidos a partir do valor moral que os compõem. Isso permite questionar se um beijo dado na boca de uma criança por sua mãe seria um comportamento desviante, patológico, um abuso ou uma demonstração de amor. Válido também o é aplicar este questionamento ao beijo dado pelo pai. A psicóloga Faiman, em entrevista à “Revista Crescer - em família” (jul/2004), ressaltou que o fato de fixarmos determinados comportamentos para definir abuso sexual poderia levar o profissional a cometer erros de interpretação. Destacou ser imprescindível levar em conta o contexto, os hábitos familiares, pois são os fatores que irão conferir sentido às ações, incluindo a nudez, que pode ter conotações, absolutamente, distintas, dependendo da família. Desta forma, se o comportamento dirigido a uma criança estiver dissociado do contexto cultural, existe o risco deste ser interpretado como um desvio, uma doença e/ou um fracasso de adequação às regras sociais. Portanto, a violência sexual não deve ser entendida como ato isolado, “psicologizado pelo descontrole, pela doença, pela patologia, mas como um desencadear de relações que envolvem a cultura, o imaginário, as normas, o processo civilizatório de um povo” (Faleiros, 1998, p. 267). Essa concepção, também compartilhada por outros autores, compreende a violência sexual como um fenômeno de natureza sociohistórica e cultural, isto é, influenciado de maneira intensa pela cultura e pelo tempo histórico em que ocorre, devendo ser analisado no contexto em que está inserido (Finkelhor, 1979; Garbarino; Gilliam, 1981; Haugaard; Repucci, 1988; Flores, 1998; Junqueira, 1998; Gonçalves, 1999, 2003; Faleiros; Campos, 2000; Sanderson, 2005). ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 199 Haugaard e Repucci (1988), ao colocarem em discussão essas considerações, afirmaram que há um grande número de atos, vagamente definidos, que vêm sendo utilizados para conceituar abuso sexual. Problema também apontado por Sanderson (2005) que declarou ser muito amplo o espectro de atos sexuais empregados para caracterizar uma ocorrência de abuso sexual contra a criança, pois inclui comportamentos de contato tanto quanto de não-contato. Fato que afeta a caracterização de abuso sexual, refletindo, diretamente, nas estatísticas que analisam a extensão ou incidência do problema, dada a variabilidade das informações. Constata-se, portanto, que existe uma enormidade de fatores ou atributos para definir abuso sexual, de forma que pesquisadores e profissionais tendem a adotar critérios e definições compatíveis com suas afinidades teóricas a fim de nortear seus trabalhos. Por sua vez, a dificuldade não se restringe à conceituação, mas, principalmente, à identificação da ocorrência de violência sexual na criança. Considerando que, não raro, o abuso sexual ocorre em tenra idade, a criança tenderia a não reconhecer a situação como abusiva, critério a ser atribuído pelos demais familiares e profissionais de saúde. Nesse sentido, a revelação do abuso sexual se configura em um mecanismo bastante complexo para a criança abusada, pois esta pode vir a apresentar uma ambiguidade emocional em relação ao adulto abusador, visto como mais atencioso do que qualquer outra pessoa (Miller, 2002). Alguns autores entendem que as crianças, na tentativa de anular as experiências abusivas, entrariam em estado alterado de consciência (dissociação), decorrendo uma série de comprometimentos psicológicos e comportamentais (FARINATTI; BIAZUS; LEITE, 1993; Caminha, 2000; Furniss, 2002; Habigzang; Caminha, 2004). Contudo, nem sempre é possível identificar as consequências de um abuso sexual na criança – o que torna o processo de diagnóstico dificultoso e sujeito a erros de interpretação pelos profissionais. Diante desse desafio, estudos têm sido desenvolvidos, tanto pelas ciências médicas quanto pelas psicológicas, com a finalidade de determinar quais os possíveis comprometimentos psicológicos e comportamentais advindos da exposição de crianças ao abuso sexual. Porém, antes de se caracterizar a sintomatologia do abuso sexual na criança é preciso aludir aos fatores que influenciam na formação do dano psicológico causado por essa experiência (AMAZARRAY; KOLLER, 1998). Nesse sentido, Rouyer (1997), Koller (2000) e Sanderson (2005) destacam o contexto no qual o abuso sexual teria ocorrido como um dos principais fatores a ser considerado. Na opinião de Sanderson (2005, p. 202), é fundamental que o profissional contextualize a situação, conhecendo a criança, sua família e seu mundo social, assim como sinais e sintomas observados na criança a fim de evitar julgamentos precipitados da ocorrência do ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 200 abuso, “uma vez que um diagnóstico errado ou prematuro pode causar trauma desnecessário tanto na criança quanto na família”. Logo, De Young (1986), Haugaard e Repucci (1988), Gardner (1991), Green (1993), Ceci e Bruck (2002) e Sanderson (2005) ressaltaram o cuidado que se deve ter ao utilizar as informações disponíveis sobre as consequências do abuso sexual contra a criança, pois são fruto de uma ampla variedade de causas e contextos, nem todos relacionados com a ocorrência de abuso sexual. Os autores concluem que não há padrão de comportamento e sintomas específicos que ocorram em todas ou quase todas as crianças abusadas, tampouco existem indicadores que, seguramente, revelem a ausência de abuso sexual em crianças, sendo inviável e imprudente a generalização dos mesmos. Isso ocorre porque os indicadores comportamentais e de personalidade, raramente, diferenciam quando são decorrentes de traumas ocasionados pelo abuso sexual de quando são produzidos por diferentes tensores na vida de uma criança, ou mesmo de comportamentos esperados para crianças de determinadas faixas etárias. Desta forma, identificar comportamentos sexuais em crianças em idade pré-escolar, como: masturbação, exibicionismo ou ferimentos nos genitais, não implica, necessariamente, a ocorrência de abuso sexual; tampouco a manifestação de sintomas ligados à depressão, como: tristeza, insônia, apatia e retraimento social. De acordo com Wallerstein e Kelly (1998), há muitos casos de filhos de pais separados que apresentam reações físicas ou as têm exacerbadas com a proximidade do horário de visita, ansiosas por rever o genitor não-guardião. Manifestações estas que tendem a desaparecer por ocasião da interação entre ambos. Outras, por sua vez, reagem com hostilidade, recusando-se a ir com o genitor, reflexo da acirrada rivalidade e/ou agressividade presente na relação entre os pais, que, não raro, disputam a atenção da criança com sedução ou ameaças. Entretanto, tais reações tendem a ser, equivocadamente, interpretadas como sintomas de medo, decorrente de uma suposta ocorrência de abuso sexual. Dessa forma, é possível deduzir que a sintomatologia apresentada pelas crianças deve ser observada em concomitância a um repertório de fatores, tais como o contexto social e familiar em que vivem. Problematizando o Tema da (Falsa) Denúncia de Abuso Sexual Contra a Criança O Depoimento ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 201 Diante das dificuldades para estabelecer a materialidade baseada em evidências físicas ou comportamentais, nos casos em que se alega a ocorrência de abuso sexual contra a criança, o depoimento desta última tem adquirido status de matéria probatória na processualística civil e penal, a despeito das reservas impostas por fatores pertinentes à condição especial de pessoa em desenvolvimento. Desta forma, a palavra da criança, se harmônica com as demais provas dos autos, vem sendo amparada pela jurisprudência, a partir da compreensão de que os crimes contra os costumes, normalmente, ocorrem na clandestinidade, sem testemunhas. Tal fato tem possibilitado a articulação entre a Psicologia e o Direito, no qual o profissional psicólogo, ao procurar atender à demanda do poder judiciário pela produção da verdade a respeito de um fato ou fenômeno (Miranda Jr., 1998), vem operando na busca pela revelação do abuso sexual. O termo revelação, portanto, ganhou aspectos de intervenção – realizada por profissionais de Psicologia e de Serviço Social no trato com crianças, supostamente, vítimas de abuso sexual – a qual denominou-se Entrevista de Revelação ou Estudo de Revelação. De acordo com os autores estudados, essa técnica tem por objetivo criar um ambiente facilitador que permita à criança revelar o abuso sexual a partir da produção discursiva, lúdica e gráfica, sem desenvolver sentimentos de culpa ou vergonha. Furniss (2002, p.177), ao descrever essa técnica de revelação, demonstra certa tendenciosidade no trato de questões relativas à prática profissional em casos de suspeita de abuso sexual, pois o autor orienta os profissionais a iniciar a entrevista com a “permissão terapêutica explícita para revelar”. Isso significa que o propósito do psicólogo durante a entrevista é, necessariamente, fazer com que a criança relate o abuso sexual, presumidamente, sofrido. Segundo Furniss (2002, p. 177), é preciso enviar, de maneiras variadas e repetidas, a mensagem: “Eu sei que você sabe que eu sei”. Ao final de todas as considerações, se a criança ainda não estiver motivada a revelar, o autor argumenta que ela possa estar assustada demais, provavelmente, por ameaças do abusador ou possa estar resistente. Apesar de declarar que é preciso estar atento para o fato do abuso sexual não haver ocorrido, Furniss (2002) insiste que o profissional não deve aceitar quando a criança nega a ocorrência do abuso, considerando que a negação seja consequência das ansiedades e medos desta em revelar. Seguindo essa lógica, a autora sustenta que, mesmo quando o silêncio da criança persiste, o profissional deve se antecipar e presumir a alegação de abuso sexual como verdadeira. Na análise do autor, o ato de insistir para que a criança revele o abuso sexual se justificaria, pois estaria baseado na crença de que as crianças que negam a ocorrência do abuso sexual podem estar mentindo. Contudo, o autor admite que a criança possa mentir ao ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 202 revelar um abuso sexual, acusando, falsamente, um membro da família. Trata-se, seguindo essa lógica, de uma situação em que, apesar da não ocorrência do abuso, o adulto responsável por seu atendimento não outorga legitimidade às palavras da criança, apenas quando estas palavras correspondem à confirmação do suposto abuso – essencial para o sucesso da entrevista de revelação. Posicionamentos contrários ao de Furniss (2002) foram levantados por Bruck, Ceci e Shuman (2005), a partir de resultados obtidos de uma série de pesquisas por eles analisadas. Os autores declararam que, se a revelação da criança transcorrer na forma de pequenos fragmentos promovidos por entrevistas diretivas ou jogos de representação, nos moldes que Furniss (2002) sugere, os autores acreditam que esta possa se dar como resultado de um processo de sugestão, portanto suscetível a distorções. Tal conclusão também foi sustentada por Schacter (2003), pesquisador que analisa possíveis causas, consequências e imperfeições da memória. Para o autor, as respostas de crianças a perguntas específicas – em que, não raramente, recebem elogios pelos entrevistadores quando a informação desejada é apresentada e desapontamento e reprovação quando as crianças não respondem de acordo com o esperado – não podem ser interpretadas como recordação de uma situação de abuso sexual. Diante desse processo, a criança poderia ser conduzida pelas expectativas e crenças do profissional entrevistador. Ainda, de acordo com essas pesquisas, a produção da verdade, pelo testemunho da criança, pode estar associada, diretamente, a vários tipos de pressões sociais, no qual se admite que a criança possa mentir para proteger ou agradar uma pessoa da qual depende afetivamente. Sendo assim, nas circunstâncias de separação conjugal, é possível supor que a criança pode se manter fiel às alegações da mãe guardiã que acusa o ex-companheiro, ao invés de apenas negar o abuso para proteger o seu suposto agressor. Ambas as alternativas são viáveis, se forem consideradas as explicações dos autores, dependendo apenas de quem a criança protege ou quer agradar, ou seja, de quem a criança irá estabelecer vínculos de lealdade. Para Chauí (2000, p.435), os vínculos de lealdade podem ser forçados por coação externa. “[...] poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas”. Outro ponto de vista seria pensar que a criança também pode mentir na intenção de corresponder com o que percebe ser do agrado do adulto. Assim, a criança poderia acrescentar comentários, tanto para atrair a atenção do profissional que a entrevista quanto para agradá- ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 203 lo. Com efeito, não é de se surpreender que as crianças, após prolongadas entrevistas sugestivas sobre experiências sexuais, comecem a perceber que a discussão sobre esses temas seja, não apenas aceitável, mas, realmente, desejável (Ceci; Buck; Rosenthal, 1995). Cárdenas (2000), De Young (1986) e Gardner (1991) lembram que, mesmo não havendo intencionalidade no relato da criança, seja porque ela reproduz o que um adulto de sua confiança tenha lhe instruído a dizer ou a acreditar, seja porque o adulto esteja convencido de que a criança foi abusada, o paradigma criança nunca mente deve ser, necessariamente, analisado. De acordo com Piaget (1994), é na fase da infância (até os sete anos de idade) que ocorre o desenvolvimento moral na criança nas suas relações com o adulto, no qual as regras estabelecidas, de modo determinado e imposto, advém de uma ordem exterior, portanto, de seus pais, educadores e demais adultos de sua confiança. Este estágio, denominado heterônomo (oposto a autônomo), faz com que a criança conceba a regra como algo correto, que deve ser seguido e obedecido, do contrário, haverá uma punição. Logo, admite-se que, na aprendizagem social (aquisição gradual de valores, linguagem, costumes e padrões culturais e sociais), ao estar subordinada à autoridade parental, a criança assimila os valores morais dos pais em seu processo de desenvolvimento. Desta forma, a relação adulto- criança está pautada na coação, mas também no egocentrismo, no qual a criança procura imitar o que os adultos fazem, sem apresentar consciência da atividade como algo social, em função de sua capacidade cognitiva estar em desenvolvimento. Assim, a criança, não dispondo de recursos cognitivos para perceber e coordenar os diferentes pontos de vista, pratica a regra por meio da imitação ou da repetição. De acordo com Maluf, em reportagem à “Revista Escola” (2004), a criança (até 06 anos de idade), do ponto de vista cognitivo, não possui desenvolvimento capaz de diferenciar um engano intencional (mentira) de seus jogos de faz-de-conta (fantasia), ou se o que lhe transmitem é verdade ou mentira do ponto de vista factual. Para a psicopedagoga, a criança, até essa idade, não tem um compromisso com a realidade. Se a criança, nessa fase do desenvolvimento, em que os valores morais são assimilados, aprende que, para evitar a punição, deve estar atenta para os interesses dos adultos, não os contrariando ou desobedecendo, tal comportamento tende a causar um constrangimento na criança, fazendo-a, em certos momentos, ocultar a realidade, como apresentado na fala de duas crianças atendidas pela equipe de residentes de Psicologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto - HUPE/UERJ. ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 204 [1] Minha mãe falou que meu pai é mau, que faz maldade (...) ela disse que vai bater na minha cara se eu falar que gosto dele e da vovó (Criança A., sexo feminino, 4 anos, apud Amendola, 2004, p.157). [2] Olha só: eu estava lá com meu pai, ele me deu banho e botou esse dedo, não... esse... agora não sei qual dedo minha mãe falou; foi esse dedo na minha perereca, porque ele é um monstro, não merece a princesinha. Pronto, tia, agora a gente pode brincar? (Criança E., sexo feminino, 4 anos, apud Nogueira e Sá, 2004, p.92). Neste caso, Nogueira e Sá (2004) alertam que a coação e o constrangimento psíquico impostos pela genitora que faz uma falsa denúncia de abuso sexual constituem uma prática de violência psicológica ou emocional, cuja intenção é vencer a resistência da criança e levá-la a aceitar o abuso sexual, contribuindo para a distorção da realidade e consequente perda de diretrizes do que é certo ou errado. Com efeito, a criança perderia sua capacidade de aprender a dizer não (de contrariar o adulto) e de ser coerente com o que pensa e sente, a fim de evitar a punição ou de sofrer com a ameaça de abandono físico e emocional da mãe, passando a reproduzir o discurso e pensamento desta. Nas palavras de Nogueira (2002, p.99): [...] a realidade psíquica da criança estava completamente emaranhada com a da mãe, onde a fala da criança tinha de corresponder à verdade da fala do adulto, abrindo mão da própria verdade de sua fala para corresponder às exigências maternas. Nesse sentido, Gardner (1991) é contumaz ao afirmar que os profissionais, que buscam na palavra da criança a verdade factual para a comprovação de um abuso sexual, negligenciam o fato de que os filhos são influenciados pelos genitores, especialmente, pelo genitor guardião (mãe) quem, geralmente, é o responsável pela acusação e intenção de afastamento de pais e filhos. O autor explica que, no caso de haver litígio, o genitor guardião seria capaz de programar os filhos para acreditar em uma história de maus-tratos e violência. Critica, ainda, o processo utilizado por esses profissionais na avaliação de crianças menores de 5 anos quanto ao entendimento sobre os conceitos de verdade e mentira, dada a falta de respaldo científico e metodológico. Não obstante às considerações, ao discutir a palavra da criança na qualidade de testemunho do seu próprio abuso sexual, Thouvenin (1997, p. 98) ressaltou que é o especialista quem transforma esta palavra em um discurso educativo, médico, psicológico ou judiciário. A autora acrescentou que “o modo de colher o testemunho da criança não é óbvio, nem a escolha do modo de intervenção que se seguirá”. Desta forma, a transformação da palavra da criança pela interpretação dos profissionais de Psicologia fundamenta-se no princípio, cada vez mais difundido pelos psicólogos, de que são ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 196-215, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a16.pdf 205 capacitados para traduzir, decodificar, preencher as lacunas e os não- ditos de crianças supostamente abusadas. Assim, a palavra da criança, transformada e modulada pela interpretação do adulto que lhe dá assistência, não raro, tende a expressar as impressões pessoais desse adulto, que não hesita em condenar o autor do suposto abuso (Thouvenin, 1997). Além da interpretação, Schacter (2003) afirmou que os profissionais também costumam elogiar e a dar prêmios às crianças quando estas lhes fornecem a informação esperada ou considerada certa e manifestam desapontamento e reprovação quando as crianças não lhes correspondem às expectativas. Por sua vez, nas circunstâncias em que as perguntas não são respondidas pelas crianças, os profissionais tendem a repeti-las, incentivando-as a especular sobre o que poderia ter ocorrido. Nessas condições, estudiosos afirmam que as crianças podem ser manipuladas por seus entrevistadores a partir do uso de técnicas para revelação do suposto abuso sexual, como: fantoches, bonecos e desenhos – que, por sua vez, não possuem respaldo científico para validar diagnósticos de abuso sexual contra a criança (Lowry, 1994; Wakefield; Underwager, 1995; Campbell, 1998; Ceci; Hembrooke, 1998; Coleman; Clancy, 1999; Schacter, 2003; Ceci; Bruck, 2002). A partir desse entendimento, fica evidente que a entrevista para revelação do abuso sexual é alvo de críticas quanto à sua cientificidade e aplicabilidade, configurando-se em um tema controverso, com propensão para suscitar uma diversidade de opiniões a seu respeito. Dos autores citados, verifica-se que a preocupação se concentra na natureza indutiva desse processo, de modo que é possível concluir que não existe um grau de credibilidade absoluta para o testemunho da criança, geralmente, atravessado pelo discurso e
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