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Carlos Benedito Martins , OQUE E 3qu ;IQLOGIA p 10960 1 •• •••• Carlos Benedito Martins DEDALUS - Acervo - EERP I ~1111 ~111111111111111111111~ 1111111111111~ IIIII ~11111111111 10400019738 " OQUEE SOCIOLOGIA BIBLIOTECA CENTRAL I ESCOLA DE ENFERMAGEM DE RIBEIRAO PRETO-USP editora brasiliense 06-0192 Copyright© by Carlos Benedito Martins Nenhuma parte desta publical'ao pode ser gravada, annazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada, reproduzida por meios meciinicos ou outros quaisquer sem autoriza9ao previa da editora. Primeira edi9ao, 1982 65' reimpressiio, 2008 Coordena,ao editorial: Alice Kobayashi Coordena9ilo de produ9ilo: Roseli Said Projeto grafico e diagramal'iio: Digitexlo Bureau e Grafica Capa: Gulo Lacaz Ilustral'oes: Emilio Damiani, Edson Lourem;o e Fabio Costa Revisao: Marcos Vinicius Toledo e Tiago Sliachlicas Dados lnteroacionais de Cataloga9i!0 oa Publica930 (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Martins, Carlos Benedito, 1948 - 0 que e sociologia I Carlos Benedito Martins. Sao Paulo : Brasiliense, 2006, - (Colc,a.o Primeiros Passos ; 57) 64' reimpr. da I ' ed. de 1982. ISBN 85-11 -01057-2 I. Sociologia 2. Sociologia - Hist6ria I. Titulo. !l. Serie. indices para catalogo sistematico: l. Sociologia 30 I editora e livraria brasiliense Rua Mourato Coelho, Ill - Pinheiros CEP 05417-010- Siio Paulo- SP www.editorabrasiliense.com.br CDD-301 •• •••• , INDICE lntrodu~ao . .... ... . . .... . ... . . ....... . . ... 7 Capitulo primeiro: 0 surgimento . . . . . . . . . . . . . . 10 Capitulo segundo: A forma~ao . .. . . ........ ... 34 Capitulo terceiro: 0 desenvolvimento . , . . . . .... 73 lndica~oes para leitura .. . . . ..... ......... . . . 97 Sobre o au tor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I 0 I Cl a ss . c::;.. ~ n o Para Vavy Pacheco •• ••••• INTRODU<;AO A sociologia constitui urn projeto intelectual tenso e contraditorio. Para alguns ela representa uma poderosa arma a servic;o dos interesses dominantes, para outros ela e a expressao teorica dos movimentos revolucionarios. A sua posic;ao e notavelmente contraditoria. De urn lado, foi proscrita de inumeros centros de ensino. Foi fustigada, em passado recente, nas universidades brasileiras, congelada pelos governos militares argenti- no, chileno e outros do genero. Em 1968, os coroneis gregos acusavam-na de ser disfarce do marxismo e teoria da revoluc;ao. Enquanto isso, os estudantes de Paris escreviam nos muros da Sorbone que "nao terf- amos mais problemas quando o ultimo sociologo fosse estrangulado com as tripas do ultimo burocrata" 0 •• •••• 8 Carlos B. Martins Como compreender as avaliac;oes tao diferentes dirigidas com relac;ao a essa ciencia? Para esclarecer esta questao, torna-se necessaria conhecer, ainda que de forma bastante geral e com algumas omissoes, um pouco de sua hist6ria. Isso me leva a situar a sociolo- gia- este conjunto de conceitos, de tl.knicas e de me- todos de investigac;ao produzidos para explicar a vida social - no contexte hist6rico que possibilitou o seu surgimento, formac;ao e desenvolvimento. Este livro parte do princfpio de que a sociologia e 0 resultado de uma tentativa de compreensao de si- tuac;oes sociais radicalmente novas, criadas pela entao nascente sociedade capitalista. A trajet6ria desta cien- cia tem side uma constante tentativa de dialogar com a civilizac;ao capitalista, em suas diferentes fases. Na verdade, a sociologia, desde o seu infcio, sempre foi algo mais do que uma mera tentativa de reflexao sabre a sociedade moderna. Suas explicac;oes sempre contiveram intenc;oes praticas, um forte dese- jo de interferir no rumo desta civilizac;ao. Se o pensa- mento cientffico sempre guarda uma correspondencia com a vida social, na sociologia esta influencia e par- ticularmente marcante. Os interesses economicos e politicos dos grupos e das classes sociais, que na socie- dade capitalista apresentam-se de forma divergente, influenciam profundamente a elabora<;ao do pensa- mento sociol6gico. . .. ...... 0 que e sociologia 9 Procuro apresentar, em termos de debate, a di- mensao polftica da sociologia, a natureza e as conse- quencias de seu envolvimento nos embates entre os grupos e as classes sociais e refletir em que medida os conceitos e as teorias produzidos pelos sociologos con- tribuem para manter ou alterar as rela<;6es de poder existentes na sociedade . •• •••• •• •••• CAPITULO PRIMEIRO: 0 SURGIMENTO Podemos entender a sociologia como uma das manifesta<;oes do pensamento moderno. A evolugao do pensamento cientffico, que vinha se constituindo desde Copernico, passa a cobrir, com a sociologia, uma nova area do conhecimento ainda nao incorporada ao saber cientffico, ou seja, o mundo social. Surge poste- riormente a constituigao das ciencias naturais e de di- versas ciencias soctats. A sua formagao constitui urn acontecimento complexo para o qual concorrem uma constelagao de circunstancias, historicas e intelectuais, e determinadas intengoes pn:iticas. 0 seu surgimento ocorre num con- texte historico especffico, que coincide com os derra- deiros mementos da desagregagao da sociedade feudal e da consolidagao da civilizagao capitalista. A sua cria- <;ao nao e obra de urn unico filosofo ou cientista, mas •• •••• 0 que e sociologia II representa o resultado da elabora~ao de um conjunto de pensadores que se empenharam em compreender as novas situa~oes de existencia que estavam em curso. 0 seculo XVIII constitui um marco importante para a hist6ria do pensamento ocidental e para o surgi- mento da sociologia. As transforma~oes economicas, polfticas e culturais que se aceleram a partir dessa epo- ca colocarao problemas ineditos para os homens que experimentavam as mudanc;as que ocorriam no ociden- te europeu. A dupla revolu~ao que esse seculo teste- munha - a industrial e a francesa - constitufa os do is lados de um mesmo processo, qual seja, a instala~ao definitiva da sociedade capitalista. A palavra sociolo- gia apareceria somente um seculo depois, por volta de 1830, mas sao OS acontecimentOS desencadeados pela dupla revolu~ao que a precipitam e a tornam possfvel. Nao constitui objetivo desta parte do traba- lho proceder a uma analise dessas duas revoluc;oes, mas apenas estabelecer algumas rela~oes que elas possuem com a formac;ao da sociologia. A revolu~ao industrial significou algo mais do que a introdu~ao da maquina a vapor e dos sucessivos aperfei~oamentos dos metodos produtivos. Ela representou o triunfo da industria capitalista, capitaneada pelo empresario ca- pitalista que foi pouco a pouco concentrando as ma- quinas, as terras e as ferramentas sob o seu controle, •• •••• 12 Carlos B. Martins convertend.o grandes massas humanas em simples trabalhadores despossufdos. Cada avan~o com rela~ao a consolida~ao da so- ciedade capitalista representava a desintegra~ao, o so- lapamento de costumes e institui~6es ate entao exis- tentes e a introdu~ao de novas formas de organizar a vida social. A utiliza~ao da maquina na produ~ao nao apenas destruiu o artesao independente, que possufa urn pequeno peda~o de terra, cultivado nos seus me- mentos livres. Este foi tambem submetido a uma seve- ra disciplina, a novas formas de conduta e de relac;oes de trabalho, completamente diferentes das vividas an- teriormente por ele. Num perfodo de oitenta anos, o~ seja, entre 1780 e 1860, a lnglaterra havia mudado de forma marcante a sua fisionomia. Pafs com pequenas cidades, com uma populac;ao rural dispersa, passou a comportar enormes cidades, nas quais se concentravam suas nascentes in- dustrias, que espalhavam produtos para o mundo intei- ro. Tais modificac;6es nao poderiam deixar de produzir novas realidades para OS homens dessa epoca. A for- mac;ao de uma sociedade que se industrializava e urba- nizava em ritmo crescente implicava a reordenac;ao da sociedade rural,a destruic;ao da servidao, o desman- telamento da famuia patricia! etc. A transformac;ao da atividade artesanal em manufatureira e, por ultimo, em atividade fabril, desencadeou uma macic;a emigrac;ao •• •••• 0 que e sociologia /3 do campo para a cidade, assim como engajou mulhe- res e crian<;as em jornadas de trabalho de pelo menos doze horas, sem ferias e feriados, ganhando urn salario de subsistencia. Em alguns setores da industria inglesa, mais da metade dos trabalhadores era constitufda por mulheres e crian<;as que ganhavam salarios inferiores dos homens. A desapari<;ao dos pequenos proprietarios ru- rais, dos artesaos independentes, a imposi<;ao de pro- longadas horas de trabalho etc. , tiveram urn efeito traumatico sobre milhoes de seres humanos ao modi- ficar radicalmente suas formas habituais de vida. Es- sas transforma<;oes, que possufam urn sabor de cata- clismo, faziam-se mais visfveis nas cidades industriais, local para onde convergiam todas essas modifica<;oes e explodiam suas consequencias. Essas cidades pas- savam por urn vertiginoso crescimento demografico, sem possuir, no entanto, uma estrutura de moradias, de servi<;os sanitarios, de saude, capaz de acolher a popula<;ao que se deslocava do campo. Manchester, que constitui urn ponto de referencia indicativo desses tempos, por volta do infcio do seculo XIX era habita- da por setenta mil habitantes; cinquenta anos depois, possufa trezentas mil pessoas. As consequencias da ra- pida industrializa<;ao e urbaniza<;ao levadas a cabo pelo sistema capitalista foram tao visfveis quanto tragicas : aumento assustador da prostitui<;ao, do suicfdio, do al- coolismo, do infanticfdio, da criminalidade, da violen- •• ...... 14 Carlos B. Martins cia, de surtos de epidemia de tifo e c61era que dizima- ram parte da popula<;ao etc. E evidente que a situa<;ao de miseria tambem atingia o campo, principalmente os trabalhadores assalariados, mas o seu epicentro ficava, sem duvida, nas cidades industriais. Urn dos fatos de maior importancia relacionados com a revolu<;ao industrial e, sem duvida, o apareci- mento do proletariado e o papel hist6rico que ele de- sempenharia na sociedade capitalista. Os efeitos ca- tastr6ficos que essa revolu<;ao acarretava para a classe trabalhadora levaram-na a negar suas condi<;6es de vida. As manifesta<;6es de revolta dos trabalhadores atravessaram diversas fases, como a destrui<;ao das maquinas, atos de sabotagem e explosao de algumas oficinas, roubos e crimes, evoluindo para a cria<;ao de associa<;6es livres, forma<;ao de sindicatos etc. A con- sequencia dessa crescente organiza<;ao foi a de que os "pobres" deixaram de se confrontar com os "ricos"; mas uma classe especffica, a classe operaria, com consciencia de seus interesses, come<;ava a organizar- -se para enfrentar os proprietaries dos instrumentos de trabalho. Nessa trajet6ria, iam produzindo seus jor- nais, sua propria literatura, procedendo a uma crftica da sociedade capitalista e inclinando-se para o socialis- mo como alternativa de mudan<;a. Qual a importancia desses acontecimentos para a sociologia? 0 que merece ser salientado e que a pro- fundidade das transforma<;6es em curse colocava a so- •• •••• 0 que e sociologia 15 ciedade num plano de analise, ou seja, esta passava a se constituir em "problema", em "objeto" que deveria ser investigado. Os pensadores ingleses que testemunha- vam essas transforma<;;oes e com elas se preocupam nao eram, no entanto, homens de ciencia ou sociolo- gos que viviam dessa profissao. Eram antes de tudo ho- mens voltados para a a<;;ao, que desejavam introduzir determinadas modifica<;;oes na sociedade. Participavam ativamente dos debates ideologicos em que se envol- viam as correntes liberais, conservadoras e socialistas. Eles nao desejavam produzir urn mero conhecimento sabre as novas condi<;;oes de vida geradas pela revolu- <;;ao industrial, mas procuravam extrair dele orienta<;;oes para a a<;;ao, tanto para manter como para reformar ou modificar radicalmente a sociedade de seu tempo. Tal fato significa que os precursores da sociologia foram recrutados entre militantes politicos, entre indivfduos que participavam e se envolviam profundamente com os problemas de suas sociedades. Pensadores como Robert Owen (1771-1858), William Thompson (1775-1833), Jeremy Bentham (17 48-1832) , s6 para citar alguns daquele momenta his- torico, podiam discordar entre si ao julgarem as novas condi<;;oes de vida provocadas pela revolu<;;ao industrial e as modifica<;;oes que deveriam ser realizadas na nas- cente sociedade industrial, mas todos eles concorda- vam que ela produzira fenomenos inteiramente novas •• •••• /6 Carlos B. Martins que mereciam ser analisados. 0 que eles reftetiram e escreveram foi de fundamental importancia para a for- mac;ao e constituic;ao de urn saber sabre a sociedade. A sociologia constitui em certa medida uma res- pasta intelectual as novas situac;6es colocadas pela re- voluc;ao industrial. Boa parte de seus temas de analise e de reftexao foi retirada das novas situac;6es, como, por exemplo, a situac;ao da classe trabalhadora, o surgimen- to da cidade industrial, as transformac;6es tecnol6gicas, a organizac;ao do trabalho na fabrica etc. E a formac;ao de uma estrutura social muito espedfica - a socieda- de capitalista - que impulsiona uma reftexao sabre a sociedade, sabre suas transformac;6es, suas crises, seus antagonismos de classe. Nao e por mero acaso que a sociologia, enquanto instrumento de analise, inexistia nas relativamente estaveis sociedades pre-capitalistas, uma vez que o ritmo e o nfvel das mudanc;as que af se verificavam nao chegavam a colocar a sociedade como "urn problema" a ser investigado. 0 surgimento da sociologia, como se pode per- ceber, prende-se em parte aos abalos provocados pela revoluc;ao industrial, pelas novas condic;6es de exis- tencia por ela criadas. Mas uma outra circunstancia. concorreria tambem para a sua formac;ao. Trata-se das modificac;6es que vinham ocorrencia nas formas de pensamento. As transformac;oes economicas, que se achavam em curso no ocidente europeu desde o seculo •• ...... 0 que e sociologia 17 XVI, niio poderiam deixar de provocar modifica<;;oes na forma de conhecer a natureza e a cultura. A partir daquele momento, o pensamento pau- latinamente vai renunciando a uma visiio sobrenatural para explicar os fatos e substituindo-a por uma inda- ga<;;iio racional. A aplica<;;iio da observa<:;iio e da expe- rimenta<:;iio, ou seja, do metodo cientffico para a ex- plica<_:;iio da natureza, conhecia uma fase de grandes progressos. Num espa<:;o de cento e cinquenta anos, ou seja, de Copernico a Newton, a ciencia passou por urn notavel progresso, mudando ate mesmo a localiza<:;iio do planeta Terra no cosmo. 0 emprego sistematico da observa<:;iio e da expe- rimenta<:;iio como fonte para a explora<:;iio dos fenome- nos da natureza estava possibilitando uma grande acu- mula<:;iio de fatos. 0 estabelecimento de rela<:;oes entre esses fatos ia possibilitando aos homens dessa epoca urn conhecimento da natureza que lhes abria possibili- dade de a controlar e dominar. 0 pensamento filosofico do seculo XVII con- tribuiu para popularizar os avan<_:;os do pensamento cientffico. Para Francis Bacon (1561-1626), por exem- plo, a teologia deixaria de ser a forma norteadora do pensamento. A autoridade, que exatamente constitula urn dos alicerces da teologia, deveria, em sua opiniiio, ceder Iugar a uma duvida metodica, a fim de possibili- tar urn conhecimento objetivo da realidade. Para ele, •• •••• 18 Carlos B. Martins o novo metoda de conhecimento, baseado na obser- va~ao e na experimenta~ao, ampliaria infinitamente o poder do homem e deveria ser estendido e aplicado ao estudo da sociedade. Partindo dessas ideias, chegou a proper um programa para acumular os dados disponf- veis e com eles realizar experimentos a fim de descobrir e formularleis gerais sabre a sociedade. 0 emprego sistematico da razao, do livre exame da realidade- tra~o que caracterizava os pensadores do seculo XVII, os chamados racionalistas -, repre- sentou um grande avan~o para libertar o conhecimen- to do controle teol6gico, da tradi~ao, da "revela~ao" e, consequentemente, para a formula~ao de uma nova atitude intelectual diante dos fenomenos da natureza e da cultura. Diga-se de passagem que o progressive abando- no da autoridade, do dogmatismo e de uma concep~ao providencialista, enquanto atitudes intelectuais para analisar a realidade, nao constitula um acontecimento circunscrito apenas ao campo cientffico ou filos6fico. A literatura do seculo XVII, por exemplo, constitufa uma outra area que ia se afastando do pensamento oficial, na medida em que se rebelava contra a cria~ao literaria legitimada pelo poder. A obra de varies literates des- sa epoca investia contra as institui~6es oficiais, procu- rando desmascarar os fundamentos do poder politico, ... •••• ...... 0 que e sociologia 19 contribuindo assim para a renova<;;ao dos costumes e habitos mentais dos homens da epoca. Se no seculo XVIII os dados estatfsticos voavam, indicando uma produtividade antes desconhecida, o pensamento social desse perfodo tambem realizava seus voos rumo a novas descobertas. A pressuposi<;;ao de que o processo historico possui uma logica passfvel de ser apreendida constituiu um acontecimento que abria novas pistas para a investiga<;;ao racional da so- ciedade. Esse enfoque, por exemplo, estava na obra de Vi co (1668-17 44), para o qual e o hom em quem produz a historia. Apoiando-se nesse ponto de vista, afirmava que a sociedade podia ser compreendida par- que, ao contrario da natureza, ela constitui obra dos proprios indivfduos. Essa postura diante da sociedade, que encontra em Vico um de seus expoentes, influen- ciou os historiadores escoceses da epoca, como David Hume (1711-1776) e Adam Ferguson (1723-1816), e seria posteriormente desenvolvida e amadurecida por Hegel e Marx. Data tambem des sa epoca a disposi<;;ao de tratar a sociedade a partir do estudo de seus grupos e nao dos indivfduos isolados. Essa orienta<;;ao estava, por exemplo, nos trabalhos de Ferguson, que acrescen- tava que, para o estudo da sociedade, era necessaria evitar conjecturas e especula<;;oes. A obra desse histo- riador escod~s revela a influencia de algumas ideias de ... •••• 20 Carlos B. Martins Bacon, como a de que e a indU<;;:ao, e nao a dedu<;;:ao, que nos revela a natureza do mundo, e a importancia da observagao enquanto instrumento para a obten<;;:ao do conhecimento. No entanto, e entre OS pensadores franceses do seculo XVIII que encontramos um grupo de filosofos que procurava transformar nao apenas as velhas for mas de conhecimento, baseadas na tradi<;;:ao e na autorida- de, mas a propria sociedade. Os iluministas, enquanto ideologos da burguesia, que nessa epoca posicionava-se de forma revoluciomiria, atacaram com veemencia os fundamentos da sociedade feudal, os privilegios de sua classe dominante e as restri<;;:oes que esta impunha aos interesses econ6micos e politicos da burguesia. E a intensidade do conftito entre as classes domi- nantes da sociedade feudal e a burguesia revoluciomiria que leva os filosofos, seus representantes intelectuais, a atacarem de forma impiedosa a sociedade feudal e a sua estrutura de conhecimento, e a negarem aberta- mente a sociedade existente. Para proceder a uma indaga<;;:ao crftica da socieda- de da epoca, OS iJuministas partiram dos seus anteces- SOres do seculo XVII, como Descartes, Bacon, Hobbes e outros, reelaborando, porem, algumas de suas ideias e procedimentos. Ao inves de utilizar a dedu<;;:ao, como a maioria dos pensadores do seculo XVII, OS iluminis- tas insistiam numa explica<;;:ao da realidade baseada no modelo das ciencias da natureza. Nesse sentido, eram •• •••• 0 que e sociologia 21 influenciados mais por Newton, com seu modelo de conhecimento baseado na observa<;ao, na experimen- ta<;ao e na acumula<;ao de dados, do que por Descartes, com seu metoda de investiga<;ao baseado na dedu<;ao. lnfluenciado por esse estado de espfrito, Condor- cet (1742-1794), por exemplo, desejava aplicar os me- todos matematicos ao estudo dos fenomenos sociais, estabelecendo uma area propria de investiga<;ao a que denominava "matematica social". Admitia ele que, uti- lizando os mesmos procedimentos das ciencias naturais para o estudo da sociedade, este poderia atingir a mes- ma precisao de vocabulario e exatidao de resultados obtidas por aqueles. Combinando 0 uso da razao e da observa<;ao, OS iluministas analisaram quase todos os aspectos da so- ciedade. Os trabalhos de Montesquieu (1689-1755), por exemplo, estabelecem uma serie de observa<;oes sabre a popula<;ao, o comercio, a religiao, a moral , a fa- mflia etc. 0 objetivo dos iluministas, ao estudar as ins- titui<;oes de sua epoca, era demonstrar que elas eram irracionais e injustas, que atentavam contra a natureza dos indivfduos e, nesse sentido, impediam a liberdade do homem. Concebiam o indivfduo como dotado de razao, possuindo uma pe-rfei<;ao inata e destinado a liberdade e a igualdade social. Ora, se as institui<;oes existentes constitufam urn obstaculo a liberdade do indivfduo e a sua plena realiza<;ao, elas, segundo eles, deveriam ser eliminadas. Dessa forma reivindicavam a •• •••• 22 Carlos B. Martins liberac;ao do indivfduo de todos os lac;os sociais tradicio- nais, tal como as corporac;oes, a autoridade feudal etc. Procedendo dessa forma, os iluministas confe- riam uma clara dimensao crftica e negadora ao conhe- cimento, pais este assumia a tarefa nao s6 de conheGer o mundo natural ou social tal como se apresentavam, mas tambem de critica-lo e rejeita-lo. 0 conhecimen- to da realidade e a disposic;ao de transforma-la eram, portanto, uma s6 coisa. A filosofia, de acordo com esta concepc;ao, nao constitufa urn mero conjunto de no- c;oes abstratas distante e a margem da realidade, mas, ao contrario, urn valioso instrumento pratico que criti- cava a sociedade presente, vislumbrando outras possi- bilidades de existencia social alem das existentes. 0 visfvel progresso das formas de pensar, fru- to das novas maneiras de produzir e viver, contribufa para afastar interpretac;oes baseadas em superstic;oes e crenc;;as infundadas, assim como abria urn espac;o para a constituic;ao de urn saber sabre os fenomenos hist6rico-sociais. Essa crescente racionalizac;ao da vida social que gerava urn clima propfcio a constituic;ao de urn estudo cientffico da sociedade nao era, porem, urn privilegio de fil6sofos e homens que se dedicavam ao conhecimento. 0 "homem comum" dessa epoca tam- bern deixava, cada vez mais, de encarar as instituic;oes sociais, as normas, como fenomenos sagrados e imu- taveis, submetidos a forc;as sobrenaturais, passando a •• ...... .... 0 que e sociologia 23 percebe-las como produtos da atividade humana, par- tanto passfveis de serem conhecidas e transformadas. A intensidade da crftica as institui<;6es feudais levada a cabo pelos iluministas constitufa indisfar<;avel indfcio da virulencia da luta que a burguesia travava no plano politico contra as classes que sustentavam a do- mina<;ao feudal. Na Fran<;a, o conflito entre as novas for<;as sociais ascendentes chocava-se com uma tfpica monarquia absolutista, que assegurava consideraveis privilegios a aproximadamente quinhentas mil pesso- as, isso num pals que possufa ao final do seculo XVIII uma popula<;ao de vinte e tres milh6es de indivfduos. Essa camada privilegiada nao apenas gozava de isen- <;ao de impostos e possufa direitos para receber tributos feudais, mas impedia ao mesmo tempo a constitui<;ao de livre-empresa, a explora<;ao eficiente da terra e de- monstrava-se incapaz de criar uma administra<;ao pa- dronizada por meio de uma polftica tributaria racional e imparcial. A burguesia, ao tomar o poderem 1789, inves- tiu decididamente contra os fundamentos da sociedade feudal, procurando construir um Estado que asseguras- se sua autonomia em face da lgreja e que protegesse e incentivasse a empresa capitalista. Para a destrui<;ao do "ancien regime", foram mobilizadas as massas, espe- cialmente os trabalhadores pobres das cidades. Alguns ... •••• 24 Carlos B. Martins meses mais tarde, elas foram "presenteadas" pela nova classe dominante, com a interdi«;ao dos seus sindicatos. A investida da burguesia rumo ao poder, suce- deu-se uma liquida«;ao sistematica do velho regime. A revolw;;:ao ainda nao completara urn ano de existencia, mas fora suficientemente intempestiva para liquidar a velha estrutura feudal e o Estado monarquico. 0 objetivo da Revolw;ao de 1789 nao era apenas mudar a estrutura do Estado, mas abolir radicalmen- te a antiga forma de sociedade, com suas instituit;;:oes tradicionais, seus costumes e habitos arraigados, e ao mesmo tempo promover profundas inovac;oes na eco- nomia, na polftica, na vida cultural etc. E dentro desse contexte que se situam a abolic;ao dos gremios e das corporac;oes e a promulgac;ao de uma legislac;ao que Jimitava os poderes patriarcais na famflia, coibindo os abus.os da autoridade do pai, for«;ando-o a uma clivi- sao igualitaria da propriedade. A revoluc;ao desferiu tambem seus golpes contra a lgreja, confiscando suas propriedades, suprimindo os votos momisticos e trans- ferindo para o Estado as func;oes da educac;ao, tradi- cionalmente controladas pela lgreja. lnvestiu contra e destruiu os antigos privilegios de classe, amparou e in- centivou o empresario. 0 impacto da revoluc;ao foi tao profunda que, passados quase setenta anos do seu triunfo, Alexis de Tocqueville, urn importante pensador frances, referia- -se a ela da seguinte maneira: •• •••• A Revolur;ao Francesa: uma nova realidade . •• •••• 26 Carlos B. Martins A Revoluc:;ao segue seu curso: a medida que vai apare- cendo a cabec:;a do monstro, descobre-se que, apes ter destrufdo as instituic:;oes polfticas, ela suprime as institui- c:;oes civis e muda, em seguida, as leis, os usos, os cos- tumes e ate a lingua; apes ter arruinado a estrutu;a do governo, mexe nos fundamentos da sociedade e parece querer agredir ate a Deus; quando esta mesma Revolu- c:;ao expande-se rapidamente por toda a parte com pro- cedimentos desconhecidos, novas taticas, maxi mas mor- tfferas, poder espantoso que derruba as barreiras dos im- perios, quebra coroas, esmaga povos e - coisa estranha - chega ao mesmo tempo a ganha-los para a sua causa; a medida que todas estas coisas explodem, 0 ponto de vista muda. 0 que a primeira vista parecia aos prfncipes da Europa e aos estadistas urn acidente comum na vida dos povos, tornou-se urn fato novo, tao contr.irio a tudo que aconteceu antes no mundo e no entanto tao geral, tao monstruoso, tao incompreensfvel que, ao apercebe- -lo, o espfrito fica como que perdido. 0 espanto de Tocqueville diante da nova realida- de inaugurada pela Revolu<;;ao Francesa seria compar- tilhado tambem por outros intelectuais do seu tempo. Durkheim, por exemplo, urn dos fundadores da socio- logia, afirmou certa vez que, a partir do momenta em que "a tempestade revoluciomiria passou, constituiu- -se como que por encanto a no<;;ao de ciencia social". 0 fato e que pensadores franceses da epoca, como Saint- -Simon, Comte, Le Play e alguns outros, concentrarao suas reflexoes sabre a natureza e as consequencias da revolu<;;ao. Em seus trabalhos, utilizarao expressoes •• •••• 0 que e sociologia 27 como "anarquia", "perturba<;ao", "crise", "desordem", para julgar a nova realidade provocada pela revolu<;ao. Nutriam em geral esses pensadores urn certo rancor pela revolu<;ao, principalmente por aquila que eles de- signavam como "os seus falsos dogmas", como o seu ideal de igualdade, de liberdade, e a importancia confe- rida ao indivfduo em face das institui<;6es existentes. A tarefa que esses pensadores se prop6em e a de racionalizar a nova ordem, encontrando solu<;6es para o estado de "desorganiza<;ao" entao existente. Mas para restabelecer a "ordem e a paz"' pois e a esta mis- sao que esses pensadores se entregam, para encontrar urn estado de equilibria na nova sociedade, seria neces- saria, segundo eles, conhecer as leis que regem OS fatos sociais, instituindo portanto uma ciencia da sociedade. A verdade e que a burguesia, uma vez instala- da no poder, se assusta com a propria revolu<;ao. Uma das fac<;6es revolucionarias, por exemplo, os jacobinos, estava disposta a aprofunda-la, radicalizando-a e levan- do-a ate o fim, situando-a alem do projeto e dos inte- resses da burguesia. Para contornar a propaga<;ao de novas surtos revolucionarios, enquanto estrategia para modifica<;ao das sociedades, seria necessaria, de acor- do com os interesses da burguesia, controlar e neutra- lizar novas levantes revolucionarios. Nesse sentido, era de fundamental importancia proceder a modifica<;6es substanciais em sua teoria da sociedade . •• •••• 28 Carlos B. Martins A interpretagao crftica e negadora da realidade. que constituiu urn dos tragos marcantes do pensamento iluminista e alimentou o projeto revolucionario da bur- guesia, deveria de agora em diante ser "superada" por uma outra que conduzisse nao mais a revolugao, mas a "organizagao"' ao "aperfeigoamento" da sociedade. Saint-Simon, de uma maneira muito explfcita, afirma- ria a este respeito que "a filosofia do ultimo sEkulo foi revolucionaria; a do seculo XX deve ser reorganizado- ra". A tarefa que os fundadores da sociologia assumem e, portanto, a de estabilizagao da nova ordem. Comte tambem e muito claro quanto a essa questao. Para ele, a nova teoria da sociedade, que ele denominava de "po- sitiva", deveria ensinar os homens a aceitar a ordem existente, deixando de lado a sua negagao. A Franga, no infcio do seculo XIX, ia se tornan- do visivelmente uma sociedade industrial, com uma introdugao progressiva da maquinaria, principalmen- te no setor textil. Mas o desenvolvimento acarretado por essa industrializagao causava aos operarios fran- ceses miseria e desemprego. Essa situagao logo en- contraria resposta por parte da classe trabalhadora. Em 1816-817 e em 1825-1827, os operarios destroem as maquinas em manifestagoes de revolta. Com a in- dustrializagao da sociedade francesa, conduzida pelo empresario capitalista, repetem-se determinadas situ- agoes sociais vividas pela lnglaterra no infcio de sua Revolugao Industrial. Eram visfveis, a essa epoca, a •• •••• 0 que e sociologia 29 utilizac;ao intensiva do trabalho barato de mulheres e crianc;as, uma desordenada migrac;ao do campo para a cidade, gerando problemas de habitac;ao, de higiene, aumento do alcoolismo e da prostituic;ao, alta taxa de mortalidade infantil etc. A partir da terceira decada do seculo XIX, inten- sificam-se na sociedade francesa as crises economicas e as lutas de classes. A contestac;ao da ordem capita- lista, levada a cabo pela classe trabalhadora, passa a ser reprimida com violencia, como em 1848, quando a burguesia utiliza os aparatos do Estado, por ela do- minado, para sufocar as press6es populares. Cada vez mais ficava clara para a burguesia e seus representan- tes intelectuais que a filosofia iluminista, que passava a ser designada por eles como "metaftsica", "atividade crltica inconsequente"' nao seria capaz de interromper aquila que denominavam estado de "desorganizac;ao", de "anarquia polftica" e criar uma ordem social estavel. Determinados pensadores da epoca estavam im- bufdos da crenc;a de que, para introduzir uma "higiene" na sociedade, para "reorganiza-la", seria necessaria fundar uma nova ciencia. Durkheim, ao discutir a for- mac;ao da sociologia na Franc;a do seculo XIX, refere-se a Saint-Simon da seguinte forma: 0 desmoronamento do antigo sistema social, ao instigar a reflexao a busca de Um remedio para OS males de que a sociedade padecia, incitava-opor is so mesmo a aplicar-se as coisas coletivas. Partindo da ideia de que a perturba- •• •••• 30 Carlos B. Martins ~ao que atingia as sociedades europeias resultava do seu estado de desorganiza~ao intelectual, ele entregou-se a tarefa de por termo a isto. Para refazer uma consciencia nas sociedades, sao estas que importa, antes de tudo, conhecer. Ora, esta ciencia das sociedades, a mais im- portante de todas, nao existia; era necessaria, portanto, num interesse pratico, funda-la sem demora. Como se percebe pela afirma<;:ao de Durkheim, esta ciencia surge com interesses praticos e nao "como que por encanto", como certa vez afirmara. Enquanto resposta intelectual a "crise social" de seu tempo, os primeiros socicSiogos irao revalorizar determinadas institui<;:oes que, segundo eles, desempe- nham papeis fundamentais na integra<;:ao e na coesao da vida social. A jovem ciencia assumia como tarefa in- telectual repensar o problema da ordem social, enfati- zando a importancia de institui<;:oes como a autoridade, a famuia, a hierarquia social, destacando a sua impor- tancia tecSrica para o estudo da sociedade. Assim, por exemplo, Le Play (1806 -1882) afirmaria que e a famuia e nao o indivlduo isolado que possula significa<;:ao para uma compreensao da sociedade, pois era uma unidade fundamental para a experiencia do indivfduo e elemen- to importante para o conhecimento da sociedade. Ao realizar urn vasto estudo sobre as famuias de trabalha- dores, insistia que estas, sob a industrializa<;:ao, haviam se tornado descontfnuas, inseguras e instaveis. Diante de tais fatos, propunha como solu<;:ao para a restaura- •• •••• 0 que e sociologia 3/ c;ao de seu papel de "unidade social basica" a reafir- mac;ao da au tori dade do "chefe de famnia", evitando a igualdade jurfdica de homens e mulheres, delimitando o papel da mulher as func;oes exclusivas de mae, esposa e filha. Procedendo dessa forma, ou seja, tentando ins- taurar urn estado de equilfbrio numa sociedade cindi- da pelos conflitos de classe, esta sociologia inicial re- vestiu-se de urn indisfarc;avel conteudo estabilizador, ligando-se aos movimentos de reforma conservadora da sociedade. Na concepc;ao de urn de seus fundadores, Comte, a sociologia deveria orientar-se no sentido de conhecer e estabelecer aquila que ele denominava leis imutdveis da vida social, abstendo-se de qualquer considerac;ao crftica, eliminando tambem qualquer discussao sabre a realidade existente, deixando de abordar, por exemplo, a questao da igualdade, da justic;a, da liberdade. Veja- mos como ele a define e quais objetivos deveria ela per- seguir, na sua concepc;ao: Entendo por fisica social a ciencia que tern por objeto pro- prio o estudo dos fen6menos sociais, segundo o mesmo esplrito com que sao considerados os fen6menos astro- n6micos, fisicos, qulmicos e fisiol6gicos, isto e, submeti- dos a leis invariaveis, cuja descoberta e 0 objetivo de suas pesquisas. Os resultados de suas pesquisas tornam-se o ponto de partida positivo dos trabalhos do homem de Estado, que s6 tem, por assim dizer, como objetivo real descobrir e instituir as form as praticas correspondentes a •• •••• 32 Carlos B. Martins esses dados fundamentais, a fim de evitar ou pelo menos mitigar, quanto possfvel, as crises mais ou menos graves que um movimento espontaneo determina, quando nao foi previsto. Numa palavra, a ciencia conduz a ereviden- cia, e a previdencia per mite regular a a<;ao. Nao deixa de ser sugestivo o termo "fTsica so- cial", utilizado par Comte para referir-se a nova cien- cia, uma vez que ele expressa o desejo de construf-la a partir dos modelos das ciencias fTsico-naturais. A ofi- cializagao da sociologia foi, portanto, em larga medida uma criagao do positivismo, e uma vez assim cons- titufda procurara realizar a legitimagao intelectual do novo regime. Esta sociologia de inspirac:;ao positivista procu- rara construir uma teoria social separada nao apenas da filosofia negativa, mas tambem da economia polfti- ca como base para o conhecimento da realidade social. Separando a filosofia e a economia polftica, isolando-as do estudo da sociedade, esta sociologia procura criar urn objeto autonomo, "0 social", postulando uma in- dependencia dos fen6menos sociais em face dos eco- nomicos. Nao sera esta sociologia, criada e moldada pelo espfrito positivista, que colocara em questao os funda- mentos da sociedade capitalista, ja entao plenamente configurada. Tambem nao sera nela que o proletaria- do encontrara a sua expressao te6rica e a orientac:;ao para suas lutas praticas. E no pensamento socialista, •• •••• 0 que e sociologia 33 em seus diferentes matizes, que o proletariado, esse re- bento da revoluc;ao industrial, buscara seu referencial te6rico para levar adiante as suas lutas na sociedade de classes. E nesse contexto que a sociologia vincula-se ao socialismo e a nova teoria crftica da sociedade passa a estar ao lado dos interesses da classe trabalhadora. Envolvendo-se desde o seu infcio nos debates entre as classes sociais, nas disputas e nos antagonis- mos que ocorriam no interior da sociedade, a sociologia sempre foi algo mais do que mera tentativa de reflexao sobre a moderna sociedade. Suas explicac;6es sempre contiveram intenc;6es praticas, urn desejo de interfe- rir no rumo desta civilizac;ao, tanto para manter como para alterar os fundamentos da sociedade que a impul- sionaram e a tornaram possfvel. •• ...... •• •••• CAPITULO SEGUNDO: A FORMACAO No final do SEkula passado, o matematico frances Henri Poicare referiu-se a sociologia como ciencia de muitos metodos e poucos resultados. Ao que tudo indi- ca, nos dias de hoje poucas pessoas colocam em duvida os resultados alcan~ados pela sociologia. As inumeras pesquisas realizadas pelos socicSiogos, a presen~a da sociologia nas universidades, nas empresas, nos orga- nismos estatais, atestam a sua realidade. Ao !ado desta crescente presen<;a da sociologia no nosso cotidiano, continua, porem, chamando a aten<_;ao daqueles que se interessam por ela os frequentes e acirrados debates que sao travados em seu interior sabre o seu objeto de estudo e OS SeUS metodos de investiga<_;ao. A falta de urn entendimento comum por parte dos socicSiogos sabre a sua ciencia possui, em boa me- dida, uma rela~ao com a forma<;ao de uma sociedade •• •••• 0 que e sociologia 35 dividida pelos antagonismos de classe. A existencia de interesses opostos na sociedade capitalista penetrou e invadiu a forma<_;:ao da sociologia. As alternativas histo- ricas existentes nessa sociedade, seja a de sua conser- va<_;:ao ou de sua transformagao radical, eram situa<_;:oes reais com que se deparavam OS pioneiros da socio[ogia. Este contexto historico influenciou enormemente suas visoes a respeito de como deveria ser analisada a so- ciedade, refletindo-se tambem no conteudo politico de seus trabalhos. Tal situagao, evidentemente, continua afetando os trabalhos dos sociologos contemponlneos. 0 cara.ter antagonico da sociedade capitalista, ao impedir um entendimento comum por parte dos soci- ologos em torno ao objeto e aos metodos de investiga- <_;:ao desta disciplina, deu margem ao nascimento de di- ferentes tradigoes sociologicas ou distintas sociologias, como preferem afirmar alguns sociologos. Nao podemos perder de vista o fato de que a so- ciologia surgiu num momenta de grande expansao do capitalismo. Alguns sociologos assumiram uma atitude de otimismo diante da sociedade capitalista nascente, identificando os valores e os interesses da classe domi- nante como representativos do conjunto da sociedade. A perspectiva que os norteava era a de buscar o plena funcionamento de suas institui<_;:oes economicas e po- lfticas. Os conflitos e as lutas em que se envolviam as •• •••• - 36 Carlos B. Martins classes sociais, constitufam para alguns deles fenome- nos passageiros, passfveis de serem superados. Uma das tradic:;oes sociol6gicas,que se compro- meteu com a defesa da ordem instalada pelo capitalis- mo, encontrou no pensamento conservador uma rica fonte de inspirac:;ao para formular seus principais con- ceitos explicativos da realidade. Os conservadores, que foram chamados de "pro- fetas do passado", construfram suas obras contra a he- ranc:;a dos fil6sofos iluministas. Nao eram intelectuais que justificavam a nova sociedade por suas realizac:;oes polfticas ou economicas. Ao contrario, a inspirac:;ao do pensamento conservador era a sociedade feudal, com sua estabilidade e acentuada hierarquia social. Nao es- tavam interessados em defender uma sociedade mol- dada a partir de determinados princfpios defendidos pe- los fil6sofos iluministas, nem urn capitalismo que mais e mais se transformava, apresentando sua faceta indus- trial e financeira. 0 fascfnio que as sociedades da [dade Media exercia sobre eles conferiu a esses pensadores e as suas obras urn verdadeiro sabor medieval. 0 ponto de partida dos conservadores foi o im- pacto da Revoluc:;ao Francesa, que julgavam urn castigo de Deus a humanidade. Nao cansavam de responsabili- zar os iluministas e suas ideias como urn dos elementos desencadeadores da Revoluc:;ao de 1789. Considera- vam as crenc:;as iluministas aniquiladoras da proprie- •• •••• Os profetas do passado . •• •••• 38 Carlos B. Martins dade, da autoridade, da religiao e da propria vida. Os conservadores eram defensores apaixonados das insti- tuigoes religiosas, monarquicas e aristocraticas que se encontravam em processo de desmoronamento, tendo alguns deles, inclusive, interesses diretos na preserva- gao dessas instituigoes. Pensadores como Edmund Burke (I 729-1 797), Joseph de Maistre (1754-1821), Louis de Bonald (1754- 1 840) e outros procuraram desmontar todo o ideario dos filosofos do sEkulo XVIII, atacando suas concepgoes do homem, da sociedade e da religiao, posicionando-se abertamente contra as crengas iluministas. A socieda- de moderna, na visao conservadora, estava em franco declfnio. Nao viam nenhum progresso numa sociedade cada vez mais alicergada no urbanismo, na industria, na tecnologia, na ciencia e no igualitarismo. Lastimavam o enfraquecimento da famnia, da religiao, da corporagao etc. Na verdade, julgavam eles, a epoca moderna era dominada pelo caos social, pela desorganizagao e pela anarquia. Nao mediam esforgos ao culparem a Revo- lugao Francesa por esta escalada do declfnio da histo- ria moderna. A Revolugao de 1789 era, na visao dos "profetas do passado"' 0 ultimo elo dos acontecimen- tos nefastos iniciados com o Renascimento, a Reforma Protestante e a Era da Razao. Ao fazer a crftica da modernidade inaugurada por acontecimentos como a economia industrial, o urbanismo e a Revolugao Francesa, os conservadores •• •••• 0 que e socio/ogia 39 estavam tecendo uma nova teoria sabre a sociedade cujas atenc;oes centravam-se no estudo de instituic;oes sociais como a famflia, a religiao, o grupo social , e a contribuic;ao delas para a manutenc;ao da ordem social. Preocupados com a ordem e a estabilidade, com a co- esao social , enfatizariam a importancia da autoridade, da hierarquia, da tradic;ao e dos valores marais para a conservac;ao da vida social . As ideias dos conservadores constitufam urn ponto de referencia para os pioneiros da sociologia, in- teressados na preservac;ao da nova ordem economica e polftica que estava sendo implantada nas sociedades europeias ao final do seculo passado. Estes, no entanto, modifi.cariam algumas das concepc;oes dos "profetas do passado"' adaptando-as as novas circunstancias hist6- ricas. Estavam conscientes de que nao seria possfvel voltar a velha sociedade feudal e restaurar as suas ins- tituic;oes, como desejavam os conservadores. Alguns dos pioneiros da sociologia, preocupados com a defesa da nova ordem social , chegavam mesmo a considerar algumas ideias dos conservadores como reacionarias, mas fi.cavam decididamente encantados com a devo- c;ao que eles dedicavam a manutenc;ao da ordem e ad- miravam seus estudos sabre esta questao. E entre os autores positivistas, de modo desta- cado Saint-Simon , Auguste Comte e Emile Durkheim, que as ideias dos conservadores exerceriam uma gran- de influencia. Alguns deles chegavam a afi.rmar que a •• •••• 40 Carlos B. Martins "escola retrograda", por eles considerada imortal, seria sempre merecedora da admirac;ao e da gratidao dos po- sitivistas. Sao estes autores que, de modo destacado, iniciarao o trabalho de rever uma serie de ideias dos conservadores, procurando dar a elas uma nova roupa- gem, com o proposito de defender os interesses domi- nantes da sociedade capitalista. E comum encontrarmos a inclusao de Saint- -Simon (1760-1825) entre os primeiros pensadores socialistas. 0 proprio Engels rendeu-lhe homenagem reputando algumas de suas descobertas geniais, ven- do nelas o germe de futuras ideias socialistas. Mas, por outre !ado, ele tambem ·e saudado como urn dos fundadores do positivismo. Durkheim costumava afir- mar que o considerava o iniciador do positivismo e o verdadeiro pai da sociologia, em vez de Comte, que geralmente tern merecido esse destaque. Dono de uma cabec;a fertil em ideias e de urn espfrito irrequieto, Saint-Simon sofreu a influencia de ideias iluministas e revolucionarias, mas tambem foi seduzido pelo pensa- mento conservador. Teve como urn de seus mestres, ou melhor, como preceptor, o famoso filosofo ilumi- nista D' Alambert, sendo senslvel tambem as formula- c;oes de Bonald, urn notorio conservador. Vamos aqui , rapidamente, destacar mais o seu lado positivista, par- tanto a sua dimensao conservadora. Saint-Simon tern sido geralmente considerado o "mais eloquente dos profetas da burguesia", urn grande •• •••• 0 que e sociologia 41 entusiasta da sociedade industrial. A sociedade france- sa pos-revoluciomiria, no entanto, parecia-lhe "per- turbada" , pais nela reinava, segundo ele, urn clima de "desordem" e de "anarquia". Uma vez que todas as re- lac,;:oes sociais tinham se tornado instaveis, o problema a ser enfrentado, em sua opiniao, era o da restaurac,;:ao da ordem. Ele percebia novas forc,;:as atuantes na sociedade, capazes de propiciar uma nova coesao social. Em sua visao, a nova epoca era a do industrialismo, que trazia consigo a possibilidade de satisfazer todas as necessi- dades humanas e constitula a unica fonte de riqueza e prosperidade. Acreditava tambem que o progresso econ6mico acabaria com os conflitos sociais e traria seguranc,;:a para os homens. A func,;:ao do pensamento social neste contexto deveria ser a de orientar a indus- tria e a produc,;:ao. A uniao dos industriais com os homens de cien- cia, formando a elite da sociedade e conduzindo seus rumos era a forc,;:a capaz de trazer ordem e harmonia a emergente sociedade industrial. A ciencia, para ele, poderia desempenhar a mesma func,;:ao de conservac,;:ao social que a religiao tivera no perlodo feudal. Os cien- tistas, ao estabelecerem verdades que seriam aceitas por todos os homens, ocupariam o papel que possufa o clero na sociedade feudal, ao passo que os fabrican- tes, os comerciantes e os banqueiros substituiriam os senhores feudais. Essa nova elite estabeleceria os obje-... ...... 42 Carlos B. Martins tivos da sociedade, ocupando, para tanto, uma posic;ao de mando frente aos trabalhadores. 0 avanc;o que estava ocorrendo no conhecimen- to cientffico foi percebido por ele, que notou, no entan- to uma grande lacuna nesta area do saber. Tratava-se, exatamente, da inexistencia da ciencia da sociedade. Ela era vital, em sua opiniao, para o estabelecimento da nova ordem social. Esta deveria, em suas investiga- c;oes. utilizar os mesmos rnetodo das cienciac; naturais. A nova ciencia deveria descobrir as le1s do progresso e do desenvolvimento social. Mesmo tendo uma visao otimista da sociedade industrial. ele admitia a existencia de conAitos entre os possuidores e os nao possuidores.No entanto, acre- ditava que os primeiros tinham a posslbilidade de ate- nuar este conAito apelando a medidas repressivas ou elaborando novas norma que orientassem a conduta dos individuos. Admitia que a segunda escolha era mais eficiente e racional. Caberia, portanto, a ciencia da so- ciedade descobrir essas novas normas que pudessem guiar a conduta da classe trabalhadora, re -reando seus posslveis lmpetos revolucionarios. Jamais ocultou sua crenc;a de que as melhorias das condic;oes de vida dos trabalhadores dever·iarn ser iniciativa da lite rormada pelos it1dustriais e cientistas. Varias das ideias de Saint-Simon seriam retoma- das por Auguste Comte (1798-1857), pensador menos •• •••• 0 que e sociologia 43 original, embora mais sistematico que Saint-Simon. Durante urn certo perfodo, Comte foi seu secretario particular, ate que se desentenderam intelectualmente. Varios historiadores do pensamento social tern obser- vado que Comte, em boa medida, deve suas principais ideias a Saint-Simon. Ao contrario desse pensador, que possufa uma faceta progressista, posteriormente incor- porada ao pensamento socialista, Comte e urn pensa- dor inteiramente conservador, urn defensor sem ambi- guidades da nova sociedade. A motiva<;;ao da obra de Comte repousa no es- tado de "anarquia" e de "desordem" de sua epoca his- t6rica. Segundo ele, as sociedades europeias se encon- travam em urn profunda estado de caos social. Em sua visao, as ideias religiosas haviam ha muito perdido sua for<;;a na conduta dos homens e nao seria a partir delas que se daria a reorganiza<;;ao da nova sociedade. Muito menos das ideias dos iluministas. Comte era extrema- mente impiedoso no seu ataque a esses pensadores, a quem chamava de "doutores em guilhotina", vendo em suas ideias o "veneno da desintegra<;;ao social". Para ele, a propaga<;;ao das ideias iluministas em plena socie- dade industrial somente poderia levar a desuniao entre OS homens. Para haver coesao e equilibria na sociedade seria necessaria restabelecer a ordem nas ideias e nos conhecimentos, criando urn conjunto de cren<;;as co- muns a todos os homens . •• ...... 44 Carlos B. Martins Convicto de que a reorganiza<;ao da sociedade exigiria a elabora<;ao de urn a nova rnaneira de conhecer a realidade, Comte procurou estabelecer os princfpios que deveriarn nortear os conhecirnentos hurnanos. Seu ponto de partida era a ciencia e o avan<;o que ela vinha obtendo ern todos os campos de investiga<;ao. A fila- sofia, para ele, deixava de ser urna atividade indepen- dente, corn propositos e finalidades especfficas, para ser reduzida a uma rnera disciplina auxiliar da ciencia, tendo por fun<;ao refletir sobre os metodos e os resul- tados alcan<;ados por ela. A verdadeira filosofia, no seu entender, deveria proceder diante da realidade de forma "positiva". A es- colha desta ultima palavra tinha a inten<;ao de diferen- ciar a filosofia por ele criada da fi losofia do seculo XVIII, que era negativa, ou seja, contestava as institui<;6es so- ciais que arnea<;;avarn a liberdade dos hornens. A sua filosofia positiva era, nesse sentido, urna clara rea<;;ao as tendencias dos ilurninistas. 0 espfrito positivo, ern oposi<;;ao a filosofia iluminista, que ern sua visao apenas criticava, nao possufa carater destrutivo, mas estava exatarnente preocupado ern organizar a realidade. Ern seus trabalhos, sociologia e positivisrno apa- recem intimamente ligados, uma vez que a cria<;;ao desta ciencia rnarcaria o triunfo final do positivismo no pensamento humano. 0 advento da sociologia re- presentava para Comte o coroamento da evolu<;;ao do •• •••• F 0 que e sociologia 45 conhecimento cientffico, ja constitufdo em varias areas do saber. A matematica, a astronomia, a frsica, a qui- mica e a biologia eram ciencias que ja se encontravam formadas, faltando, no entanto, fundar uma "frsica so- cial", ou seja, a sociologia. Ela deveria utilizar em suas investigac;;6es os mesmos procedimentos das ciencias naturais, tais como a observac;;ao, a experimentac;;ao, a comparac;;ao etc. 0 positivismo procurou oferecer uma orienta- c;;ao geral para a formac;;ao da sociologia ao estabelecer que ela deveria basicamente proceder em suas pes- quisas com o mesmo estado de espfrito que dirigia a astronomia ou a ffsica rumo a suas descobertas. A so- ciologia deveria, tal como as demais ciencias, dedicar- -se a busca dos acontecimentos constantes e repetiti- vos da natureza. Comte considerava urn dos pontos altos de sua sociologia a reconciliac;;ao entre a "ordem" e o "pro- gresso"' pregando a necessidade mutua destes dois elementos para a nova sociedade. Para ele, o equfvoco dos conservadores ao desejarem a restaurac;;ao do ve- lho regime feudal era postular a ordem em detrimento do progresso. lnversamente, argumentava, os revolu- cionarios preocupavam-se tao so mente com o "pro- gresso", menosprezando a necessidade de ordem na sociedade. A sociologia positivista considerava que a ordem existente era, sem duvida alguma, o ponto de ... •••• 46 Carlos B. Martin s partida para a constrU<;ao da nova sociedade. Admitia Comte que algumas reformas poderiam ser introduzi- das na sociedade- mudanc;as que seriam comandadas pelos cientistas e industriais -, de tal modo que o pro- gresso constituiria uma consequencia suave e gradual da ordem. Tambem para Durkheim (1858-1917) a questao da ordem social seria uma preocupac;ao constante. De forma sistematica, ocupou-se tambem em estabelecer o objeto de estudo da sociologia, assim como indicar o seu metodo de investigac;ao. E por meio dele que a sociologia penetrou a Universidade, conferindo a essa disciplina o reconhecimento academico. Sua obra foi elaborada num perfodo de constan- tes crises economicas, que causavam desemprego e mi- seria entre OS trabalhadores, Ocasionando 0 aguc;amen- to das lutas de classes, com os operarios passando a uti- lizar a greve como instrumento de luta e fundando os seus sindicatos. Nao obstante essa situac;ao de conAito, o infcio do seculo XX tambem e marcado por grandes progresses no campo tecnologico, como a utilizac;ao do petroleo e da eletricidade como fontes de energia, o que criava urn certo clima de euforia e de esperanc;a em torno do progresso economico. Vivendo numa epoca em que as teorias socia- listas ganhavam terreno, Durkheim nao podia desco- nhece-las, tanto que as suas ideias, em certo sentido, •• •••• 0 que e sociologia 47 constitufam a tentativa de fornecer uma resposta as formulac;:oes socialistas. Discordava das teorias socia- Jistas, principalmente quanto a enfase que elas atri- bufam aos fatos economicos para diagnosticar a crise das sociedades europeias. Durkheim acreditava que a raiz dos problemas de seu tempo nao era de natureza economica, mas sim uma certa fragilidade da moral da epoca em orientar adequadamente 0 comportamen- to dos indivfduos. Com isso, procurava destacar que os programas de mudanc;:a esboc;:ados pelos socialistas, que implicavam modificac;:oes na propriedade e na re- distribuic;:ao da riqueza, ou seja, medidas acentuada- mente economicas, nao contribufam para solucionar OS problemas da epoca. Para ele, seria de fundamental importancia en- contrar novas ideias morais capazes de guiar a conduta dos indivfduos. Considerava que a ciencia poderia, por meio de suas investigac;:oes, encontrar soluc;:oes nesse sentido. Compartilhava com Saint-Simon a crenc;:a de que os valores morais constitufam urn dos elementos eficazes para neutralizar as crises economicas e polfti- cas de sua epoca hist6rica. Acreditava tambem que era a partir deles que se poderia criar relac;:oes estaveis e duradouras entre os homens. Possufa uma visao otimista da nascente socieda- de industrial. Considerava que a crescente divisao do trabalho que estava ocorrendo a todo vapor na socie- •• •••• 48 Carlos B. Ma rtins dade europeia acarretava, em vez de conflitos sociais, urn senslvel aumento da solidariedadeentre os homens. De acordo com ele, cada membro da sociedade, tendo uma atividade pro-fissional mais especializada, passava a depender cada vez mais do outro. Julgava, assim, que o efeito mais importante da divisao de trabalho nao era o seu aspecto economico, ou seja, o aumento da pro- dutividade, mas sim o fato de que ela tornava posslvel a uniao e a solidariedade entre os homens. Segundo Durkheim, a divisao do trabalho deve- ria em geral provocar uma rela<;ao de coopera<;ao e de solidariedade entre os homens. No entanto, como as transforma<;oes socioeconomicas ocorriam velozmen- te nas sociedades europeias, inexistia ainda, de acordo com ele, urn novo e eficiente conjunto de ideias morais que pudesse guiar o comportamento dos indivlduos. Tal fato dificultava o "born funcionamento" da socieda- de. Essa situa<;ao fazia com que a sociedad~ industrial mergulhasse em urn estado de anomia, ou seja, experi- mentasse uma ausencia de regras claramente estabele- cidas. Para Durkheim, a anomia era uma demonstra<;ao contundente de que a sociedade encontrava-se social- mente doente. As frequentes ondas de suiddios na nascente sociedade industrial foram analisadas por ele como urn born indlcio de que a sociedade encontrava- -se incapaz de exercer controle sobre o comportamen- to de seus membros. • • •••• 0 que e sociologia 49 Preocupado em estabelecer urn objeto de estudo e urn metodo para a sociologia, Durkheim dedicou-se a essa questao, salientando que nenhuma ciencia pode- ria se constituir sem uma area propria de investigac;ao. A sociologia deveria tornar-se uma disciplina indepen- dente, pois existia urn conjunto de fenomenos na rea- lidade que se distinguia daqueles estudados por outras ciencias, nao se confundindo seu objeto, por exemplo, com a biologia ou a psicologia. A sociologia deveria se ocupar, de acordo com ele, com os fatos sociais que se apresentavam aos indivlduos como exteriores e coerci- tivos. 0 que ele desejava salientar com isso e que urn indivlduo, ao nascer, ja encontra pronta e constitulda a sociedade. Assim, o direito, os costumes, as crenc;as religiosas, 0 sistema financeiro foram criados nao por ele, mas pelas gerac;6es passadas, sendo transmitidos as novas por meio do processo de educac;ao. As nossas maneiras de comportar, de sentir as coisas, de curtir a vida, alem de serem criadas e es- tabelecidas "pelos outros", ou seja, por meio das ge- rac;6es passadas, possuem a qualidade de serem co- ercitivas. Com isso, Durkheim desejava assinalar o carater impositivo dos fatos sociais, pois, segundo ele, comportamo-nos de acordo com o figurino das regras socialmente aprovadas. Ao enfatizar ao Iongo de sua obra o carater ex- terior e coercitivo dos fatos sociais, Durkheim menos- prezou a criatividade dos homens no processo hist6- •• ...... 50 Carlos B. Martins rico. Estes surgem sempre, em sua sociologia, como seres passives, jamais como sujeitos capazes de negar e transformar a realidade historica. 0 positivismo durkheimiano acreditava que a sociedade poderia ser analisada da mesma forma que os fen6menos da natureza. A partir dessa suposic;;ao, recomendava que o sociologo utilizasse em seus estu- dos os mesmos procedimentos das ciencias naturais. Costumava afirmar que, durante as suas investigac;;oes, o sociologo precisava se encontrar em urn estado de espfrito semelhante ao dos fl'sicos ou qufmicos. Disposto a restabelecer a "saude" da sociedade, insistia que seria necessaria criar novos habitos e com- portamentos no homem moderno, visando ao "born funcionamento" da sociedade. Era de fundamental im- portancia, nesse sentido, incentivar a moderac;;ao dos interesses econ6micos, enfatizar a noc;;ao de disciplina e de clever, assim como difundir o culto a sociedade, as suas leis e a hierarquia existente. A func;;ao da sociologia, nessa perspectiva, seria a de detectar e buscar soluc;;oes para os "problemas so- ciais", restaurando a "normalidade social" e se conver- tendo dessa forma numa tecnica de controle social e de manutenc;;ao do poder vigente. 0 seu pensamento marcou decisivamente a so- ciologia contemporanea, principalmente as tendencias que se tern preocupado com a questao da manuten- c;;ao da ordem social. Sua influencia no meio academico 10.%0 B\BLIOTECA CENTRAL &COLA DE ENFERMAGEM ... • fl. 0 que e sociologia 51 frances foi quase imediata, formando varios disdpulos que continuaram a desenvolver as suas preocupa<;:oes. A sua influencia fora do meio academico frances come- <;:ou um pouco mais tarde, por volta de 1930, quando, na lnglaterra, dais antropologos, Malinowski e Radcliffe- Brown, armaram a partir de seus trabalhos os alicerces do metoda de investiga<_;:ao funcionalista (busca de ex- plica<_;:ao das institui<;:oes sociais e culturais em termos da contribui<;:ao que estas fornecem para a manuten<_;:ao da estrutura social). No Estados Unidos, a partir daque- la data, as suas ideias come<;:aram a ganhar terreno no meio universitario, exercendo grande fasdnio em inu- meros pesquisadores. No entanto, foram dais sociologos americanos, Mertom e Parsons, em boa medida os res- ponsaveis pelo desenvolvimento do funcionalismo mo- derno e pela integra<;:ao da contribui<;:ao de Durkheim ao pensamento sociologico contemporaneo, destacando a sua contribui<;:ao ao progresso teorico dessa disciplina. * * * Se a preocupa<;:ao basica do positivismo foi com a manuten<_;:ao e a preserva<_;:ao da ordem capitalista, e 0 pensamento socialista que procurara realizar uma crfti- ca radical a esse tipo hist6rico de sociedade, colocando em evidencia os seus antagonismos e contradi<;:oes. E a partir de sua perspectiva teorica que a sociedade ca- pitalista passa a ser analisada como um acontecimento •• ...... BIB &CO 52 Carlos B. Martins transit6rio. 0 aparecimento de uma classe revoluciona- ria na sociedade- o proletariado- cria as condic;oes para o surgimento de uma nova teoria crftica da sociedade, que assume como tarefa te6rica a explicac;ao crftica da sociedade e como objetivo final a sua superac;ao. A formac;ao eo desenvolvimento do conhecimen- to sociol6gico crftico e negador da sociedade capitalista sem duvida liga-se a tradic;ao do pensamento socialis- ta, que encontra em Marx (1818-1883) e Engels (1820- 1903) a sua elaborac;ao mais expressiva. Esses pensa- dores nao estavam preocupados em fundar a sociologia como disciplina especffica. A rigor, nao encontramos neles a intenc;ao de estabelecer fronteiras rfgidas entre os diferentes campos do saber, tao ao gosto dos "espe- cialistas" de nossos dias. Em suas obras, disciplinas que hoje chamamos de antropologia, ciencia polftica, econo- mia, sociologia, estao profundamente interligadas, pro- curando oferecer uma explicac;ao da sociedade como urn todo, colocando em evidencia as suas dimens6es globais. Grosso modo, seus trabalhos nao foram elabo- rados nos bancos das universidades, mas com bastante frequencia no calor das lutas polfticas. A formac;ao te6rica do socialismo marxista cons- titui uma complexa operac;ao intelectual, na qual sao assimiladas de maneira crftica as tres principals cor- rentes do pensamento europeu do seculo passado, ou seja, o socialismo, a dialetica e a economia polftica (para •• •••• Marx e Engels . •• •••• 6 54 Carlos B. Martins maiores informa<;6es sabre a primeira corrente ver nes- ta cole<;ao 0 que e socialismo?). A persistencia na nascente sociedade industrial de rela<;6es de explora<;ao entre as classes sociais, ge- rando uma situa<;ao de miseria e de opressao, desen- cadeou levantes revoluciomirios por parte das classes exploradas. Paralelamente aos sucessivos movimentos revolucionarios que iam surgindo nos primordios do se- culo XIX na Europa Ocidental, aparecia tambem uma nova maneira de conceber a sociedade, que reivindica- va a igualdade entre todos os cidadaos, nao so do pan- to de vista politico, mas tambem quanta as condi<;6es sociais de vida.A questao que varios pensadores colo- cavam ja nao dizia respeito a atenua<;ao dos privilegios de algumas classes em rela<;ao a outras, mas a propria elimina<;ao dessas diferen<;as. 0 socialismo pre-marxista, tambem denomina- do "socialismo utopico", constitufa portanto uma clara rea<;ao a nova realidade implantada pelo capitalismo, principalmente quanta as suas rela<;6es de explora<;ao. Marx e Engels, ao tomarem contato com a literatura socialista da epoca, assinalaram as brilhantes ideias de seus antecessores. No entanto, nao deixaram de elabo- rar algumas crfticas a este socialismo, a fim de dar-lhe maior consistencia teorica e efetividade pratica. Geralmente, quando faziam o balan<;o crftico do socialismo anterior as suas formula<;6es, concentravam •• •••• F 0 que e sociologia 55 suas atenc,;6es em Saint-Simon, Owen e Fourier. Sa- !ientando sempre que possfve[ as ideias geniais desses pensadores, procuravam, no entanto, apontar as suas limitac,;6es. Assinalavam que as lacunas existentes nes- te tipo de socialismo possufam uma relac,;ao com o esta- gio de desenvolvimento do capitalismo da epoca, uma vez que as contradic,;6es entre burguesia e proletariado nao se encontravam ainda plenamente amadurecidas. Para eles, os socialistas utcSpicos elaboraram uma crftica a sociedade burguesa mas deixaram de apresen- tar os meios capazes de pro mover transformac,;6es radi- cais nesta sociedade. lsso se devia, na avaliac,;ao de Marx e Engels, ao carater profundamente apolftico desse so- cialismo. Os "utcSpicos" atuavam como representantes dos interesses da humanidade, nao reconhecendo em nenhuma classe social o instrumento para a concretiza- c,;ao de suas ideias. Acreditavam eles que, se o socialis- mo pretendesse ser mais do que mero desabafo crftico ou sonho utcSpico, seria necessaria empreender uma analise histcSrica da sociedade capitalista, colocando as claras suas leis de funcionamento e de transformac,;ao e destacando ao mesmo tempo os agentes histcSricos capazes de transforma-la. A filosofia alema da epoca de Marx encontrara em Hegel uma de suas mais expressivas figuras. Como se sabe, a dialetica ocupava posic,;ao de destaque em seu sistema filoscSfico (para maiores informac,;6es sabre este •• •••• 56 Carlos B. Martins tema, ver, nesta cole~ao, 0 que e dialetica?). Ao toma- rem contato com a dialetica hegeliana, eles ressaltaram 0 seu carater revolucionario, uma vez que 0 metodo de analise de Hegel sugeria que tudo o que existia, devi- do as suas contradi~oes, tendia a extinguir-se. A crftica que eles faziam a dialetica hegeliana se dirigia ao seu carater idealista. 0 idealismo de Hegel postulava que o pensamento ou o espfrito criava a realidade. Para ele, as ideias possufam independencia diante dos objetos da realidade, acreditando que os fenomenos existentes eram proje~oes do pensamento. Ao constatar o carater idealista da dialetica he- geliana, procuraram "corrigi-la", recorrendo para tanto ao materialismo filos6fico de seu tempo. Mas para eles o materialismo entao existente tambem apresentava falhas, pois era essencialmente mecanicista, isto e, con- cebia os fenomenos da realidade como permanentes e invariaveis. Segundo eles, esse materialismo estava em descompasso .com o progresso das ciencias naturais, que ja haviam colocado em relevo o funcionamento dina.mico dos fenomenos investigados, desqualifican- do uma interpreta~ao que analisava a natureza como coisa invariavel e eterna. Paralelamente ao avan~o das pesquisas sobre 0 carater dinamico da natureza, OS fre- quentes conftitos de classes que ocorriam nos pafses capitalistas mais avan~ados da epoca levavam Marx e Engels a destacar que as sociedades humanas tambem se encontravam em continua transforma~ao, e que o •• •••• F 0 que e sociologia 57 motor da hist6ria eram os conftitos e as oposi~oes entre as classes sociais. A aplica~ao do materialismo dialetico aos feno- menos sociais teve o merito de fundar uma teoria cien- tffica de inegavel alcance explicative: o materialismo hist6rico. Eles haviam chegado a conclusao de que seria necessaria situar o estudo da sociedade a partir de sua base material. Tal constata~ao implicava que a inves- tiga~ao de qualquer fenomeno social deveria partir da estrutura economica da sociedade, que a cada epoca constitufa a verdadeira base da hist6ria humana. A partir do momenta em que constataram serem os fatos economicos a base sobre a qual se apoiavam os outros nfveis da realidade, como a religiao, a arte e a polftica, e que a analise da base economica da socieda- de deveria ser orientada pela economia polftica, e que ocorre o encontro deles com os economistas da Escola Classica, como Adam Smith e Ricardo. Uma das principais crfticas que dirigiam aos eco- nomistas classicos dizia respeito ao fato destes supo- rem que a produ~ao dos bens materiais da sociedade era obra de homens isolados, que perseguiam egoisti- camente seus interesses particulares. De fato, assinala- vam Marx e Engels, na sociedade capitalista o interesse economico individual fora tornado como um verdadeiro objetivo social, sendo voz corrente nessa sociedade que a melhor maneira de garantir a felicidade de todos seria os indivfduos se entregarem a realiza~ao de seus neg6- •• ...... 58 Carlos B. Martins cios particulares. No entanto, admitir que a produgao da sociedade fosse realizada por indivfduos isolados uns dos outros, como imaginava a escola classica, nao pas- sava, segundo eles, de uma grande ficgao. Argumentando contra essa concepgao extre- mamente individualista, procuravam assinalar que o homem era urn animal essencialmente social. A ob- servagao historica da vida social demonstrava que os homens se achavam inseridos em agrupamentos que, dependendo do perfodo historico, poderia ser a tribo, diferentes formas de comunidades ou a famflia. A teoria social que surgiu da inspiragao marxista nao se limitou a ligar polftica, filosofia e economia. Ela deu urn passo a mais, ao estabelecer uma ligagao entre teoria e pratica, ciencia e interesse de classe. 0 pro- blema da verdade nao era para eles uma simples ques- tao teorica, distante da realidade, uma vez que e no terreno da pratica que se deve demonstrar p. verdade da teoria. 0 conhecimento da realidade social deve se converter em urn instrumento politico, capaz de orien- tar os grupos e as classes sociais para a transformac;ao da sociedade. A func;ao da sociologia, nessa perspectiva, nao era a de solucionar os "problemas sociais", com o pro- posito de restabelecer o "born funcionamento da socie.:. dade", como pensavam os positivistas. Longe disso, ela deveria contribuir para a realizac;ao de mudangas radi- cais na sociedade. Sem duvida, foi o socialismo, princi- •• •••• 0 que e sociologia 59 palmente o marxista, que despertou a vocac;iio crltica da sociologia, unindo explicac;iio e alterac;iio da socie- dade, e ligando-a aos movimentos de transformac;iio da ordem existente. Ao contrario do positivismo, que procurou elabo- rar uma ciencia social supostamente "neutra" e "impar- cial", Marx e varios de seus seguidores deixaram claro a Intima relac;iio entre o conhecimento por eles produ- zido e os interesses da classe revolucionaria existente na sociedade capitalista - o proletariado. Observava Marx, a esse respeito, que, assim como os economistas classicos eram os porta-vozes dos interesses da bur- guesia, os socialistas e os comunistas constitufam, por sua vez, os representantes da classe operaria. Vimos anteriormente que a sociologia positivista preocupou-se com os problemas da manutenc;ao da or- dem existente, concentrando basicamente sua atenc;iio na estabilidade social. Como consequencia desse enfo- que, as situac;6es de conflito existentes na nascente so- ciedade industrial foram em larga medida omitidas por essa vertente sociol6gica. Comprometido com a trans- formac;iio revolucionaria da sociedade, o pensamento marxista procuroutomar as contradi<;;6es do capitalis- mo como urn de seus focos centrais. Para Marx, assim como para a maioria dos marxistas, a \uta de classes, e niio a "harmonia" social, constitula a realidade concre- ta da sociedade capitalista. Ao contrario da sociologia positivista, que via na crescente divisiio do trabalho na •• ...... 60 Carlos B. Martins sociedade moderna uma fonte de solidariedade entre os homens, Marx a apontava como uma das formas pe- l as quais se realizavam as relac;oes de explorac;ao, anta- gonismo e alienac;ao. As contradigoes que brotavam no capitalismo e que o caracterizavam, derivavam grosso modo do anta- gonismo entre o proletariado e a burguesia. Os traba- lhadores encontravam-se completamente expropria- dos dos instrumentos de trabalho, confiscados pelos capitalistas. Estavam submetidos a uma dominagao economica, uma vez que se encontravam exclufdos da posse dos meios de trabalho. A dominagao estendia- se ao campo politico, na medida em que a burguesia utilizava o Estado e seus aparelhos repressivos, como a polfcia e o exercito, para impor os seus interesses ao conjunto da sociedade. A dominagao burguesa esten- dia-se tambem ao plano cultural, pais, ao dominar os meios de comunicac;ao, difundia seus valores e con- cepc;oes as classes dominadas. Contrariamente a sociologia positivista, que con- cebia a sociedade como urn fenomeno "mais importan- te" que os indivfduos que a integram, submetendo-o e dominando-o, a sociedade, nessa perspectiva, era con- cebida como obra e atividade do proprio homem. Sao os indivfduos que, vivendo e trabalhando, a modificam. Mas, acrescentavam eles, os indivfduos nao a modifi- •• •••• 0 que e sociologia 61 cam ao seu belprazer, mas a partir de certas condic;oes historicas existentes. A sociologia encontrou na teoria social elabo- rada por Marx e Engels urn rico legado de temas para posteriores pesquisas. Forneceram uma importante contribuic;ao para a analise da ideologia, para a com- preensao das relac;oes entre as classes sociais, para o entendimento da natureza e das func;oes do Estado, para a questao da alienac;ao etc. De consideravel va- lor, deve ser destacado 0 legado que deixaram as cien- cias sociais: a aplicac;ao do materialismo dialetico ao estudo dos fenomenos sociais. A sociologia encontrou tambem, nessa vertente de pensamento, inspirac;ao para se tornar urn empreendimento crltico e militante, desmistificador da civilizac;ao burguesa, e urn compro- misso com a construc;ao de uma ordem social na qual fossem eliminadas as relac;oes de explorac;ao entre as classes sociais. * * * A intenc;ao de conferir a sociologia uma reputa- c;ao cientffica encontra na figura de Max Weber (1864- 1920) urn marco de referencia. Durante toda a sua vida, insistiu em estabelecer uma clara distinc;ao entre o co- nhecimento cientffico, fruto de cuidadosa investigac;ao, e os julgamentos de valor sobre a realidade. Com isso, •• •••• 62 Carlos B. Martins desejava assinalar que urn cientista nao tinha o direito de possuir, a partir de sua profissao, preferencias polfti- cas e ideol6gicas. No entanto, julgava ele, sendo todo cientista tam bern urn cidadao, poderia ele assumir posi- <;;:oes apaixonadas em face dos problemas economicos e politicos, mas jamais deveria defende-los a partir de sua atividade profissional. A busca de urn a neutralidade cientffica levou We- ber a estabelecer uma rigorosa fronteira entre o cientis- ta, homem do saber, das analises frias e penetrantes, e o politico, homem de a<;;:ao e de decisao comprometido com as questoes praticas da vida. 0 que a ciencia tern a oferecer a esse homem de a<;;:ao, segundo Weber, e urn entendimento claro de sua conduta, das motiva<;;:oes e das consequencias de seus atos. Essa posi<;;:ao de Weber, que tantas discussoes tern provocado entre os cientistas sociais, constitui, ao isolar a sociologia dos movimentos revolucionarios, urn dos momentos decisivos da profissionaliza<;ao dessa disciplina. A ideia de uma ciencia social neutra seria urn argumento uti! e fascinante para aqueles que viviam e iriam viver da sociologia como profissao. Ela abria a pos- sibilidade de conceber a sociologia como urn conjunto de tecnicas neutras que poderiam ser oferecidas a qual- quer comprador publico ou privado. Varios estudiosos da forma<;;:ao da sociologia tern assinalado, no entanto, que a neutralidade defendida por Weber foi urn recurso •• •••• 0 que e socio/ogio 63 utilizado por elena !uta pela liberdade intelectual, uma forma de manter a autonomia da sociologia em face da burocracia e do Estado alemao da epoca. A produgao da vasta obra de Weber ocorreu num perlodo de grande surto de industrializagao e crescimento economico, levado a cabo por Bismarck e continuado por Guilherme II. Tratava-se de uma indus- trializagao tardia, comparada com a industrializagao da lnglaterra e da Franga. 0 capitalismo industrial ale- mao nao nasceu de uma ruptura radical com as forgas feudais tradicionais, tal como se verifica na sociedade francesa. 0 arranque economico da Alemanha des- sa epoca foi realizado com base em um compromisso entre os interesses dos latifundiarios prussianos - os Junkers- e os empresarios industriais do oeste alemao. A classe trabalhadora, constitulda por mais da metade da populagao, estava submetida a uma rlgida disciplina nas fabricas, a prolongadas jornadas de trabalho, o que a levava a desencadear, de forma organizada, uma !uta por seus direitos politicos e sociais. A debilidade da burguesia alema da epoca para controlar o poder politico, mesmo dominando a vida economica, abriu um formidavel espa<;o para a buro- cracia enfeixar em suas maos a diregao do Estado. Essa burocracia, que geralmente recrutava seus membros na nobreza, passava a impor a toda a sociedade suas op<;oes polfticas, exercendo um verdadeiro despotismo •• •••• 64 Carlos B. Martins burocratico. E nesse contexto de impotencia polltica da burguesia que Weber observou, certa vez , que o que o preocupava nao era a ditadura do proletariado, mas sim a "ditadura do funcionario", numa clara alusao ao poder conferido ao funcionario prussiano. 0 surto de crescimento econ6mico que vivia a sociedade alema des sa epoca teria repercuss6es em sua vida academica. A universidade tambem enriqueceria e o professor pequeno-burgues, atormentado com pro- blemas de subsistencia, deu Iugar ao docente de classe alta ou media, com tempo para pesquisas e sem fortes press6es para publica-las. A forma<;ao da sociologia desenvolvida por We- ber e influenciada enormemente pelo contexto inte- lectual alemao de sua epoca. lncorporou em seus tra- balhos algumas ideias de Kant, como a de que todo ser humano e dotado de capacidade e vontade para assumir uma posigao consciente diante do mundo. Compartilhava com Nietzsche uma visao pessimis- ta e melanc6lica dos tempos modernos. Com Sam- bart possula a preocupa<;ao de desvendar as origens do capitalismo. Em Heidelberg, em cuja universidade foi catedratico entre os anos de 1906 e 1910, entrou em contato com Troeltsch, estudioso da religiao, que ja havia evidenciado a liga<;ao entre a teologia calvi- nista e a moral capitalista. Durante o perfodo em que permaneceu naquela cidade, travou relag6es com fi- •• •••• 0 que e sociologia 65 guras destacadas no meio academico, como Toennies, Windelband, Simmel, Georg Lukacs e varios outros, alguns dos quais frequentavam a sua casa. Weber receberia tam bern forte influencia do pen- samento marxista, que a essa epoca ja havia penetra- do o mundo politico e universitario. Boa parte de suas obras foi realizada para testar o acerto da concepr;;ao marxista, principalmente no que dizia respeito a rela- c;;ao entre a economia e as outras esferas da vida social. Suas inumeras pesquisas indicavam, ate certo ponto, em sua visao, o acerto das relac;;oes estabelecidas por Marx entre economia, polltica e cultura. Mas para ele nao possufa fundamento
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