Buscar

DOLO E CULPA PROF RALPH

Prévia do material em texto

O Dolo Eventual e a Culpa Consciente nos Delitos de Trânsito
O tema proposto é importante. Muito se tem escrito a seu respeito. Doutrina e Jurisprudência têm se posicionado de forma clara em torno dele. Não há, no caso, distinções conceituais que dificultem sua compreensão. Como se verá, as dessemelhanças entre as duas situações a serem tratadas apresentam nitidez, não dando margem a dúvidas.
 I -Uma Breve Análise do Dolo e da Culpa
Para o bom entendimento do debate que envolve o tema em referência, fizemos profunda pesquisa doutrinária e jurisprudencial, de sorte a tentar melhor aclarar a questão. Para a compreensão da diferença existente entre o dolo eventual e a culpa consciente, é necessário, antes de tudo, o conhecimento das duas grandes espécies de crime do Código Penal Brasileiro: o crime doloso e o crime culposo.
No Código Penal, o crime doloso está definido no artigo 18, inciso I. 
Art. 18, inciso I: “Diz-se o crime: I – doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;”
Cometido o crime de homicídio (matar alguém) com dolo, a pena varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, podendo ser de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, na hipótese de homicídio qualificado.
O crime culposo está definido também no artigo 18, apenas que em seu inciso II.
Art. 18, inciso II: “Diz-se o crime: II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.
Na hipótese de homicídio culposo praticado na direção de veículo, diz o artigo 302, da Lei 9.503/97 (Código Nacional de Trânsito): 
“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.
No Dicionário Houaiss, o mais completo da língua portuguesa, Dolo e culpa estão definidos das seguintes formas: 
“Dolo em direito penal, é a deliberação de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que se está fazendo”;
“Culpa no direito penal, é o ato voluntário, proveniente de imperícia, imprudência ou negligência, de efeito lesivo ao direito de outrem”.
Como se percebe, age com dolo aquele que quer o resultado criminoso ou assume o risco de produzi-lo, com o conhecimento da criminalidade do seu ato. Age com deliberação de violar a lei.
Por sua vez, procede com culpa quem realiza um ato por imperícia, imprudência ou q negligência, ofendendo direito de outrem.
E o que vêm a ser imperícia, imprudência ou negligência? Como visto, são formas de realização do crime culposo. Ou seja: o agente pode praticar um crime culposo, seja por imprudência, por negligência ou por imperícia.
Para tornar mais claro o entendimento, vamos especificar o conceito dessas modalidades de culpa (imprudência, negligência ou imperícia). 
Segundo Cezar Roberto Bitencourt (Manual de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1, pág. 205):
“Imprudência é a prática de uma conduta arriscada ou perigosa”.
“Negligência é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias, não o faz”.
“Imperícia é a falta de capacidade, despreparo ou insuficiência de conhecimento técnico para o exercício de arte, profissão ou ofício”.
Outro grande jurista, Paulo José da Costa Jr (“Direito Penal: Curso Completo”, 8ª ed. Págs. 82 e seguintes) também define as três formas de crime culposo, apenas que com outras palavras: 
Primeiro, ele define o que é culpa: “A culpa é a prática voluntária de uma conduta, sem a devida atenção ou cuidado, da qual deflui um resultado previsto na lei como crime, não desejado nem previsto, mas previsível”.
Depois, define cada uma das suas modalidades:
“A imprudência é uma culpa positiva in agendo: o agente faz o que não deve (imprime velocidade ao veículo, incompatível com as condições de tráfego)”.
“A negligência é uma forma de culpa negativa, in ommitendo (o agente não troca as pastilhas gastas do freio)”.
“Imperícia é a culpa técnica, em que o agente mostra-se inabilitado para o exercício de determinada profissão, embora possa estar credenciado por diploma, que é mera presunção de competência”.
Assim, aquele que realiza uma ultrapassagem arriscada, sem o devido cuidado, e sem pretender dar causa a um acidente, mas que, por erro de cálculo, o ocasiona, age com culpa (não com dolo). O agente foi imprudente ao empreender a manobra.
II - Dolo Eventual e Culpa Consciente: Conceito e Entendimento Doutrinário.
Dentro das espécies de dolo e de culpa, há duas que têm maior interesse para nós. O dolo eventual e a culpa consciente.
No dolo eventual o agente criminoso sabe que o resultado lesivo pode ocorrer e mesmo assim ele age, aceitando-o. Assume o risco de produzi-lo. Ele (o agente), mesmo visualizando a possibilidade da ocorrência do ato ilícito, não interrompe a sua ação, admitindo, anuindo, aceitando, concordando com o resultado.
Já na culpa consciente, o agente, visualizando a possibilidade do resultado, acredita sinceramente que ele não vá ocorrer. Não quer a sua realização, e se esforça no sentido de tentar evitá-lo.
Como já analisado anteriormente, no dolo o agente quer o resultado, aceita o resultado. O criminoso atira contra alguém querendo matar essa pessoa. Age dolosamente. Já no crime culposo, o agente não quer o resultado, mas pela forma imprudente, negligente ou imperita de agir, acaba causando o resultado, entretanto, frise-se, sem pretendê-lo. O policial, vendo uma vítima refém de um marginal, que está a ameaçá-la de morte, dispara contra ele, mas, por erro de pontaria (erro de cálculo), acerta a vítima, matando-a. O policial não queria o resultado, não queria matar a vítima. Logo, ele responderá por crime culposo, por homicídio culposo, se ficar comprovado que foi imprudente ao atirar naquelas condições impróprias.
Outro exemplo: um pai acorda durante a madrugada com barulhos estranhos. Percebe que alguém força a porta de seu quarto. Pega o seu revólver. Ao ver a porta se abrindo, assusta-se com o vulto de alguém. Ele atira. Em seguida, percebe haver matado seu próprio filho. Pretendia o pai esse trágico resultado? Claro que não. O que fica evidenciado é que ele foi imprudente ao ter atirado. Houve um erro de avaliação das circunstâncias. Logo deverá responder por homicídio culposo, pois não queria o resultado.
Para tornar mais claro o entendimento, vale transcrever a conceituação dada por alguns dos mais conhecidos juristas brasileiros:
a) - Julio Fabbrini Mirabete, in “Manual de Direito Penal”, vol. I, pág. 139 e seguintes:
Dolo: “Dolo é a vontade dirigida à realização do tipo penal. Assim, pode-se definir o dolo como a consciência e a vontade na realização da conduta típica, ou a vontade da ação orientada para a realização do tipo.”
Culpa: “Tem-se conceituado na doutrina o crime culposo como a conduta voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado”.
Dolo eventual: no dolo eventual “a vontade do agente não está dirigida para a obtenção do resultado; o que ele quer é algo diverso, mas prevendo que o evento possa ocorrer, assume assim mesmo o risco de causá-lo”.
Culpa Consciente: “A culpa consciente ocorre quando o agente prevê o resultado, mas espera, sinceramente, que não ocorrerá”. 
Diferença entre culpa consciente e dolo eventual: “A culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas com ela não se confunde. Naquela (na culpa consciente), o agente, embora prevendo o resultado, não o aceita como possível. Nesse (no dolo eventual), o agente prevê o resultado, não se importando que venha ele a ocorrer.”
b) - Fernando Capez, membro do Ministério Público, in “Curso de Direito Penal”, Parte Geral, Vol. 1, pág. 187:
“A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele ocorra (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a mataralguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir’). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas estou certo de que isso, embora possível não ocorrerá’). O traço distintivo entre ambos, portanto, é que no dolo eventual o agente diz: ‘não importa’, enquanto na culpa consciente supõe: ‘é possível, mas não vai acontecer de forma alguma’ ”.
***
c) - Cezar Roberto Bitencourt, in “Manual de direito Penal”, Parte Geral, vol. 1, pág. 205:
“Haverá dolo eventual quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas a aceitar como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado (art. 18, in fine, do CP). No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável, ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo. Como afirmava Hungria, assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer”.
Dolo: “É indispensável uma determinada relação de vontade entre o resultado e o agente e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa. Como lucidamente sustenta Alberto Silva Franco: ‘Tolerar o resultado, consentir em sua provocação, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único momento, o de aprovar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo’’’.
 Culpa: “Culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível”.
“Há culpa consciente, também chamada culpa com previsão, quando o agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, previsível, mas confia convictamente que ele não ocorra. Quando o agente, embora prevendo o resultado, espera sinceramente que este não se verifique, estar-se-á diante de culpa consciente e não de dolo eventual”.
“O fundamental é que o dolo eventual apresente estes dois componentes: representação da possibilidade do resultado e anuência à sua ocorrência; assumindo o risco de produzi-lo”.
“Por fim, a distinção entre dolo eventual e culpa consciente resume-se à aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. Persistindo a dúvida entre um e outra, dever-se-á concluir pela solução menos grave: pela culpa consciente”.
***
d) - Miguel Reale Júnior , in “Instituições de Direito Penal”, Parte Geral, vol. I, pág. 219 e seguintes:
Dolo Eventual: “O dolo é eventual quando o agente inclui o resultado possível, de forma indiferente, como resultado da ação que decide realizar, assentindo em sua realização, que confia possa se dar”.
“Diante de um resultado nocivo possível o agente arrisca e prefere agir, admitindo e não lhe repugnando assim a ocorrência do resultado”.
Culpa Consciente: “Sucede, todavia, que na culpa consciente tem o agente conhecimento de que o resultado pode ocorrer, no que não dá seu assentimento, próprio do dolo eventual”.
Diferença: “No dolo eventual une-se o assentimento à assunção do risco, a partir da posição do agente de que confia que pode ocorrer o resultado e assim mesmo age. Na culpa consciente assoma ao espírito do agente a possibilidade de causação do resultado, mas confia ele que este resultado não sucederá. Na culpa consciente o agente considera que tudo andará bem, tudo vai dar certo”.
***
e) - Nelson Hungria, in “Comentários ao Código Penal”, vol. I, Tomo II, Ed.Forense, 4ª edição, págs 114 e seguintes:
Dolo Eventual: “Na conceituação do dolus eventualis, VON LISZT e FRANK aderem iniludivelmente à teoria da vontade quando, em tal caso, declaram insuficiente a simples representação do resultado e exigem para este o consentimento do agente. Ora, consentir no resultado não é senão um modo de querê-lo (Pronuncia o ministro CAMPOS na sua Exposição de motivos: ‘É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu advento’)”.
Diferença entre Dolo Eventual e Culpa Consciente: “Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá”.
Exemplo dado por Hungria:
a) “Um motorista, dirigindo o seu carro com grande velocidade, já em atraso para atender ao compromisso de um encontro amoroso, divisa à sua frente um transeunte, que, à aproximação do veículo, fica atarantado e, vacilante, sendo atropelado e morto. Evidentemente, o motorista previu a possibilidade desse evento; mas, deixando de reduzir ou anular a marcha, teria aceito o risco de matar o transeunte, ou confiou em que este se desviasse a tempo de não ser alcançado? Na dúvida, a solução não pode ser outra senão a do reconhecimento de um homicídio simplesmente culposo (culpa consciente)”.
III - Trechos de artigos publicados abordando o Dolo Eventual e a Culpa Consciente em acidentes de Trânsito:
1- Artigo: “Dolo Eventual em Crimes de Trânsito”, de José Barcelos de Souza, Boletim IBCCrim, Ano 06, nº 73. 
“O que costuma ocorrer, efetivamente, em delitos de trânsito, não é um imaginado dolo eventual, mas uma culpa consciente, grau mais elevado da culpa, muito próxima do dolo, que, entretanto, não chega a configurar-se.”
“Entretanto, cumpre salientar que, a despeito da proximidade da culpa consciente com o dolo eventual, há enorme disparidade de penas. Seria muito difícil fazer jurados, em pouco tempo, durante um julgamento, entender a diferença, pois a matéria é difícil até mesmo para os que são do ramo. E, em verdade, a prova é também difícil, uma vez que dependeria muito da palavra do acusado contra si próprio, relatando o fato. Essa dificuldade foi salientada pelo desembargador José Loyola, de saudosa memória, em recurso da Comarca de Ouro Preto (MG), de que foi relator: ‘O fato decisivo para a necessária diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente é certamente a vontade do agente. Somente nos casos em que restar claramente evidenciado esse ‘querer’, poder-se-á falar em dolo eventual, que, nos delitos de trânsito, embora possível, é de difícil comprovação’. Desse modo, muito certamente o Júri irá, na dúvida, partir para uma solução menos severa, como, aliás, ponderavam os antigos doutores. Nem mesmo o chamado ‘racha’ se poderá dizer, só por isso, que teria havido dolo eventual, o que poderia fazer presumir um anormal comportamento suicida.”
***
2- Artigo: “Dolo Eventual, Culpa Consciente e Acidente de Trânsito”, de André Luís Callegari, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n º 13, pág. 191: 
“A conjugação das consciência e da vontade representa o cerne do dolo e esses dois momentos definidores não são estranhos ao dolo eventual que, como observa Díaz Palos, ‘es dolo antes que eventual’ (Dolo Penal, Barcelona, pág. 97)”.
“Assim, não basta para que haja dolo eventual que o agente considere sumamente provável que, mediante seu comportamento, se realize o tipo, nem que atua consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, e nem mesmo que torne a sério o perigo de produzir possível conseqüência acessória. Não é exatamente no nível atingido pelas possibilidades de concretização do resultado que se poderá decretar o dolo eventual e, sim, numa determinada relação de vontade entre esse resultado e o agente.”
“Tolerar o resultado, consentir em sua provocação, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único momento, o de aprovar o resultado alcançado, enfim, o que querê-lo.”
“Paulo José da Costa Jr. Coloca que o dolo eventual exigiria,de parte do agente, a aprovação ou consentimento ou, quando ao menos, um comportamento de absoluta indiferença.”
“Assim, mister que se faça tal distinção entre a conduta do agente, perquirindo-se a respeito de sua intencionalidade (vontade) no momento da causação do resultado danoso, visto que não será a embriaguez, o número de vítimas ou excesso de velocidade, entre outros motivos, que delinearão a imputação ao acusado, mas tão-somente, o seu consentimento para a produção ou não do resultado típico.”
“A pena aplicada é do delito culposo, devendo ser dosada de acordo com a culpabilidade do acusado.”
***
3- Artigo: “Crime de Trânsito: Interpretação e Crítica”, de João José Caldeira Bastos, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n º 25, pág. 174:
“Para Fabbrini Mirabete, por exemplo, quando da análise do tipo subjetivo do crime do artigo 132: ‘Querer o perigo ou aceitar o risco de sua ocorrência equivale a consentir no risco do resultado (morte ou lesão corporal)’ (Manual de Direito Penal, p. 9, ed. São Paulo: Atlas, 1995. v. 2, p. 127)”.
 “Quem dirige embriagado ou participa de ‘racha’ (mesmo quando perde o comando do volante e, subindo na calçada mata um ou mais pedestres) não age, em princípio, com dolo eventual de dano.”
“Pondera, com acerto, Edmundo José de Bastos Jr.: ‘Quando a atitude psíquica do agente não se revelar inequívoca, ou se há inafastável dúvida se houve, ou não, aceitação do risco do resultado, a solução deve ser baseada no princípio in dubio pro reo, vale dizer, pelo reconhecimento da culpa consciente’. E continua: ‘Nos delitos de trânsito, há um decisivo elemento de referência para o deslinde da dúvida entre dolo eventual e culpa consciente: o risco para o próprio agente. Com efeito, é difícil aceitar que um condutor de veículo, na plenitude de sua sanidade mental, seja indiferente à perda de sua própria vida – e, eventualmente, de pessoas que lhe são caras - em desastre que prevê como possível conseqüência de manobra arriscada que leva a efeito, como, por exemplo, uma ultrapassagem forçada ou sem visibilidade’ (Código Penal em Exemplos Práticos, Florianópolis, Terceiro Milênio e OAB/SC Editora, 1998, p. 58)”.
***
4- Artigo: “O Dolo Eventual nos Homicídios de Trânsito: Uma Tentativa Frustrada”, de Alexandre Wunderlich, RT 754/461, Doutrina Penal.
“No dolo eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota conspícua: não basta a caracterizá-lo tenha o agente assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita que nele haja consentido. Vindo ao nosso ponto: motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo eventual, cumpria que, além de ter assumido o risco de causar a morte da vítima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao bom senso e afronta a lição da experiência vulgar”.
“O dolo eventual não é um ‘dolo de borracha’. A elasticidade do conceito é tamanha que chegamos ao ponto de tentar caracterizar o dolo eventual em acidentes de trânsito, onde, num raciocínio lógico, seria impossível admitir-se a presença do elemento volitivo. 
Hungria já evidenciava essa perigosa elasticidade do conceito e chega a comentar um caso de tentativa de caracterização de dolo eventual em acidente de trânsito com choque frontal entre veículos: ‘principalmente na justiça de primeira instância, há uma tendência para dar elasticidade ao conceito de dolo eventual. Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados a opinar, pode ser citado o seguinte: três rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automóveis pela estrada que liga as cidades gaúchas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores não pode evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrário, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado, em estado gravíssimo, para um hospital, onde só várias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os três rapazes, vieram a ser pronunciados como co-autores de homicídio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente excesso de rigor: se estes houvessem previamente anuído a tal evento, teriam necessariamente, consentido de antemão na eventual eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas, evidentemente, confiaram em sua boa fortuna (sorte), afastando de todo a hipótese de que ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente, para o próprio suicídio’”.
“Ora, se em casos de colisão frontal entre veículos, em que agentes e vítima são encaminhados ao hospital com ferimentos graves (por exemplo), na análise deste sinuoso e complexo processo psicológico, houvesse o agente particularmente, em foro íntimo, previsto o acidente, teria ele consentido no resultado?”
“Agora, in colisão frontal ou semifrontal de automóveis, falar-se em dolo eventual, onde seria necessário que o agente previsse e consentisse com o resultado, quando sabidamente seria provável que o próprio agente viesse a falecer conjuntamente coma a vítima, data venia (!), seria darmos demasiada elasticidade ao conceito de dolo eventual. Além disso, no esteio da teoria do consentimento, adotada pelo Código Penal Brasileiro, seria juridicamente impossível.”
“Assim, parece-nos por demais perigosa a elasticidade do conceito de dolo eventual os acidentes de trânsito. Acreditamos, sinceramente, que, ao colocar a sua própria vida em jogo, o agente que colide seu veículo contra o de outrem não poderia, num raciocínio óbvio, consentir ou anuir com o resultado. Impossível a presença do elemento volitivo no enquadramento fático referido. Impossível tolerar a produção do resultado. Impossível haver consentimento, anuência, pelo simples fato de que, se o agente concordasse com o resultado morte da vítima, estaria, ao mesmo tempo, consentindo com a sua (possível e também provável) morte”.
“Destaque-se, por fim, que não só na ‘verdade fática’ deve o julgador, em caso de dúvida, escolher a tese que mais favoreça ao réu, mas sim também na ‘verdade jurídica’. Diante de toda esta complexa discussão e da dificuldade probatória, a solução não pode ser outra senão a do reconhecimento de um homicídio culposo. O contrário seria ferretear para todo o sempre o constitucional princípio da presunção de inocência: in dubio pro réu.”
IV - Decisões de nossos Tribunais a respeito do tema:
Decisões:
1-“Sensível é a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente, embora entre eles existam um traço comum, que é a previsão do resultado antijurídico. Mas, enquanto naquele o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Djalma Lofrano, RT 589:317).
2-“Na hipótese de dolo eventual, não é suficiente que o agente tenha se conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado: exige-se, mais, que ele tenha consentido no resultado” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Hélio Arruda, RT, 380:302).
3-“Nos casos em que não se revele inequívoca a atitude psíquica do agente, ou se há irredutível dúvida em face dos coligidos elementos de informação, sobre se houve, ou não, aceitação do risco (consentimento, aprovação, anuência, ratificação ex ante do resultado), a solução de acordo com in dubio pro reo, deve ser no sentido de reconhecimento da culpa consciente, isto é, da hipótese mais favorável.” (RJTJSP 89/385)
4-“Age culposamente e responde pelas conseqüências o motorista que, visando ultrapassar veículos estacionados, invade a contramão de direção de forma a impedir tráfego normal em sentido contrário, dando causa a colisão”. (Ac. unan., 2ª C. do TACrimSP, na Apel. nº 175.517, da Comarca de Tambaú. Rel. Juiz EDMOND ACAR – Julgados do TAC, vol.51/375).5-“Caracteriza imprudência a ultrapassagem de veículo sem as condições que a permitam, de modo a levar um terceiro veículo, vindo em sentido contrário, a manobra que normalmente não estaria obrigado, ocasionando a colisão do que ultrapassa com o terceiro, apesar daquelas manobras”. (Ac. unan., 4ª C. Do TACrim, na Apel. nº 62.885, da Comarca de Bragança Paulista, Rel. Juiz AZEVEDO JUNIOR – Julgados do TAC, Vol.3/59).
6-“Manifesta a culpa do motorista que, em rodovia, pretende ultrapassar veículo que segue à sua frente sem se certificar se poderia, com segurança, realizar a manobra e assim dá causa a acidente”. (Ac. unan., Apel. nº 133.001, da Comarca de Sertãozinho, Rel. Juiz GOULART SOBRINHO – RT 493/347).
7-“Evidente a culpa de quem, tentando ultrapassagem nas vizinhanças de lombada, força veículo que viaja em sentido contrário a manobra ‘in extremis’, de que resulta acidente. Irrelevante ao reconhecimento da responsabilidade penal, ter o acusado desistido da manobra, reingressando à sua mão de direção”. (Ac. unan., 1ª C. TACrim, na Apel. 80.651, da Comarca de Bebedouro, Rel. Juiz DINIO GARCIA – Julgados do TAC, vol. 35/218).
8-“Age imprudentemente o motorista que efetiva ultrapassagem em local impróprio à realização de manobra, máxime quando implique esta em invasão de contramão de direção”. (Ac. unan., 6ª C. do TACrim, na Apel. nº 114.629, da Comarca de São Paulo, Rel. Juiz GONÇALVES SOBRINHO – Julgados do TAC, vol. 39/212).
9-“Age com culpa evidentíssima, resvalando para a culpa consciente, o motorista que, dirigindo um caminhão tipo carreta, e procedendo de forma temerária e desnecessária, mas por espírito de emulação, força a ultrapassagem de outro veículo, passando a trafegar pela contramão de direção em condições que sabia ser de alto risco, considerando tratar-se de rodovia com duplo sentido de direção, dando causa à colisão frontal com automóvel que vinha em sentido contrário, em condições normais de trânsito e causa a morte de seus ocupantes.”(RJTACrim, Apel. nº 542.701/1, 2ª Câm. do TACRIMSP) 
10-“Ementa oficial: Procede com insigne culpa, na modalidade de imprudência, e responde pelo crime do art. 302 do Código de Trânsito, o motorista que, faltando ao dever de cuidado objetivo, entra na contramão de direção e intercepta a trajetória regular de veículo, provocando acidente fatal” RT 779/592
 V - Conclusão: 
De todo o exposto, podemos concluir que quando não há provas concretas, definitivas de que o acusado tenha agido com a intenção de causar o resultado, não poderá existir outra decisão senão no sentido de se reconhecer uma conduta culposa. Dolo eventual, como visto, é dolo, e por isso exige a anuência, a concordância, a aceitação do resultado. Somente se caracteriza o dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado, concordando com ele. Assumir o risco, sabemos, significa tolerar o resultado, consentir em sua realização e estar de acordo com ele. Existe uma considerável diferença, pois, enquanto no dolo eventual o agente dá o seu assentimento, a sua aquiescência, a sua anuência ao resultado lesivo, na culpa consciente não há qualquer adesão nesse sentido.
Embora seja até admissível, na hipótese de excesso de velocidade, ultrapassagem perigosa ou “racha”, que o agente tenha se arriscado a produzir o resultado, não se pode afirmar que concordou com ele, ou mesmo o consentiu. De parte as hipóteses de suicidas, seria muito forçado conceber-se que alguém possa tomar uma atitude admitindo (anuindo, assumindo, concordando) que dela poderá resultar sua própria morte. Até porque isso importaria na completa anulação do instinto de conservação, sempre presente nas pessoas que têm o psiquismo integrado. Não será exagero reiterar que quando exista dúvida quanto ao agente ter atuado com dolo eventual ou culpa consciente, a posição correta do Julgador será sempre a de definir-se pela solução mais favorável ao acusado. A solução adequada juridicamente, humanamente correta e justa na hipótese de dúvida, é a da desclassificação para o delito culposo. Só não será assim quando houver certeza plena, total, absoluta de que o agente teria agido com dolo eventual, concordando então, efetivamente, comprovadamente, com o resultado lesivo. Na dúvida, o caminho é a desclassificação.
Nesse sentido, é de se trazer à lume, desde que inteiramente ajustável à espécie em debate, a palavra abalizada de Nicola F. dei MALATESTA:
“Quando se tem presente que a condenação não se pode basear senão na certeza da culpabilidade, logo se vê que a credibilidade razoável, também mínima, da inocência, sendo destrutiva da certeza da culpabilidade, deve, necessariamente, conduzir à absolvição.”. “Lógica das Provas em Matéria Criminal”, vol. I, pág. 74.
Outro não tem sido, à evidência, o caminho trilhado por nossos Tribunais, ao deixarem estabelecido, de maneira incontroversa, que
“No processo criminal, máxime para condenar, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como qualquer expressão algébrica. Condenação exige certeza absoluta, fundada em dados objetivos indiscutíveis, de caráter geral, que evidenciem o delito e a autoria, não bastando a alta probabilidade desta ou daquela. E não pode, portanto, ser a certeza subjetiva, formada na consciência do julgador, sob pena de se transformar o princípio do livre convencimento em arbítrio.” RT 619/267.
“Sem a prova plena e verdadeira, a condenação será sempre uma injustiça e a execução da pena uma violência.” RT 582/288.
“É de conhecimento elementar que o Direito Penal não opera com conjecturas. A condenação criminal exige certeza da existência do fato punível, de autoria e culpabilidade do agente.” RT 534/416.
Finalizando, é importante reiterar a enorme diferença relativamente à pena aplicada em cada uma das duas hipóteses, o que exige ainda maior cuidado e atenção na abordagem do tema.
Admitido o dolo eventual, a pena variará de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, ou de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, na hipótese de homicídio qualificado.
Na hipótese de desclassificação para homicídio culposo, nos termos do artigo 302, da Lei 9.503/97 (Código Nacional de Trânsito), a pena será de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, com suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Assim, só mesmo a certeza plena, inequívoca pode possibilitar o enquadramento da conduta do agente na modalidade do dolo. Do contrário, em hipóteses de acidente na direção de veículo automotor, o caminho recomendável, obrigatório, tecnicamente correto, repita-se, será o da desclassificação para o homicídio culposo.
Ralph Tórtima Stettinger Filho
O autor é advogado criminal e professor 
de Direito Penal e Direito Processual Penal.
PAGE 
8

Continue navegando