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F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O UNIDADE 2 A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM Os objetivos desta unidade são: compreender as características, fundamentos e legado da cultura greco-romana no âmbito da Filosofia do Direito; identificar o contexto histórico desde o qual foi edificada a Filosofia Jurídica Medieval, destacadamente as correntes Patrística e Escolástica, de forma a individualizar os fundamentos desde os quais se edificou a cultura jurídica moderna; individualizar e caracterizar a cultura jurídica no contexto do pensamento filosófico medieval como pressuposto histórico e científico do Direito Moderno. TÓPICO 1 – O LEGADO GRECO-ROMANO TÓPICO 2 – O PENSAMENTO MEDIEVAL PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em dois tópicos e ao final de cada um deles você encontrará atividades que o auxiliarão no aprendizado. F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O O LEGADO GRECO-ROMANO 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 1 A partir dos estudos realizados na unidade anterior já é possível aprofundarmos melhor nossos estudos, especificamente na Filosofia do Direito, indo às raízes das questões centrais para as quais os pensadores do Direito buscaram soluções a fim de estabelecer fundamentos éticos, políticos e morais adequados para o agir jurídico. Inicialmente vamos lembrar que o estudo da Filosofia Geral e o da Jurídica, em geral, são associados com o processo de construção das ideias, métodos, conceitos e questionamentos ao longo da história do pensamento ocidental. Repetidamente os manuais acadêmicos costumam apresentar o desenrolar do pensamento de distintos autores desde a autorreferência, ou seja, é feita a reconstrução da história do pensamento filosófico sem o objetivo de discutir como as ideias podem mudar o mundo e como o mundo muda as ideias. Caso não estivermos atentos, podemos entrar em um interminável círculo de debates e reflexões, perdendo de vista a realidade que nos cerca e para a qual nossa preocupação deve estar voltada. Afinal, filosofar é uma atitude de questionamentos, porém devemos sempre ter o cuidado de não estar “nas nuvens”, pois se assim for, estaremos conhecendo tão somente a miséria da Filosofia e não a sua virtude. UNIDADE 2 NO TA! � A expressão “Miséria da Filosofia” foi usada pelo pensador Karl Marx como título de sua importante obra em 1847. Este livro, considerado por alguns como a base do marxismo, é uma resposta ao economista Pierre-Joseph Proudhon que havia escrito acerca das contradições do sistema econômico de sua época. A crítica de Marx à obra é porque sua obra era essencialmente acadêmica, uma vez que analisava e compreendia a realidade a partir de abstrações. Marx critica o método: compreender a realidade desde o “mundo das ideias”. Diríamos hoje que Marx critica o “academicismo”! UNIDADE 2TÓPICO 164 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O A miséria da Filosofia é ficar perdida dentro de si mesma, de sua tradição, ou seja, é esquecer sua maior finalidade: o agir social. Ao reconstruirmos a tradição do pensamento filosófico, não podemos esquecer que as ideias são produzidas desde um “cenário” histórico, cultural e ideológico provocativo, e para essas provocações é que os filósofos buscam respostas. Sempre há um “pano de fundo” impulsionando o agir, mas não estamos situados naquele contexto histórico. O que buscamos é enfrentar os desafios de nossa realidade e, para tanto, refazemos nossa trajetória não como puro lazer ou “passatempo”, mas estabelecendo uma relação entre o pensar e o agir, entre as ideias e a realidade, compreendendo a Filosofia como práxis. Práxis é uma palavra de origem grega, utilizada inicialmente por Aristóteles, que significa conduta ou ação. Portanto, refere-se à atividade oposta à teoria. Embora o termo tenha sido usado por muitos pensadores, foi em Karl Marx que ganhou ressignificação. De acordo com a filosofia marxista, práxis é o fundamento de toda teoria, qual seja, o de transformação da realidade. Marx utiliza o conceito como crítica ao idealismo, compreensão das coisas e do mundo a partir das ideias. Deixando de lado o idealismo vulgar e fantasioso (a face miserável do pensar) que trabalha a realidade não como é, mas como se imagina ser, é que vamos revisitar historicamente a construção do pensamento filosófico jurídico. Lembra o pensador Antonio Carlos Wolkmer que reexaminar a história do pensamento jurídico é dar uma nova leitura ao Direito, uma vez que: A história expressa a complexa manifestação da experiência humana interagida no bojo de fatos, acontecimentos e instituições. O caráter mutável, imperfeito e relativo da experiência humana permite proceder múltiplas interpretações dessa historicidade. Daí a formulação, ora de uma História oficial, descritiva e personalizada do passado, e que serve para justificar a totalidade do presente, ora da elaboração de uma História subjacente, diferenciada e problematizante que serve para modificar/recriar a realidade vigente (WOLKMER, 2007, p. 14). Como já estudamos, o pensamento jurídico hegemônico foi elaborado como uma espécie de “engenharia” social e política, relativamente bem-sucedido, na Modernidade, a partir de uma soma de fatores e elementos que possibilitaram a edificação de um projeto jurídico cientificista e técnico de matriz eurocêntrica. O eurocentrismo é uma concepção segundo a qual o espírito europeu é uma verdade absoluta e carrega em si um todo intelectual da humanidade. Esta concepção, chamada por Enrique Dussel como “paradigma eurocêntrico”, é a tese que acabou por impor tanto nas áreas centrais como nas periferias mundiais o pressuposto segundo o qual a modernidade é um fenômeno exclusivamente europeu desenvolvido desde a Idade Média e, desde aí, se difunde como “história mundial” (DUSSEL, 2012, p. 51). A Modernidade, vista pela perspectiva eurocêntrica, tem como antecedente a Idade Antiga e UNIDADE 2 TÓPICO 1 65 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O preparatória à Idade Média, e desde aí a Europa adquire lugar privilegiado e acumulador da construção do conhecimento. Apresentamos uma “linha do tempo” da Filosofia ocidental, é apenas uma imagem para situar-se. A história não é linear, tampouco a Filosofia é somente eurocêntrica. QUADRO 2 – FILOSOFIA OCIDENTAL ´ FONTE: Disponível em: <http://amorsaudeevida.blogspot.com.br/2014/04/linha-do-tempo-da-filosofia. html>. Acesso em: 20 jul. 2016. Vamos iniciar o estudo da trajetória da Filosofia do Direito buscando compreender: • Quais elementos caracterizaram cada momento da historicidade pré-moderna da filosofia jurídica. • As contribuições de cada etapa histórica ao pensamento jusfilosófico pré-moderno. • Como foram respondidas as grandes questões acerca da justiça e do direito em distintos momentos a partir de diferentes contextos. Na etapa contemporânea da vida social necessitamos redefinir nossa trajetória na tentativa de visibilizar um futuro mais generoso e humanizador, o que pretendemos desde uma revisão da história do pensamento filosófico do direito, pois, ao que parece: O direito perdeu sua identidade, rendeu-se a novos deuses: é visto como servo da economia, da política e da utilidade, enquanto exigimos que seja visto como fenômeno moral. Nunca antes, parece, exigiu-se tanto do direito; nunca antes investiu-se tão pouca autoridade nele (MORRISON, 2006, p. 17). UNIDADE 2TÓPICO 166 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O 2 DO MITO AO LOGOS Uma das problemáticas que se deve ter presente é acerca das fontes de estudo do direito e da filosofia grega e romana. Como boa parte da literatura jurídica e filosófica foi perdida, sobretudo a dos pré-socráticos, dos sofistas, de Demócrito, e tantos outros autores, nosso estudo deve ser completadopor outras fontes. Também se perderam escritos de Platão e Aristóteles, restando fragmentos e partes incompletas de importantes obras. FIGURA 14 - FRAGMENTO DA “ILÍADA” Fragmento da “I l íada”, de Homero, arquivada no Neues Museum, em Berlim, que preserva parte da obra. FONTE: Disponível em: <https://jrodrigorodriguez.wordpress.com/2010/02/07/berlim-e-hamburgo-aos- pedacos-xix-homero-ausente/>. Acesso em: 16 ago. 2016. Estamos acostumados a nos maravilharmos com a magistral obra dos juristas romanos e da genialidade da cultura grega, sem, muitas vezes, nos darmos conta das convergências entre ambas. A expansão do Império Romano e o aprimoramento da vida na pólis grega são fatores importantes para compreendermos a fundação de uma nova concepção de cidadania e política. Com diferenças e particularidades, o certo é que o espírito prático romanista e seu legado técnico de direito, um dos pilares da cultura ocidental, e a sofisticação da cultura grega vão encontrar na filosofia o ponto de encontro entre ambas. A ciência jurídica romana, no período clássico, tem na filosofia grega, particularmente no platonismo, paripatetismo e estoicismo, a fonte ética e moral de sustentação. Não que os romanos não tenham autonomia de pensamento, mas há de ser lembrado que a civilização romana foi plural e eclética, aprendendo ao longo de séculos de história de dominação a conviver e absorver distintas culturas. As primeiras especulações acerca da justiça na Grécia antiga são fundadas na teogonia – antiga narrativa da origem do cosmo e dos deuses –, que concebia, desde um politeísmo antropomórfico, a solução dos problemas humanos. A relação entre a natureza e os humanos UNIDADE 2 TÓPICO 1 67 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O estruturou o espírito inicial da filosofia. O que aconteceu foi que categorias com que teve que encarar o mundo na- tural foram tiradas da experiência da vida humana, intuitivamente expressa na mitologia, e deste modo se deve reconhecer, [...] que essas categorias (e em especial a noção de ‘lei’, aplicada aos fenômenos da realidade física) têm origem social. A passagem do mito para o logos, como se denominou o processo mental que deu lugar à filosofia enquanto conhecimento racio- nal rigoroso, não se deu de uma só vez, e por longo tempo coexistiram as duas modalidades de enfrentar o mistério do Ser (TRUYOL Y SERRA, 1982, p. 86, grifos nossos). A inicial filosofia helênica buscava compreender o enigma da existência humana desde o desvelamento do que seria o elemento essencial, primordial, estável e unitário que rege o cosmos humano e não humano. A esse princípio a que “todas as coisas” estão ligadas e a que “tudo volta” deram o nome de physis – natureza. Ao mesmo tempo, a vida humana ia se organizando na pólis – um espaço de convivência comunitária, um pequeno cosmos, a política e a autoderminação iam se consolidando. Assim, a pólis foi sendo o núcleo central articulador da cultura grega e manifestação jurídica-política, que somadas exprimem uma das maiores expressões civilizatórias da história. A visão de mundo complexa e particularmente grega deve ser compreendida a partir dos arquétipos tão marcantes daquela cultura. Subjacente às ideias era mantida uma visão de cosmo (kósmos – universo humano e não humano harmônico e estruturado), ordenado por princípios imutáveis e universais transcendentais concebidos desde formas e conceitos divinos. Embora distintos no pensar e em momentos históricos diferentes, os filósofos gregos manifestaram um desejo de encontrar os elementos e arquétipos ordenadores para o caos da vida. Esses princípios estavam ora nas formas geométricas e matemáticas; ora nos opostos (homem/mulher; luz/escuridão; amor/ódio; bem/mal, entre outros), ora nos valores morais e na justiça. FIGURA 15 - ATLAS Atlas ou Atlante é um dos titãs gregos – figuras de poderes desproporcionais de força e violência, desordem e caos –, condenado por Zeus a sustentar os céus para sempre. O castigo lhe foi imposto após tentar tomar o Olimpo. FONTE: Disponível em: <http://eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2010/10/atlas.html>. Acesso em: 16 ago. 2016. UNIDADE 2TÓPICO 168 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O No pensamento grego havia um permanente fluxo entre a vida interior e exterior: “tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo”, defendia Heráclito de Éfeso. E assim, desde as divindades e os arquétipos serão elaborados os fundamentos de filosofia e justiça daquela sociedade. Protegida pelos deuses, a pólis era regida por normas tradicionais – themistes (regulamentações) – que codificadas constituíam o nomos – ordem da pólis . Como você deve saber, as pólis constituíam formas diversas de organização que concretizava a convivência desde os valores de todos por todos. Graças à vida na pólis era possível a liberdade individual assegurada pela justiça, inicialmente compreendida como reparação a tudo que feria a ordem estabelecida e, posteriormente, vai se identificar como harmonia e equilíbrio nas relações entre os homens. [...] se o apego da pólis às suas autocracias e independência pôde servir de estímulo à emulação, também é certo que trouxe consigo a invertebrada ato- mização do mundo grego, cuja unificação acabou por ser imposta do exterior, à custa da própria liberdade. Essa situação só em parte foi mitigada por con- federações e ligas de cidades, estabelecidas em geral sob a direção de uma pólis hegemônica (Atenas, Esparta, Tebas) (TRUYOL Y SERRA, 1982, p. 87). A íntima relação dos termos “política” e “pólis” não decorre tão somente do vínculo semântico. A multifacetada experiência ocorrida em Atenas entre os séculos IV a VI a.C. evidenciou contradições capazes de gerar um ambiente decisivo para o surgimento da reflexão política. O esplendor vivido pela pólis ateniense em séculos anteriores, canalizado para o campo intelectual, transmutou o amálgama composto pela filosofia, ciência e cultura para um campo específico do conhecimento e da ação: a política. Para o povo grego, o modo de vida digno dependia de uma precondição: o exercício da liberdade. A liberdade significava a independência em relação às necessidades básicas de vida, eliminando qualquer modo de vida ligado à sobrevivência. Não apenas os escravos não possuíam liberdade, mas também os artesãos livres e os mercadores, ou seja, estavam excluídos todos os que não podiam dispor de liberdade de ação e de movimento. Apenas aos homens livres pertencia o direito de escolha de uma vida digna: a vida voltada aos prazeres do corpo – onde o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da pólis – atividade que por excelência produz belos efeitos; e a vida de filósofo – dedicada à contemplação e investigação das coisas eternas, cuja beleza não poderia ser alterada nem pela produção nem pelo consumo humano. Na concepção de Hannah Arendt (1983), dentre as atividades humanas gregas que mantinham um bios digno – um modo de vida autenticamente humano e livre de necessidades e privações –, a vida política ocupava especial destaque, pois viver na pólis significava desfrutar de uma forma de organização política particular e livremente escolhida. Não se tratava apenas de viver num aglomerado urbano, mas, sobretudo, de ser parte UNIDADE 2 TÓPICO 1 69 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O integrante de uma unidade política e social organizada, limitada territorialmente; fazendo com que o grego, como afirma Touchard (s/d, p. 28), “reflita sempre sobre si próprio como cidadão”. A pólis representava, como modelo ideal de agrupamento humano, algo mais do que uma forma possível de organização: era uma dádiva divina que possibilitava conferir sentido e individualidade à existência humana. A grande marca do espírito grego, uma cultura ímpar, é a busca de compreensão da relação do cosmos – mundo circundante – com o ser humano na tentativa de edificarum tipo ideal de governo desde uma Politeia, fundada na ética e no bem comum que, irrenunciavelmente fosse capaz de servir de referencial para a ação dos governantes. Este “espírito” foi norteando as distintas formas de governo da pólis – da monarquia à aristocracia e posteriormente a oligarquia seguida pela tirania –, formas que acabaram por se tornarem objeto de reflexão do mundo existencial, humano e não humano. Esta é uma marca do espírito grego: através da razão, compreender a relação do homem com o mundo circundante instituído, como busca de um tipo ideal de governo, de uma Politeia – Constituição – fundada no bem e na ética, que pudesse servir como referencial último para a ação dos governantes. É certo que houve um “mundo pré-político” grego, o mundo homérico, onde havia um sentido embrionário de pólis. Ilíada fala de um mundo dominado pelo espírito heroico de homens que já conheciam a vida organizada da cidade. Jaeger (1989, p. 29) compreende que a Ilíada descreve um tipo próprio de existência: “para o herói – o mais nobre dos homens, porém frágil por sua condição humana – a luta e a vitória representam o conteúdo da própria vida”. Com a chegada e aperfeiçoamento do alfabeto fenício na Grécia são escritos poemas épicos que traduzem a cultura do povo grego em uma fase primitiva. Os mais famosos são atribuídos a Homero (século XI a.C.): Ilíada e Odisseia, constituídos, ambos, por 24 cantos. Ilíada canta episódios do décimo ano da guerra de Troia, tendo como personagem central Aquiles, um semideus (herói), filho de Peleu (rei de Tessália) e da sereia Tétis, que com sua cólera e bravura combate Heitor, um dos mais valentes dos chefes troianos. Dentre outros episódios, a estória narra a morte de Aquiles (flechado no calcanhar por Páris) e o fim da guerra de Troia (ardil do cavalo de madeira). Odisseia narra as aventuras de Ulisses (rei de Ítaca e herói da guerra de Troia) que se destaca por sua prudência e astúcia. Odisseia descreve a volta de Ulisses após a queda de Troia. Passando por desgraças e triunfos, retorna Ulisses para junto de sua amada Penélope disfarçado de mendigo. Vencendo a prova exigida por Penélope, apenas Ulisses seria capaz de disparar 12 flechas, e mesmo velho e coberto de farrapos é reconhecido. Como recompensa por seus feitos, Ateneia – deusa protetora de Ulisses – devolve-lhe seu aspecto juvenil e reiniciam novas aventuras. O mesmo modelo de herói em Odisseia, regressando de maneira aventurosa de sangrentas batalhas, inspirado pelo modo de ser da aristocracia, deseja a fama partilhada com amigos e familiares. A nobreza descrita em Ilíada é idealizada pelo imaginário transmitido pela tradição; uma casta que tenta permanecer intocável, resistindo às mudanças políticas. Em UNIDADE 2TÓPICO 170 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O Odisseia a mesma nobreza é descrita como uma classe ainda fechada, que, apesar de forte sentimento de humanidade, é consciente de seus privilégios, entendendo-os como desígnios divinos. Homero narra, segundo Jaeger (1989), uma concepção que precedeu e fundamentou o pensamento político clássico grego. A idealidade humana da antiga pólis permaneceu no coletivo, convertendo a cidade “[...] num ser especificamente espiritual que reunia em si os mais altos aspectos da existência humana e os repartia como dons próprios” (JAEGER, 1989, p. 96). A pólis – o cosmos político – dá ao homem grego, ao lado de sua vida privada, a vida de cidadão, permitindo a identificação de uma segunda existência: o comum, através do qual o homem realiza suas virtudes de convivência política. A identidade de um grego não era restrita a seu nome e a de seu pai, mas de sua cidade de origem. A consciência de cidadania, que desde tempos imemoriais pertencia à aristocracia, fazia com que o cidadão exigisse e lutasse por garantias de vida privada e comum, já que ambas constituíam uma só. Seguramente é por este fato que Aristóteles define o homem como um animal político: um ser com qualidade de cidadão. Segundo o pensamento de Hannah Arendt (1983, p.16), a convivência plural da pólis é o que possibilitava uma significação ao humano, pois tal coexistência é o pressuposto da identidade individual e política. A escolha de um modo de vida digno, condicionada à ação política, dependia de uma precondição determinante: o exercício da liberdade. A noção de liberdade era o diferencial entre um grego e um bárbaro. A liberdade, conceito aliado à ideia de lei, era uma condição que os gregos sempre exaltaram. Viver livre era, fundamentalmente, além de não ser escravo de ninguém e de nenhuma coisa, também o poder de participar politicamente. Tal condição resultou de paulatina conquista jurídica: a liberdade civil, conquistada com as reformas de Sólon (594 a.C.), e o avanço democrático com a participação nos órgãos de decisão política. Assim, liberdade e democracia eram inseparáveis. Democracia significava a obediência da lei na igualdade, sendo, portanto, a liberdade, como define Touchard (s/d, p. 39), “[...] um estatuto de duplo aspecto: por um lado, independência em relação a toda espécie de coação pessoal; por outro, obediência às disposições gerais”. A cidade permitia a emancipação do cidadão na medida em que libertava o indivíduo da submissão pessoal e a transferia para as obrigações coletivas. Sólon, apesar de nobre, havia feito fortuna como comerciante. Empreendeu uma reforma social abolindo a escravidão por dívidas – proibiu que a liberdade do credor fosse garantia de pagamento de dívida – e deu aos camponeses uma parte das terras que até então pertencia exclusivamente aos nobres. No âmbito político, além de manter os órgãos governamentais existentes (Arcontes e Areópago), acrescentou dois novos corpos políticos: a Assembleia UNIDADE 2 TÓPICO 1 71 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O Popular, constituída por todos cidadãos sem distinção de nascimento, e o Conselho dos 400 (Senado). Dividiu os atenienses em quatro classes de acordo com a riqueza com gradativa proporcionalidade de direitos. A quarta classe, os mais pobres, não pagavam impostos. Ao conceder o privilégio de voto à quarta classe, preparou o caminho para a democracia. De todas as cidades gregas, em nenhuma outra havia tão estreito laço entre o cidadão e a pólis como o que existia em Atenas. Por esta razão, a queda de Atenas em 404 a.C., após uma guerra de 30 anos, representou uma catástrofe, com repercussões para além do âmbito político, atingindo a própria moral daquela sociedade. Péricles, que governou Atenas de 461 até sua morte, em 429, havia fundado um império que parecia ser a eterna morada da civilização ateniense. A súbita perda de hegemonia de Atenas abalou o mundo helênico, porque “deixava nos limites do Estado grego um vazio difícil de preencher” (TOUCHARD, s.d., p. 335). Assim, o século V a.C. transformou-se num momento de reconstrução interna e externa de Atenas. “Democracia” é o termo que define oficialmente o modelo político de Atenas no século V. Péricles emprega a palavra “democracia” na oração fúnebre que Tucídides lhe atribui. Como princípio político, designa um modelo oposto à tirania e oligarquia no qual a lei é igual para todos (isonomia), com igual participação nos negócios (isegoria) e no poder (isocracia). Afirma o referido autor que democracia se caracteriza como: Barreira contra o abuso da força (Hybris) e os apetites excessivos (pleonexia), ela desempenha no universo político o mesmo papel que a medida (sofrósine) no universo moral (TOUCHARD, s.d.). Os longos anos de guerra absorveram recursos que causam acentuado empobrecimento de Atenas, e, com isso, as lutas de classe acirram-se, polarizando forças sociais em antagonismos antropofágicos. O modo de vida ateniense, até então inabalável, teve que ser recomposto. A derrota da Liga de Delos na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), com a vitória de Esparta e a imposição do regimeoligárquico dos Trinta Tiranos, mostrou que as instituições políticas são tão efêmeras quanto qualquer sonho de eterna dominação e riqueza. O decréscimo populacional, a destruição das áreas agrícolas acompanhada de êxodo rural, a falta de alimento e o forte abalo econômico são alguns dos fatores que produziram um turbilhão de decadência. A participação e o interesse do cidadão nas atividades públicas, que até então davam fiança à administração política, tornaram-se objeto de repugnância. ATE NÇÃ O! Foi a partir desta dolorosa experiência que surgiu a necessidade de uma reflexão política interna, sendo este um dos fatores decisivos para a rápida e surpreendente superação da profunda crise em que aquela sociedade havia mergulhado. Em nenhum outro momento da história o povo ateniense havia se dado conta de que sua maior força estava na cultura. UNIDADE 2TÓPICO 172 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O O resgate da aparentemente perdida honra ateniense passa a nortear o cotidiano nas praças e nos tribunais. Uma onda de esperança impregnava o discurso dos poetas, dos políticos e jovens. A clara consciência do “espírito grego”, que se traduzia como distinção em relação aos demais povos, e a realização da democracia no século anterior ofereciam maior capacidade de superação aos entraves políticos, sociais e econômicos dos séculos V e IV a.C. Neste momento, o processo histórico rompe com a estabilidade da ordem social até então instituída. Assiste-se a um avanço cultural decisivo que criou um fértil terreno para o pensamento político e filosófico. É superado o antigo paradigma cosmológico no qual ao homem cabia apenas aceitar o destino de nascer, viver e morrer sob a ordem do inevitável e imutável, desaparecendo o sentido de vivência como mágico círculo natural de ordem fora do qual apenas existia o caos. Paulatinamente ia abrindo espaço público para os debates, acentuando-se a capacidade de pensar e argumentar como forma de convencimento. Assim, pensadores eloquentes iam influenciando as massas. Este movimento intelectual crítico das autoridades e das convenções acaba por criar um abismo entre as velhas crenças, preocupadas com o mundo da natureza, e os assuntos da pólis. Os sofistas lideram estes novos debates, auxiliando seus discípulos a obter mais sucesso da vida pública do que na especulação teórica. Sophistes era uma expressão genericamente utilizada para designar pessoas, ao mesmo tempo hábeis e sábias, que, por volta de 450 a.C., passou a ser usada para identificar “professores viajantes” que ensinavam por meio de conferências públicas a arte da eloquência e da sabedoria “prática” (areté). Os sofistas (sábios) eram estrangeiros, portanto, não cidadãos gregos, e sem compromisso com os destinos da cidade. O objetivo desses “professores itinerantes” era ensinar a arte do bem falar e argumentar, sem a preocupação com a essência valorativa (moral e ética) do discurso. Os sofistas mais conhecidos são Hípias (nascido na Élida no século V a.C.), Górgias (487-380 a.C.) e Protágoras (485-410 a.C.). Estes intelectuais constituíam uma nova classe de profissionais, que apesar de não partilharem nenhuma escola filosófica, possuíam um traço comum: afastaram definitivamente o pensamento grego das preocupações naturais e centraram-se nos assuntos relativos à conduta humana. Com isto, o zoon politikon, definição de homem usada mais tarde por Aristóteles, muda de eixo. Tratava-se agora de unir, de maneira convincente, duas atividades políticas: “a ação (práxis) e o discurso (léxis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos (taton anthropon pragmata, como chamava Platão), que exclui estritamente tudo o que seja apenas útil e necessário” (ARENDT, 1983, p. 34). A experiência crescente do exercício político vai acentuando o discurso como meio de persuasão, meio de comunicação específico que alia o pensamento filosófico ao político. Consolida-se uma forma de pensar onde a filosofia passa a ser a fonte primordial de conhecimento e poder. Na medida em que a capacidade de contemplação, adquirida pelo ato UNIDADE 2 TÓPICO 1 73 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O de filosofar, confere legitimidade racional ao discurso e à prática política, é rompida a submissão injustificável ao nomos: agora é necessário compreendê-lo racionalmente. Sob este “pano de fundo” surge uma figura que será imortalizada como a encarnação de todas as virtudes ideais de um cidadão: Sócrates. FIGURA 16 - ESCULTURA DE SÓCRATES EXPOSTA NO MUSEU DO LOUVRE FONTE: Disponível em: <http://faunosmitos.blogspot.com.br/2008/11/scrates-era-um-fauno_8005. html>. Acesso em: 16 ago. 2016. O Sócrates (469-399 a.C.) histórico, segundo Jaeger (1989, p. 343-400), não possuía nenhum traço de origem, nem de classe social, que o predestinasse a reunir em torno de si filhos da aristocracia. É possível que Arquelau, quando então com 30 anos, o tenha conduzido no círculo aristocrático. Em idade madura, viveu o apogeu e o florescimento da cultura ateniense, tendo discípulos de relevância política, como Alcebíades e Crítias. A exigência da consolidação do poder ateniense levava seus cidadãos a grandes sacrifícios e Sócrates sempre se destacou como um bravo combatente. Pessoalmente era radicalmente contrário à ambição pelo poder por entender que as razões espirituais eram superiores às causas políticas. Na escola ateniense de atletismo, o ginásio, local também de torneio de pensamentos, torna-se uma figura indispensável, por ser um autêntico médico preocupado com o bem-estar físico e espiritual de seus amigos. A “ginástica de pensamento”, a que obrigava os jovens, os fascinava, fazendo perguntas certeiras para a revelação dos talentos daqueles que o procuravam. Identificado por alguns como sofista e ridicularizado por outros de maneira impiedosa, como por Aristófanes na peça teatral As Nuvens, Sócrates é um homem de seu momento histórico. Viveu numa Atenas que assistia ao nascimento do ato de filosofar consubstanciado com o de fazer política. Em Críton, Platão imortaliza a atitude de Sócrates que faz de sua morte o seu último grande ensinamento: a obediência às leis da cidade é um dever para todos, mesmo quando elas se voltam contra o cidadão. Compreendendo que política e ética são inseparáveis, Sócrates tinha claro o conflito de ambas na prática, chegando a afirmar diante dos juízes que a luta pela justiça deve ser do homem comum e não dos homens públicos. Observava que os crimes mais UNIDADE 2TÓPICO 174 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O graves eram cometidos por um homem quando estava no poder, por ser a onipotência a maior tentação que uma pessoa pode ter. Por esta razão, o entendimento de Sócrates é o de que a direção política deve possuir um cunho filosófico, sendo esta a grande convicção desenvolvida por Platão, seu maior seguidor. Sócrates, um homem atormentado pela consciência do saber, que carregava o insuportável fardo de conhecer a redenção de uma sociedade decadente e criminosa, não poderia fugir da missão política que deveria cumprir. Sua escolha pela morte representa o conflito político entre o pensador e a pólis. Embora não desejando desempenhar nenhum papel político, queria, acima de tudo, que a filosofia tivesse algum sentido para a cidade. Seu julgamento e morte é antes de mais nada uma atitude humana diante da esfera política. A partir de então, os filósofos se sentiram mais responsáveis pela cidade. A introdução do humanismo no pensamento político e filosófico foi o grande legado de Sócrates, pois isto foi o que possibilitou que seus seguidores pudessem definir conceitos éticos capazes de conferir validade à ação política. E exatamente este foi o ponto de partida para a reflexão política: a racionalização de uma conduta ética como sinônimo de sabedoria. A dialética é o método pedagógico através do qual Sócrates refletia. A partir do diálogo irônicoe sarcástico, para que o interlocutor chegue às suas próprias conclusões, estimula a reflexão entre “ideias opostas”. Essa forma de educação custou a Sócrates sua vida. Foi acusado de ateísmo e de corromper a juventude. O pressuposto de seu pensamento é o reconhecimento de seus próprios limites e ignorante de sua ignorância, pois só assim a razão poderia superar a mera opinião. 3 PLATÃO – FILOSOFIA, POLÍTICA E JUSTIÇA Platão, como era próprio dos jovens da aristocracia ateniense, tinha inclinação para os negócios públicos. O regime dos Trinta, que emerge da crise ateniense após 404 a.C., e o breve retorno da democracia, findada em poucos meses, fazem ruir suas ilusões em relação à política. Entretanto, o grande golpe que mais o abalou, com então 29 anos, foi a condenação e morte de Sócrates. Devido a esse episódio Platão já não crê mais nos regimes políticos de sua época, sobretudo na democracia, por entender ser o pior dos regimes que tornava possível a política ser dominada por mercenários dominados por paixões e meras opiniões. Platão, seguindo os ensinamentos de Sócrates, se convence definitivamente que apenas o filósofo poderia ser governante pois apenas ele, conhecendo a verdadeira justiça, seria capaz de melhor conduzir a política. UNIDADE 2 TÓPICO 1 75 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O FIGURA 17 - PLATÃO – MUSEU DO LOUVRE FONTE: Disponível em: <http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe. php?foto=437&evento=6>. Acesso em: 16 ago. 2016. Segundo Philonenko (1997), “Platão” era uma alcunha de Aristocles (428-7-348-7 a.C.). Ateniense de nascimento, do lado paterno descendente de Codrus, último rei de Atenas, que por sua vez descendia diretamente do próprio deus Poseidon; e, do lado materno, de Perictine, descendente de Sólon, filha de Crítias, dois dos Trinta Tiranos que dominaram Atenas por algum tempo. Após seu nascimento, sua mãe enviúva e volta a casar-se com Pirilampo, seu tio materno, com quem teve um filho, Antifonte, narrador de Parmênides. Era um aristocrata de alta linhagem e como tal recebeu a alta educação exigida por sua posição social. Ligou-se intimamente com Sócrates, um homem do povo, de cuja convivência, salienta o referido autor, houve um curioso resultado: Sócrates nunca se tornou aristocrata, nem Platão um homem do povo. É duvidosa a maneira como Platão se aproxima de Sócrates, mas é provável que, por ter sido preparado para exercer atividade política, tenha se ligado a Sócrates por suas pregações sobre a justiça que iria reinar na cidade quando o princípio da consequência substituísse o princípio da igualdade. A desordem e impotência do governo democrático no desastre político de 404 (fim da guerra do Peloponeso) e o despotismo oligárquico instalado foram os motivos que conduziram Platão a ligar-se ao homem de quem dirá no final de Fédon: “[...] que entre todos os do seu tempo que lhe foi dado conhecer, ele foi o melhor e, além disso, o mais sábio e o mais justo” (PHILONENKO, 1997, p. 25). Em A República, referindo-se aos sofistas como mercenários e falsos pensadores políticos, Platão (s.d., p. 283) afirma: Cada um desses particulares mercenários, a quem essa gente chama Sofistas e considera como rivais, nada mais ensina senão as doutrinas da maioria, que eles propõem quando se reúnem em assembleias, e chamam a isso ciência. É como se uma pessoa, que tenha de criar um animal grande e forte, apren- desse a conhecer as suas fúrias e desejos, por onde deve aproximar-se dele e por onde tocá-lo, e quando é mais intratável ou mais meigo, e porquê, e cada um dos sons que costuma emitir a propósito de cada coisa, e com que vozes dos outros se amansa ou irrita, e depois de ter adquirido todos estes conhecimentos com a convivência e com o tempo, lhes chamasse ciência e os compendiasse, para fazer deles objeto de ensino, quando na verdade nada sabe do que, destas doutrinas e desejos, é belo ou feio, bom ou mau, justo ou UNIDADE 2TÓPICO 176 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O injusto, e emprega todos estes termos de acordo com as opiniões de grande animal, chamando bom àquilo que ele aprecia, mau ao que ele detesta, mas sem ter qualquer outra razão para tanto, antes designando por justo e belo o inevitável, porquanto nunca viu a diferença essencial entre a natureza da necessidade e a do bem, nem é capaz de a apontar a outrem. Com a morte de Sócrates, Platão sabe que Atenas não era um lugar seguro e decide partir para a Itália e Secília Meridional, tornando-se próximo de Díon – cunhado do tirano de Siracusa Dionísio I, o Velho, sucedido por seu filho Dionísio, o Jovem – o que lhe permitiu visitar a corte muitas vezes e, movido por sua crença, tenta convencer o monarca de que o verdadeiro rei deveria ser um filósofo. Mais uma vez passa por uma experiência dramática: é embarcado à força num navio de Égina, cidade então em guerra com Atenas, vendido como escravo, retornando apenas para Atenas graças ao resgate feito por Anníceris. Após sua primeira viagem àquelas terras, em 387 a.C., volta para Atenas e funda a Academia, próximo ao santuário do herói ático Academos, que perdurou até 529, quando é desativada por Justiniano. Seus primeiros diálogos refletem a grande preocupação política que na obra República, tradução de Politeia (palavra mais rica de significado), atinge plena maturidade. A República é um grande diálogo que reflete um espírito inquieto que pretende, através da reflexão, encontrar um melhor caminho para o governo da cidade. Buscando uma resposta para o que é a justiça, segundo Chevalier (1982), desta obra platônica podem ser extraídas três teorias: a da justiça; da educação, condição primordial para a realização da justiça; e da comunidade, condição negativa, mas necessária. Como herdeiro do pensamento pitagórico e seguidor dos princípios socráticos, para Platão, a justiça é concebida como virtude universal que engloba prudência, sabedoria e fortaleza, na medida em que dependem da existência daquela, pois apenas com tal coexistência torna-se possível a harmonia social. Para Pitágoras a conduta humana em sociedade possui como referencial a “ordem natural das coisas divinas”, ou seja, o comportamento ou está de acordo ou em desacordo com tal parâmetro. A justiça é tomada como valor absoluto que exige do indivíduo qualquer sacrifício para mantê-la: entre sofrer uma injustiça e causar-lhe a outrem é preferível sofrê-la. Segundo Bittar (1999, p. 51), o paradigma da justiça é expresso no contexto da filosofia pitagórica como inúmeros conceitos, podendo ser resumidos nos seguintes preceitos: 1. Respeito aos deuses e ao culto. 2. No sentido judiciário (post factum) como corretivo em caso de ocorrência de uma injustiça. 3. Justiça normativa (ante factum) como algo preventivo colocado à disposição dos politai como garantia da ordem e bem comum. 4. Como sinônimo de autoridade e obediência estando implícita a ideia de hierarquia. 5. Com sentido ético como piedade. A doutrina pitagórica, segundo o referido autor, afora seu caráter místico, representou uma importante base para o pensamento platônico. Moral e política na teoria platônica formam a base imutável do Bem Comum que não UNIDADE 2 TÓPICO 1 77 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O podem estar à mercê de perturbações “do devir”. Para Platão, a verdadeira política deve estar a salvo das paixões e ilusões e a chave para a verdadeira política seria a Filosofia. Por esta razão a Alegoria, ou Mito da Caverna é um dos núcleos centrais de suas ideias. Com este referencial, Platão exclui a utilidade, conveniência e interesse da verdadeira sabedoria de governar, pois a grandeza da política da cidade é medida de acordo com sua relação com o ideal de justiça, que não é outra coisa senão o Verdadeiro Bem aplicado à convivência social. Ao instituir a política como ciência, Platão busca estabelecer princípios teóricos para bemgovernar, e este foi o início de uma reflexão legada a toda geração de teóricos que o sucederam. Na República, Platão idealiza uma cidade hierarquizada, governada por filósofos com virtude própria, fundada na Razão ou “Ciência do Bem” (ciência política). Nesta linha de pensamento, a justiça nada mais é do que o respeito à hierarquia: cada um deve exercer “na” e “para” a cidade o papel que lhe cabe. Reconhecendo a diversidade humana, a Cidade de Platão seria constituída por três classes distintas: a primeira, dos chefes de governo com sabedoria e virtudes próprias; a segunda, de auxiliares ou guerreiros dotados de coragem; e a terceira, dos artífices ou camponeses, quer sejam proprietários ou não, virtuosos por sua temperança, ou seja, com capacidade de resistir aos apetites. A convivência com tal diversidade permitiria a realização da perfeita justiça na medida em que cada qual cumprisse sua função. Cada classe, representando uma parte da alma, permitiria a existência de um único corpo harmônico: A Cidade. Ao que parece, a construção teórica platônica pretendia eliminar a divisão social dominante em seu tempo e a causa da decadência moral da civilização ateniense: a luta de ricos contra pobres, dos excluídos contra a aristocracia dominante. Seja como for, a idealização de uma cidade homogênea – como se poderia afirmar atualmente, totalitária – era a forma de eliminar o modelo político que Platão considerava o pior de todos: a democracia, para a qual a ética de governo era o individualismo. A cidade perfeita era, para Platão, uma autêntica oligarquia de sábios esclarecidos, uma vez que o mérito de governar não poderia ser obtido pelo nascimento nem pelas aptidões naturais, mas pela virtude adquirida através do conhecimento científico. Platão, ao instituir um estudo normativo sobre princípios teóricos que devem reger a convivência dos homens, inaugura a política como ciência. A invenção da política foi uma resposta ao conflito, aparentemente indissolúvel, entre aqueles cujo saber e prática era construído unicamente pela lógica do poder; e os filósofos desejavam mostrar que, afinal de contas, não eram inúteis, pois conheciam a “ciência do agir”, e esta sim, era o fundamento legítimo da política. Você já compreendeu o que buscavam Sócrates e Platão? O filósofo, ao assumir “carregar o fardo” de governar, tenta evitar ser governado pelos piores. Não é o medo do próximo que o impulsiona, mas a consciência de seu compromisso para UNIDADE 2TÓPICO 178 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O com o coletivo: sabe que o conhecimento não deve ser apenas objeto de contemplação, antes de tudo, deve orientar a prática. A política é inventada como uma ciência que não se confunde com especulação. Platão mostra que a ação de governar deve combinar a aptidão de comandar com sabedoria e justiça. Em suma, ao governante cabe saber diferenciar a justa relação entre o múltiplo e o uno, ter dignidade e legitimidade a partir de uma causa transcendente verdadeira. O esforço em idealizar uma cidade sob o ponto de vista filosófico, que nunca chegou a ser levada a sério, evidenciando-se assim que existe “algo mais” no exercício da política: um permanente conflito entre a ação e a reflexão. Platão soube racionalizar o conflito a partir do permanente choque entre o Corpo e a Alma, a Cidade e a Sabedoria, a Política e a Filosofia. Este drama platônico estendeu-se ao longo da história ocidental, sem que, contudo, se tivesse tanta consciência de sua origem como a que ele teve: a reflexão política implica necessariamente numa escolha: a aparente segurança oferecida pela submissão resignada e abandono da política ou o risco da ação consciente, com a certeza de que, apesar da permanente luta, nem sempre o final é glorioso. E Platão mostrou que esta última é a característica daqueles que não se deixam imbecilizar pela própria impotência. Platão, assim como Sócrates, sabia, por sua própria experiência, que a ação política é, dentre as capacidades e possibilidades humanas, uma das mais perigosas. As condições históricas que foram sendo criadas ao longo do desenvolvimento político ocidental evidenciaram que refletir acerca da política é assumir o risco do fracasso, que apenas pode ser compensado pela oportunidade de construção de uma sociedade melhor. Platão percebeu que Sócrates não havia fracassado ao mostrar que os assuntos da pólis não são seguros para os filósofos, reconhecendo que sua morte serviu para dar sentido à reflexão política. Compreendeu que seu mestre sabia que apenas seria imortalizado se a solidariedade dos filósofos pudesse competir com a cidade, sem serem ridicularizados ao falarem nas praças públicas. Afinal, Sócrates triunfou, mostrando à pólis que não era um inútil, que realmente tinha muito a ensinar a seus concidadãos. Esta é uma das lições que se pode extrair da invenção da política: buscar sentido na experiência do conflito. Em breve síntese, do pensamento platônico colhe-se para a Filosofia do Direito: • O sentido de Ética enquanto pressuposto da ordem política e jurídica que não se restringe à mera virtude, mas o agir orientado para o Bem sem abandoná-lo sob pena de “deixar o barco navegar pelo sentido da correnteza e não para onde o timoneiro deseja chegar”. • A Filosofia – o educar-se – tem por finalidade o exercício da cidadania, para a “verdade”. • O Bem e o Justo nascem desde a reflexão acerca da verdadeira essência – que está no mundo das ideias – sendo a finalidade da justiça o exercício do bem comum. • O direito não existe independente da vida social – da convivência na pólis. UNIDADE 2 TÓPICO 1 79 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O 4 ARISTÓTELES: UM ESPÍRITO MODERADO Muitos autores consideram Aristóteles o criador do método empírico, nas experiências práticas, de investigação em contraposição ao idealismo platônico. Talvez porque sua técnica de investigação tinha como base a observação tal qual estudava os fenômenos biológicos. Para Aristóteles, a essência das coisas não é um mero reflexo do mundo das ideias, mas elas podem ser compreendidas a partir da maneira como opera a natureza. A teoria platônica de um outro mundo atemporal de essência parece postular que, de algum modo, a ‘realidade’ concreta das coisas existia fora do tempo e das estruturas espaciais que damos por certos quando estabelecemos nossa relação com as coisas. Para Aristóteles, porém, devemos voltar nossa atenção para o modo como as coisas funcionam neste mundo à nossa volta (MORRISON, 2006, p. 49). FIGURA 18 - ARISTÓTELES – MUSEU DO LOUVRE FONTE: Disponível em: <http://www.leitura.org/aristteles-busto-de-aristteles-no-museu-do-louvre- nascimento.html>. Acesso em: 16 ago. 2016. Nascido em Estagira no ano 384 a.C., Aristóteles era filho de Nicômaco, médico de Amintas III – rei da Macedônia, pai de Felipe II e avô de Alexandre Magno. Aos 18 anos passa a frequentar a Academia, acompanhando as lições de Platão durante duas décadas. Possuidor de grande fortuna, cercou-se dos livros dos grandes filósofos e poetas de seu tempo, sendo chamado por Platão de O Leitor. Era dotado de um grande espírito de observação e de incomum sagacidade. Aos 41 anos é convidado por Felipe para ser educador de Alexandre. Com a ascensão de Alexandre ao trono, em 336 a.C., retorna para Atenas e funda o Liceu, ginásio localizado na parte leste da cidade. Sua escola foi chamada de peripatética, de passeadores, por ser comum dar aulas passeando pelos jardins. Seu ensino abrangia todas UNIDADE 2TÓPICO 180 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O as formas de conhecimento de sua época: Lógica, Metafísica, Cosmologia, Biologia, Arte, Sociologia, Psicologia e Moral. FONTE: Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/aristoteles/>. Acesso em: 16 ago. 2016. Aristóteles, de maneira diversa de seu mestre Platão, buscou também refletir acerca da organização política de sua época. Seusescritos eram manuais – lições – utilizados por alunos e professores do Liceu, muito provavelmente, alguns deles escritos como projetos de pesquisa juntamente com os alunos, sendo A Política o grande tratado político. Apesar de ser uma obra bastante modificada quanto à disposição dos livros, o que se percebe de sua forma atual é que, sem dúvida, constitui um tratado de ciência política, que, segundo Sabine (s.d., p. 10), “mostra duas fases do pensamento aristotélico, que paulatinamente distancia-se de Platão”. Um primeiro momento, como herdeiro do pensamento platônico, mas tentando ir além, considera a filosofia política como princípio de construção da cidade, predominando a preocupação ética de identificar o bom cidadão com o homem bom, vendo na política a possibilidade de formação de um ser humano moralmente elevado. A relação entre o homem e a pólis, vínculo natural e necessário, é, para Aristóteles, o que diferencia o ser humano dos demais animais, já que a superioridade humana é adquirida com a convivência na cidade, e, por via de consequência, com a possibilidade de partilhar de um processo civilizatório comum. Definindo a política como condição inerente ao homem, afirma Aristóteles (1988, p. 14): É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de qualquer cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse Homero, a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. Porque ele é ávido de combates, e, como as aves de rapina, incapaz de se submeter a qualquer obediência. Aristóteles concebe a convivência política como algo “natural”, porém, confere um sentido específico para o termo “natureza”. Afirma que a cidade está na ordem da natureza e antes do indivíduo: [...] se cada indivíduo isolado não se basta a si mesmo, assim também se dará com as partes em relação ao todo. Ora, aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte do Estado; é um bruto ou um deus. A natureza compele assim todos os homens a se associarem (ARISTÓTELES, 1988, p. 15). Assim, admite a coexistência na cidade como forma de desenvolvimento humano, já que proporciona as condições necessárias para o homem atingir sua plenitude, ou seja, permite às forças evolutivas do homem atingirem seus próprios fins, portanto, não vislumbra na vida política um obstáculo à “vida natural” do homem, como entendiam os pensadores cínicos do século IV a.C., ao contrário, é exatamente na vida política que, para Aristóteles, o ser humano UNIDADE 2 TÓPICO 1 81 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O atinge um modo de vida digno e superior a qualquer outro. Lembre-se de que o conceito de “natureza” em Aristóteles deve ser compreendido a partir de seus estudos biológicos e sociais, entendendo “natureza” como um sistema de capacidades e forças evolutivas para um fim próprio, que, para seu desenvolvimento, apropria- se das condições favoráveis oferecidas materialmente. Num segundo momento de sua obra trata da questão política numa dimensão maior: “A nova ciência seria geral, isto é, abordaria tanto as formas existentes quanto os ideais de governo e ensinaria a arte de administrar e organizar Estados de todos os tipos, fosse qual fosse a forma desejada” (SABINE, s.d., p. 101). A nova orientação conferida por Aristóteles à ciência política buscava, além do ensino da arte de governar, independente do modelo político adotado, o estudo das formas existentes e ideais de governo. Assim, esta nova ciência, independente do fim moral, incluía o conhecimento acerca do Bem Político (relativo e absoluto) e procedimentos políticos no estudo dos objetivos de governo. Com o objetivo de examinar os diferentes modelos políticos de sua época, juntamente com seus alunos, investigou 158 constituições, inclusive o Direito Consuetudinário dos bárbaros e as Leis de Sólon, dentre outros estudos. O final de Ética a Nicômaco serve de introdução para A Política, onde Aristóteles torna evidente o método através do qual pretendia compreender e ensinar a ciência política. Criticando a maneira como os sofistas ensinavam a arte de governar, que no seu entender “se omitiram quanto ao exame do assunto da legislação” (ARISTÓTELES, 1985, p. 210), afirma que talvez fosse melhor estudar o assunto das constituições no limite da capacidade, da filosofia e das coisas humanas, apontando para o ponto de partida do estudo da política: Primeiro, então, se algo foi dito com acerto e detalhadamente pelos pensa- dores anteriores, passemos em revista a sua contribuição; depois, à luz das constituições que colecionamos, examinemos as instituições que preservam ou destroem as cidades, e as que preservam ou destroem as várias espécies de constituições, e as razões pelas quais umas cidades são bem administradas e outras, ao contrário, são mal administradas. Quando tivermos estudado con- venientemente estes assuntos é mais provável que possamos ver de maneira mais abrangente qual das várias espécies de constituições é a melhor, e como cada constituição deve ser estruturada, e quais as leis e costumes que uma constituição deve incorporar para ser a melhor. Comecemos a nossa discussão (ARISTÓTELES, 1985, p. 211). É de se notar a maneira diferenciada através da qual Aristóteles aborda a ciência política em relação a Platão. Chama a atenção Touchard (s.d.) que a metodologia adotada em A Política se aproxima do que atualmente poderíamos chamar de “científica”, pois a partir de uma análise empírica, persegue dois objetivos distintos: compreender o funcionamento dos regimes políticos existentes e descrever um modelo ideal de governo. Entretanto, ao mesmo tempo que busca afastar-se, mantém aproximação com seu mestre. Busca igualmente estabelecer um fim ético como princípio político, e esta intenção Aristóteles nunca abandonou. UNIDADE 2TÓPICO 182 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O O Estado deveria permitir o desenvolvimento moral de seus cidadãos, pois era concebido como uma associação de indivíduos que deveriam partilhar a crença na construção de um modo de vida digno e feliz. Este era o sentido de existência do Estado: a forma de organização que permite o mais alto desenvolvimento moral do cidadão, percebendo, afinal, que o bom homem e o bom cidadão apenas são coincidentes num modelo político ideal (TOUCHARD, s.d., p. 59). A partir do Livro VI de A Política é iniciado o estudo das diferentes formas de governo, com a finalidade de identificar “quais as condições que lhe podem dar toda a perfeição desejada, livre de quaisquer obstáculos exteriores, e finalmente, qual a que convém a este ou àquele povo” (ARISTÓTELES, 1988, p. 156). Fazendo a distinção entre o governo constitucional e o despótico, e partindo do pressuposto de que o primeiro objetiva o bem comum, enquanto o segundo apenas ao da classe dominante, Aristóteles estabelece três formas autênticas (ou constitucionais) – monarquia, aristocracia e democracia moderada – e três degenerados (ou despóticos) – tirania, oligarquia e democracia extremada (ou governo da plebe). O critério estabelecido por Aristóteles diferencia-se do utilizado por Platão em um aspecto central: para o primeiro, as formas autênticas eram as que visavam o bem comum, enquanto que para o segundo era o respeito à lei. Entretanto, percebe Aristóteles que a disputa pelo poder se relaciona essencialmente com dois pontos centrais: a qualidade (definida pela liberdade, riqueza e instrução) e quantidade (superioridade numérica do povo). Em outras palavras, a luta política polariza-se a partir de duas reivindicações centrais de poder: o interesse das elites econômicas e o bem-estar de um número maior possível de pessoas. Porém, quais seriam as reivindicaçõesmais justas? A resposta a tal indagação é o que para Aristóteles confere mérito ao governo, na medida em que seria aquele capaz de atender às reivindicações das diferentes classes que compõem a cidade. Para Aristóteles, o grande problema não era estabelecer academicamente qual o princípio ético da política, já que todos pareciam concordar que seria a justiça, mas de como realizá-la através da prática. Seguindo o mesmo pensamento de Sócrates e Platão, ressaltou Aristóteles que o juízo correto (orthòs lógos) a respeito de uma ação (práxis) é que torna o homem capaz de realizar o bem. Esta razão prática, diferentemente da teórica (epistêmica – que opera com o conhecimento puro e com objetivos eidéticos e conceituais eternos, que possui um fim em si mesmo) é indispensável para a convivência social e para o exercício de governo. Esta razão prática permite o desenvolvimento da virtude, já que não é inerente ao ser, mas adquirida pela participação num processo educativo (Paideia) desde a mais tenra idade. Com uma boa orientação, a razão iria se impor sobre as paixões, conduzindo o homem e os assuntos da cidade. Um bom governo (das leis, constitucional) seria um governo da razão sem paixão, pois só assim seria possível controlar o governo dos homens que tende para a satisfação da alma apetitiva, do desejo orientado instintivamente sem a direção da razão. Assim, a boa conduta é obtida quando há uma adequação entre meios e fins através da “prudência”, ou seja, UNIDADE 2 TÓPICO 1 83 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O da “prudente” eleição dos meios necessários para o alcance dos objetivos teleológicos das práxis. A “prudência” (phrónesis) é a disposição racional direcionada para a ação, no sentido de atualização de um bem, que permite a escolha dos meios adequados para a realização dos fins eleitos. Por esta razão é que se pode conhecer um homem por sua prática, por suas ações, uma vez que age a partir da eleição de um ponto que será o diretivo de toda a aplicação da sabedoria prática. É na eleição e decisão que o homem demonstra o justo e o injusto, já que isto é inerente a toda ação. Para Aristóteles, portanto, a política é a ciência da prática que tem como objeto o estudo do bem da cidade e, como consequência, o bem de todos os cidadãos, ocupando a questão da ética lugar privilegiado. Por conta disto, a justiça é a preocupação central do governante, pois esta é a virtude social por excelência. Um governo sob leis boas – representativas dos ideais da cidade – criaria o hábito de observância de todos os cidadãos de preceitos genéricos e abstratos capazes de atender aos anseios políticos dos cidadãos. Na medida em que as leis iguais para todos, com a mesma qualificação política ateniense (cidadãos, metecos e escravos), a igualdade seria de acordo com as aptidões de cada um, e assim, a felicidade seria o resultado do convívio social, a pólis, que teria sempre na célula familiar a origem primeira que ia se complementando com a convivência social. Aristóteles, com um espírito político moderador, converge seu pensamento para uma tendência em que deve prevalecer o interesse da “classe média”, classe esta que, como chama atenção Touchard (s.d., p. 60), “por diversas vezes tentara impor os seus pontos de vista em Atenas, sobretudo no fim do século V, e se definira a si própria como intermediária entre os ricos, inclinados ao egoísmo e à ambição, e os não possidentes, encargo e ameaça para o Estado”. Esta classe, entende Aristóteles, não age por interesse próprio, mas em interesse coletivo, e é isto que a torna mais capaz para o exercício da “coisa pública”. Esta concepção, sem dúvida, vincula-se ao princípio aristotélico de que a “virtude está no meio”. É evidente, pois, que a comunidade civil mais perfeita é a que existe entre os cidadãos de uma condição média, e que não pode haver Estados bem admi- nistrados fora daqueles nos quais a classe média é numerosa e mais forte que cada uma delas; porque ela pode fazer pender a balança em favor do partido ao qual se une, e, por este meio, impedir que uma ou outra obtenha superio- ridade sensível. Assim, é uma grande felicidade que os cidadãos só possuam uma fortuna média, suficiente para suas necessidades. Porque, sempre que uns tenham imensas riquezas e outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma oligarquia desenfreada, ou ainda, uma tirania insupor- tável, produto infalível dos excessos opostos (ARISTÓTELES, 1985, p. 175). Buscando estabelecer a melhor constituição, aconselha Aristóteles que a preferível é a mais aceita pelos mais fortes da cidade, e que, ao mesmo tempo, não deve ser aquela que mais se distancia do meio. Seguramente é por esta razão que elogia a democracia moderada de Sólon. Embora não pretendendo descrever o tipo ideal de Estado, Aristóteles não se limitou tão somente a descrever as formas de governo existentes. Os objetivos morais que permitiriam o aperfeiçoamento humano não estariam, como para Platão, num plano ideal, mas seriam o UNIDADE 2TÓPICO 184 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O resultado de um complexo ajuste político, sendo a arte de governar a correta adequação entre os meios disponíveis e os fins desejados. A inovação de Aristóteles está no fato de que inclui em seu estudo não apenas a significação ética da Cidade-Estado, “mas também o estudo empírico dos elementos políticos e sociais de constituições, as respectivas combinações, e as consequências que delas derivam” (SABINE, s.d., p. 123). Portanto, não abandona os ideais de seu mestre, que permaneceram inalterados, mas buscou orientar uma prática política orientada por fins dignos, através de meios racionalmente estabelecidos. Sem dúvida, o trabalho de Aristóteles busca indagar o tipo de comunidade que constitui a Cidade-Estado propondo uma diferenciada da comunidade familiar, mostrando como, historicamente, a partir da família – comunidade que atende as necessidades mais elementares –, surge a pólis como forma mais civilizada de vida. Seguramente, um dos conceitos relevantes de Aristóteles para a formação jurídica é o de justiça, que tem, como você percebeu, como sua base de construção, a dimensão ética, por ele definida como “ciência da prática”. Sobre justiça como virtude, o texto principal é Ética a Nicômaco, especialmente o Livro V, embora possam ser encontrados estudos em diversos outros livros de sua imensa produção. DIC AS! Aristóteles tratou a justiça como virtude que se aproxima de outras, como coragem, temperança, benevolência, entre outras. Como virtude, justiça é uma ciência da prática e ramo especial do saber humano, a ética. Sugere-se a leitura de Ética a Nicômaco, disponível em: <http://pensamentosnomadas.com/obra-completa-de- aristoteles-em-10874>. No site você encontrará muitas das obras de Aristóteles. Em Aristóteles encontramos dois grandes campos para a compreensão do sentido da justiça: o universal e o particular. Aristóteles considera que a “regra de ouro” da justiça é “dar a cada um o que é seu” de acordo com seu mérito! Vamos compreender melhor esse conceito. • Justiça Universal: é a virtude que está em todas as demais, como, por exemplo, na paciência ou caridade. O paciente é aquele que reconhece o que é necessário despender de tempo ou conhecimento com outro. O professor impaciente com o aluno não possui a virtude da paciência e tampouco da justiça, porque não reconhece a necessidade e condição do outro, ou ainda, a caridade como ato de dar não deve ser movida pelo temor ou como demonstração UNIDADE 2 TÓPICO 1 85 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O de superioridade, mas sim como justiça. • Justiça Particular: como virtude em si mesma que se manifesta como: • Justiça Distributiva: se dá na relação entre dois sujeitos e duas coisas, cujo critério fundamental é o mérito – dar a cada um o que é seu – reconhecendo Aristóteles que o méritopode ser variável e é uma proporção. Compreendendo melhor, vamos ler o que diz Aristóteles sobre a “regra de ouro” “dar a cada um o que é seu”: O justo, portanto, pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as pessoas para as quais ele é de fato justo são duas, e as coisas nas quais ele se manifesta – os objetos distribuídos – são também duas. O justo, então, é uma espécie do gênero ‘proporcional’ (a proporcionalidade não é uma propriedade apenas das quantidades numéricas, e sim da quantidade em geral) (ARISTÓTELES, 1985, p. 96). Como podemos perceber, a justiça distributiva envolve um “arranjo” na distribuição dos bens e do poder de distribuição. • Justiça Corretiva: também chamada justiça diortótica, é mais simples de se compreender. Ao contrário da distributiva, nessa modalidade a justiça é considerada como um tipo de reparação que, voluntária ou involuntariamente, foi retirado de alguém ou da coletividade. É uma proporção matemática, uma vez que se trata de devolução ao que foi subtraído. Para Aristóteles, independe se a pessoa é boa ou má, uma vez que para a correção devem ser tratadas como iguais. Como podemos perceber, tanto a Justiça Distributiva como a Corretiva fazem parte do cotidiano do direito e das decisões judiciais tanto na esfera privada como pública. • Reciprocidade: esta modalidade, que não se enquadra nas anteriores, é que se aplica em caso de produção de bens e sua aquisição, para as coisas que podem ser mensuradas por dinheiro. Seja A uma casa, B dez minas e C um leito. O termo A vale a metade de B se vale cinco minas (ou seja, ela é igual a cinco minas); o leito (C) vale um décimo de B; vê-se claramente, então, quantos leitos equivalem a uma casa (ou seja, cinco). É evidente que as permutas se efetuavam desta maneira antes de existir dinheiro, pois é indiferente permutarmos uma casa por cinco leitos ou pelo equivalente em dinheiro aos cinco leitos (ARISTÓTELES, 1985, p. 101). É evidente que Aristóteles é um homem de seu tempo e pensa desde uma sociedade escravista e aristocrática, a concepção de justiça está elaborada desde tal perspectiva! Não iremos encontrar em Aristóteles o conceito de valor de humanidade e de igualdade como atualmente temos, mas isso não deve diminuir a importância de seu pensamento! UNIDADE 2TÓPICO 186 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O FIGURA 19 - MUNDO GRECO-ROMANO: ESCRAVISTA E ARISTOCRÁTICO FONTE: Disponível em: <http://antiguidade1anomedio.blogspot.com.br/2015/06/escravidao-no- mundo-greco-romano.html>. Acesso em: 16 ago. 2016. 5 O HELENISMO ROMANO Ao final da era de Péricles (495/492-429 a.C.), considerada a Era de Ouro de Atenas, a civilização grega entrava em decadência. A democracia ateniense, maior orgulho daquele povo, ruía e as guerras, já no século IV a.C., pouco a pouco iam minando as bases daquela extraordinária civilização. Desde o episódio da morte de Sócrates, os ideais éticos e políticos daquela sociedade foram se esvaindo. Apesar dos filósofos terem abandonado as praças, o espírito helênico sobreviveu e ecoou pela história! NO TA! � Helenismo é um termo que designa a divulgação, absorção e expansão da civilização grega pelo mundo mediterrâneo, euroasiático e no Oriente. O helenismo vai dialogar de forma muito próxima com os romanos, sem que se possa considerar uma sucessão linear, uma vez que as filosofias grega e romana são construídas sobre as mesmas bases, até as inovações trazidas pelo cristianismo no início da Idade Média. Os romanos ficaram conhecidos na história do Direito como essencialmente práticos, que souberam absorver diversas culturas. “Sem a criatividade e o refinamento dos helenos, os romanos incorporaram elementos culturais advindos de vários povos conquistados e os adaptaram ao seu espírito e aos seus interesses políticos de dominação” (WOLKMER, 2006, p. 29). UNIDADE 2 TÓPICO 1 87 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O Das inúmeras contribuições e reinvenções da filosofia grega pelos romanos no período pós-clássico, destacaram-se: o epicurismo, difundido principalmente por Lucrécio (99-55 a.C.), e o estoicismo, cujos representantes foram Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), Epicteto (50-93 d.C.) e o imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.). Ambas são concepções filosóficas voltadas para a vida feliz e virtuosa, além de ambas demonstrarem desinteresse e desencanto com a política. “Às trevas sócio-organizacionais de seu tempo, os epicuristas responderam da mesma forma que o platonismo e o aristotelismo, a saber, distanciando-se das atividades políticas e aglomerando-se num lugar comum de estudos, reflexões e discussões: o jardim, a escola” (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 121). • Epicurismo: escola que permaneceu durante séculos tanto no mundo grego como no romano, tem sua origem no pensamento de Epicuro de Samos (341-270 a.C.). FIGURA 20 - EPICURO DE SAMOS FONTE: Disponível em: <http://epicurea.es/por-que-epicurea/>. Acesso em: 16 ago. 2016. Para Epicuro de Samos: A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem. O epicurismo assenta-se na busca pelo prazer, não entendido como mundanidade, mas ausência de dor e perturbação da alma. Para ele, a verdadeira felicidade é encontrada quando do afastamento de todos os tipos de sofrimento. Para Epicuro, a noção de justiça se funda na concepção de que há entre os indivíduos interesse em uma vida plena e prazerosa sem dominação de um por outro, e desde aí se constrói a política. Portanto, ser justo é agir conforme o bem do outro. Vejamos suas máximas: • O justo segundo a natureza é a regra do interesse que temos em não nos prejudicarmos nem sermos prejudicados mutuamente. • Em relação àqueles, dentre os viventes, que não puderem concluir pactos para não se prejudicarem pessoalmente nem serem prejudicados mutuamente, nada há que seja justo ou injusto. Isto também vale para os povos que não puderam ou não quiseram concluir os pactos para não se prejudicarem nem serem prejudicados mutuamente. UNIDADE 2TÓPICO 188 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O • Nunca houve justiça em si, mas nas relações recíprocas, quaisquer que sejam seu âmbito e as condições do tempo, uma espécie de pacto a fim de não prejudicar nem ser prejudicado (EPICURO, 2006, p. 99). Seria a justiça uma convenção compreendida pela razão e pela natureza, porque os homens sendo injustos se aproximariam do sofrimento, seja pelo castigo ou pela perseguição. • Estoicismo: corrente que influenciou mais que o epicurismo, cujo fundador foi Zenão de Citium. FIGURA 21 - ZENÃO DE CITIUM Zenão de Citium (333 a.C.-263 a.C.) – busto no Museu Pushkin, em Moscou –, natural da ilha de Chipre. Estoicismo é uma referência ao local onde esse filósofo ensinava: stoa pokilé (pórtico pintado). FONTE: Disponível em: <http://kdfrases.com/frase/136822>. Acesso em: 16 ago. 2016. Nos estoicos há uma tendência ao uso prático da razão, e esta razão deve orientar as ações humanas para a harmonia tal qual há na natureza. Diferencia-se do epicurismo porque não entendem a razão como convenção e a justiça não nasce de um acordo, mas é uma virtude que orienta a razão anterior às leis escritas. Saber guiar-se pela razão é conhecer a natureza e seus desígnios, consolidando o dever como hábitos que geram virtudes e afastando-se das paixões e futilidades que desviam a alma do dever. O estoicismo, bastante difundido por Cícero, assenta-se no Direito Natural entendido como uma razão universal que se aproxima da moral, como a reta razão, sendo o direito justo válido para todos os homens. EST UDO S F UTU RO S! � A seguir veremos como o cristianismo mudou radicalmente a percepção de mundo greco-romano, iniciando uma nova etapa na tradição filosófica. UNIDADE 2 TÓPICO 1 89 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, vimos que: • A Filosofia greco-romanasignificou o rompimento da lógica mítica na legitimação e justificação da política e da justiça nas relações humanas. • O rico legado da cultura grega, em suas distintas etapas, dos pré-socráticos aos socráticos, construiu o sentido ético e moral da justiça e do Direito. • A civilização helênica, preservada mesmo após a desintegração do mundo greco e romano, por sua beleza, força e complexidade foi mantida, reproduzida e reinventada, chegou até os dias atuais enquanto momento fundacional e sempre referenciado do modelo ideal de justiça e seu sentido maior: a felicidade e bem comum. UNIDADE 2TÓPICO 190 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O AUT OAT IVID ADE � A seguir trazemos um trecho do famoso diálogo entre Sócrates e Glauco no livro de Platão “A República”. O diálogo – fictício – ficou conhecido como o “Mito da Caverna”. Trata-se de uma parte central da obra e tem sido objeto de análise ao longo da história do pensamento filosófico. Sócrates: E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros. Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos primeiros momentos. Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol. Glauco: Sem dúvida. Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é. Glauco: Certamente. Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. Glauco: É indubitável que ele chegará a essa conclusão. Sócrates: Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles? Glauco: Claro que sim. FONTE: Disponível em: <http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_2009_06_Platao_e_o_Mito_da_ Caverna.htm>. Acesso em: 16 ago. 2016. Após a leitura do texto acima responda a seguinte questão: Para os pensadores gregos pós-socráticos antigos qual o sentido da justiça? Por que o jusfilósofo tem a “missão” de “retornar à caverna” e tentar “libertar os demais”? F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O O PENSAMENTO MEDIEVAL 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 2 A verdadeira desintegração do Império Romano, longo processo que se inicia em torno do século V, marcado pela divisão do império em Oriente e Ocidente em 476, a expansão dos reinos bárbaros e a ascensão do cristianismo são fatores que marcam a entrada do mundo ocidental em um novo estágio civilizatório. A Idade Média será um longo período histórico marcado pela hegemonia do poder da Igreja, herdeira do legado filosófico da antiguidade, e relações socioeconômicas feudais. Será uma etapa em que os valores culturais, ideológicos, políticos e filosóficos se assentarão nos valores cristãos e pela centralização do poder eclesiástico. Apesar do legado cultural da antiguidade, a fase medieval é marcada por profundas diferenças. Enquanto na Antiguidade os homens eram valorizados por suas posses, quali- dades e por seus feitos heroicos, excluindo os pobres, mulheres e os escravos, na sociedade cristã ocidental se reconhece o homem como unidade composta de matéria e espírito. A reviravolta proporcionada pelo cristianismo ao afirmar que o bem maior não é o Estado, mas o homem dentro da sociedade, possi- bilita a edificação da concepção transcendental de dignidade das ‘modernas declarações de direito’ (WOLKMER, 2006, p. 38). UNIDADE 2 UNIDADE 2TÓPICO 292 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O FIGURA 22 - SOCIEDADE MEDIEVAL FONTE: Disponível em: <http://sociedademedieval.weebly.com/>. Acesso em: 16 ago. 2016. Marcada por relações sociais estamentais – ordens/grupos sociais divididos e sem mobilidade –, a sociedade medieval era um universo profundamente hierarquizado, no qual a nobreza e o clero detinham o poder, restando aos servos a submissão aos senhores em troca de proteção e uso da terra para a sobrevivência. A doutrina cristã vai se definir como o eixo central da moral, ética, leis e fundamento das instituições políticas e jurídicas desta etapa. É das lições do cristianismo e dos fundamentos bíblicos aliados à releitura da tradição grega e romana que serão elaborados os preceitos de direito e justiça. Durante a Idade Média, no mundo ocidental, predomina uma visão homogênea de cristianismo fundada em verdades e dogmas difundidos pelos doutores da Igreja. A filosofia e o direito se submetiam ao controle da teologia cristã e da doutrina da Igreja, que irão dialogar com pensadores como Platão e Aristóteles. Aliar fé (pístis) e razão (logos) será o grande esforço desta etapa, que pode ser sintetizada pelos seguintes elementos caracterizadores: • A hegemonia do monoteísmo cristão no mundo ocidental. • A adoção da teoria criacionista – origem do mundo e controle do tempo por Deus. • O antropocentrismo – assumindo o homem (ser criado à imagem e semelhança de Deus) lugar privilegiado na história. • Condição humana marcada pelo pecado cuja redenção depende do perdão divino condicionado à adoção do modo de vida cristão. • A incorporação na natureza humana dual platônica – corpo e alma racional – o espírito UNIDADE 2 TÓPICO 2 93 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D I R E I T O (pneuma) que é o elo como o divino através do exercício da fé. • O sentido do amor divino como único verdadeiro que conduz à redenção. • Concepção linear e progressiva da história (anunciando o fim com o Juízo Final). É na Alta Idade Média, entre os séculos V e IX, que serão elaborados os fundamentos da chamada Patrística, pelos padres (pais) da Igreja, cujos fundamentos e sistematizações tiveram como objetivo central a criação dos dogmas centrais da religião cristã que acabarão por institucionalizar a própria fé e, a partir dos princípios desta fé cristã, extraídos os conceitos de Direito e Justiça que irão nortear as práticas de controle daquela sociedade. 2 A PATRÍSTICA E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO Muitos serão os padres que irão assumir a tarefa de edificar os fundamentos da fé cristã, sendo este período conhecido como Patrística (etapa que se estende entre os séculos II ao VI). Destes pioneiros da filosofia e teologia cristã, podem ser elencados duas grandes correntes: os “filiados” à tradição helênica, mais especulativos e de discussões mais metafísicas da teologia, como São Irineu, São Basílio, Orígenes; e os latinos, de inclinação mais prática, como São Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho. Entretanto, é em Santo Agostinho que a Patrística encontra o ponto de convergência e maior complexidade. FIGURA 23 - SANTO AGOSTINHO (354-430) – MUSEU FITZWILLIAM – CAMBRIDGE FONTE: Disponível em: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 16 ago. 2016. Santo Agostinho, ou Aurélio Agostinho, o Bispo de Hipona, é considerado o grande conciliador entre a filosofia grega e o cristianismo. O conjunto de sua obra tem como ponto UNIDADE 2TÓPICO 294 F U N D A M E N T O S F I L O S Ó F I C O S D O D
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