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1 2 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA CIDADE E “DRAMAS”: ENTRE A FESTA E O FESTIVAL – JAZZ E BLUES EM GUARAMIRANGA – CEARÁ. MÁRCIO LUÍS ALVES PAIVA Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Márcio Piñon de Oliveira Niterói, RJ 2017 3 4 5 “As festas conservam a unidade e a coerência entre os usos do tempo e do espaço; elas celebram um tempo manifestado no espaço. Ainda nesse período, os códigos do espaço coincidiam com os códigos do tempo (LEFEBVRE, 2006, p. 279) 6 Aos meus filhos Max, Bárbara e Daniel, receptáculos do que de melhor há em mim; À Ana, Martha, e aos meus pais Francisco e Maria. 7 AGRADECIMENTOS Agradecer é um ato difícil por um único aspecto: o esquecimento da última hora. Escrever essa parte no final é injusto pelo calor da pressa e as brigas com o tempo para finalizar, mas vamos lá, pedindo perdão a quem se julgar esquecido. Ao Professor Márcio Píñon, pela paciência, abnegação e tranquilidade com a as quais conduz sua prática profissional, figura ímpar! Ao amigo Márcio Piñon, um ser humano de luz, que transmite paz, muito obrigado! Aos amigos da turma de doutorado, especialmente aqueles que ficaram para a vida: Ari e Luciano; À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico - FUNCAP pelo custeio nos primeiros meses da pesquisa e em seguida a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES que fomentou os demais períodos de realização do estudo; Á Secretaria de Educação do Estado do Ceará pela possibilidade de estar afastado durante grande parte do curso; À coordenação do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF e ao corpo docente do programa nas pessoas do Professor Jorge Luiz Barbosa e do nosso conterrâneo Professor Flávio Rodrigues do Nascimento; À Professora Amélia Cristina pelas contribuições e atenção no acompanhamento da pesquisa; Aos queridos amigos de toda hora e que apesar de seus afazeres acadêmicos sempre estiveram dispostos a ajudar nas discussões: Neide Santana, José Arilson, João Correia Saraiva, ao amigo Alex Alves por ter me apresentado o objeto dessa pesquisa, e em especial a irmã que Deus me presenteou para todos os momentos da vida: Martha Maria Junior e, ao querido Ériko Carneiro pelo ânimo, ajuda, e exemplo de estudante; 8 Ao Doro e família pela acolhida durante o curso e também ao amigo Plínio e Ernita Brasileiro pelo empenho com os trâmites de liberação das funções junto à Secretaria de Educação; Aos meus queridos alunos da Banda de Música Sons de Clara que pacientemente esperam meu retorno à regência: Thyago, Lukas, João, Hugo, Robson, Carlinhos, Tonhão, Matheus, Neudo, Augusto, Neto, Luana, e aos meus amores: Max e Bárbara e o mascote, meu pequeno Daniel; Aos meus alunos e colegas professores da Escola de Ensino Médio Professor Luis Felipe, nas pessoas do Francinaldo, Jaido, Marly, Paulo, Flávio, Ana Paula Feijão, François pela ajuda e compreensão; Aos companheiros da Secretaria de Educação de Sobral, inicialmente pela possibilidade do afastamento. Agradeço a Herbert Lima, Edna, Carolina, Magnum e especialmente a amiga Isabelle que me salva nos momentos de sufoco me substituindo onde é possível; Ao povo de Guaramiranga, gentil, hospitaleiro e atencioso pelas entrevistas, pelos afagos e generosidades, em especial D. Zilda Eduardo; Aos estudiosos que contribuíram com suas impressões este trabalho, em especial à Cláudia Leitão e Rejane Reinaldo; E por fim, não querendo esquecer ninguém, aos companheiros de jornada junto ao trabalho da ordem Franciscana, amigos-irmãos do Gefa – Grupo Espírita Francisco de Assis nas pessoas da Ana, Pedro Henrique, meu compadre, amigo e que sempre está comigo, Arlete Melo, a coluna mestre de todos nós e ao meu irmão de toda hora, Adriano Melo. Aos todos ditos aqui e aqueles que a memória de um doutorando na última hora resolveu esquecer momentaneamente durante este escrito: Muito obrigado! 9 RESUMO O trabalho objetiva analisar a relação entre o festival Jazz e Blues e a pequena cidade de Guaramiranga, localizada na região do Maciço do Baturité, distante cerca de 100 quilômetros da capital do Estado, Fortaleza. A realização de eventos espetaculares, como expressão local da vigente fase de mercantilização da cultura, tem valorizado a pequena cidade enquanto centro de irradiação cultural, disseminando imagens e discursos que enaltecem as características naturais da cidade, aliadas à justificativa de seu passado vigoroso de intensa atividade econômica e desenvolvimento cultural, propiciado pelo cultivo de café na região onde está situada. Com isso, a pequena cidade tornou-se um destino turístico contumaz, porém distante de soluções de seus problemas urbanos mais imediatos, dentre eles, a perda de população, a poluição e a intensa especulação imobiliária, que produziu uma supervalorização da terra. A instalação de serviços por parte de não moradores parece estabelecer na cidade ritmos de vida diversos: uma cidade para a festa e uma cidade que se expressa num cotidiano simplório em dias não festivos. A pesquisa visa, então, analisar os aspectos que propiciam avanços e impactos no espaço urbano de Guaramiranga a partir desses eventos espetaculares, em especial o Festival Jazz e Blues, massivamente reconhecido como o promovente do lugar e um dos motores de desenvolvimento, à revelia das manifestações populares que o enaltecem, como os Dramas Cantados, expressão maior dos atores sociais de Guaramiranga. A análise se move na verificação dos discursos que visam validar as contribuições advindas do evento na produção do espaço em questão, bem como aferir a partir de dados oficiais que venham a comprovar tais benefícios. Buscamos, ainda, escutar agentes produtores da cultura, estudiosos do lugar e, principalmente, a população nativa acerca dos aspectos estudados. O fundamento teórico encontra-se balizado pela teoria do Materialismo Cultural de Raymond Williams, que elucida o fenômeno de mercantilização da arte e, consequentemente, de vendas dos lugares, e na teoria da produção espacial de Henri Lefebvre, quanto à abordagem analítica do espaço enquanto espaço percebido, concebido e vivido. Palavras-chave: Cidade. Cultura. Festa. Festival. Guaramiranga 10 ABSTRACT The present work aims at analyzing the relation between the Jazz and Blues Festival and the city where it takes place, Guaramiranga, located in the hill region Baturité, 100 km away from the capital city of Ceará estate, Fortaleza. The realization of entertainment events as expression of the current phase of commodification of culture has valued the small city and deemed it as a center of cultural irradiation, disseminating images and discourses that praise the city’s natural characteristics, along with the justification of its vigorous past of intense economical activity and cultural development provided by the coffee farming present in the region. Therefore, the small city has become a common touristic destination, but it is still far from the solutions to its immediate urban problems. Among them, we may cite the loss of population, the pollution and the intense realestate speculation that produced an overvaluation of the land. The presence of services offered by non-residents of the city seems to stablish different paces of living: a city for partying and another one that express itself in a simple everyday life when festive days are not present. Thus, this work seeks to analyze the aspects that provide advances and impacts – resulting from these entertainment events - in the urban space of Guramiranga, in special the Jazz and Blues Festival, massively recognized as the promoting source of the place and one of the engines of development despite the popular demonstrations that praise the city, as the Sung Dramas, the most relevant social actor of Guaramiranga. The analysis follows the path of verifying the discourses that aim at validating the contributions that arise from the event in the production of the space at issue, as well as validating them based on official data that may come to ascertain such benefits. Moreover, we seek to listen the agents that promote culture, scholars from the place and, mainly, the native population about the studied aspects. The theoretical basis used is the Cultural Materialism of Raymon Williams, which elucidates the commercialization of art and, consequently, the sale of places; and the Henri Lefebvre’s production of space theory regarding the space analytic approach as perceived and lived space. Keywords: City. Culture. Party. Festival. Guaramiranga. 11 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Gravura representando as lavouras de café na Fazenda Guaramiranga ....... 42 Figura 2 - Importantes sítios Produtores de Café na Serra de Baturité ............................ 46 Figura 3 - As moedas do Sítio Bom Sucesso e o rodeiro de pilagem do Café ................. 50 Figura 4 - Locomotiva utilizada na Estrada de Ferro de Baturité ...................................... 57 Figura 5 - Trabalhadores Flagelados utilizados pela RVC – 1920 .................................... 58 Figura 6 - Trabalhadores Flagelados utilizados pela RVC – 1920 .................................... 58 Figura 7 - Sitio Monte Grappa, de propriedade de Giovani Barsi ..................................... 59 Figura 8 - Casarão do Sítio Pau d’Alho (Destruído) .......................................................... 61 Figura 9 - Fazenda Venezuela .......................................................................................... 61 Figura 10 - Destino Preferido pelos turistas – 2016 ............................................................ 77 Figura 11 - Esquema demonstrativo de Canclini ................................................................ 82 Figura 12 - Reisado do Mestre Vicente Chagas (Mestre da Cultura de Guaramiranga) ... 86 Figura 13 - Encenação de Dramas no 22o Festival de teatro de Guaramiranga ................ 90 Figura 14 - Transcrição do Drama “As Mentirinhas” 92 Figura 15 - Grupo de Dramas Tradição. Festa do Riso e da Flor - IV Mostra dos Dramas de Guaramiranga, 2008 .................................................................................... 94 Figura 16 - Visão hodierna da principal via de Guaramiranga (Rua Joaquim Alves Nogueira) – Praça do Teatro Rachel de Queiroz ...................................... 96 Figura 17 - AGUA – Associação Amigos da Arte de Guaramiranga ................................... 97 Figura 18 - Arte do Festival Nordestino de Teatro – TFN – 2017 ....................................... 114 Figura 19 - Comércio informal nas praças de Guaramiranga (2016) .................................. 117 Figura 20 - Comércio Informal na Praça do Teatro – Guaramiranga (2016) ...................... 118 Figura 21 - Vista aérea de um dos condomínios de alto padrão em Guaramiranga .......... 119 Figura 22 - População de Guaramiranga ano a ano (2006 – 2016) .................................... 120 Figura 23 - Placas de anúncio imobiliária ........................................................................... 122 Figura 24 - Calendário de Eventos de Guaramiranga ......................................................... 129 Figura 25 - Artes das Edições do Festival Jazz e Blues ..................................................... 131 12 Figura 26 - Matéria do Jornal El País sobre o Festival Jazz e Blues – 13/02/2015 142 Figura 27 - Chamada no Jornal Diário do Nordeste – 18/02/2017 ...................................... 144 Figura 28 - Detalhe da chegada de turista à cidade ........................................................... 159 Figura 29 - Detalhes da Cidade Jazz e Blues ..................................................................... 160 Figura 30 - Guia de Hospedagem da Rota do Café Verde ............................................... 163 13 LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Localização da Região do Maciço do Baturité no Ceará ............................ 35 Mapa 2 - Destaque dos sítios pertencentes à família de Ignácio Lopes - 1820 ....... 38 Mapa 3 - Rede de Viação Cearense – 1924 ............................................................... 56 Mapa 4 - Localização de Importantes Equipamentos Urbanos em Guaramiranga ...... 130 14 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Dados Censitários de 1890, 1900 e 1920 ....................................... 60 Tabela 2 - Exportação do Café pelo Porto de Fortaleza .................................. 64 Tabela 3 - Tipologia de Eventos segundo Donald Getz ................................... 106 Tabela 4 - Saldo de empregos formais em Guaramiranga – 2015 .................. 124 Tabela 5 - Quadro demonstrativo dos Repasses do ICMS a Guaramiranga (2007-2016) ..................................................................................... 126 Tabela 6 - Número de empregos Formais Admissões e Desligamentos por setor de atividade – Janeiro de 2017............... 148 Tabela 7 - Admissões e Desligamento por Tipo de Ocupação – 2016 ............ 149 15 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Estoque de empregos por faixa etária em Guaramiranga – 2015 125 Gráfico 2 - Idade dos Entrevistados ............................................................... 157 Gráfico 3 - Sexo dos Entrevistados ................................................................ 157 Gráfico 4 - Procedência dos Entrevistados .................................................... 157 16 LISTA DE SIGLAS IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro RVC – Rede Viação Cearense EFB – Estrada de Ferro de Baturité APA – Área de Proteção Ambiental SEMACE – Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará SEFAZ – Secretaria da Fazenda do Ceará IPECE – Instituto de Pesquisas e Estratégia Econômica do Ceará IBC – Instituto Brasileiro do Café SETUR – Secretaria do Turismo do Ceará FEQUAJUCE – Federação das Quadrilhas Juninas do Ceará PRODETUR – Programa de Desenvolvimento do Turismo AGUA – Associação Amigos da Arte de Guaramiranga SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística FNT – Festival Nordestino de Teatro 17 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 19 CAPÍTULO 1 GUARAMIRANGA: APONTAMENTOS DE SUA HISTÓRIA ..................... 31 1.1. A Ocupação e povoamento do Maciço do Baturité ..................... 31 1.2. A Economia Cafeeira do Maciço do Baturité ............................... 42 1.3. A Estrada de Ferro de Baturité e o desenvolvimento das cidades ........................................................................................ 51 1.4. A derrocada da cultura do café e o declínio das economias na Serra de Baturité .........................................................................62 CAPÍTULO 2 DA FESTA NO SÍTIO DE CAFÉ AOS FESTIVAIS NA CIDADE DE GUARAMIRANGA ...................................................................................... 68 2.1. Breves considerações sobre o estudo da festa ............................... 68 2.2. Guaramiranga: de Produtora de Café à cidade das Festas .......... 75 2.3. Refletindo brevemente sobre festas e tradições populares no Nordeste brasileiro ................................................................................ 79 2.4. Dramas cantados de Guaramiranga: Festa e tradição ................... 86 CAPÍTULO 3 A CIDADE E A FESTA: DA TRADIÇÃO DO IMPROVISO NO DRAMA CANTADO AO IMPROVISO NO FESTIVAL JAZZ E BLUES ................... 100 3.1. Aproximações sobre a Origem dos Festivais ................................. 100 3.2. O século XX e a celebração de festivais pelo mundo e no Brasil ... 105 3.3. Os Festivais de Música: algumas de suas especificidades ............. 109 3.4. O Festival Jazz e Blues de Guaramiranga: avanços e impactos na pequena cidade ..................................................................................... 112 18 CAPÍTULO 4 O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO DE GUARAMIRANGA: DO JAZZ ÀS (RE)IVENÇÕES DO CAFÉ COMO NOVAS SOCIABILIDADES NO LUGAR ................................................................. 133 4.1. A Produção do espaço em Guaramiranga: inserções necessárias . 133 4.2. O discurso da retomada do desenvolvimento pela mercantilização cultural: entre o espaço concebido e o vivido em Guaramiranga ........... 138 CONCLUSÃO ............................................................................................... 166 REFERÊNCIAS ANEXOS 19 INTRODUÇÃO A primeira impressão, como afirma o jargão popular, é a que fica. Essa é a sensação inicial que experimentamos ao chegar à Guaramiranga. A beleza esverdeada da serra, combinada com o colorido de suas flores, além da forma aconchegante da pequena cidade que parece nos receber com abraço -expresso pelo olhar atencioso de sua gente pacata e hospitaleira - assinalando um “seja bem-vindo, sinta-se como na sua casa”, leva-nos à promessa de tê-la como um destino a ser visitado muitas vezes. A pequena cidade, em si, carrega o estigma de um conjunto de adjetivos que a fazem ser um lugar desejado para se visitar, ou até mesmo para morar, conforme dizem aqueles que vivem sob a rigidez dos grandes centros urbanos. Assim acontece com a pequena cidade de Guaramiranga, situada no Maciço do Baturité, distante cerca de 110 km da capital Fortaleza, que se insere como um dos destinos mais praticados da população fortalezense e tem, por isso, hodiernamente seu cotidiano marcado pela visitação, incisivamente aos finais de semanas e feriados, motivando a manutenção de um calendário de atrações para agradar aos que chegam a exemplo de uma lógica global de inserção da cultura enquanto mercadoria e igualmente da cidade nesse mesmo processo. A escritora Rachel de Queiróz, que guardava estreitas relações com Guaramiranga, chegando a residir em dado momento na infância, tratou de acentuar as belezas da pequena cidade em sua obra. Em um dos estudos sobre a escritora encontramos o trecho que diz: era em Guaramiranga que ela sentia “[...] o frio doce, com cheiro de jasmim e de laranjal!” (QUEIROZ, 1994 apud CAVALCANTE 2016). Lugar que, por sua geografia particular, parece não fazer parte do semiárido cearense. Geografia telúrica percebida pelos sentidos e tecida por lembranças, saudades, convivências e imaginação da escritora. Além de ser um refúgio para os períodos mais secos do sertão, Guaramiranga, reunia vários parentes da literata, convivências das quais podemos colher algumas impressões da menina Rachel em relação à serra: “Guaramiranga era assim uma espécie de paraíso para quem morava em Fortaleza – as flores, as rosas, os amores- 20 perfeitos, o clima”. [...] Saudades de Guaramiranga; saudades da igreja de Lourdes, erguida no seu morro particular, sozinha lá encima com a flecha apontando entre palmeiras, o seu jardim e o seu patamar sombreado. (CAVALCANTE, op.cit). As ternuras do lugar e daquilo que representou no passado, através do período áureo do café na região, que propiciou o desenvolvimento na cidade de outrora, foram descritos por Rachel de Queiróz em muitos outros escritos, como em sua coluna no jornal a Folha de São Paulo de 17 de outubro de 1997, na qual disse: [...] Guaramiranga cresceu, de vila passou a cidade; não perdeu os seus encantos, nem a sua magia. Com a queda do café, ficou nos alambiques ("Sou a cana jovial, do café a doce irmã..." cantava a deusa no drama) e vai se mantendo com a exportação de flores e frutas. [...] Creio que a serra, e especialmente Guaramiranga, continua a ser o resort privilegiado para os veranistas urbanos. Não deve ter crescido muito, pois a sua riqueza principal, o café, entrou em decadência. Dizem que os grandes sítios são hoje propriedade de gente rica, que os usa como local de repouso e veraneio. Mas a alma da serra, o cheiro da serra, a água da serra, as crianças de faces cor de maçã, tudo isso ainda deve permanecer. A alma da serra a que se refere Rachel de Queiróz tem sua transcrição na mais rica manifestação cultural de Guaramiranga que são os seus “Dramas Cantados”. Esse “teatro rural” resumia a dimensão do mundo vivido nas fazendas de café, através de sujeitos sociais concretos desse contexto histórico do Maciço do Baturité que eram os trabalhadores desses empreendimentos agrícolas. No final do dia de labuta, reconhecidamente, de trabalho pesado, era comum a reunião dessa gente nos terreiros das fazendas e sítios cafeeiros, e ali criaram suas encenações sobre fatos corriqueiros do cotidiano, com textos poéticos, “relaxos”, “mentirinhas”, acompanhados de composições musicais. Os sítios e fazendas de café viviam a festa como celebração à plantação, à boa colheita através do drama, o momento do encantamento. Mas o encanto, muitas vezes, é incompatível com a inquietação da pesquisa, ou pelo menos, a inicia para depois objetiva-lo. Assim, aconteceu comigo quando fui convidado pela primeira vez há quase uma década a conhecer Guaramiranga por ocasião do período carnavalesco, onde no qual acontece o Festival Jazz e Blues, objeto dessa investigação. O deslumbre com o quadro natural ímpar e a possibilidade da boa música me fizeram programar outras ocasiões na cidade. No entanto, 21 experimentá-la em outros momentos que não os festivos musicais, me encheram de inquietações. Rachel de Queiróz parecia antever os rumos que a cidadezinha tomaria e as transformações pelas quais passaria sua dinâmica socioespacial. O veranista transformou-se em turista que não só se encanta, mas consome a cidade. As fazendas de café transformaram-se em hotéis, muitos não mais pertencentes às famílias do lugar, mas aos empreendedores do setor turístico. Os seus dramas que promoviam o encontro festivo depois da labuta, servem agora para justificar a natureza cultural do lugar, apregoada nos discursos que vendem a cidade enquanto um produto e embora sejam eles, a dimensão concreta da festa da/na cidade, não têm a expressão devida nos momentos dos festivais espetaculares vividos contemporaneamente na cidade. A parte da minha trajetória que cruzou com Guaramiranga como o turista- músico inicialmente, ávido pelas dissonâncias do Jazz foram aos poucos sendo substituídas pelas inquietações de quem passou a confrontar empiricamente, uma pequena cidade concebida para o evento-festival, e de outro lado, um cotidiano marcado pelos caracteres de uma vida simples, desafiadora, própria do modo de viver interiorano e em síntese, um espaço vivido ao modo sertanejo, tão bem transcrito na criação artística dos dramascantados. A dimensão espetacular que a cidade adquire em certos momentos, contrasta com o tempo fluido, largo da vida em dias de semana. A cidade parece esperar pela sexta-feira para acender suas luzes ornamentais, abrir seus estabelecimentos de gastronomia internacional e sua variante gama de serviços para receber bem a quem chega, sejam estes ocupantes de suas casas em condomínio de alto padrão, aqueles detentores de segundas residências na cidade ou simplesmente os que chegam dispostos a locar um dos mais de 600 leitos disponíveis na rede de hotéis (que variam dos mais arrojados aos mais simples, visto que muitos moradores disponibilizam leitos em suas residências para locação como um reforço na renda familiar). O fato é que as estratégias de revigoramento da cidade após o declínio do café na região, ora como políticas públicas, ora iniciativa do setor privado a partir da década de 1990, promoveram transformações substanciais na dinâmica espacial do lugar. A tônica da promoção de eventos denominados festivais tem se tornado banal no calendário de atrações da cidade. A partir de festivais de música, de vinhos, gastronômico, e muitos outros, a cidade se reinventou ao longo do tempo, com vistas 22 à atração de visitantes, não primando nesses momentos pela valorização devida às manifestações naturais de sua gente que são os dramas, reisados, entre outras. Esse misto de observações e inquietações sobre os espectros da realidade desenhada, projetada para a cidade e a expressão da vida marcada no cotidiano, no lugar, nos levaram a vários encontros com e na cidade de Guaramiranga e com sua gente criativa, atores por excelência. A curiosidade se aguçou no sentido de buscar entendermos o significado desses festivais, e em especifico, o festival Jazz e Blues para a cidade. Passamos a questionar qual o papel desses eventos na sua produção espacial? Quem são os entes que pensam e executam essas estratégias? Qual a natureza dessas representações festivas? Para que e para quem os festivais tornaram-se uma grande atração? As manifestações culturais próprias do lugar sofrem impactos ou tornam-se híbridas com os festivais? A busca por essas respostas, ou mesmo uma centelha de interpretação dos fatos postos, nos encaminhou à pesquisa sobre o quadro teórico e metodológico que nos permitisse trilhar rumos de investigação. Inicialmente, o exercício da construção teórica do objeto da pesquisa estava baseado muito na experiência do músico que sou, e por isso a abrangência de conceitos escolhidos foi um dos pecados que não percebemos está no nosso caminho. Nisto, a colaboração dos Professores Valter do Carmo Cruz e Amélia Cristina foi essencial como avaliadores na disciplina de Campos Temáticos III do doutorado, apontando caminhos para a definição das mediações teóricas da pesquisa, inclusive pela assertiva indicação de que o materialismo cultural fosse um caminho seguro a seguir e assim o fizemos. Encontramos em Raymond Williams “um chão possível” para produzir a investigação sobre um produto cultural e sua intercomunicação com a sociedade, ou como apregoa o autor, a também entender a produção cultural como materialização de valores de uma sociedade. Deste modo, seria entender um festival, analisando dentre muitos aspectos, sua capacidade de produção e reprodução de significados e valores numa pequena cidade, inclusive no contraponto que se estabelece entre eles (festivais) e os dramas cantados, que se inscrevem na história de Guaramiranga como essenciais elementos de significação e produtos artísticos expressivos dos valores de seus sujeitos sociais. Eis o desafio. A partir do materialismo cultural tem-se a possibilidade de se pensar a cultura como um processo de produção material e social das práticas específicas, e artes em 23 específico como usos sociais dos meios materiais de produção, visto que para Raymond Williams, a cultura além de construtora de subjetividade é uma forma de construção da hegemonia, ou seja, é a construção de um tipo de pensamento que serve a um tipo específico de interesses. Como coloca Glaser (2008), o materialismo cultural, como formulação de uma nova teoria da cultura inscrita no materialismo histórico, centra-se em um dos debates mais polêmicos e fecundos da tradição marxista que é a determinação econômica da cultura e das artes, porém, assinala uma atualização de conceitos, partindo-se incialmente do de cultura, que não pode ser entendida como explicação de um todo modo de vida, mas de particularidades, exigindo nestes termos, uma reavaliação desse novo modelo de análise cultural marxista. Diz o autor que, [...] temos de reavaliar ‘determinação’ para a fixação de limites e o exercício de pressões, afastando-a de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Temos de avaliar a ‘superestrutura’ em direção a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar ‘a base’, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico (WILLIAMS, 2011, p. 47). Deste modo, Williams propõe que o materialismo cultural seja tomado como um esforço para se compreender e dar forma teórica ao novo momento do capitalismo pós-guerras, com seus avanços sem precedentes em todas as áreas ditas culturais. A produção cultural deve ser vista como uma inter-relação entre obra e sociedade que se dá na forma da produção e por isso, material. Para Williams sempre fomos conduzidos a ver a arte enquanto reprodução da sociedade, traduzido na máxima “a arte imita a sociedade”, porém é plenamente possível concebê-la não somente enquanto reprodução, mas também como produção social. A cultura, nos moldes atuais e vista partir da análise do materialismo cultural é aquela que ensina o que devemos desejar, e para isto, os meios de comunicação exercem um papel preponderante na disseminação de imagens. A publicidade invade o nosso subconsciente com imagens sobre o ato de consumir cultura. A cultura sob os ditames do econômico, produto. Sobre os meios de comunicação, Williams enfatiza: 24 [...] os meios de comunicação, das formas mais simples da linguagem às formas mais avançadas da tecnologia da comunicação, são sempre social e materialmente produzidos e, obviamente, reproduzidos. Contudo, eles não são apenas formas, mas meios de produção, uma vez que a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de organização social, constituindo-se assim em elementos indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para as relações sociais de produção (WILLIAMS, 2011, p. 69). Assim, as proposições de examinarmos o festival como produto cultural suplanta a possibilidade de concebê-lo como lócus de arte subjetiva, mas a partir do imperativo do mercado, um produto a ser consumido, difundido através de imagens, que nesse processo divulga cidades e cria sobre elas o imaginário de centralidade cultural, de uma força “natural” em produzir cultura artificializada em detrimentos às manifestações de cunho histórico do lugar. Assim se constitui Guaramiranga e seu Festival de Jazz nessa pesquisa. Os caminhos que foram se desenhando na construção da pesquisa para o entendimento de uma produção cultural (Festival) e sua relação com a cidade, nos encaminharam, de início, ao conhecimento do percurso humano do próprio atode festejar, ou seja, o que seria a festa em si, em seus diferentes sentidos e expressões históricas para enfim entendermos o que chamamos de festival na sua forma atual, guardando similaridades e principalmente as discrepâncias e contradições entre os conceitos: festa (objetos ritualísticos, celebrações, emanações do espírito) e festivais (objeto cultural mercantilizado na sua forma mais atual). No âmbito da pesquisa, as discrepâncias e contradições mostram-se reveladas na oposição: dramas cantados (como expressão do trabalho criativo dos sujeitos), uma festa de participação, conforme assevera Duvignaud (1983) como sendo aquela que congrega a comunidade, reavivando a memória social, aquela que traz o cotidiano em si, versus Festival de Jazz e Blues, que pode ser pensada também como uma festa de representação, entendida como aquela em que atores e espectadores se dividem, atribuindo significações diversas à festa. Desse modo autores como Dumazedier (1962); Bakhtin (1987), Duvignaud (1983) e Durkheim (1962), além de geógrafos como Claval (1981;1992; 2011), Di Meo (2001), Fremont (1984), e os brasileiros Bezerra (2006), Fernandes (2204), Cardoso (2000), Silva (1992) e Corrêa (2013). A necessidade de entendermos a construção do espaço da cidade de Guaramiranga desde seus primórdios, e de enveredarmos na historicidade que 25 assinala os momentos de apogeu da economia cafeeira cearense a partir da região do Maciço do Baturité, bem como ao conhecimento das narrativas que asseveram as origens da “vocação” cultural do lugar, vivificadas nos dramas (enaltecida como justificativa ao “reflorescimento” da cidade pelo viés cultural nas últimas décadas), nos encaminhou a um profícuo recorte bibliográfico, composto pela historiografia de autores como Studart Filho (1965), Thomaz Pompeu (1909), Bastos (2011), Ribeiro (1972), Farias (2001), Lima (2009), Assis e Sampaio (2010), Alcântaras (2009) e historiadores locais como Jucá (2013), Xico Luiz (2010) e Leal (1981). A imersão no contexto histórico das manifestações culturais locais se mostrava como um aspecto relevante a ser considerado, visto que a intenção basilar de investigar a cultura e suas imbricações atuais na pequena cidade de Guaramiranga exigiu, ao nosso olhar, um entendimento sobre o que compôs e ainda compõe a dimensão festiva do lugar ao longo do tempo, através dos dramas cantados, os reisados, entre outros. Autores como Holanda (2015), Ferreira (s/d) e Santana (2011) se mostraram de grande valia nesse momento. No que se refere às reflexões que assentam os festivais como o objeto deste estudo e da sua afirmação como o tipo específico de “festa artificializada” descrito, mergulhamos novamente na pesquisa histórica desse tipo de evento, suas tipologias, intentando inclusive, caracterizá-lo como evento espetacular que demonstra ser na atualidade, para enfim culminarmos no surgimento e configuração do evento Festival Jazz e Blues de Guaramiranga em seus desdobramentos socioespaciais na cidade. Foram relevantes as reflexões de autores como Getz (2001), Maciel (2011), Petitinga (s/d), Ruas (2013), Mello (2013), bem como em autores locais como Reis (2007), Lopes (2016), Almeida (2015), Mamede (2003), bem como a pesquisa em inúmeras fontes confiáveis extraídas de páginas eletrônicas de jornais e empresas instaladas localmente. As perspectivas de leituras que subscrevem o papel central ocupado pelas imagens e discursos e suas imbricações com o conceito de cultura enquanto recurso, entendida como uma nova ferramenta de desenvolvimento social, político e econômico foram substanciais na investigação. Deste modo os encaminhamentos teóricos de Yúdice (2004), Harvey (2005; 2001) e Debord (1997) e se mostraram igualmente valiosos. A construção da reflexão primaz na pesquisa, circunscrita enfaticamente no quarto capítulo que trata sobre o papel desempenhado pelo Festival Jazz e Blues no 26 processo de produção espacial da cidade tem em Henri Lefebvre (1997; 2001 e 2008) sua sustentação fundamental. Partimos da necessária imersão nas dimensões elencadas pelo pensador francês para a teoria da produção espacial, constituída de forma tripartite, ou seja, composta pelas práticas espaciais (Espaço Percebido), a representação do espaço (Espaço concebido) e o espaço das representações (Espaço vivido), para entendermos a complexidade socioespacial que envolve a cidade em questão, a partir da relação estabelecida com os eventos artísticos espetaculares, em especial o Festival citado. Para Lefebvre (1994), a cidade deveria ser percebida como uma relação superadora dessa tríade, pois adverte o autor que ao mesmo tempo em que o espaço carrega consigo simbolismos explícitos ou clandestinos – representações das relações de produção – próprios do cotidiano, do particular, do vivido, transmite, também, as mensagens hegemônicas do poder e da dominação – representações das relações sociais de produção –, expressões do geral, do concebido. Deste modo, ao nos apropriarmos da teoria Lefebvriana como viés interpretativo de Guaramiranga, incide pensar sobre como os locais na cidade vão sendo constituídos por meio da lógica dos espaços percebidos, concebidos e vividos. Considera-se a priori, que não existe um espaço organizado por uma lógica específica, pois essas três dimensões (percebido, concebido e vivido) não são dados isolados, mundos separados. A força da análise a partir das contribuições teóricas de Lefebvre reside justamente no fato de negar o privilégio particular de uma das partes sobre a outra. A produção do espaço não se dá apenas no econômico, no material, como acúmulo de objetos. Ela se processa na relação indissociável entre essas dimensões apresentadas. Exposto o quadro teórico basilar que constitui a sustentação deste estudo, lembramos a advertência de Bezerra (2006) na qual afirma que o arcabouço teórico embora ofereça muitas elucidações e caminhos não consegue sozinho responder às perguntas que fazemos sobre as dinâmicas específicas dos lugares, são os trabalhos de campo vistos como pontos de partida e de chegada que nos ajudam a pensar sobre as perguntas antes formuladas como formular outras. Deste modo, dirigimos-nos a brevemente elencar os caminhos trilhados na dinâmica espacial estudada. Certamente, as inquietações suplantam em duração o curso de doutorado, elas nasceram antes nas minhas vivências de músico que passou a ter Guaramiranga como ponto de visitação em face do Festival. A separação dos 27 olhares do músico para o pesquisador não foi tarefa fácil e nem se converge numa ruptura na forma de conceber o evento em estudo. As visões se complementam e não culminam num caráter maniqueísta acerca do objeto estudado, mas numa necessidade de discutir as contradições inerentes na relação deste (Festival) com a cidade e sua força criativa original. A polarização entre os segmentos festa e festival não é o intuito nesta pesquisa, embora possa parecer em alguns momentos no texto que segue, mas buscamos o entendimento e reflexão da fricção que ocorre entre ambos. O aspecto da resistência das manifestações que trazem o cotidiano e a memória da cidade, transcritos nos dramas cantados, denota que não estamos diante de uma superação destes nestes novos arranjos festivos na cidade com os festivais, pelo contrário, percebemos e reiteramos o caráter de convivência dos dois segmentos. Toda festa é inventada, não nasce naturalmente. Desta forma, intentamos refletir para que elas existem, como também para quem. O Jazz e Blues em Guaramiranga poderia facilmente ser rotulado de artificial, estrangeiro à cultura do lugar, mas não é simples assim. Após quase duas décadas de chegar à cidade, vai aos poucos se incorporando e participando do cotidiano, deixando marcase significando lugares, espaços citadinos. Neste fato, se compõe a fricção daquilo que “já era” com o “que chegou”, produzindo contradições que intentamos ressaltar. Assim, a trajetória do trabalho de campo, enquanto caminhos metodológicos serviu para nos aproximarmos da realidade, mais rica que a própria teoria, segundo o pensamento marxiano. As entrevistas semi-estruturadas, combinadas com a técnica de grupos focais (técnica de pesquisa que coleta dados por meio das interações grupais ao se discutir um tópico especial sugerido pelo pesquisador. “Como técnica, ocupa uma posição intermediária entre a observação participante e as entrevistas em profundidade. Pode ser caracterizada também como um recurso para compreender o processo de construção das percepções, atitudes e representações, segundo Gondim, 2003), porém nem sempre se mostrou viável, pois quem estava na festa, às vezes não estava disposto a compor esse tipo de interação com um pesquisador), além das ricas conversas informais com as pessoas moradoras ou não de Guaramiranga. As entrevistas foram elaboradas com o intuito de colhermos informações acerca das contribuições e impactos do festival, como também aferir sobre infraestrutura, apoio local e governamental para o setor formal: comerciantes (bares e 28 restaurante majoritariamente), hoteleiros (principais hotéis) e o setor informal: vendedores ambulantes e artesãos. A coleta de dados se deu em várias visitas a instituições públicas da esfera estadual e local (registro aqui a pouca ou quase inexistente disposição de dados junto aos órgãos da esfera de poder local), bem como apoiamo-nos nas facilidades de obtenção de dados alocados nos sites dessas várias instituições, a utilização da ferramenta Skipe foi de grande valia para a realização de entrevistas remotamente. Quanto à estrutura, este trabalho compõe-se de quatro capítulos, sendo que: No primeiro capítulo intitulado: Guaramiranga: Apontamentos de sua história, que tem como subitens A Ocupação e povoamento do Maciço do Baturité; A Economia Cafeeira do Maciço do Baturité; Estrada de Ferro de Baturité e o desenvolvimento das cidades e, A derrocada da cultura do café e o declínio das economias na Serra de Baturité, intentamos tomar ciência do processo histórico de formação da região de Baturité na qual se insere Guaramiranga. A expressão do cultivo de café foi a ferramenta essencial para desenvolvimento das cidades e de suas expressões culturais, como os dramas cantados. O poder oligárquico dos fazendeiros do café incrementou a região de um conjunto de transformações próprias do sistema cafeeiro do século XIX no Brasil, operando um período de grande expressão econômica do maciço do Baturité, refletido no enriquecimento dos donos de sítios que deste modo, constituíram verdadeira aristocracia rural. Esse fato se mostrou de grande relevância para o entendimento das questões futuras analisadas na pesquisa. O segundo capítulo, de título: da festa no sítio de café aos festivais na cidade de Guaramiranga, composto dos subitens: Breves considerações sobre o estudo da festa; Guaramiranga: De Produtora de Café à cidade das Festivais; Refletindo brevemente sobre festas e tradições populares no Nordeste brasileiro e, Dramas cantados de Guaramiranga: Festa e tradição, objetiva fazer um esboço sobre a teoria da festa, buscando analisar as primeiras aproximações destas com a cidade. Partimos de um levantamento das manifestações culturais do lugar desde o tempo dos sítios de café, reconhecendo-as dentro de um quadro mais geral em níveis regional e nacional para assim, traçarmos as aproximações dessas manifestações de cunho tradicional com o atual período de espetacularização de eventos em Guaramiranga, especificamente com os festivais, aqui objetivados. 29 O terceiro capítulo, nomeado de A cidade e o festival: da tradição do improviso no Drama cantado ao improviso Festival Jazz e Blues, referendamos especificamente o momento urbano da festa em sua feição espetacular, diferenciando-o do caráter festivo tradicional, exemplificado pelos Dramas Cantados, (expressão da cultura popular guaramiranguense, que subsidiam as narrativas que visam orientar a identidade de centralidade cultural da cidade). Para tanto, enfatizamos o conceito de festival enquanto expressão de festa nos seus moldes atuais, como formas espetacularizadas de eventos dentro da lógica de mercadificação da cultura e das cidades. Para a análise do festival, procuramos fomentar a sua descrição através do material produzidos em jornais, pelos “donos” do festival, narrando seus desdobramentos no espaço da cidade. O quarto e último capítulo: O processo de produção do espaço de Guaramiranga: do jazz às reinvenções do café como novas sociabilidades no lugar, desempenha papel central na investigação, uma vez que incide sobre as relações do festival com a produção do espaço social de Guaramiranga. Investiga os simulacros que envolvem a produção de eventos como a guisa de desenvolvimento para o lugar, expondo as ambiguidades e contradições que constam no processo de cultura enquanto recurso para os pequenos aglomerados urbanos. Isso permitiu o contraste da cidade de Guaramiranga ao universo da fragmentação dos lugares, que instituiu o mundo da mercadoria e a exibição da multiplicidade de formas e espaços. Deste modo, as representações do espaço da cidade mostraram-se como um território do artificial em acentuando discrepâncias com a cidade enquanto espaço de representação, transcrita no cotidiano. A reinvenção de sociabilidades que se voltam para os espaços originais da cidade, suas fazendas de café, antes cenários da arte criativa dos dramas, transformadas agora em equipamentos turísticos indiciam o esgotamento da política de (re)criação de eventos, sob o signo dos festivais, apostando numa “volta” ao passado do lugar, e desse modo a valorização da arte enquanto uma matriz de Guaramiranga deveria ter lugar, o que infelizmente não se verifica. 30 31 CAPÍTULO 1 GUARAMIRANGA: APONTAMENTOS DE SUA HISTÓRIA 1.1. A Ocupação e povoamento do Maciço do Baturité A reconstrução de uma narrativa sobre um lugar nos incumbe da necessidade de nos distanciarmos dos afetos a ele dirigidos a fim de torná-lo um objeto a ser desvendado. Dentro da geografia não seria diferente quando estabelecemos a tarefa de pensar uma cidade e suas mediações culturais, como pretende-se neste estudo. Tem-se aqui o esforço de enveredamos num entendimento da cidade de Guaramiranga, chamada originalmente de Conceição da Serra, situada na região serrana do Maciço do Baturité1, distante cerca de cem quilômetros da capital Fortaleza, no Estado do Ceará. Sobre essa cidade dirigem-se inúmeros adjetivos, encarecendo-a de títulos variados, confeccionando um imaginário sobre esta que é a menor sede municipal cearense, mas que converge-se num dos pontos de maior atração turística, dada a efervescência da produção cultural nela difundida, vivificando sua feição de lócus de irradiação artística. Sua história além de não poder ser desmembrada do conjunto regional da qual é componente, ou seja, da própria narrativa sobre a região do Maciço de Baturité, constitui-se de peculiaridades e, porque não dizer, numa exceção, desde suas características ambientais, visto está encravada num dos pontos de maior altitude do Estado, até mesmo ao modus vivendi que ali se constituiu, atraindo populações oriundas das regiões circunvizinhas, buscando contornar os cáusticos períodos de seca que comumente assolam o semiárido nordestino, ou ainda imigrantes de outras partes do mundo como da Europa, que viram na região do Maciço do Baturité, as condições similares às experienciadas em seus locais de origem, agregando valores 1 O Maciçodo Baturité é uma formação geológica encravada no sertão central cearense e abrange os municípios de Pacoti, Palmácia, Mulungu, Guaramiranga, Aratuba, Capistrano, Itapiúna, Aracoiaba, Baturité, Acarape, Redenção, Barreira e Ocara e corresponde a uma área com uma largura média de 22km e uma área total aproximada de 1300 quilômetros quadrados. 32 e padrões sociais até hoje largamente exaltados por seus descendentes que vivem no Ceará. As terras serranas que se situam no Maciço do Baturité eram originalmente ocupadas por grupos indígenas, provenientes da região do Jaguaribe, destacando-se com as principais etnias os Canindés, Jaguaribaras e Apuiarés, além dos Tapuias e os Paiacus. Os primeiros colonizadores portugueses que chegaram ao sopés da serra eram provenientes das regiões de Beberibe e Aquiraz, utilizando como acesso os vales dos rios, principalmente o Choró. Tem-se registro que os Jesuítas já haviam alcançado a serra por volta de 1655, constituintes de uma missão destinada a catequizar os índios da região (especialmente os Tapuias e os Paiacus). Tal missão foi instalada na área do lugar chamado Comum, atualmente denominado Tijuca, mas que devido à sinuosidade daqueles terrenos e a estreiteza do platô, foi ordenado pelo ouvidor responsável, a sua transferência para a o lugar onde se situa a cidade de Baturité2 (STUDART FILHO, 1965). As terras foram sendo ocupadas a partir do sopé, através do regime de sesmarias doadas aos pioneiros que subiam pelos vales dos rios, sendo inacessível ainda a ocupação das abas da serra, dadas as muitas dificuldades das áreas mais elevadas, de mata fechadas e espessas (constituídas de tipos florísticos como o Pau D’Arco, Jacarandá, Maçaranduba, Algelis, dentre inúmeros tipos de arbustos e trepadeiras) e por estas constituírem verdadeiros esconderijos de índios que ferozmente reagiam à perda de suas terras, sendo os Paiacus os mais ostensivos e por isso, fora o grupo mais perseguido. Por volta de 1713, aliados ao grupo indígena dos Jaguaribaras, os Paiacus invadiram e saquearam Aquiraz, o que por ordem real, culminou no extermínio de grande maioria da população indígena ali residente (STUDART FILHO, op. cit). 2 De acordo com Leal (1981) antes de ser transformada em Vila de Monte-Mor, por ordenação do ouvidor Vitorino Soares Barbosa, em 14 de abril de 1764, Baturité existia como missão indígena dirigida por padres jesuítas, abrigando etnias como os índios Canindé e Jenipapo. MONTE-MOR, O NOVO D’AMÉRICA, permaneceu mais de 94 anos como Vila, e por meio da Lei Provincial N 844 foi elevada à categoria de cidade com o nome de Baturité. A pequena cidade foi construída ao pé da serra, organizando-se em torno da Igreja de Nossa Senhora da Palma, existente até hoje, embora não conserve mais seus traços originais. Atualmente representa a cidade de maior dinamismo econômico do maciço, tendo o comércio com atividade principal. 33 Jucá (2013) colabora relatando que o povoamento da Serra de Baturité intensificou-se ao longo da primeira parte do século XIX, quando diversos sítios se formaram pela produção de frutas, legumes, cana-de-açúcar e em especial o café. O mesmo autor enfatiza ainda acerca da forma de ocupação dessas terras, referendando noutro ponto de vista que, Quase a totalidade das terras sobre a serra não foi tomada por sesmarias, mas por posses, e a sua divisão era feita por riachos. Foram para a serra muitos sertanejos, em levas migratórias, que buscavam melhores condições de vida, estabelecendo-se proprietários ou simplesmente moradores desses sítios, aonde o trabalho acontecia nos roçados, engenhocas (engenhos) aviamentos de farinha...(JUCÁ, 2013, p. 21). Nas terras que compõem os atuais municípios de Guaramiranga, Pacoti e Mulungu, a chegada do colonizador branco se deu de maneira mais lenta. Foi em Conceição (atual Guaramiranga3) que se tem registro da primeira ocupação no sítio denominado Macapá de propriedade do Capitão João Rodrigues de Freitas, no século XVIII, nos anos finais de setecentos (LEAL, 1981). Inicialmente, dadas às más condições de penetrabilidade de suas terras, por vias inadequadas, escorregadias e onduladas, ou ainda pela animosidade do contato entre índios rebelados e os brancos colonos, fizeram com que a ideia de inutilidade e desvalorização das serras do Maciço perdurasse por muito tempo. Somente com as adversidades trazidas pelas crises climáticas de grande impacto no Ceará vividas entre os anos de 1777-1778 e 1790 e 1793, conhecidas, respectivamente, como a 3 Segundo Lima (2010), A história de Guaramiranga é marcada por mudanças significativas na sua organização política, administrativa e territorial. Seu primeiro nome foi Conceição até que a Lei no 1.580 de 18 de setembro de 1873 elevou o local à categoria de freguesia, e toda sua área territorial passou a se chamar Freguesia de Nossa Senhora da Conceição. Anos depois, em 01/09/1890, passou a ser Vila de Nossa Senhora da Conceição através do Decreto no 55. Em seguida, no dia 4 de setembro do mesmo ano, o Decreto no 59 mudou o nome do povoado para Vila de Guaramiranga. Em 25/08/1899, o Decreto no 550 anexou Guaramiranga, Mulungu, Pacoti e Coité (hoje Aratuba) a Baturité. Guaramiranga perdeu a condição de Vila, passou a ser simples povoado e denominar-se Conceição, seu antigo nome. Em 1921, através da Lei no 1.887, foi criado o município de Guaramiranga e a ele ficou anexo Mulungu; o distrito de Pernambuquinho continuou pertencendo a Baturité. Em 1931, através do decreto no 193, houve a reforma administrativa que extinguiu os municípios criados anteriormente na serra de Baturité e suas áreas passaram a pertencer ao município de Baturité. Em uma nova revisão territorial, o município de Pacoti passou a constituir os seguintes distritos: Pacoti, Guaramiranga, Mulungu e Coité (atual Aratuba). O Decreto-lei no 169, de 31/03/1938, retificado pelo de no 378, de 20/10/1938, anexa Pacoti a Comarca de Baturité. A emancipação política definitiva só foi conquistada em 1957, quando a Lei no 3.679 de 11 de julho do mesmo ano restaura o município de Guaramiranga e fixa os seus limites territoriais. 34 seca dos três setes e seca grande (esta última foi tão severa que dizimou quase todo o rebanho de gado em quatro anos), é que esta ideia de não serventia destas áreas serranas começa a se demover (THOMAZ POMPEU, 1909). 35 Mapa 1: Localização da Região do Maciço do Baturité no Ceará Fonte: IPECE, 2015. 36 Em face das dificuldades vividas no ambiente sertanejo nesses períodos citados, contingentes de fazendeiros, reuniram o que lhes restavam em posses e escravos e seguiram para promover as primeiras ocupações da serra, levando muitas vezes apenas animais de transportes e as poucas vacas leiteiras que lhes sobravam. Compravam porções de terras devolutas aos primeiros exploradores que iam à frente abrindo picadas na mata virgem e assinalando as posses de terras juntos as autoridades fiscais, fazendo assim negócios rentáveis junto aos fazendeiros ávidos por garantir fortuna. Submetidos a viagens severas em direção à serra, principalmente para os idosos e crianças, as expedições foram aos poucos instalando as fazendas serranas, muitas delas ainda conservam o aspecto material que denota a história pujante vivida outrora. Como afirma Bastos (2011), a serra passava a ser refúgio de sertanejos e fazendeiros que, em tempos difíceis de seca e fome, levavam suas famílias, escravos e rebanhos para se refugiarem naquelas regiões úmidas. Várias famílias se estabeleceram na serra, enfrentando muitas dificuldades como sol intenso, mosquitos e falta de transporte. Ao tratar do processode constituição da cidade de Pacoti4 (antigo Sítio Pendência), Jucá (2013), incide também acerca das dificuldades iniciais de ocupação da serra, colocando em destaque que no período chuvoso do ano, muitos lugares do maciço eram praticamente abandonados por diversos fatores como o frio que alcançava mínimas de 14° C, os caminhos quase que intransitáveis pelas cheias dos cursos d’água e uma enorme quantidade de moscas que punham a gente e animais em desespero. O autor destaca ainda um peculiar processo de migração sazonal dessas famílias sertanejas que ocuparam a serra, mas que não se desfaziam de suas propriedades no sertão. Diz ele que, Daí, as famílias proprietárias de sítios na serra e fazendas no sertão permaneciam na serra durante o verão, onde não passavam as privações da seca e no inverno retornavam para a fazenda levando seu gado. Essa tradicional migração interna perdurou até meados do século XX. [...] A Serra de Baturité, como “zona de refrigério”, era permanentemente uma ilha verde no 4 É comum também o relato da fixação de diversos outros grupos de migrantes na serra de Baturité, oriundos de outros países inclusive, principalmente depois dos relatos que vislumbravam sobre o seu clima, vegetação e potencialidades dos seus solos, relatos esses espalhados pelo Velho Mundo através da qualidade do café exportado para lá. Muitos desses estrangeiros passaram a investir em pequenos estabelecimentos comerciais, como o suíço Theodoro Nadler, proprietário de uma casa que comercializava artigos advindos da capital e da Europa e do boticário francês Victor Saillard, que manipulava o fabrico de medicamentos, no sítio Pendência, atual Pacoti (JUCÁ, 2013). 37 meio do sertão. Os responsáveis pela ocupação e formação desses primeiros núcleos urbanos no alto da serra eram especialmente vindo do sertão, pois muitos flagelados das grandes secas tinham a serra como verdadeiro “oásis”. Ribeiras do Quixeramobim e Jaguaribe, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco eram os principais lugares dos que chegavam (JUCÁ, 2013, p. 26). Farias (2001) relata uma dessas típicas expedições oriundas do sertão rumo à Guaramiranga, por volta de 1820, da família de Ignácio Lopes Barreira que estabeleceu-se da seguinte forma: Coronel Antônio Francisco de Queiroz Jucá (seu filho), comprou o sítio Macapá; José de Holanda Lima (casado com sua filha Francisca Barreira) comprou o sítio Abreu e seus filhos José Raimundo (Zuza) comprou o Sítio Arábia, Baltazar (Dadá) o Sítio Uruguaiana, Pedro, o Sítio São Pedro e Clementino o Sítio Monte- Flor. A chegada da cultura do café no Ceará mudará substancialmente a história do Maciço do Baturité. Com as secas que se sucederam ainda nos anos de mil e oitocentos, assolando os sertões, milhares de cearenses buscam a sobrevivência nas serras úmidas, servindo, a posteriori, como mão-de-obra na incipiente lavoura cafeeira. Studart (1928) assevera que o café adentra o Ceará por mãos de José de Xerez Furna Uchoa (Juiz da Ribeira do Acaraú em 1758) que em visita à França em 1743, obteve duas mudas de café das existentes no Jardim das Plantas, em Paris. Uma das mudas não resistiu à viagem de volta ao Brasil e a restante foi plantada no Sítio Santa Úrsula, na Serra da Meruoca, passando em seguida a ser cultivado nas demais serras úmidas do Estado.5 Na região de Baturité, o café entra em 1824, por obra de Antonio Pereira de Queiroz, que o cultiva inicialmente no Sítio “Mucahype” ou “Munguaipe”. As mudas eram advindas de cafeeiros do Cariri, originários de Pernambuco. Assinala Studart 5 Segundo LIMA (2000) o café foi cultivado nas Serras de Baturité, Serra da Aratanha, Serra de Maranguape, Serra de Uruburetama, Serra da Meruoca, Serra Grande e Serra do Araripe. 38 (1928) que no mesmo ano, Felippe Castelo Branco6, trouxe mudas ou sementes do Pará, cultivando-as no Sítio Bagaço (na época pertencente às terras de Guaramiranga), de propriedade de Pedro Pires da Rocha. O café inicialmente cultivado era da variedade “Bourbon”, de ótimos resultados no cultivo e produção e seu plantio se restringia, no começo, a pequenas áreas, nos quintais, apenas para consumo dos estabelecimentos familiares, porém, não demorou sua expansão. Mapa 2: Destaque dos sítios pertencentes à família de Ignácio Lopes - 1820 Disponível em: http://www.angelfire.com/linux/genealogiacearense/holanda_index.html Acesso: 12 set 2015. 6 Aos nomes de Queiroz e Castello Branco, juntam-se os de José Hollanda, Themoteo Ferreira Lima e das famílias Queiroz, Hollanda, Linhares e Caracas, como pioneiros e incentivadores da lavoura cafeeira em Baturité (STUDART, 1928). 39 A partir de então ocorreu uma verdadeira corrida pela aquisição das terras serranas, e para lá se deslocaram muitos dos ricos fazendeiros e seus descendentes, principalmente dos sertões de Quixadá e Canindé. Subiram a serra em busca de fortuna as famílias Queiroz, Holanda, Pimentel, Caracas, entre tantas outras. [...] Em pouco tempo, a área serrana apresentava notável influência no cenário estadual, produzindo frutas e legumes para a capital, cana-de-açúcar (transformada em rapadura), para os sertões arredores, além do algodão arbóreo cultivado nos pés da serra e principalmente café, que já em 1846, juntamente com o de Maranguape, era exportado em toneladas do porto de Fortaleza para a Europa (Farias, 2001, p. 13). O período compreendido entre 1845 e 1877, configurou-se numa exceção no regime hídrico cearense, visto que as estiagens tão marcantes aliviam e os períodos de quadras chuvosas passam a apresentar certa regularidade, marcando um tempo de expressiva expansão cafeeira na região do maciço, destacando-se o desempenho dos municípios de Guaramiranga, Coité e Pacoti. Calcula-se que na época, dos nove milhões de pés de café botadores no Ceará, metade situava-se na região da serra de Baturité, distribuídos em 725 sítios, no valor de 7.060 contos, produzindo cada pé, uma média de 300 gramas de café, dados esses obtidos no censo agrícola de 1920 (STUDART, 1928). Farias (2001) afirma que em função do café, as terras serranas haviam sido ocupadas. O deslocamento de populações para a região se dava em face da abundante oferta de postos de trabalho na lavoura cafeeira, sendo a mão-de-obra composta basicamente de mestiços, índios nativos, negros recém-libertos e de brancos sertanejos refugiados das severas secas que passavam a viver dependentes dos ricos donos de terra. Assinala ainda Lima (2009) que as pessoas que trabalhavam nas grandes fazendas e sítios eram submetidas a um regime árduo com muitas horas de trabalho fiscalizadas por um feitor. Os coronéis, como eram chamados, exigiam respeito de todos e quando acumulavam fortuna também eram poderosos a ponto de comandar a política local e influenciar na estadual. É bastante comum encontrar na escassa literatura sobre Guaramiranga, a escrita romântica que transforma a serra num paraíso, porém, na contramão desse tipo de discurso, o Historiador Xico Luiz (2010), natural da região, narra os primeiros momentos da expansão cafeeira, reiterando que não haviam muitas regalias e 40 confortos. As condições de trabalho eram de uma vida árdua. O regime de trabalho das moagens iniciava-se por volta das duas da manhã, trabalho no eito de sol a sol, e sempre, como regra, com a participação física do dono do sítio. “A serra nunca foi uma Califórnia”, afirma o historiador. A cultura do café na serra, nos seus primórdios, ao contrário do que aconteceuno centro e sul do Brasil, no geral, não estava nas mãos dos ricos nem dos grandes proprietários, até mesmo porque ricos e grandes na serra eram poucos. Boa parte da produção cafeeira da serra provinha das plantações de pequenos proprietários, ou melhor, de parceiros ou agregados que faziam seus roçados de café em propriedades rurais o mais das vezes pertencentes a terceiros. Alguns donos de sítio, com o passar do tempo, para regularizar suas terras, tiveram que comprar cafeeiros plantados em suas próprias terras. Quando falo que ricos e grandes na serra eram poucos, sei que espanto a muitos “românticos”(LUIZ, 2010). Ainda sobre os aspectos que relacionavam à composição e à dinâmica sociocultural dos habitantes da Serra de Baturité, o botânico fluminense Francisco Freire Alemão, integrante da Comissão Científica de Exploração7, organizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB, que visitou o Ceará entre 1859 e 1861, registra que, São em grande parte brancos ou mamelucos; geralmente pobres; há porém já bastante sujeitos, que possuem uma fortuna boa para este lugar; mas acumulada principalmente à custa dos lavradores, a quem emprestam dinheiro com juros, e condições pesadíssimas. Este estado é sem dúvida devido, da parte do que dá, à pouca confiança, que lhe inspira o que toma; e da deste, à sua ignorância, e imprevidência. Tem a gente de Baturité adquirido má fama; foram sempre considerados como homens trampolinas, de má fé, maus pagadores e jogadores; mas ajunta-se, não são matadores. Não sei o que há nisso de verdadeiro, mas a usura dos comerciantes é devido como já disse à besteza dos lavradores. O vício do jogo que com efeito existe, é vício comum do sertão, como o é entre os gaúchos do Sul. A vida pastoril ou do criador tem sempre grande parte do ano desocupada, e na falta de distrações, se torna depois em hábito, e em modo de vida. O que sei é que 7 As sessões que constituíram a expedição e seus respectivos responsáveis foram a saber: Botânica (Francisco Freire Alemão), Geológica e mineralógica (Guilherme Capanema), zoológica (Manuel Ferreira Lagos), geográfica e astronômica (Giacomo Raja Gabaglia), etnográfica e narrativa de viagem (Gonçalves Dias e José dos Reis Carvalho). Dado o desconhecimento pretérito acerca do Nordeste por parte desses estudiosos, ao qual genericamente chamavam de “Norte do Brasil” que mandaram vir da Argélia, através do porto de Fortaleza, alguns dromedários para servirem como meio de transporte dos membros da comissão, ao supor o ambiente com algo próximo ao deserto do Saara. Numa incursão rumo a Baturité por Gonçalves Dias e Guilherme Capanema, e dada as grandes chuvas daquele ano, um desses animais atolou vindo a quebrar a pata, obrigando a equipe a aderir logo aos jumentos, que são por excelência os transportadores dos sertões. Tal episódio motivou em 1995 o samba-enredo da escola campeã Imperatriz Leopoldinense do carnaval carioca, denominado: “Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube lá no Ceará!” (JUCÁ, 2013). 41 achamos a gente de Baturité boa, amável, hospitaleira, como no resto do Ceará ( ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL - MANUSCRITOS DE FRANCISCO FREIRE ALEMÃO apud JUCÁ, 2013, p. 33-34). Segundo os manuscritos do diário de viagem de Freire Alemão, que chefiava a equipe, citados por Jucá (2013), os membros da comissão raramente se encontravam e eram comuns alguns desentendimentos e discussões com Gonçalves Dias, considerado pelo chefe, um poeta boêmio, desleixado e relapso com os registros etnográficos sob sua responsabilidade. Consta nos manuscritos que Gonçalves Dias, aproveitando o período no Ceará foi para o Maranhão, sua terra natal, e de lá enviou o material produzido por meio de um paquete (embarcação de passageiros) que veio a naufragar no trajeto para o Ceará, dando fim a tudo o que supostamente produziu na seção etnográfica (relatos de costumes, desenhos, fotografias, etc). Consta ainda nas notas manuscritas o relato de Freire Alemão quando de sua estadia em Conceição da Serra (atual Guaramiranga), especificamente no sítio do Coronel Batista Alves de Lima (propriedade que também levava o nome Guaramiranga8), no qual nota-se a opinião altiva, própria de um intelectual vindo da Corte, intolerante a certas “grosserias das classes inferiores”, fazendo menção ao povo “cabra”, de sangue índio, indolentes e preguiçosos. O Sr. José Fortunato está sempre queixoso da vida que leva na serra, do pouco proveito que tira e da má gente que a povoa, bem entendido da gente cabra. Diz que são indolentes e preguiçosos, e muito altanados, isto é, tratam toda a gente qualquer que seja como de iguala igual, e é necessário viver com eles como muito cuidado, sendo muito ciosos de liberdade. Custa a ter aqui um escravo, pois entre eles não há quem queira servir, e se se traz de fora um criado esse é logo aconselhado por eles que não sirva, porque não é escravo (ALEMÃO apud JUCÁ, 2013, p. 38). 1.2. A Economia Cafeeira do Maciço do Baturité 8 Citação de Hugo Varela Matos Brito, que a primeira escritura dessa propriedade data de 1810 e já trazia o nome Guaramiranga. Em 1842, foi comprada por seus antepassados da família Matos Brito, ao custo de 200 mil réis, pagos com cinco vacas paridas (valendo 12 mil cada e o restante em dinheiro). A fazenda foi no apogeu do café uma das maiores produtoras da serra, cerca de 2000 sacas, extraídas de 75 hectares de plantação. (Depoimento constante no documentário “Guaramiranga: ontem,hoje e sempre” (2004), dirigido pela jornalista Marcy Barsi, descendente da tradicional família Barsi da região da serra). 42 Tendo sido introduzido a partir de 1846 na pauta de exportações do Ceará, o café produzido na “ilha” de mata atlântica que constitui a região do maciço de Baturité, passa pela sua qualidade, a ser considerado um dos melhores do mundo, ultrapassando o Atlântico e seu consumo chega às tradicionais cafeterias francesas. A região torna-se no período, a área responsável por até 2% da produção nacional de grãos (ROMERO & ROMERO, 1997). Curiosamente, a fertilidade das terras do maciço permitiram por muitos anos o cultivo do café na modalidade a céu aberto, cultivada em consórcio com outras culturas, como o feijão, o milho e a mandioca. Figura 1: Gravura representando as lavouras de café na Fazenda Guaramiranga. Fonte: http://www.iea.sp.gov.br/out/LerTexto.php?codTexto=261 As técnicas utilizadas no preparo das terras para os “roçados” de café, no entanto, eram bastante rudimentares e desencadearam consideráveis prejuízos ao ambiente serrano, que se iniciava com a derrubada de grandes extensões de mata atlântica, onde pouco da madeira era aproveitada, dada a dificuldade de transporte de toras nos íngremes terrenos, resultando em extensas queimadas para dar fim aos restos. Em seguida, dava-se a utilização das cinzas como adubo, que não adiantava muito, pois com os períodos de chuva, essa matéria era rapidamente lixiviada serra abaixo (BASTOS, 2011). A expansão dos cafezais nesse sistema na Serra de Baturité acarretou não somente a derrubada da mata nativa como também a exaustão dos solos. Após 43 algumas décadas de belas floradas e grandes colheitas, a terra não mais possuía humus nem retinha umidade, tornando-se incapaz demanter o vigor produtivo das plantas. A solução dessa problemática veio por volta de 1860 através de consórcios bem sucedidos do cafezal com leguminosas como o camunzé e a ingazeira que além de oferecerem à plantação de café a proteção do sol, estas árvores, especialmente os ingás, produzem humus com a queda de suas folhas e têm a vantagem de enriquecer o solo com azoto e abrigar inimigos naturais de pragas (SÃO PAULO, 2001). Alcântara (2009) analisando de forma mais geral acerca da configuração cafeeira do século XIX no Brasil, atenta que para além de sua importância econômica, o café foi formador de uma cultura própria, refletida tanto no luxo dos “barões do café” como nas músicas e poesias que ainda desencadeiam nostalgia àqueles que vivenciaram em algum momento a rotina de uma fazenda ou sítio cafeeiro. Acrescenta a autora que os investimentos no plantio, transporte e comercialização do café, foram promotores de importantes transformações na paisagem dos lugares através da construção de armazéns, depósitos, instalações portuárias, bem como na instauração de uma arquitetura própria. A exemplo do conjunto de transformações advindas do sistema cafeeiro do século XIX no Brasil, opera-se o período de grande expressão econômica do maciço, onde as vilas serranas no Baturité passaram a experimentar surtos de progresso. A fase áurea do café na serra, proporcionou à nascente vila de Conceição grande impulso, refletido no enriquecimento dos donos de sítios9 que deste modo, constituíram verdadeira aristocracia rural, semelhante e inspirada nas que se formaram em Pernambuco, oriundas do sistema açucareiro, em similar estágio de prosperidade (RIBEIRO, 1972). 9 JUCÁ (2013) pondera acerca da relatividade desse enriquecimento, na mesma linha de pensamento do Historiador Xico Luiz (citado anteriormente), ao referir-se que não se deve confundir essa “elite serrana” com aquela estereotipada como rica e poderosa, como a da Baixada Fluminense ou do Vale do Paraíba. O que fortalece a ideia de riqueza é que essa elite, de alguma forma, passou aos seus herdeiros um patrimônio que ainda hoje pode ser notado e que é usufruído entre os que trazem os sobrenomes de maior expressão na região já citados nesse texto. Atenta ainda o autor, que no passado referido, os requintes e os luxos eram ínfimos, se contextualizarmos economicamente a região. As fontes históricas expressas nos inventários post-mortem, pesquisados pelo autor dão conta da simplicidade material desses “ricos”, nos quais estão presentes nas citações, além dos casarões (sede das fazendas), mobiliários simples como baús, canastras, cadeiras e mesas, abotoaduras, algumas jóias, talheres de prata, poucos escravos, além dos imóveis simples que compunham os ambientes serranos. 44 Para o mesmo autor, nesse período surgiram, as grandes mansões serranas mobiliadas com cadeiras austríacas, consolos com tampo de mármore, cômodas com lavores, castiçais e espelhos de cristal, candeeiros com quebra luz, pendentes do teto, pianos, entre outros artefatos que vieram a compor as sedes de fazendas e sítios da surgente aristocracia cafeeira na Serra do Baturité. O transporte se dava por trabalhadores braçais, ou em costas de animais, dada as dificuldades oferecidas por terrenos íngremes, estreitos e de sinuosas veredas. Tudo levado, inicialmente do ponto terminal da estrada de ferro, primeiramente na estação de Canoa (atual Aracoiaba) e em seguida, a de Baturité. Os costumes e a vida social das famílias cafeeiras na serra requintaram-se. Nas partidas (bailes) e saraus, era observada a mesma etiqueta admitida nessas ocasiões, nos centros mais adiantados do país, segundo aponta Ribeiro (op. cit). A instauração de estabelecimentos educacionais para os mais abastados, assinala a formação de uma “elite intelectual” na região. Exemplo disso é a inauguração em 1889 do primeiro colégio interno feminino em Conceição (Guaramiranga) organizado por dona Ana Bilhar, chamado Colégio Nossa Senhora de Lourdes, bem como da transferência do Colégio Cearense para a serra, destinado à educação de rapazes (LIMA et al, 2011). Nesse cenário de prosperidade da lavoura cafeeira e da vida social das famílias abastadas, e suas representações de requinte nos bailes, a esfera social que conduzia com suas mãos o trabalho árduo típico do cafezal também se manifestava festivamente, a nosso ver, a verídica expressão da festa em Guaramiranga: os dramas cantados10, que segundo uma das mais atuantes personagens dessa manifestação, Mestra de Dramas11 Zilda Eduardo (que em 2017 completou 90 anos de idade), 10 Segundo Alves (2011), as dramistas mais antigas de Guaramiranga informaram-na em entrevistas que os dramas “são peças teatralizadas e musicalizadas por agricultores e donas de casa”. Provavelmente, quando as dramistas dizem que os dramas cantados são “peças teatralizadas” querem se referir a peças encenadas ou representadas diante de um público. Unanimemente elas concordam que o ofício de encenar o drama cantado foi repassado por seus pais, avós, professores ou por pessoas mais antigas que viveram ou passaram pela comunidade, caracterizando a oralidade tão comumente presente nas culturas populares e ágrafas. Outras, disseram que originalmente os dramas eram praticados nos terreiros em comemoração às boas colheitas da agricultura (HOLANDA, 2015, p. 60). 11 A Mestra de Dramas ou Mestra Dramista, é a responsável pela criação e guarda dos textos tradicionais que são copiados à mão em cadernos escolares, conhecidos como cadernos de drama, transcodificações dos arquivos encapsulados na memória das Mestras mais antigas como saberes 45 tiveram origem em Guaramiranga no Sítio Arábia, onde nasceu e foi criada numa família de trabalhadores cafeeiros. Sobre os dramas versaremos no capítulo seguinte com mais minúcias. Num esforço de caracterizar melhor o período do desenvolvimento trazido pelo café dentro de um contexto mais amplo, Alcântara (2009), afirma que o perfil dos que fizeram fortuna com a cultura cafeeira se aproxima muitos dos ideais de luxo e hierarquia da sociedade nobiliárquica. Tomados como exemplo, os barões do café brasileiros, tinham perfis que se assemelhavam ao modelo português de senhor civilizado, requintado segundo os moldes europeus. Emenda ainda a autora, que, apesar de possuir laços com os aspectos tradicionais da sociedade, a atividade cafeeira trouxe uma nova configuração aos locais onde se desenvolveu. Em São Paulo, por exemplo: [...] O café alterou a fisionomia física, humana, social, cultural e econômica do Estado, criando paisagens próprias, balisando o povoamento, fazendo nascer cidades, desenvolvendo os centros urbanos, propiciando o aparecimento das ferrovias, fazendo surgir uma nova unidade socioeconômica bem definida como a fazenda de café, gerando um tipo social e humano, como o fazendeiro [...] (MATOS, 1990, p. 56 apud ALCÂNTARA, 2009, p. 73). Guardados os devidos aspectos regionais e suas singularidades, é possível estabelecermos uma analogia ao desenvolvimento econômico advindo através do cultivo do café e todo quadro social por ele gestado no sudeste do Brasil e àquele que se evidenciou na região do Maciço do Baturité, principalmente no que concerne a espacialização de uma arquitetura similar, através dos muitos casarões, comumente hoje, explorados como vitrine para o assentamento da imagem de um passado glorioso da região. Há todo um conjunto de feições que compõem um rico patrimônio material, muito caro ao desenvolvimento
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