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2020.2 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES Material de Apoio Prof. Me. Luiz Eduardo Lapolli Conti SUMÁRIO Parte I – Teoria geral das obrigações .................................................................... 6 1 A noção jurídica de obrigação ....................................................................... 7 2 Localização do direito das obrigações no âmbito do direito civil ................... 9 3 Distinção entre direito das obrigações e direitos reais ................................. 10 4 Fontes das obrigações ................................................................................. 17 5 Conceito de obrigação ................................................................................. 20 6 Estrutura da relação obrigacional ............................................................... 21 6.1 Elemento subjetivo: os sujeitos da relação obrigacional ...................... 22 6.2 Elemento objetivo: a prestação ........................................................... 23 6.3 Elemento abstrato: o vínculo jurídico ................................................. 26 6.3.1 Obrigações naturais .......................................................................... 28 8 Princípios do direito obrigacional ............................................................... 33 8.1 A autonomia da vontade ..................................................................... 33 8.2 A boa-fé objetiva ................................................................................. 35 8.2.1 A tríplice função da boa-fé objetiva .................................................. 39 8.2.2 A obrigação como processo ............................................................... 44 8.3 Os princípios do equilíbrio contratual e função social do contrato ........... 45 Parte II – Classificação básica das obrigações .................................................... 47 1 Introdução .................................................................................................. 48 2 Obrigação de dar ......................................................................................... 48 2.1 Obrigação de dar coisa certa .................................................................... 49 2.1.1 Responsabilidade pela perda ou deterioração ................................... 51 2.2 Obrigação de dar coisa incerta ................................................................. 53 2.3 Obrigações pecuniárias ............................................................................. 54 3 Obrigação de fazer ...................................................................................... 56 3.1 Inadimplemento das obrigações de fazer ............................................. 58 3 4 Obrigação de não fazer ................................................................................ 60 4.1 Inadimplemento da obrigação de não fazer ......................................... 61 Parte III – Classificação especial das obrigações ................................................ 63 1 Introdução .................................................................................................. 64 2 Classificação especial quanto ao elemento objetivo (prestação) ................... 64 2.1 Obrigações alternativas ....................................................................... 64 2.2 Obrigações facultativas ....................................................................... 68 2.3 Obrigações cumulativas ....................................................................... 68 2.4 Obrigações líquidas e ilíquidas ............................................................. 69 2.5 Obrigações divisíveis e indivisíveis ...................................................... 69 3 Classificação especial quanto ao elemento subjetivo (Sujeitos) .................... 72 3.1 Obrigações solidárias ........................................................................... 72 3.2 Obrigações fracionárias ........................................................................ 78 3.3 Obrigações conjuntas ........................................................................... 78 3.4 Obrigações disjuntivas ......................................................................... 79 4. Outras modalidades de obrigações.............................................................. 79 4.1. Obrigações de meio, de resultado e de garantia ................................... 79 4.2 Obrigações principais e acessórias ........................................................ 81 4.3 Obrigações puras e simples, condicionais, a termo e modais ................. 82 Parte IV – Da transmissão das obrigações .......................................................... 83 1 Introdução .................................................................................................. 84 2 Cessão de crédito ......................................................................................... 84 2.1 Conceito e espécies ............................................................................... 84 2.2 Formas de cessão de crédito e vedações ............................................... 85 2.3 Notificação do devedor e responsabilidade do cedente ......................... 87 3 Assunção de dívida ..................................................................................... 88 3.1 Conceito e requisitos ............................................................................ 88 4 3.2 Espécies e meios de defesa do terceiro .................................................. 89 4 Cessão de contrato 90Pparte V – Do adimplemento e extinção das obrigações ...................................................................................................................... 93 1 Do pagamento direto .................................................................................. 94 1.1 Natureza jurídica do pagamento ......................................................... 95 1.2 Princípios do pagamento ..................................................................... 98 1.3Condições subjetivas do pagamento ................................................... 101 1.4 Condições objetivas do pagamento .................................................... 107 2 Formas especiais de pagamento ................................................................ 111 2.1 Do pagamento em consignação.......................................................... 111 2.2 Do pagamento com sub-rogação ........................................................ 117 2.3 Da imputação do pagamento ............................................................. 121 2.4 Da dação em pagamento ................................................................... 124 2.5 Da novação ....................................................................................... 128 2.6 Da compensação ................................................................................ 132 2.7 Da confusão ....................................................................................... 136 2.8 Da remissão ....................................................................................... 137 Parte VI – Do inadimplemento das obrigações ................................................. 142 1 Introdução ................................................................................................ 143 1.1 Violação positiva do contrato ............................................................ 143 2 Inadimplemento absoluto ......................................................................... 146 2.1 Inadimplemento culposo da obrigação .............................................. 146 2.2 Inadimplemento fortuito da obrigação .............................................. 147 3 Da mora ....................................................................................................149 3.1 Conceito ............................................................................................ 149 3.2 Mora e inadimplemento absoluto ...................................................... 150 3.3 Espécies de mora ............................................................................... 151 5 3.4 Purgação e cessação da mora ............................................................. 156 Parte VII – Dos Efeitos do Inadimplemento ............................................... 157 1 Das perdas e danos .................................................................................... 158 1.1 Conceito ............................................................................................. 158 1.2 Dano emergente e lucro cessante ....................................................... 158 1.3 Obrigação de pagamento em dinheiro ................................................ 160 2 Dos juros ................................................................................................... 161 2.1 Conceito ............................................................................................. 161 2.2 Espécies de juros ................................................................................ 163 3 Da cláusula penal ...................................................................................... 165 3.1 Conceito ............................................................................................. 165 3.2 Espécies de cláusula penal ................................................................. 166 3.3 Valor da cláusula penal ...................................................................... 168 4 Das arras ou sinal ...................................................................................... 172 4.1 Conceito ............................................................................................. 172 4.2 Espécies de arras ................................................................................ 172 4.3 Funções das arras .............................................................................. 174 parte viii – Do enriquecimento sem causa e pagamento indevido ..................... 176 1 Introdução ................................................................................................ 177 2 Enriquecimento sem causa ........................................................................ 177 2.1 Ação de in Rem Verso ........................................................................ 179 3 Pagamento indevido ................................................................................. 180 3.1 Delineamentos gerais da repetição ..................................................... 182 referências bibliográficas .................................................................................. 185 PARTE I – TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES 1 A noção jurídica de obrigação A vida em sociedade exige que os indivíduos estabeleçam relações de cooperação entre si. Dessas relações decorrem obrigações de todo tipo. Não por acaso, o vocábulo deriva do latim obligatio, que “contém uma ideia de vinculação, de liame de cerceamento da liberdade de ação”1. Neste sentido, Almeida Costa lembra que “utiliza- se a palavra obrigação para designar de modo indiscriminado todos os deveres e ônus de natureza jurídica ou extrajurídica”2. Assim, em uma acepção amplíssima, pode-se definir obrigação como “dever cujo desrespeito implica sanções, a qual reflete algo da essência das próprias sociedades humana”3. A natureza dessas sanções vai permitir distinguir entre duas espécies de obrigações: a) A obrigação como dever social: Todo indivíduo possui a obrigação (moral) de socorrer os necessitados ou ainda a obrigação (de trato social) de se comportar segundo as regras de decoro e boa educação. Os cristãos, por exemplo, possuem a obrigação (religiosa) de receber a comunhão e de recolher o dízimo. Entretanto, é de se considerar que essas obrigações não vinculam as pessoas juridicamente, ou seja, não as sujeitam a sanções jurídicas (embora resultem em outras espécies de sanção, as vezes de consciência, como nas obrigações religiosas, outras vezes sanções sociais impostas de forma não organizada pelo próprio grupo social)4. 1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualização de Guilherme Calmon Nogueira da Gama. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pp. 3-4. Segundo Zimmermann, o “substantivo ‘obligatio’ remonta a Cícero. Quanto ao significado literal do termo, sua raiz ‘lig-’ indica que algo ou alguém está vinculado, do mesmo modo que nós estamos todos “vinculados” (a Deus) em virtude de nossa ‘re-ligio’”. (The law of obligations: Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University, 1996, p. 1 [Tradução nossa]). 2 ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das obrigações. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 53. 3 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 24. 4 Deste modo, se há um acordo de vontades quando é aceito um convite para jantar, não existe propriamente um contrato, suscetível de responsabilizar aquele que convidou, caso este tenha desrespeitado o compromisso. Outrossim, não há que se cogitar que a carona corresponda a um contrato de transporte gratuito, nos termos do que preconiza art. 736 do Código Civil (“Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia”). 8 b) A obrigação como dever jurídico: Quando a sanção é imposta coercitivamente por poderes instituídos pela própria sociedade, ou seja, pelo Estado, tem-se a obrigação como dever jurídico 5 . Assim, por exemplo, existe uma obrigação (jurídica) que corresponde ao serviço militar para todo brasileiro. Seu descumprimento suscita, entre outras sanções, a suspensão dos direitos políticos, na forma do art. 15, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil. Dentre esses deveres jurídicos, de forma mais restrita, encontra- se o objeto da disciplina de Direito das Obrigações. Ao contrário dos deveres jurídicos em sentido amplo, as obrigações que aqui serão estudadas não são deveres que recaem, indistintamente, sobre os membros de uma coletividade, mas sobre pessoas determinadas, que se se relacionam juridicamente 6 . Daí porque também são chamadas também de direitos pessoais7. O Direito das Obrigações, que está compreendido no Livro I da Parte Especial do Código Civil, abrange essencialmente três matérias: (1) as obrigações negociais, ou seja, as relações de intercâmbio de bens entre sujeitos ou a prestação de serviços8; (2) a responsabilidade civil, que trata da reparação de danos; e (3) o enriquecimento sem causa, que abrange o pagamento indevido e sua restituição ao seu respectivo 5 Nesse sentido, é importante relembrar o magistério de Kelsen: “As sanções estatuídas por uma ordem jurídica são - diferentemente das sanções transcendentes - sanções socialmente imanentes e - diversamente daquelas, que consistem na simples aprovação ou desaprovação - socialmente organizadas. [..]Dizer que o Direito é uma ordem coativa significa que as suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica” (Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. Martins Fontes, 1998, pp. 23-4). 6 Daí o alerta de Pontes de Miranda: “Temos, portanto, de tratar das ‘obrigações’, em sentido restrito, sem apagarmos o que também é obrigação e não está no Direito das Obrigações. Temos de ver que, do outro lado, ou logo após, estão obrigações que não cabem no terreno que exploramos: basta que o sujeito passivo delas seja total, ‘todos’, e não só ‘alguém’” (Direito das obrigações, obrigações e suas espécies, fontes e espécies das obrigações.Atualizado por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 55). 7 Vide nota abaixo. 8 Essas relações, lembra Noronha (Direito das obrigações, op. cit., p. 28), não se restringem ao Direito das Obrigações, sendo disciplinadas em outras matérias “especiais” como, por exemplo, o Direito do Consumidor e o Direito do Trabalho. 9 titular. Essa disciplina é a “base, não somente do Direito Civil, [...] mas de todo direito”, como apontou Josserand9. 2 Localização do direito das obrigações no âmbito do direito civil A relação jurídica obrigacional não é integrada por qualquer espécie de direito subjetivo; somente aqueles direitos com conteúdo econômico, passíveis de circulação jurídica, poderão participar de relações obrigacionais. Descartam-se, assim, os direitos de personalidade, assim entendidos como a “parte do direito privado que cuida da proteção jurídica de objetos de direito que pertencem à natureza do homem”10. Neste ramo do direito privado encontramos a proteção ao nome e prenome, à honra, à intimidade e a vida privada, por exemplo. Embora tenham conteúdo patrimonial, essas relações obrigacionais não podem ser confundidas com os direitos reais, uma vez que possuem uma natureza essencialmente pessoal. Quando dois sujeitos celebram um contrato, no qual um passa a ser credor do outro, o direito pessoal exercitável contra o devedor consiste em uma prestação e não em uma pretensão de natureza real no crédito formado11. O credor não tem poderes de proprietário em relação à coisa ou à atividade objeto da 9 Segundo o autor francês: “Esta teoria [do Direito das Obrigações] está na base, não somente do Direito Civil, como as pessoas e grupos que estão no centro das inumeráveis relações obrigacionais, mas de todo direito: o direito comercial, o direito administrativo, o direito internacional, privado ou público, são baseados em relações obrigacionais que eles tendem a adaptar aos mais diversos interesses, mais ou menos especializados, e não é exagero afirmar que o conceito de obrigação constitui a armadura e o substratum do direito e mesmo, de um modo mais geral, de todas as ciências sociais” (JOSSERAND, Louis. Cours de droit civil positif français: conforme aux programmes officiels des facultés de droit mis au courant des lois, des décrets-lois, de la jurisprudence et de la doctrine. 3. ed. Paris: Sirey, 1939, pp. 3-4 [Tradução nossa]). 10 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 157. 11 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 2: obrigações. 13. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 44. 10 prestação. O cumprimento da prestação (atividade do devedor) e não a coisa em si (o dinheiro, o imóvel, etc.) constitui o objeto imediato da obrigação. Assim, é possível identificar no interior dos direitos patrimoniais duas subespécies de direitos: os direitos reais, que são estudados pelo Direito das Coisas, e os direitos pessoais, que integram o Direito das Obrigações12. Importa distinguir, em tópico específico, esses dois ramos do direito a fim de delimitar com precisão as características específicas do direito obrigacional. 3 Distinção entre direito das obrigações e direitos reais A distinção entre direitos reais e direitos obrigacionais (ou pessoais) remonta suas bases à tradição romanista, que enxergava a dicotomia ação real – ação pessoal “basicamente em razão da oponibilidade perante terceiros e o caráter erga omnes da primeira, que inexistia nas ações pessoais” 13 . Daí porque Lafayette Rodrigues Pereira lecionava que “direito real é aquele que afeta a coisa direta e imediatamente, sob todos ou sob certos aspectos, e a segue em poder de quem quer que a detenha. O direito pessoal é o direito contra determinada pessoa”14. 12 Beviláqua é um crítico dessa denominação: “Nosso patrimônio contém duas categorias de direitos, os reais e os obrigacionais, ou de crédito. Estes últimos são também chamados pessoas, porém esta expressão não merece as preferências que se lhe tem dado, pois é de sobremodo equívoca. Visivelmente, aplica-se, com propriedade, aos direitos das pessoas, as quais, nos códigos modernos, formam uma classe a parte; e é de grande inconveniência, para a doutrina, que os termos técnicos se prestem a mais de uma significação. Só diante da inexistência de uma outra expressão é tolerável essa inópia idiomática. Mas a expressão – direitos pessoais – ainda admite outros sentidos. Aplicam-na mesmo para designar certos direitos reais, como o de usufruto. É nociva essa elasticidade ou, antes, essa inconsistência de expressão ao esclarecimento da ciência, parece-me indubitável” (Direito das obrigações. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 21). 13 SILVA, Roberta Mauro e. Relações reais e relações obrigacionais: proposta para uma nova delimitação de suas fronteiras. In TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 74. 14Apud GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 120. 11 A partir da diferenciação entre direitos pessoais e direitos reais, pode-se alcançar os traços específicos que caracterizam a obrigação civil. As principais diferenças são as seguintes: a) Quanto ao objeto: Os direitos reais conferem ao seu titular um poder direto e imediato sobre uma coisa (a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, conforme o art. 1.128 do Código Civil), enquanto que os direitos pessoais têm por objeto o direito a uma prestação, ou seja, uma ação ou omissão (dare, facere ou non facere) que pode ser exigida de outrem, pressupondo sempre “a existência e cooperação de dois sujeitos”15. b) Quanto ao modo de aquisição: Os direitos reais se adquirem pela tradição (art. 1.226 do Código Civil), quando se tratar de coisas móveis, ou pelo registro, quando se tratar de coisas imóveis (art. 1.227 do Código Civil)16. Os direitos pessoais, por sua vez, são adquiridos por contrato (mas não exclusivamente, como será visto no tópico que tratará das fontes das obrigações). Deste modo, é possível afirmar que, como regra, não se adquire propriedade por contrato: o direito pessoal pode gerar um jus ad rem (direito à coisa), mas não um jus in re (direito sobre a coisa), que só se adquire com a tradição ou registro17. Por isso, no Digesto encontramos 15 ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, op. cit., pp. 108-9. Em importante lição, Betti afirma que “nas relações de direito real, se resolve um problema de ‘atribuição’ de bens, e, nas obrigacionais, um problema de ‘cooperação’ ou, na hipótese de responsabilidade aquiliana, de ‘reparação’. [...] Num caso, trata-se de atribuir bens a algum associado e de, correlativamente, excluí-los de outros: há, portanto, uma relação de atribuição e respectiva exclusão; no outro, trata-se de resolver um problema de cooperação no caso de relações jurídicas que têm por fonte um contrato, ou de compensar as consequências lesivas de um ato ilícito” (Teoria geral das obrigações. Campinas: Bookseller, 2005, pp. 30-1). 16 Existem outras formas de aquisição de direitos reais, como a usucapião (art. 1.238 do Código Civil), a acessão (art. 1.248 do Código Civil), a ocupação (art. 1263 do Código Civil) e o achado de tesouro (art. 1.264 do Código Civil). 17 Trata-se de uma opção do legislador brasileiro, que preferiu seguir a tradição romana da duplicidade formal (contrato mais tradição, quando se tratar de coisas móveis, ou contrato mais transferência, em caso de imóveis). Em outros ordenamentos jurídicos, como, por exemplo,o francês, adotou-se o sistema da unidade formal, em que basta o contrato para gerar o direito real (nesse sentido, 12 a seguinte passagem: “A essência da obrigação não consiste em nos tornar proprietários ou em nos fazer adquirir servidão, mas em obrigar alguém a nos dar, fazer ou prestar alguma coisa”18. c) Quanto à origem: Os direitos reais estão sujeitos ao princípio da tipicidade ou legalidade, de modo que se tratam de direitos que têm por origem a lei (no Brasil, os direitos reais estão fixados no art. 1.225 do Código Civil)19. No caso dos direitos pessoais, vigora o princípio da liberdade contratual (art. 425 do Código Civil), que permite que os indivíduos criem relações obrigacionais diversas daquelas previstas em lei20 (os contratos inominados ou atípicos21). dispõe o art. 1.138 do Código Civil francês: “A obrigação de entregar coisa se aperfeiçoa pelo consentimento das partes contratantes”). 18 “Obligationum substantia non in eo consistit, ut aliquod corpus nostrum aut servitutem nostram faciat, sed ut alium nobis obstringat ad dandum aliquid vel faciendum vel praestandum”. Essa é a definição de obrigação proposta por Paulo no Digesto (Livro LXIV, 7, 3). Cf. ZIMMERMANN, The law of obligations, op. cit., p. 6. 19 Por exemplo, a Medida Provisória nº 759/2016 (convertida posteriormente na Lei nº 13.465/2017) que acrescentou o inciso XIII ao art. 1.225 e criou o “direito real de laje”, definido no art. 1.510-A, que visa regularizar uma situação comum na maior parte das cidades brasileiras. Mais recentemente, a Lei n° 13.777/2018, alterou o Código Civil instituindo o regime da multipropriedade, ou seja, “o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada” (art. 1.358-C do Código Civil). É interessante observar que antes da inovação legislativa, o Superior Tribunal de Justiça admitiu o caráter de direito real da multipropriedade mesmo que ela não integrasse o rol do art. 1.225 do Código Civil (REsp 1.546.165/SP; rel. p/ o acórdão Min. João Otávio de Noronha; julgado em 26.4.2016). 20 Aqui, cabe lembrar a lição de Beviláqua (Direito das obrigações, op. cit., p. 23): “Os direitos reais não são numerosos, concretizam-se em figuras pouco variadas, que as legislações, com efeito, taxativamente indicam. Ao contrário, os atos, os fatos e as abstenções que os homens se podem prometer diversificam de modo considerável, segundo o arbítrio, as necessidades e as circunstâncias ocasionais, oferecendo um número indeterminado de nuances irredutíveis, muitas vezes, às fórmulas gerais preestabelecidas”. 21 O contrato de arrendamento mercantil, ou leasing, surgiu inicialmente como um contrato atípico, sendo que somente em 1974 foi tornado típico pela Lei nº 6.099, que visava regular os aspectos tributários da transação. Atualmente, são exemplos 13 d) Quanto à eficácia: Os direitos reais são absolutos, isto é, são oponíveis a terceiros, de modo que são oponíveis contra todos (eficácia erga omnes). Os direitos pessoais, por outro lado, são relativos, ou seja, geram efeitos apenas entre os contratantes, não atingindo terceiros (eficácia inter partes). Assim, em relação a terceiros, o direito pessoal não beneficia nem prejudica22. Porque o direito real é um direito absoluto, que possui eficácia erga omnes, dele decorre o direito de sequela, ou seja, o direito de reivindicar a coisa de “quem quer que injustamente a possua ou detenha” (art. 1.228, parte final, do Código Civil). Os direitos pessoais não possuem esse atributo, de forma que, se alguém vender a mesma coisa móvel para duas pessoas, o proprietário será aquele a quem a coisa foi entregue. Ao outro credor, resta o direito de exigir uma indenização pecuniária do vendedor, em razão do descumprimento do contrato23. e) Quanto à extensão no tempo: Os direitos reais são perpétuos ou permanentes, na medida em que a inação do titular não o faz perder o direito (não há prescrição de direito real). Os direitos pessoais, no entanto, são transitórios, extinguindo-se tão logo haja o adimplemento, estando, inclusive, sujeitos à prescrição24. de contratos atípicos os contratos de publicidade, cessão de clientela, hospedagem e de faturização ou factoring. 22 NORONHA, Direito das obrigações, op. cit., p. 309. 23 Outro atributo decorrente da eficácia erga omnes dos direitos reais é o direito de preferência, “que consiste no poder atribuído ao titular de afastar todos os direitos incompatíveis com o seu, que posteriormente se tenham constituído sobre a mesma coisa” (VARELA, João de Matos Antunes. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1977, v. 1, pp. 34-5). Assim, se em um mesmo imóvel se tiverem constituído duas ou mais hipotecas (art. 14.76 do Código Civil), o titular da primeira terá o direito de ser pago com preferência, não só em relação aos credor quirografários (os que não possuem garantia real paro o pagamento do seu crédito), mas também em relação aos titulares das hipotecas posteriormente constituídas sobre o imóvel. 24 Noronha (Direito das obrigações, op. cit., p. 314) adverte, porém, que existem direitos reais de curta duração, como o usufruto (art. 1.410 do Código Civil), e relações obrigacionais de longa duração, como o contrato de trabalho e o de locação de imóvel. 14 É de se referir que existem alguns pontos de contato entre os direitos obrigacionais e os direitos reais, que obscurecem essa diferenciação 25 . É o caso dos direitos reais de garantia, como a hipoteca, o penhor e a anticrese (além da alienação fiduciária, que Noronha classifica de supergarantia26), que só são concebíveis como de acessórios de obrigações, cujo adimplemento têm por função garantir27. Outro tipo de obrigação híbrida é a obrigação propter rem. Também denominada obrigação ob rem ou ambulatória, são o que San Tiago Dantas chamou de “um artifício técnico, ou antes, uma transação entre dois tipos extremos do direito real e do pessoal, com o fim de qualificar certas figuras ambíguas que tinham tanto de um como de outro”28. Justamente em função disso, existe profunda controvérsia sobre a sua natureza jurídica. Autores como Gierke atribuem maior destaque para o aspecto real da relação, que pode ser observado em sua ambulatoriedade29. Há aqueles, no entanto, que apontam “que, consistindo a prestação num facere, não se quadra à natureza do direito real”30. Todavia, a tendência dos autores tem sido, ensina Serpa Lopes, considerar tais obrigações 25 Desta forma, algumas vezes, a obrigação tem por escopo justamente adquirir a propriedade ou outro direito real, como no caso do contrato de compra e venda. Em outras, os direitos reais atuam como acessórios dos direitos obrigacionais, visando conferir segurança a estes (caso das garantias reais do penhor e da hipoteca, por exemplo). 26 Direito das obrigações, op. cit., p. 317. 27 Cf., nesse sentido, DANTAS, Francisco Clementino San Tiago. Programa de direito civil III: direito das coisas. Rev. do texto e anotações de José Gomes de Bezerra Câmara. Atualização de Laerson Mauro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1981, p. 18. 28 O conflito de vizinhança e sua composição. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 244. 29 Segundo Ricardo Pereira Lira (Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 189): Não será preciso lembrar que existem obrigações que não resultam de uma avença entre pessoas, podendo o vínculo decorrer do fato de alguém ser titular de um direito real. O titular desse direito real pode mudar, mas a obrigação acompanha a coisa. A titularidade do direito real define o sujeitopassivo da obrigação. Por força dessa razão, esse tipo de obrigação se denomina ambulatória, proter rem, ou também obrigação real”. 30 GOMES, Orlando. Obrigações. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 22. 15 como espécies autônomas, um grupo intermediário entre o direito pessoal e real31. Em síntese, podemos conceituar a obrigação propter rem como aquela que possui uma prestação imposta ao titular de determinado direito real, pelo simples fato de assumir tal condição32. Serpa Lopes identifica como suas características: a vinculação a um direito real, do qual irá decorrer (ambulat cum domino); a autonomia, ainda que sejam acessórias e vinculadas e, por fim, a tipicidade, pelo fato de decorrerem de um direito real33. Exemplo típico de obrigação proter rem é a contribuição devida ao condomínio edilício (art. 1.345 do Código Civil)34-35. Caso semelhante ocorre na responsabilidade de reparar o dano ambiental, que será transmitida para o eventual novo proprietário36. No mesmo sentido, 31 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 57. 32 Na definição de Silvio Rodrigues (Direito civil: parte geral das obrigações. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 99), “a obrigação propter rem é aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre a coisa, fica sujeito a uma determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade”. 33 SERPA LOPES, Curso de direito civil, op. cit., p. 57. 34 O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, já firmou posição no sentido de que apenas aquelas despesas constituídas após a constituição regular do condomínio, por meio do registro da convenção no cartório de registro de imóveis, caracterizam- se como obrigações proter rem. Antes disso, a convenção obriga apenas os seus participantes, não podendo atingir terceiro adquirente. (REsp 1.731.128/RJ; rel. Min. Nancy Andrighi; julgado em 27.11.2018). 35 Convém indicar, entretanto, que, ao contrário do que pregam alguns doutrinadores, obrigações derivadas de contratos de fornecimento de água ou energia elétrica não são obrigações propter rem, mas sim obrigações pessoais: "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a obrigação de pagar pelo serviço prestado pela agravante - fornecimento de água - é destituída da natureza jurídica de obrigação propter rem, pois não se vincula à titularidade do bem, mas ao sujeito que manifesta vontade de receber os serviços" (AgRg no Ag 1.323.564/SP, rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 2.2.2011). 36 A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica em reconhecer que "a responsabilidade civil pela reparação dos danos ambientais adere à propriedade, como obrigação propter rem, sendo possível cobrar também do atual proprietário condutas derivadas de danos provocados pelos proprietários antigos" (REsp 16 pode-se afirmar que constituem obrigações propter rem determinados tributos como o IPTU37 e o IPVA, bem como o pagamento de multas de trânsito38. Por fim, tem-se a obrigação com eficácia real39. Como foi dito anteriormente, uma das características dos direitos pessoais reside no fato de eles possuírem eficácia inter partes. No entanto, é possível de dotar uma obrigação de oponibilidade em relação a terceiros, quando houver anotação preventiva no registro imobiliário, como nos casos da 1622512/RJ; rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma; julgado em 22.9.2016, DJe 11.10.2016). 37 Segundo o Superior Tribunal de Justiça, os “impostos incidentes sobre o patrimônio (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR e Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU) decorrem de relação jurídica tributária instaurada com a ocorrência de fato imponível encartado, exclusivamente, na titularidade de direito real, razão pela qual consubstanciam obrigações propter rem, impondo-se sua assunção a todos aqueles que sucederem ao titular do imóvel. Consequentemente, a obrigação tributária, quanto ao IPTU e ao ITR, acompanha o imóvel em todas as suas mutações subjetivas, ainda que se refira a fatos imponíveis anteriores à alteração da titularidade do imóvel [...]. (REsp 1073846/SP, rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 25.11.2009). 38 COMPRA E VENDA DE VEÍCULO - EXISTÊNCIA DE DÉBITO PRETÉRITO DE IPVA E MULTAS - PRETENSÃO DO ADQUIRIENTE DE OBRIGAR O ALIENANTE A PAGAR DIRETAMENTE AO FISCO O REFERIDO DÉBITO- IMPOSSIBILIDADE - OBRIGAÇÕES PROPTER REM -DEVER DE PAGAMENTO DO ADQUIRENTE DO BEM, RESSALVADO SEU DIREITO DE REGRESSO CONTRA O ALIENANTE. São propter rem as obrigações de pagamento de multas de trânsito e IPVA, ou seja, originam-se do fato de ser o devedor titular de um direito real sobre a coisa, razão pela qual cumpria ao adquirente do veículo a responsabilidade pelo adimplemento delas perante seus respectivos credores (fisco estadual ou municipal). Sendo assim, não tem ele o direito de exigir que terceiro cumpra obrigação que lhe compete, ou seja, não pode obrigar a ré a pagar à fazenda pública. É claro que teria o direito ao devido ressarcimento, a ser regressivamente exercido contra a ré, alienante do veículo, considerado o disposto no art. 502 do CÓDIGO CIVIL. Mas, se nada pagou ao credor das multas, nada pode reclamar da ré em restituição. APELAÇÃO PROVIDA. (TJSP, Ap. Civ. 9179340722005826, rel. Des. Andrade Neto, julgado em 30.05.2011) 39 Segundo lição de Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro – Teoria geral das obrigações. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 17), a “obrigação terá eficácia real quando, sem perder seu caráter de direito a uma prestação, se transmite e é oponível a terceiro que adquira direito a determinado bem”. 17 promessa de compra e venda (art. 1.417 do Código Civil) e a cláusula de vigência em caso de alienação na locação predial (art. 576 do Código Civil e art. 8º da Lei nº 8.245/1991). 4 Fontes das obrigações Segundo lição de Antunes Varela, “diz-se fonte da obrigação o facto jurídico de onde nasce o vínculo obrigacional”40. O estudo destas fontes remonta ao direito romano, sendo a primeira referência atribuída ao jurista Gaio, que nas Institutas (3, 8) as dividia em duas categorias fundamentais: ex contractu e ex delictu41. Mais tarde, nas Institutas de Justiniano, apareceram, ao lado das tradicionais, as quasi ex contractu e as quasiex delictu42. A essas quatro categorias, o Code Civil napoleônico (1804), por influência de Pothier, acrescentou a lei43. Essa classificação clássica não foi seguida pelo ordenamento jurídico pátrio44. Na realidade, o atual Código Civil, assim como o 40 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 9. ed. Coimbra: Almedina, 1996, v. 1, p. 203. 41 “Nunc transeamus ad obligationes, quarun summa divisio in duas species deducitur: Omnis enim obligatio vel ex contractu nassitur ex delicto”. Importa salientar, entretanto, que os juristas romanos tinham uma acepção distinta, em relação à doutrina moderna, do significado de contrato; ele designava muito mais o vínculo que une credor e devedor (o estado que este ficava perante aquele) do que o ato de vontade de onde a situação procede, abrangendo não apenas o acordo das partes, como também todo fato voluntário lícito do qual provém obrigações. Cf. VARELA, Das obrigações em geral, op. cit., p. 204. 42 COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. Reimpressão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 71. Segundo o texto de Justiniano: “sequens divisio in quattuor species diducitur: aut enim ex contractu sunt aut quase ex contractu, aut ex maleficio aut ex quasi ex maleficio” (3, 13, 2). 43 VENOSA, Silvio Savio. Direito civil: teoria geral das obrigações. 4. ed. São Paulo:Atlas, 2004, p. 71. Importa acrescentar, entretanto, que houve uma significativa modificação legislativa no Code Civil francês em outubro de 2016 em que o legislador abandou a referência às fontes tradicionais do Direito Romano e adotou a teoria germânica dos fatos jurídicos. 44 Teixeira de Freitas, no seu Esboço de 1860, por exemplo, optou por apresentar como fontes das obrigações os fatos, atos lícitos e ilícitos. Cf., FREITAS, Augusto Teixeira de. Esboço do Código Civil. Brasília: Ministério da Justiça, 1983, p. 206. 18 anterior, não contém dispositivo específico a respeito das fontes das obrigações. A tarefa, portanto, ficou a cargo exclusivo da doutrina que, de forma geral, tende a apontar que as obrigações sempre têm por fonte a lei. Orlando Gomes, entretanto, trata de distinguir as situações em que a lei atua como fonte imediata ou mediata das obrigações45. A lei será fonte imediata das obrigações quando elas decorrem direta e imediatamente dela, como no caso da prestação de alimentos (art. 1.696 do Código Civil). Em outros casos, a lei apenas dá respaldo aos fatos ou atos jurídicos, de modo que eles possam gerar os efeitos obrigacionais, ocasião em que ela atuará como fonte mediata das obrigações. Aqui os elementos que despontam como causadores imediatos do vínculo são a vontade humana (por atos bilaterais ou unilaterais) e o ato ilícito46. Entre as fontes mediatas, a que possui maior relevância, por sua larga aplicação prática, é o contrato, que constitui a fonte negocial por excelência do direito das obrigações. Não obstante, há outros atos jurídicos lícitos que, ainda que unilaterais, são fonte das obrigações, como, por exemplo, o testamento e a promessa de recompensa (declarações unilaterais de vontade). Por fim, não há como negar que também os atos ilícitos constituem fontes mediatas das obrigações. Assim, quando o sujeito conduz um automóvel em excesso de velocidade e atropela um transeunte, concretiza o comando normativo previsto no art. 186 do Código Civil, ficando, portanto, pessoalmente vinculado à indenização do dano causado à vítima (art. 927 do Código Civil)47. Mais modernamente, a partir da lição do professor Clóvis do Couto e Silva, acrescentou-se uma nova fonte das obrigações: os atos- fatos. Segundo o doutrinador gaúcho, citando Pontes de Miranda, atos- fatos “são atos que entram no mundo jurídico como fatos”48. Essa inclusão permite explicar os contratos que não derivam de um 45 GOMES, Obrigações, op. cit., p. 31. 46 RODRIGUES, Direito civil, op. cit., p. 10. 47 Entre os atos ilícitos podemos incluir ainda o abuso de direito (art. 187 do Código Civil) e o enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil). 48 COUTO E SILVA, A obrigação como processo, op. cit., p. 75. 19 elemento volitivo 49 , como, por exemplo, os contratos de serviços públicos. Couto e Silva aponta duas espécies de ato-fato: os atos existenciais e o contato social. Os atos existenciais são aqueles necessários à manutenção da vida, ao atendimento das necessidades básicas do indivíduo. É o caso do menor que adquire bens comestíveis em uma lanchonete; realizado dentro de moldes normais e adequados, ninguém pensará em anular esse ato, sob alegação de incapacidade50. Mas é na sociologia que Clóvis do Couto e Silva vai buscar seu conceito mais importante: o contato social. Inicialmente, ela foi relegada exclusivamente à responsabilidade pré-negocial ou extracontratual; Couto Silva, entretanto, sugere sua aplicação como fattispecie comum aos negócios jurídicos e aos atos ilícitos com o intuito de sistematizar as várias fontes de relação obrigacional51. Para o autor, viver em sociedade implica ter contatos sociais variados. O contrato nada mais é do que uma espécie de contato social, qualificado pela vontade. Para que uma obrigação exista é preciso que uma pessoa entre em contato com outra, seja por atos lícitos, negociais ou não-negociais, ou por atos ilícitos. Esse contato irradia outros deveres, que não aqueles previstos na lei ou no contrato. Desta feita, Couto e Silva concede maior amplitude a categoria. Passa-se a considerar a vida em sociedade, em si mesma, como uma forma de contato social, a mais remota das formas possíveis. E este alargamento da categoria é, de fato, necessário, na medida em que se pretenda vê-la vinculada a hipóteses de responsabilidade civil em que as partes jamais tenham tido, nem antes, nem no momento da ocorrência do fato lesivo, qualquer contato físico ou psíquico, tal como pode ser o caso, por exemplo, do responsável pelos danos provocados pela queda de objetos de uma casa (art. 1.529 do Código Civil), ou do fabricante responsável por fato do produto (art. 12 do Código de Defesa do Consumidor). 49 Essas novas fontes do direito obrigacional estão ligadas à crise da autonomia de vontade na modernidade. Essa crise será estudada mais adiante. 50 COUTO E SILVA, A obrigação como processo, op. cit., p. 78. 51MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé objetiva no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 401. 20 5 Conceito de obrigação Ao contrário de outros ramos do direito civil, como, por exemplo, o direito de família, que são mais afeitos às mutações sociais, o direito das obrigações é um tanto refratário a mudanças radicais. Por esta razão, a definição jurídica de obrigação se manteve mais ou menos inalterada desde as Institutas de Justiniano: “Obligatio est juris vinculum, quo necessitate adstringimur alicujus solvendae rei, secudum nostrae civitatis jura”52 (Liv. III, § 13, pr.). A grande transformação que o direito das obrigações vai sofrer é no que diz respeito à garantia oferecida ao credor: no direito romano, o devedor respondia com o próprio corpo (ou com os seus restos mortais) pelo adimplemento da dívida53. Aos poucos, no entanto, essa prática foi abandonada, prevalecendo quase que exclusivamente a responsabilização patrimonial, e não pessoal, do devedor54. Desta feita, razão assiste, pois, à Washington de Barros Monteiro, que conceituou obrigação como “a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”55. Essa relação jurídica une duas ou mais pessoas (daí porque é um direito pessoal), em que uma das partes (o devedor) deve agir no sentido 52 “Obrigação é o vínculo jurídico pelo qual somos constrangidos a pagar alguma coisa a alguém, segundo o direito de nossa cidade” [tradução livre]. 53 “O obligatius era aquele que, com sua própria pessoa, garantia o pagamento da dívida, podendo ser tanto o devedor como um fiador. A execução, no caso de inadimplemento, era pessoal, realizando-se pela manus injectio, em virtude da qual o credor podia vender o devedor como escravo, ou utilizar diretamente a sua força de trabalho”. WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 17. ed. rev., ampl. e atual. com colaboração do Desembargador e Professor Semy Glanz. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 6. 54 Importa salientar que ainda existem resquícios dessa prática no direito moderno, em especial na execução de alimentos, conforme o art. 528, § 3º, do Código de Processo Civil. 55 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 8. 21 de satisfazer o interesse da outra (o credor). A essa atividade exercida pelo devedor dá-se o nome de prestação. As formas que essa prestação pode assumir são bem diversas e ensejarão as diferentes classificações das obrigações. A obrigação terá um cunho pecuniário, na medida em que seu objeto sempre será um valor de natureza econômica.A prestação “deve ser suscetível de transformar-se num valor econômico que o sujeito ativo exige do sujeito passivo”56. Se a obrigação não contiver esse conteúdo econômico ela não será estudada pelo direito das obrigações, ainda que seja jurídica 57 . A propósito, no Direito de Família encontram-se diversas obrigações sem conteúdo patrimonial (como o dever de afeto)58. Outro aspecto que deve ser ressaltado no conceito é a transitoriedade. A obrigação nasce e se desenvolve em direção “à satisfação dos interesses do credor”59, ou seja, ao seu adimplemento. Uma vez cumprida, a obrigação, extingue-se e o vínculo desaparece. Não pode existir obrigação perpétua, até porque “isso corresponderia à ideia de servidão humana”60. Assim, “por mais longas que sejam as obrigações, um dia elas se extinguirão”61. 6 Estrutura da relação obrigacional Do conceito exposto acima, percebe-se que a obrigação se estrutura pelo vínculo entre dois sujeitos, para que um deles satisfaça, em proveito do outro, determinada prestação. Daí porque a doutrina afirma que a obrigação pode ser decomposta em três elementos: um elemento subjetivo (os sujeitos), um elemento objetivo (a prestação) e 56 WALD, Obrigações e contratos, op. cit., p. 5. 57 Neste sentido, cf. VENOSA, Silvio Savio. Direito civil: teoria geral das obrigações. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 26. 58 Existe, entretanto, uma corrente jurisprudencial que tem admitido a possibilidade de se buscar em juízo indenização em razão do abandono afetivo. 59 COUTO E SILVA, A obrigação como processo, op. cit., p. 17. 60 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, Novo curso de direito civil, op. cit., p. 49. 61 VENOSA, Direito civil, op. cit., p. 26. 22 um elemento abstrato (o vínculo jurídico). Analisemos separadamente cada um desses elementos fundamentais. 6.1 Elemento subjetivo: os sujeitos da relação obrigacional Toda relação obrigacional possui dois sujeitos: o credor (sujeito ativo) e o devedor (sujeito passivo). Melhor seria dizer que existem duas posições, uma vez que pode acontecer de, em uma mesma relação obrigacional, ter-se vários credores ou vários devedores. O credor é aquele a quem a obrigação beneficia, quem tem o direito de exigir o cumprimento da prestação. O devedor, por outro lado, é aquele que possui o dever de cumpri-la. Qualquer pessoa, natural ou jurídica, desde que possua capacidade (art. 104, I, do Código Civil) pode ocupar os polos da obrigação. É possível, inclusive, que os sujeitos possam ser entes despersonalizados, como os condomínios edilícios, a massa falida e a sociedade de fato. Não é necessário que os sujeitos sejam determinados no momento em que a obrigação se constitui, mas devem, ao menos, ser determináveis, ou seja, deve ser possível determina-lo até o adimplemento. São exemplos de obrigações com sujeitos ativos de termináveis a promessa de recompensa (art. 854 do Código Civil) e o título ao portador (no caso da lei brasileira, o cheque no valor de até R$ 100,00). A indeterminação do devedor é menos comum; um exemplo seria a obrigação propter rem62. Conforme leciona Tartuce, “na atualidade, dificilmente alguém assume a posição isolada de credor ou devedor em uma relação obrigacional” 63 (como ocorre no contrato de doação – art. 538 do Código Civil). O mais comum é as partes serem, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, sendo que a prestação de uma das partes é causa da prestação da outra. É o que se denomina sinalagma (é o caso do contrato de compra e venda – art. 481 do Código Civil). 62 DANTAS, Francisco Celestino San Tiago. Programa de direito civil II: os contratos. Rev. do texto e anotações de José Gomes de Bezerra Câmara. Atualização de Laerson Mauro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1982. 63 TARTUCE, Flávio. Direito das obrigações e responsabilidade civil. 10. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 7. 23 6.2 Elemento objetivo: a prestação A obrigação tem por finalidade a satisfação de um interesse do credor e é por meio da prestação que esse interesse é satisfeito. A prestação é a conduta, ou seja, “a ação ou omissão a que o devedor fica adstrito e o credor tem o direito de exigir”64. Deste modo, o objeto da obrigação será sempre a prestação. Por outro lado, a prestação também tem seu objeto, que pode ser descrito como o resultado da conduta. Assim, a prestação é o objeto imediato (próximo, direto) da obrigação. Todavia, existe também um objeto mediato (distante, indireto), que nada mais é do que o objeto material ou imaterial sob o qual incide a prestação. O primeiro, o objeto imediato, é a atividade devida; o segundo, o mediato, é a própria coisa. Por exemplo, na obrigação de pintar um quadro (obrigação de fazer), a prestação, ou objeto imediato, é o ato de pintar. O objeto imediato, por sua vez, nada mais é do que a própria tela, que consubstancia a ação realizada. A maior parte da doutrina se posiciona no sentido de que, ainda que o interesse na prestação seja apenas moral, ele deve ser suscetível de valorização econômica. Assim, temos que a valoração econômica pode ser direta, quando a prestação debitória tem valor econômico por si mesma, ou indireta, quando os interessados fixaram um equivalente pecuniário65. 64 VARELA, Direito das obrigações, op. cit., p. 70. 65 NORONHA, Direito das obrigações, op. cit., p. 62. 24 Todavia, uma vertente mais moderna da doutrina não exige a patrimonialidade como requisito de validade da obrigação. Para esses autores, a necessidade de valoração econômica decorria do antigo Direito Romano que determinava que toda condenação por inadimplemento deveria consistir no pagamento de quantia em dinheiro. Modernamente, com a tutela específica, admite-se que basta que a prestação consista em um interesse digno de tutela jurídica66. Em consonância com os demais negócios jurídicos, a prestação deve ser lícita, possível e determinável (arts. 104, II, e 166, II, ambos do Código Civil). A licitude é a “conformidade do comportamento prometido com a lei, a ordem pública e os bons costumes”67 . Dessa forma, é ilícito contratar assassinos, compra e venda de entorpecentes ou elaborar contrato para a manutenção de relações sexuais68-69. 66 NORONHA, Direito das obrigações, op. cit., p. 62. O exemplo geralmente citado é o do cidadão que doa imóvel ao Município, sob a condição de que naquele imóvel deve ser instalado um parque público com o nome do doador. Ora, quem exerce tal liberalidade não visa nenhum tipo de vantagem pecuniária; mesmo assim, não se pode dizer que o caráter da obrigação esteja desnaturado. 67 VARELA, Das obrigações em geral, op. cit, p. 804. 68 Os Tribunais brasileiros têm reiterados julgados no sentido de declarar a nulidade de contratos de promessa de compra e venda de imóveis situados em loteamentos que não tenha sido aprovado pelos órgãos competentes. É que a Lei nº 6.766/1979 considera crime dar início, mesmo que apenas por meio de venda ou promessa de compra e venda, a loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente (art. 50, I, e parágrafo único, I). Neste sentido, colhe-se a seguinte ementa, da lavra do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - OBRIGAÇÕES - CONTRATOS - COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL - AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL - IMPROCEDÊNCIA NO JUÍZO A QUO – [...] LOTEAMENTO CLANDESTINO - AUSÊNCIA DE REGISTRO - OBJETO ILÍCITO - CONTRATO NULO - ART. 145, II, DO CÓDIGO CIVIL/1916 - RETORNO AO STATU QUO ANTE - PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO - APELO PROVIDO EM PARTE. [...]A venda de imóvel situado em loteamento clandestino, sem registro,enseja pedido de rescisão contratual pelo adquirente, pois caracteriza negócio jurídico nulo por ilicitude de objeto”. (TJSC, Apelação Cível n. 2006.019287-5, de Pomerode, rel. Des. Monteiro Rocha, j. 08-05-2008). 69 Existem algumas decisões da Justiça do Trabalho que não reconhecem a existência de vínculo empregatício entre garotas de programa e casas de 25 A prestação também deverá ser física e juridicamente possível. A prestação é fisicamente impossível quando é irrealizável segundo as leis físicas ou naturais. É o caso do contrato em que uma das partes se compromete a pavimentar o solo da lua. A impossibilidade jurídica, por sua vez, confunde-se com a ilicitude, mas dessa difere, consoante lição de Orlando Gomes, por ser simplesmente não admitida em lei, enquanto que a segunda, além de não permitida, constitui ato punível70. Assim, será ilícita a prestação que consista na venda de um pacote de notas falsas, sendo impossível juridicamente a alienação do Fórum romano71. Por fim, o objeto deverá ser também determinado ou determinável. A obrigação determinada é aquela já especificada, certa, prostituição ante a ilicitude do objeto: “VÍNCULO EMPREGATÍCIO – INEXISTÊNCIA – ART. 82 DO CÓDIGO CIVIL – CASA DE PROSTITUIÇÃO – O art. 82 do Código Civil menciona que: ‘A validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei’. Em sendo a liceidade do objeto elemento essencial a validade da relação empregatícia, impossível o seu reconhecimento, quando ausente tal requisito. Se existe alguma alegação de hipocrisia, esta deve ser dirigida não a Justiça do Trabalho, mas sim ao legislador, que relaciona como figura penal típica (art. 229 do Código Penal) a manutenção de casa de prostituição, por conta própria ou de terceiro, não importando a finalidade lucrativa ou a mediação do proprietário ou de gerente. Ademais, a doutrina e a jurisprudência trilham sábio caminho ao reconhecer a impossibilidade de vínculo empregatício em casos que tais, eis que jamais poderá ser aceita a hipótese de prestação de trabalho subordinado em atividades de prostituição. O empregador, utilizando-se da mão-de-obra, seria sempre um rufião, auferindo lucros diretos pelo exercício do comércio carnal, o que criaria situações absolutamente insólitas, agravando em muito as condições já deprimentes às quais muitas mulheres se sujeitam, não raro por falta de opções no mercado de trabalho, nem se diga que deveria haver proteção somente para as "empregadas", eis que, para todo direito, há uma obrigação correspondente, não sendo possível imputar um dever simultaneamente legal e ilícito à parte adversa, ou seja, tal relação de trabalho estaria inexoravelmente validada pela Justiça Obreira. Deve o Ministério Público ser oficiado dos fatos narrados, eis que, caso contrário, estar-se-ia cometendo a omissão de comunicação de crime prevista na Lei de Contravenções Penais, art. 66, inc. I”. (TRT-9, RO 7.393, rel. Des. Lauremi Camaroski, j. em 10.06.1994) 70 GOMES, Obrigações, op. cit., p. 43. 71 Podemos citar ainda entre os objetos juridicamente impossíveis a negociação de herança de pessoa viva (art. 426 do Código Civil), de bem público (art. 100 do Código Civil) e daqueles gravados com cláusula de inalienabilidade. 26 individualizada: Mévio se obriga a transferir um automóvel, marca X, com número de chassi e de licença declinados. A determinável, por sua vez, será aquela em que a identificação é relegada para o momento do cumprimento, como é o caso das obrigações genéricas (art. 243 do Código Civil)72. 6.3 Elemento abstrato: o vínculo jurídico Conforme foi dito anteriormente, a obrigação só pode ser devidamente compreendida se a considerarmos como uma relação pessoal – originada por um fato jurídico (fonte) – pela qual fica o devedor obrigado (vinculado) a cumprir uma prestação patrimonial de interesse do credor. O vínculo jurídico é, na lição de Azevedo, “o liame que liga os sujeitos, possibilitando ao credor exigir uma conduta do devedor”73. Tradicionalmente, esse vínculo era concebido de uma perspectiva estática e unitária. A obrigação é, sobretudo, um vínculo estritamente pessoal, consistindo no direito a uma ação humana; “um vínculo jurídico que constringe uma parte a fazer algo em favor de outra”74. Essa visão, no entanto, foi bastante criticada porque conferia um excesso de poder ao credor, caracterizando uma relação de subordinação75 , e também porque não diferenciava o cumprimento voluntário da execução forçada76. 72 Cumpre salientar, conforme indica o próprio art. 243 do Código Civil, que nas obrigações genéricas devem estar indicados, ao menos, o gênero e a quantidade da coisa incerta, sendo que, no momento do cumprimento da obrigação, o credor ou o devedor deverá especificar a prestação, individualizando-a. 73 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 109. 74 MARTINS-COSTA, A boa-fé objetiva, op. cit., p. 385. Savigny aduz que a obrigação “consiste em uma dominação sobre uma pessoa; não, contudo, sobre uma pessoa por inteiro (o que implicaria na absorção da própria personalidade), mas sobre os atos isolados, considerado como uma restrição à sua liberdade e um assujeitamento à nossa vontade” (Le droit des obligactions. Trad. par C. Gérardin et P. Jozon. Paris: A. Durand, 1863, p. 16 [Tradução nossa]). 75 VARELA, Direito das obrigações, op. cit., p. 95. 76 SERPA LOPES, Curso de direito civil, op. cit., p. 11. 27 Com base no antigo direito germânico, Bekker e Brinz, começaram a decompor a obrigação em dois momentos distintos – a Schuld, ou débito, e a Haftung, responsabilidade77, ou ainda sujeição ou garantia. Quando constituída a obrigação, o devedor restaria induzido ao deve der efetuar determinada prestação. Esse dever, entretanto, por si só, não permitiria ao credor exigir, coativamente, a sua execução. Esta pertenceria ao campo da Haftung, pela qual a pessoa do devedor ou de terceiro ficam sujeitos à agressão patrimonial do credor, em caso de inadimplemento78. Conforme leciona Gierke, “Schuld, em um sentido muito mais estrito e técnico, é a dívida autônoma, quer dizer, uma relação existente em si mesma e que tem por conteúdo um dever legal”79. A responsabilidade (Haftung) consiste, por sua vez, na “submissão ao poder de intervenção daquele a quem não se presta o que deve ser prestado” 80 . A teoria dualista tem, portanto, o mérito de “deixar marcado que a intervenção do credor não se dirigia à pessoa do devedor, mas contra uma coisa – o objeto da responsabilidade”81. Esses dois elementos (Schuld e Haftung) vêm, como regra, sempre juntos na relação obrigacional. Desta forma, pode-se afirmar que, na maioria das vezes, “quem deve, também responde” (“Wer schuldet, haftet auch”). Para comprovar, temos os casos de exceção à regra geral, em situações em que ora falta um, ora falta outro 77 Apesar de no português falado ser comum ouvir “o Schuld” e “o Haftung”, convém considerar que, em alemão, ambas as palavras são femininas. Aliás, a etimologia das palavras é interessante. Haft, em alemão, significa “prisão”; Haften pode ser traduzido como “estar preso”. Schuld, por sua vez, traduz-se tanto como dívida, débito, quanto como culpa, o que garante um interessante comentário de Nietzsche na Genealogia da moral, em que associa o nascimento de uma consciência de dever moral do direito contratual primitivo. 78 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, volume I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 23. 79Apud MARTINS-COSTA, Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 21. 80 MARTINS-COSTA, Comentáriosao novo Código Civil, op. cit., p. 22. 81 MARTINS-COSTA, Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 23. Tal teoria foi expressamente adotada pelo art. 113 do Código Tributário Nacional, mas não foi aprofundada pela doutrina brasileira no campo do direito privado. 28 elemento82. Assim, nas obrigações naturais83 existe o débito, mas não há responsabilidade. Nos contratos de fiança, ao contrário, existe a responsabilidade, mas não o débito84. Ora, ainda que, inegavelmente, tal teoria trazia um acréscimo considerável à teoria geral das obrigações, é também verdade que ela ainda concebe credor e devedor “em oposição, estando no seu núcleo o binômio poder/dever: todo o poder [...] com o credor, todo o dever com o devedor”85. 6.3.1 Obrigações naturais Conforme dito anteriormente, a relação obrigacional se assenta em um vínculo provido de sanção, denominada de responsabilidade (Haftung). Se a obrigação não for cumprida conforme estipulado, a responsabilidade permite que o credor se valha do patrimônio do devedor para sua satisfação. Se ela for adimplida espontaneamente, a responsabilidade “funciona apenas espiritualmente, como pressão psíquica sobre o devedor”86. As obrigações dotadas desses dois elementos constitutivos são denominadas perfeitas ou civis. No entanto, cabe indagar, com Caio Mário da Silva Pereira: “quid iuris se faltar este poder de garantia? Que acontecerá se houver duplo sujeito, se houver objeto, mas faltar a responsabilidade do devedor?”87 Para responder essa questão, criou-se uma categoria especial de obrigação denominada de obrigações naturais ou, mais modernamente, obrigações imperfeitas. No Direito Romano, a obligatio naturalis era aquela fundada no jus gentium e não reprovada pelo jus civile88. Distinguia-se da obligatio civilis principalmente porque era de destituída de actio, de modo que ao credor não assistia meios jurídicos de compelir o devedor ao 82 VENOSA, Direito civil, op. cit., p. 43. 83 Que serão estudadas a seguir. 84 O contrato de fiança, quando decorrente de locação, admite, inclusive, a penhora do bem de família, conforme previsão do art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990. 85 MARTINS-COSTA, A boa-fé objetiva, op. cit., p. 388. 86 VENOSA, Direito civil, op. cit., p. 47. 87PEREIRA, Instituições de direito civil, op. cit., p. 28. 88 MONTEIRO, Curso de direito civil, op. cit., p. 206. 29 cumprimento da prestação. Todavia, facultava-lhe uma exceptio pela qual repelia qualquer pretensão de devolução do pagamento feito espontaneamente pelo devedor89. A obrigação natural dava origem, portanto, à solutio retenti, que assegurava a conservação da coisa recebida, como se se tratasse de prestação normal de uma obrigação civil. Desta forma, as obrigações naturais não eram simples deveres morais, mas sim um vínculo para o qual o direito não concede sanção para obrigar o pagamento. “Era o chamado vinculum aequitas e não num vínculo de Direito”90; o “meio do caminho entre a moral e o direito”91. É mais do que um dever moral e menos do que uma obrigação civil. O Direito Moderno guardou da obligatio naturalis romana apenas ao fato de que ambas não possuem ação, ainda que por motivos diversos92. Hodiernamente, a obrigação natural, ou imperfeita, como preferem os civilistas germânicos93, reduz seus efeitos à solutio retentio, não mantendo as causas que lhe popularizaram no direito pretoriano94. 89 PEREIRA, Instituições de direito civil, op. cit., p. 29; GOMES, Obrigações, op. cit., p. 81. 90 VENOSA, Direito civil, op. cit., p. 49. 91 PEREIRA, Instituições de direito civil, op. cit., p. 28. 92 Uma importante distinção consiste no fato de que no Direito Romano a obrigação natural podia ser compensada, novada ou afiançada (cf. MONTEIRO, Curso de direito civil, op. cit., p. 208), o que não ocorre no Direito Moderno (GOMES, Obrigações, op. cit., p. 82). 93 É a expressão utilizada também por Clóvis do Couto e Silva (A obrigação como processo, op. cit., p. 87). 94 Washington de Barros Monteiro (Curso de direito civil, op. cit., p. 207) aduz: “Dez casos de obrigações naturais eram conhecidos e apontados no direito romano, dos quais, segundo CALOGERO GANGI, sete certos e três duvidosos. Enumeram-se os primeiros da seguinte forma: 1) as obrigações dos escravos (entre si, com o patrão ou com estranho). O estado de escravidão subtraia-lhes a capacidade jurídica; 2) as obrigações entre pessoas vinculadas pela relação de pátrio poder (entre o pater e filius, ou entre dois filii sujeitos à mesma potesta); 3) as obrigações daqueles que sofreram capitis deminutio (como as que resultavam da adoção e da ad-rogação); 4) as obrigações assumidas pelo tutelado sem audiência do tutor; 5) o mútuo contraído pelo filius familiae, em contrário às prescrições do senatus consulto macedoniano, introduzindo in odium creditoris; 6) as obrigações extintas pela aplicação ao credor do jus iniquum, impetrado pelo devedor; 7) as obrigações extintas pela litis contestatio. 30 Por isso, reduziu-se a sua importância e sua ocorrência não é das mais frequente. Segundo Maria Helena Diniz, a obrigação natural é “aquela em que o credor não pode exigir odo devedor uma certa prestação, embora, em caso de seu adimplemento espontâneo ou voluntário, possa retê-la a título de pagamento e não de liberalidade”95. Difere do dever de consciência (dar esmola, por exemplo) pelo seu fundamento; enquanto este se assenta num impulso de solidariedade humana, a obrigação natural pressupõe a existência de um débito anterior inexigível96. Podem ser apontados dois efeitos das obrigações naturais. O primeiro efeito, negativo, consiste na ausência do direito de ação do credor para exigir seu adimplemento; falta-lhe “a característica mais eficaz do vínculo, [...] isto é, a ação direta destinada a obter-lhe a execução”97 . O segundo efeito, positivo, é a denegação da repetitio indebiti ao devedor que a realizou, tornando válido e irretratável o seu pagamento98. Mesmo o erro quanto à incoercibilidade da dívida não importa em repetição, sendo irrelevante o fato do devedor ter realizado a prestação na convicção de que podia ser compelido a pagar. Mas o pagamento deve ser realizado por agente capaz, sem que seja realizado nenhum tipo de coação ou vício quanto ao consentimento que importe em uma falsa percepção da realidade, casos em que a repetição será cabível. A execução parcial da obrigação natural não autoriza o credor a reclamar o pagamento do restante. Obrigação natural não se transforma em civil pelo fato de ter havido pagamento parcelado ou amortização parcial. O cumprimento parcelado implica apenas reconhecimento também parcial da obrigação99. Consequentemente, o Os duvidosos, por sua vez, eram estes: 1) a obrigação extinta por sentença injusta ou exarada à mingua de prova; 2) a obrigação extinta pela prescrição liberatória; 3) finalmente, a obrigação que emergia de um nudus pactu”. 95 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – Teoria geral das obrigações. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 56. 96 PEREIRA, Instituições de direito civil, op. cit., p. 21. 97 MONTEIRO, Curso de direito civil, op. cit., p. 212. 98 DINIZ, Curso de direito civil brasileiro, op. cit., p. 57, 99 MONTEIRO, Curso de direito civil, op. cit., p. 214. 31 resíduo não pode ser exigido pelo credor e o montante pago não permite repetição. A lei não minudencia os casos em que nos deparamos com obrigações naturais, estando os mesmos esparsos na legislação. O Código Civil refere-se a elas em dois dispositivos: o art. 882, pelo qual não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita ou cumprir obrigação judicialmente inexigível; e art. 564, III, segundo o qual não se revogam por ingratidãoas doações que forem feitas em cumprimento de obrigação natural. Os casos de obrigações naturais típicas no diploma civil brasileiro são, portanto, dois: a) as dívidas prescritas (art. 882) e b) a dívida de jogo (art. 814). As dívidas prescritas são o caso mais eloquente. Em sua origem, são obrigações civis que, por força do fenômeno legal da prescrição, são inexigíveis judicialmente pelo credor; tornam-se, pois, obrigações naturais 100 . Evitando qualquer dúvida, o legislador manifesta expressamente o seu entendimento no referido art. 882, no qual opera uma equiparação entre dívida prescrita e obrigação natural: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”101. 100 Neste sentido, colhe-se da jurisprudência: PROCESSUAL CIVIL APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO OBRIGATÓRIO - DPVAT - SINISTRO OCORRIDO EM 21/01/1988 - AÇÃO AJUIZADA EM 18/04/2009 - PRAZO VINTENÁRIO - ART 2028 CÓDIGO CIVIL/02 C/C ART 177 CÓDIGO CIVIL/16 - PRESCRIÇÃO CONFIGURADA - PAGAMENTO DA SEGURADORA - OBRIGAÇÃO NATURAL - INEXIGIBILIDADE - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. - Aplicação do prazo prescricional de vinte anos, conforme Código Civil de 1916, regra de transição do art. 2028 CÓDIGO CIVIL/02. - Dívida prescrita é considerada obrigação natural, portanto é inexigível, considerando mera benevolência da seguradora seu pagamento. - Apelo conhecido e desprovido. (TJ-AM; APL 20110036731 AM 2011.003673-1, rel. Des. Aristóteles Lima Thury, j. em 12.03.2012) 101 A exceção é a dívida tributária prescrita, que permite repetição, consoante entendimento pacificado do STJ: CIVIL E TRIBUTÁRIO. PARCELAMENTO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO PRESCRITO. IMPOSSIBILIDADE. CRÉDITO EXTINTO NA FORMA DO ART. 156, V, DO CTN. PRECEDENTES. 1. Consoante decidido por esta Turma, ao julgar o REsp 1.210.340/RS (Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 10.11.2010), a prescrição civil pode ser 32 O outro caso previsto no Código Civil é a dívida de jogo. O art. 814 determina que “as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdedor é menor ou interdito”. Assim, a dívida resultante da perda do jogo, seja ele lícito ou ilícito, constitui obrigação natural, de modo que o credor não dispõe de ação para exigir seu pagamento. renunciada, após sua consumação, visto que ela apenas extingue a pretensão para o exercício do direito de ação, nos termos dos arts. 189 e 191 do Código Civil de 2002, diferentemente do que ocorre na prescrição tributária, a qual, em razão do comando normativo do art. 156, V, do CTN, extingue o próprio crédito tributário, e não apenas a pretensão para a busca de tutela jurisdicional. Em que pese o fato de que a confissão espontânea de dívida seguida do pedido de parcelamento representar um ato inequívoco de reconhecimento do débito, interrompendo, assim, o curso da prescrição tributária, nos termos do art. 174, IV, do CTN, tal interrupção somente ocorrerá se o lapso prescricional estiver em curso por ocasião do reconhecimento da dívida, não havendo que se falar em renascimento da obrigação já extinta ex lege pelo comando do art. 156, V, do CTN. Precedentes citados. 2. Recurso especial não provido”. (REsp 1335609/SE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/08/2012, DJe 22/08/2012) PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. PARCELAMENTO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO PRESCRITO. IMPOSSIBILIDADE. CRÉDITO EXTINTO NA FORMA DO ART. 156, V, DO CTN. PRECEDENTES. […] 2. A prescrição civil pode ser renunciada, após sua consumação, visto que ela apenas extingue a pretensão para o exercício do direito de ação, nos termos dos arts. 189 e 191 do Código Civil de 2002, diferentemente do que ocorre na prescrição tributária, a qual, em razão do comando normativo do art. 156, V, do CTN, extingue o próprio crédito tributário, e não apenas a pretensão para a busca de tutela jurisdicional. 3. Em que pese o fato de que a confissão espontânea de dívida seguida do pedido de parcelamento representar um ato inequívoco de reconhecimento do débito, interrompendo, assim, o curso da prescrição tributária, nos termos do art. 174, IV, do CTN, tal interrupção somente ocorrerá se o lapso prescricional estiver em curso por ocasião do reconhecimento da dívida, não havendo que se falar em renascimento da obrigação já extinta ex lege pelo comando do art. 156, V, do CTN. 4. Recurso especial não provido. (REsp 1210340/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 10/11/2010) 33 É certo que o devedor não pode ser obrigado ao pagamento, mas se ele voluntariamente pagou, não dispõe de meios para resgatar o que foi pago (art. 883 do Código Civil), exceto se não tiver existido livre consentimento do perdedor 102 . Existem, entretanto, jogos regulamentados por lei, como, por exemplo, o turfe e as loterias. Esses jogos, por serem autorizados no ordenamento jurídico, geram obrigações civis, permitindo a cobrança judicial da recompensa (art. 814, §2°, segunda parte, do Código Civil). 8 Princípios do direito obrigacional 8.1 A autonomia da vontade O Direito Privado repousa sob o credo da autonomia da vontade. Trata-se de um instituto cuja origem não remonta o Direito Romano clássico, mas antes ao Iluminismo, em especial na filosofia de Immanuel Kant103. A crença no individualismo deu amplo “relevo a autonomia dos particulares, sendo-lhes deferida quase totalmente a 102 Os Tribunais pátrios rejeitam a liquidação de cheque (ordem de pagamento à vista) que tenha como objeto o pagamento de dívida de jogo. Neste sentido, é o posicionamento do TJSC: APELAÇÃO CÍVEL. MONITÓRIA. EMBARGOS. CHEQUE PRESCRITO. DÍVIDA DE JOGO. COBRANÇA. DESCABIMENTO. EXEGESE DO ART. 1477, CÓDIGO CIVIL/1916. JOGO DO BINGO. MATÉRIA AFETA À COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. 1. "Para o Código Civil é irrelevante ser a dívida oriunda de jogo lícito ou ilícito. Em qualquer um dos casos não há obrigatoriedade de pagamento. Visou o legislador, com isso, evitar a prática de jogos ou apostas a crédito, com o endividamento progressivo do jogador" (Apelação Cível n. 2004.019869-8, de Tubarão, rel. Juiz Tulio Pinheiro, j. em 2-9-2004). 2. Compete privativamente à União legislar acerca de sistemas de consórcios e sorteios (CF, art. 22, inciso XX). Precedentes do STF e desta Corte. (TJSC, Apelação Cível n. 2004.017731-3, de Curitibanos, rel. Des. Salim Schead dos Santos, j. 25-05-2006). 103 Segundo Kant, “a autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal” (Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 85). 34 formação da ordem privada”104. Na esteira da separação entre o Estado e a sociedade, a vontade humana passa a ser o elemento nuclear e a fonte única da relação obrigacional, em detrimento da lei105. Para Clóvis do Couto e Silva, a autonomia da vontade é “a facultas, a possibilidade, embora não ilimitada, que possuem os particulares para resolver seus conflitos de interesses, criar associações, efetuar o escambo dos bens e dinamizar, enfim, a vida em sociedade”106. Neste condão, a lei tem simplesmente a função de colocar à disposição das partes instrumentos para assegurar o cumprimento das promessas assumidas. A aceitação do dogma da autonomia da vontade teve como consequência o surgimento de três ideias que serviam de
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