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Finnis LEI NATURAL E DIREITOS NATURAIS

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LE,I NÂTTJRAL E DIRE,ITOS NATIJRÂIS
John Finnis
Tradutora
Itìla Mendes
EonoR,t UNrsrNos
Coleção Díke
ì/
SunÁruo
09 Âbreviaturas
77 Prcfâcio
15 Apresentação da edìção brasileira
Parte Um
17 r. ÂpRECrAÇÃo n onscnrçÃo oo DÌREiro
35 rI.
17 L1 A formação de conceitos para uma ciência social descritiva
27 L2 Ltenção ao propósito prático
23 Ì.3 Seleção do caso central e signifìcado focal
25 I.4 Seleção ou]6ìíõGvista-
30 I.5 A teoria do direito natvral
37 Notas
IÌVIAGENS E OB]EÇÕES
35 II.1 Direito natural e teorias de direito n hrra,I
37 II.2 Validade juddica e moralidade
40 II.3 A variedade de opiniões e práticas humanas
44 IL4 A inferência t\cita de fatos para normas
47 II.5 Hume e Ciarke sobre "seÍ" e "deveÍ-ser"
53 II.6 Os antecessores de Clarke
58 IL7 O aígumento da "faculdade desúada"
58 II.8 Direito n^ïuraI e a existência e a vontade de Deus
59 Notas
Parte Dois
67 IIi. UMA FORMA BÁSICÂDO BEM: CONHE,CIMBNTO
67 III.1 Um exemplo
JOHN F]NNIS
68 III.2Da inclinação para a apreensão do valor
70 III.3 Princípio prático e participação no valor
72 III.4 Que o conhecimento é bom é evidente por si mesmo
76 III.5 "Objeto do desejo" e objetividade
80 III.6 O ceticismo acercà deste valor básico é indefensável
82 Notas
87 IV. OS OUTROS V,{LORES BÁSICOS
87 fV.1 Estudos teóricos dos valores "universais"
97 iV.2 As formas básicas do bem humano: uma reflexão prâtica
97 A. Vida
97 B. Conhecimento
92 C.Jogo
93 D. Experiência estética
93 E. Sociabilidade (amizade)
93 F. Razoabilidade prâlca
94 ç. "ftsligião"
95 IV.3 Uma ìista exaustiva?
97 IV.4 Todos igualmente fundamentais
100 IV.5 E, o ptazer o propósito de tudo?
702 Notas
105 v. os REeursrros BÁsrcos DÂ RÂzoÂBrLrDÂDE pRÁTrcA
105 V.1 O bem da nzoabthdade prâtscaestrutuÍa nossa busca dos bens
709 V.2 Um plano coerente de vida
110 V.3 Sem preferências a*sitrârias por valores
77I V.4 Sem preferências arbirárias por pessoas
774 V.5 Desprendimento e compromisso
115 V.6 A relevância (imitada) das conseqüências:
110 eficiência dentro dos limites do bom senso
122 V.7 Respeito por cada valor básico em cada ato
727 V.B Os requisitos do bem comum
727 V.9 Seguindo os ditames da própria consciência
728 V.10 O produto desses requisitos: a moraüdade
130 Notas
I37 VI. COMUNIDÂDE, COMUNIDÂDE,S E BEM COMUM
737 VI.1 Razoabilidade e interesse pessoal
138 VI.2 Tipos de relação unificadora
74M.3 Comunidade de "negócios" e comunidade de "jogos"
JoHN FiNNrs
267 X.5 Limites do Estado de Direito
270 X.6 Uma defìnição de lei
274 X.7 Derivação de lei "positiva" dalei"natural"
282 Notas
289 xr. oBRrc,A,ÇÃo
289 XI.1 "Obrigação","devetia" e necessidade racional
290 XI.2 Obrigação promissiva
299 XI.3 Força obítgatoúavaúâvel e invariante
304 XI.4 "LegaÌmente obrigatório": o sentido legal e o sentido moral
309 XI.5 Obrigação contratualporlei: cumprimeoto ou compensação?
373 XL6 Obrigação legal no sentido moral:
010 cumprimento ou submissão às penaüdades?
318 XI.7 Obrigação e vontade iegislativa
323 XI.B"Razão" e "vontade" em decisões, legislação e obediência à lei
328 XI.9 Obrigação moral e a vontade de Deus
329 Notas
337 XIr. LErs TNJUSTÂS
337 XII.1 Uma preocupação subordinada da teoria da lei natural
338 XII.2 Tipos de injustica na lei
340 XII.3 Efeitos da injustiça sobre as obrigações
347 "Lex injusta non est lex"
351 Notas
Parte Três
353 X]II. NÂTUREZA,RAZA], DEUS
353 XIII.I Mais outras questões sobre o propósito da existênciahumana
359 XIII.2 Ordens, desordens e a explicação da existência
368 XIII.3 Natureza divina e "LeiFterna": especulação e revelação
376 XIII.4 Lei natural como "participação da Lei Eterna"
381 XIil.5 Reflexões finais sobre o propósito eaforçadarazoabüdade
010 pránca
387 Notas
397 Índice remissivo
PARTE UM
L AlnncraçÃo E DESCIJÇÃo Do DIREITo
I.1 A formação de conceitos pârâ umâ ciência sociaÌ descritiva
Existem bens humanos que só podem ser garantidos por meio das insti-
tuições do direito humano e requisitos de razoabilidade prâtica â que apenas es-
sas instituições podem satisfazer. O objetivo deste livro é identifìcar esses bens, e
esses requisitos de razoabiÌidade prânca,para assim mostrar como e sob que con-
dições tais instituições têm cabimento e de que maneiras podem ser (e freqüente-
mente são) deficientes.
Geralmente se supõe que uma apreciação da legislação como tipo de ins-
tituição social, se essa avaliação tiver mesmo de ser feita, deve ser precedida por
uma descrição e uma anáiise livres de vaiores dessa instituição, conforme ela exis-
te de fato. Mas o desenvolvimento da moderna jurisprudência sugere, e uma refle-
xão sobre a metodologia de qualquer ciência social confirma, que um teórico não
pode fornecer uma descrição teórica e uma análise de fatos sociais, â menos que
também paÍticipe do proce sso de ava)tar, de entender o que é realmente bom para
as pessoas humanas e o que é realmente requerido pela razoabitdade pútica.
Uma ciência social, como a iurisprudênciaanabdca ou a sociológica, bus-
ca descrever, anahsar e explicar alguma matêria ou assunto. Essa matéria é consti-
tuída pot ações, práticas, hábitos, disposições e pelo discurso do ser humano. As
ações, práticas etc. são certamente influenciadas pelas causas "nattrt^is" investiga-
das propriamente pelos métodos das ciências danatureza,tnclusive por uma parte
da ciência da psicologia. Mas as ações, práúcas etc. só podem ser totalmente en-
tendidas por meio do entendimento de seus propósitos, ou seja, de seus objetivos,
valores, alcance ou importância, segundo foram concebidos pelas pessoâs que as
Íeahzaram,nelas se engajaram etc. E essas concepções de propósito,valot,alcan-
ce e importânciaestàtão refletidas no discurso dessas mesmâs pessoas, nas distin-
ções conceituais que fazem,deixam de {azer, ou se Íecusam a fazer. Além do mais,
essas ações, práticas etc. e, similarmente, esses conceitos, vatiam imensamente de
18
JOHN FINNIS
pessoa a pessoa, de uma sociedade a outra,de uma época e Iugar aoutras épocas e
lugares. Como, entã0, poderá /taaer uma teorìa ducntìua gera/ desses deta/ltes uarìegaclos?
um teórico deseja descrever, digamos, o direito como instituição social.
Mas as concepções de direito (e dejus, /ex, drott, nomos...) que as pessoas têm exco-
gitado, e usado para dar forma à sua própria conduta, são bem variadas. A demar-
cação entre o assunto da descrição do teórico e as outras catacterísttcas da vida e
dapráaca sociais não se apÍesenta com clareza. Além do mais, essa vida e essa prá-
tica sociais comportâm rótulos em muitos idiomas. Esses idiomas podem ser
aprendidos por falantes de outros idiomas, mas os princípios que Íegem a adoção
eaapltcação dos rótulos -isto é, os interesses práticos e as intelpretações dagente
cuja conduta e disposição vão compor o assunto do teórico - não são uniformes.
O que mais pode então o teórico fazer além de compor uma lista dessas variadas
concepções e práticas e seus rótulos correspondentes? Até mesmo a inclusão de
itens em uma ìista requer algum princípio de seleção. E a jurisprudência, como ou-
tras ciências sociais, aspira a ser mais do que uma conjunção de lexicogra?ta com
história local, ou mesmo uma justaposição de todas as lexicografìas conjugadas
com todas as histórias locais.
como o teórico decide o que deve contar como direito para os propósitos
de sua descrição? Os primeiros juristas analíticos não mostram ter muita cons-
ciência do problema. Nem Bentham nem Austin apÍesentam qualquer razão ou
justifìcação para suas definições favoritas de direito e jurisprudência. Cada um
tenta mostraÍ como os dados da experiêncta jurídicapodem ser expücados no que
se refete a essas deÍìnições. Mas as definições são simplesmente postuladas a prin-
cípio e depois assumidas sem questionamento. A noção de "elementos reais" das
idéias, de Bentham, nos encoraja a especular que o que o atraiu paÍa sua definição
de direito ("um agrupamento de sinais declarativos de uma volição concebido ou
adotado pelo soberano de um estado..."l foi o fato de que agrupamentos de sinais
(e as ordens e proibições de umindivíduo definido ou de um coniunto de indiví-
duos) são "entidades reais" que causam uma impressão empírica na mente. o obì-
ter dìcta de Austin sobre a metodologia sugere que, paÍâ ele, o aúativo das noções
de ordem, superior político e hábito de obediência. etamprecisamente a simplici-
dade e a precisão. Parece que ele queria que os "teÍmos diretores" de seu sistema
explanatório tivessem a "simplicidade e a precisão" encentradas no "método se-
guido pelos geômetras com tanto sucesso".2 Então, ele não se incomodou nem
com a complexidade de algumas das conclusões (eg., quanto à soberania em fede-
Bentham, Of lzws, p. 1; sobre "elementos reais" e ,,entidades reais',,velz ib., pp. 2-3,251,-2,278,294, e A
Íragnent on Goaemnent (1776), cap. V, par. vi, nota 1 (6).
Austin, Pm uìr ce, pp. 7 7 -8.
19
AnnecnçÃo E DESCRTÇÃO Do DrRErro
rações) requeridas por suas premissas defìnidoras, nem com o carâter de novidade
e de artifìcialidade de outÍas de suas conclusões (eg, quanto ao carâter extralegal
do direito constitucional, ou à não-existência dos direitos jurídicos do soberano).
Eleprezava o "pequeno número" de seus termos diretores3; todo leitor de Austin
se dá conta da conseqüente falta de profundidade ou de densidade da exposição
da experiênc ia jurídica.
Na "teoria geral do direito" de l{elsen não encontramos atenção crittca ao
problema metodológico de selecionar conceitos p^r^ uma teoria geral descritiva
ou livre de valores. O que encontramos é o entendimento de que o propósito ou
a função é intrínseca à constituição - e poÍtanto ao entendimento descritivo -
do assunto, o que não está visível em Bentham ou em Austin. Então, I(elsen defi-
ne o direito como umâ técnica social específ1ca:"atécnica social que consiste em
fazer acontecer a desejada conduta sociai dos homens por meio de uma 
^meaça
com um certo gÍau de coerção, que deve ser cumprida em caso de conduta contrâ-
ria".4 Disso ele deriva stra c t^ctefização danoíma iurídica individual como umâ
noÍma para a apü,cação de uma sanção, e desta, poÍ sua vez, se seguem as outÍas
catacterísttcas de sua "nomostática" evârias caracterísÍicas de sua "nomodinâmi-
ca". Mas como propõe l{elsen justificar aptópriadefinição? Simplesmente como
se segue:
O que poderia a ordem social de uma ribo de negros sob a liderança de um
chefe despótìco - uma ordem chamada igualmente de "lei" - ter em comum
com a constituição da república súça?
pamos fazer um aParte e peÍguntaÍ: Quem estâ fazendo essa citação,
essa atribuição de nomes? Quem se refere dessa forma à ordem social da tribo (em
uma linguagem que expressa distinções que o chefe despótico e seus vassalos não
estão inclinados a fazer) tal que sua escolha é vista como decisiva?]
No entaoto, existe um elemento em comum que justifica totalmente essa ter-
minologia ... pois a paÌavra se refere àquela técnica social especíÍìca que, a des-
peito das enoÍmes diferenças ... é, apesar disso, essencialmente 
^mesmapar^
todos esses povos que tanto diferem emrrr têri:- de época, lugar e cultura ...
O que poderia ser mais simples? Toma-se apalavta "lei". Ignotando uma
enorme variedade de signifìcados e referências (como em "lei da natureza", "Iei
.rnotal","lei sociológica", "lei intemactonal", "lei eclesiástica", "leis gramaticais"),
3
4
1b.,p.78.
Kelsen, GeneralTheory,p. 79, Então o direito é um meio especíEco para um fim específico: "O dteito é ...
uma ordenação para a promoção d apaz" (ib.,p.21);potanto, "Dfueito é uma ordem de acordo com a qual
o uso da força é em getal proibido, mas que excepcionalmente, sob certas circunstâncias e para certos indi-
víduos, é permitido como sanção" (p. 22) ; v ejz tzmbém ib., pp. 392, 399.
20
JOHN FINNIS
e ignorando, além disso, modos alternativos de se fazer referência, e.g., a ordem
social da "tribo de negÍos", examina-se a variedade de assuntos denotados pela
palavra no uso que se selecionou (sem explicação). Procura-se poÍ um "elemento
em comum" . Essa únìca coìsa em clmllm e o critério da "essência" de lei, e, assim, a
única caractenstìcausadapandefinir e para expìicar descritivamente todo o assunto.
Existe, assim, um único conceito, que pode ser aplicado igualmente e n0 ruesmr seft-
tido (isto é, univocamente) a tudo o que, em um uso pré-teórico (que o teórico ad-
mite para determinar seu uso teórico), alguém estava disposto achamat de"lei".
O poder explicativo notavelmente maior das análises descritivas posterio-
res do direito, como as feitas por H. L. A.HarteJoseph Raz, deve ser atribuído ao
rompimento decisivo deles com as metodologias um tanto ingênuas de Bentham,
Austin e l(elsen. Essa sofisticação de método tem três características principais,
discutidas nas três seções seguintes.
L2 Atenção ao propósito prático
 crítica de Austin e l(elsen feita por Hart mantém o propósito teórico
fundamentalmente descritivo dos dois: pois sua objeção é que a teoria deles "não
conseguiu acomodar os fatos".5 Mas os fatos que ateoria deles não conseguiu
acomodar, de acordo com Hart, eram fatos a respeito da função. Se I{elsen identi-
fìca o direito com uma "técntca social específtca",Hartresponde que a descrição
de l{elsen, na verdade, obscurece "o carâter específico do direito como meio de
controle social" ao "distorcer as diferentes funções sociais cumpridas por diferen-
tes tipos de regras jurídicas".6 A descrição ("conceito") de direito dada por Hart é
construída por meio de um repetido apeio ao propósito prânco dos componentes
do conceito. O direito deve ser descrito em teÍmos de regras paraa orientação
igualmente das autoridades e dos cidadãos, não apenas como um coniunto de pre-
dições quanto ao que as autoridade s irão fazer. Um sistema jurídico é um sistema
no qual ÍegÍas "secundârias" emergiram afn de remediar os defeitos de um regime
pré-jurídico composto apenas de "regras primárias". O direito deveT ter um con-
teúdo mínimo de regras e sanções primárias afn de assegurar a sobrevivência da
5
6
7
Han, ConcQt of lzw, p.78.
Ib., pp. 38,39. Para uma breve exposição dessas distintas "funções sociais", veja ib., pp. 27 -8.
Yeja ib., pp. 189-90,193,194-5; vejz também Harq "Positivism and úe Separation of Iaw and MoraÌs"
0958) 71 Hamard L Rea. 593, em Dworkin (eütor), Tbe PltilosEly of Iaw (Oxfod: 7971,17 na p.35.
27
AnnecrnçÃo E DESCRTÇÃO Do DrRErro
sociedade ou de seus membros e de dar a eles uma raqãa prátìca para aqúescência a
ele.
Raz defìne esses elementos com uma descricão de direito que se afasta
ainda mais da monopolização daforçaporparte dos "chefes despóticos" median-
te aame ç de uso da fotça.ParaRaz, assim como pa:uHaft, o direito não é um
conjunto qualquer de normas; é um sistema de normas que fornece um método
(isto é, técnica) de resolver disputas com autoridade, por meio de normas que tân-
to (a) provêem orientação obrigatória para "instituições primárias" (que resolvem
as disputas por meio de "determinações aplicáveis obrigatórias") quanto (b) tam-
bém ("as mesmíssimas normas") orientam os indivíduos cujo comportamento
pode competir ser avaliado e julgado poí essas instituições.8 Por causa dessa dupla
função de suas normas, um sistema legal difere fundamentalmente de qualquer
ordem sociai na qual uma autoridade pode determinar as questões decidindo cada
problema como julgar melhor, usando sua livre discrição.e Além do mais, o direito
não busca apenas monopoüzar o uso da força e assim assegurar 
^p^z; 
caracteristi-
cameÍÌte, reivindica a autoridade de regular qualquer forma de comportamento e
de reguÌar todas as instituições normativas às quais pertencem os membros de sua
comunidade-objeto;1O finalmente, contém Íìormas "cujo propósito é dat força
executória, dentro do sistema, a nofmas que não pertencem a ele" ,1r " Ao {azer es-
sas reivindicações, o direito alega dar a estrutura geÍalpata a condução de todos os
aspectos da vida social e se coloca como o supÍemo guardião da sociedade."12 Se-
gue-se, obviamente, que as sanções e suas aplicações por meio da força, Ionge de
serem o critério identifìcador específicodo direito como uma ordem social, não
são "uma característica que faz parte de nosso conceito de direito".13 Sendo a na-
rúreza humana o que é, o recuÍso a sanções é universai e a aplicação da lei sem tal
ÍecuÍso, embora "logicamente possível", é "humanamente impossível".l4 Mas as
funções de coordenação, resolução de disputas e reparação de danos do direito
iriam requereÍ uma ordem socíalpknamente jurídicamesmo em umâ "sociedade de
anjos", que não teria qualquer uso para sanções.1s
Raz constrói sua exposição do direito com plena consciência (que não é
visível nos primeiros teóricos do direito) de que há cientistas sociais que não en-
8 Raz, PraclicaÌ Ruson, pp. 136,737,739.
9 tb.,pp.138,747.
10 1b.,p.1sl.
77 1b.,p.753.
12 1b.,p.154.
13 1b.,p.159.
14 1b.,p.758.
75 1b.,p.159.
22
JOHN FINNIS
contram qualquer utiïdade para o conceito de direito ou de sistemalegal em suas
descrições da ordem social, ou mesmo da ordem política.16 Eie está ciente de que
a decisão teórica deles de substituí-lo por outros conceitos só pode ser contestada
(como ele deseja fazer) mostrando-se que eles não perceberam (i) as importantes
funções (ou objetivos e técnicas) da ordem sociaÌ e (ii) o modo como essas fun-
ções podem ser inter-relacionadas em uma instituição multifacetada que vale a
pena ser mantida como uma unidade distinta da ordem social ou como compo-
nente dela.
Ao enfatizar (em seus trabalhos recentes) a distinção entre direito e siste-
mas sociais de discrição absoluta, na medida em que noÍmas iurídicas para orien-
tar os cidadãos também se aplicam obrigatoriamente aos tribunais (os "órgãos
primários" jurídicos), Raz se aproxima da análise feita por Lon Fuller da função
social do direito. Onde Hart havia mantid o a noção de l{elsen de que o direito é
um método de controie social, mas rejeitado, por ser insuficientemente diferen-
ciada a exposição de I{elsen do método, Fuller rejeita, como c tegori^ insufìcien-
temente diferenciada e inadequadamente geral, a noção de um "meio de controle
social". Para Fuller, o direito é de fato uma ordem social na qual existem sobera-
nos e súditos, mas deve ser distinguida de qualquer ordem social na qual os sobe-
Íanos exercem a "direção administrativa" de seus súditos. O direito se distingue
de tal direção administrativa em parte pela generalidade de suas principais regras
e, acima de tudo, pelo fato de que suas autoridades são obrigadas a apbcar as re-
gÍas que comunicaram previamente a seus súditos. Há, assim, um componente es-
sencial de colaboração e reciprocidade no empreendimento de sujeitar a conduta
dos seres humanos ao governo de normas jurídicas enquanto distintas de normas
meramente administrativas. 1 7
Todas essas exposições do direito, mesmo aquela parte da exposição de
Fuiler que acabeide mencionaÍ, pÍetendem ser descritivas. Elas procuram "identi-
Ãcar o direito com base apenas em cancteÁsticas não-avaliativas".18 Como diz
Raz, tais "critérios identificadores nã"o-avabativos ... deviam destacat aqueles fe-
nômenos que formam um tipo especial de instituição social, uma instituição a ser
encontÍada como um imPortânte componente de muitos sistemas sociais e que
difere significativamente de outras instituições sociais".le E óbvio, então, que as
diferenças de descrição são derivadas das diferenças de opinião, entfe os teóricos
16 Veja seu "On the Functions of the Law", em Oxford EsEs ll,pp.278-304, nas pp. 300-3 ,onòe noJisa Com-
paratiue Politics de G. Â. Aìmond e G. B. Powell (Boston: 1966).
17 Moraliy of bw,pp. 210,214,276;39-40, 67,155;27.
1 8 }Àaz, l'ractìral Reason, p. 165-
19 1b.,p.765.
23
APR-ECIAÇÃO E DESCRIÇÃO Do DIREITO
descritivos, a respeito do que é inpartante e signifcarìuo no campo dos dados e da ex-
periência com a quai eies todos estão igual e completamente familiarizados.
I.3 Seleção do caso central e signiÍìcado focal
A questão óbvia provoc adapelateorização esboçada na seção precedente
é a seguinte: de que ponto de vista, e em relacão a que preocupações, devem a ìm-
porÍâncìa e o a/cance ser avaliados? Antes de considerarmos essa questão, no entan-
to, seÍá melhor identiCtcar o dispositivo fìlosófìco que permite uma descrição cada
vez mais diferenciada do direito como ainda sendo uma teotiageraldo direito.
Aristóteles introduziu, discutiu e usou regularmente esse dispositivo, e
não apenas em sua filosofìa dos assuntos humanos. Ele o chamou de identifìcação
do sìgnfrcadofocal Qrornonímiapros hen ou aph henos). Esse dispositivo é ou corres-
ponde a um importante componente do dispositivo metodológico de Max\7eber
que não foi explicado com muita clareza, o tìpo ìdeal. Eie envolve um afastamento
consciente da assunção a partit da qual, como vimos, I{elsen procedeu: a de que
teÍÍnos descritivos ou explanatórios devem seÍ empregados pelo teórico de tal
forma que se estendam, diretamente e no mesmo sentido, a todos os estados de
coisas que poderiam razoavelmente, no discurso não-teórico, seÍ "chamados de
'direito"', por mais imaturos que esses estados de coisas possâm ser e por menos
que possam manifestar qualquer interesse de seus autores (ag., os "chefes despóti-
cos") em diferenciar direito de força, de moralidade, de costumes, de política, de
discrição absoluta, ou de qualquer outÍa coisa. Tai insistência em um significado
terminantemente unívoco dos termos teóricos, que leva à busca de um mínimo
denominador comum, ou um máximo divisor clmllm, ou "daquela única coisa em
comum", foi diretamente atacada por Âristóteles20 e é conscientemente abando-
nada por lH.aft e Raz. Assim, Hart rejeita a visão de que "os vários casos particula-
res de um termo geral devem ter as mesmas características". Pelo contrário, ele
procede apartir da assunção de que "a extensão dos termos gerais de qualquer dis-
ciplina séria nunca est^ forz- de seu princípio ou fundamento Ìógico".z1 O que
Âristóteles diz com relação a"amizade", "constitucionalidade" e"cidadania"z2 ê
dito com propriedade por Raz, com relação ao "sistema jurídico":
20 Ead. Etb.YIL,2: 1236a76-30.
21 Concept of Izw, pp. 15,270; veja tambêm p.234.
22 Nic. Etb. YIII,4 11572301' Pol. llI,7:7275233-1276b4.
24
JouN FiNNts
Várias são as características gerais que indicam que um sistema é um sistema
jurídico, e cada uma deÌas admite, em princípio, vários graus. Em casos típicos
de sistemas jurídicos, todas essas características são manifestadas em alto
grau. Mas é possível encontrar sistemas nos quais todas ou aÌgumas estão pre-
sentes âpenâs em um grâu menor, ou nos quais umâ ou duas estão totalmente
ausentes ... Quando confrontado com câsos fronteiriços é meÌhor admitir suas
credenciais problemáticas, enumerar suas semelhanças e dessemelhanças com
os câsos típicos e deixat as coisas como estão.23
Como apalawa"típico" pode sugerir que o critéÍio relevante é a freqüên-
cia estatística (seja na história humana, ou hoje), prefiro chamar os estados de coi-
sas a que um conceito teórico se ïefeÍe em seu significado focal de caso(t) central(ìs).
Explorando o sistemático alcance muÌtiplo dos termos teóricos (sem per-
der de vista o "princípio ou fundamento lógico" desse alcance múltiplo), pode-se
distinguir os assuntos humanos maduros dos subdesenvolvidos, os sofisticados
dos primiúvos, os prósperos dos corrompidos, os bons espécimens dos casos de-
sencaminhados, os casos de falando "diretamente", "simplesmente" (simp/icìter) e
"sem restricões" dos "em cefto sentido", "por assim dizet" e "de cetto modo" (re-
cwndum qui{ -, mas tudo sem ignorar ou banir pafa outr^ discipìina os casos atÍa-
sados, primitivos, corrompidos, desencaminhados ou outÍos casos de "sentido
restrito" ou de "sentido estendido" do assunto: veia XÌI.4 adiante.
Então existem casos centrais, como Aristóteles insistia, de amtzade, e
existem casos mâis ou menos periféricos (amizades no ambiente de trabalho, ami-
zades por conveniência, por inteÍesse, relações casuais e de companheirismo, e as-
sim por diante: veja VL4 adiante). Há casos centrais de governo constitucionaÌ, ehá casos periféricos (como a Alemanha de Hitler, a Rússia de Stalin e mesmo a
Uganda de Idi Amin Dada). Pot um lado, não hâpor que negar que os casos peri-
féricos são casos particulares (de amizades, constitucionalidade ..). D. fato, o es-
tudo deles é iluminado quando são pensados como versões atenuadas dos casos
centÍais, ou às vezes como manipulações de atitudes humanas moldadas por meio
de referência ao caso central. E, por outro lado, não hâ por que restringir a expli-
cação dos casos centrais àquelas características que estão pfesentes não apenas no
caso centfal, como também em cada um dos casos periféricos. Pelo contf^iro, a
explanação descritiva dos casos centrais deve ser tão conceitualmente rica e com-
plexa quanto é necessário paÍa se responder a todas as pefguntas aptopriadas a
respeito desses casos centÍais. E, então, a explanação dos outros casos particula-
res pode tilhar a rede de semelhanças e diferenças, as anaiogias e assimetrias, por
exemplo, de forma, função ou conteúdo, entÍe eies e os casos centÍais. Dessa for-
23 PracticalBtason,p. 750
25
APRECTÁçÃO E DESCRiÇÃo Do DrRErTo
ma, Íevela-se o "pdncípio ou o fundamento lógico" segundo o qual o termo geral
("constituição", "amigo", "direito"...) é estendido dos casos centrais aos câsos
particulares mais ou menos fronteiriços, de seus signifìcados focais a seus signifi-
cados secundários.
L4 Seieção ou ponto de vista
Mas segundo qual critério deve um significado ser visto como focaÌ e ou-
tro secundário, um estado de coisas como central e outro fronteiriço? Essa é sim-
plesmente uma reformulação da pergunta que restou de i.2: de que ponto de vista,
e em relação a que preocupações, devem a ìnporíâncìa e o alcance ser avaüados?
Hart e Raz são claros quanto a um teórico descritivo, ao "decidir atribuir
um papel cefltraI"24 a alguma(s) característica(s) particular(es) em sua descrição de
um campo dos assuntos humanos, dever "estar preocupado com",25 "referir-se
a",26 ou"reproduz'Lr"27 rrm ponto de vistaprático particulaï (ou um conjunto de
pontos de vista semelhantes). Por "prático", aqui como em todo o livro, não que-
ro me referir a "exeqüível" em oposição a inexeqüível, efÌciente em oposição a
ineficiente; quero me refeúr a "para propósitos de decrsão e ação". Pensamento
prâttco é pensar a respeito do que (se deve) fazer.Razoabilidade prâncaénzoabi-
lidade na decisão, na adoção de compromissos, na escolha e na execução de proje-
tos e, em geral, na ação. A fìlosoÍìa prâtíca é uma reflexão disciplinada e crítica
sobre os bens que podem setrcaltzados na ação humana e nos requisitos darazoa-
bilidade prâtica. Então, quando dizemos que o teórico descritivo (cujos propósi-
tos não são práticos) deve agir, em sua seleção e formação indispensável de con-
ceitos, adotando um ponto de vista prâaco, queremos dizer que ele deve avaliar a
importância ou o alcance das semelhanças e diferenças em seu assunto perguntan-
do o que seria considerado importante ou signifìcativo nesse campo por aqueles
cujas preocupações, decisões e atividades cÍiam ou constituem o assunto.
Âs sim, H.an dâ prtoridade explanatóna d e s critiva à s preo cupações e ava-
üações (e, conseqüentemente, à ìinguagem) das pessoas que têm "um ponto de
vista interno", isto é, aquelas que não apenas "registram e predizem um compor-
24 \ eja Rzz, l:gal Slsten, p. 201
25 Lb.,p.200 nota2.
26 Hztt, Concept af Lzw, p.96.
27 Ì&., p. 88.
26
JOHN FINNIS
tamento que se conforma às Íegïas", ou atentam para as tegras "apenas do ponto
de vista exte{no, como um sinal de possível punição", mas que "usam as regïas
como padrões pat^ a avabação de seu próprio comportamento e do compoÍta-
mento de ouffem".28 Raz, em sua obra anterior, adota o "ponto de vista do ho-
mem comum",Z9 mas em sua obra mais recente passa ao "ponto de vista lega|",
que é o ponto de vista das pessoas que "acreditam na validade das normas e as se-
guem" (paradigmaticamente, o ponto de vista do juiz qua juiz).30
É b^rtuttt. óbvio que essa posição de Hart ekaz êinstável e insatisfatória.
Em contraposição a Âustin e l(elsen, eles diferenciaram agudamente o ponto de
vista "interno" ou "legal" do ponto de vista do homem que apenas obedece à lei e
só o faz porque, quando, e atê o ponto em que, teme as punições que irão se seguir
à não-obediência. Mas Íìrmemente se recusam a fazer outras diferenciações. Re-
conhecem que o ponto de vista "intefno" ou "legal", como o descrevem, é um
amâIgamade pontos de vista múto diferentes. "Submissão ao sistema pode se ba-
seaÍ em muitas considerações diferentes: estimativa de seus interesses a longo
prazo;'tntetesse desinteressado por outrem; uma atitude herdada ou tradicional ir-
refletida; ou o mero desejo de proceder como os outros."31 Ftaz estâ disposto a es-
tender sua concepção de "ponto de vista legal" de modo a abranger o ponto de
vista de um "anarquista" que se torna juiz "com base em que se ele obedecer à lei
namaior parte do tempo poderá violá-la nas poucas mas importantes ocasiões em
que fazë-Io mais uâ solapá-la".32 Mas tudo isso é instável e insatisfatório porque
envolve umâ recusa a atrll:uir significado a diferenças que qualquer âgente nessa
ârea (seja o anarquista subversivo ou seu oponente, o "cidadão cumpridor da lei
ideai"33) iria considerar importante naprâtica. E, considerando a técnica de anâh-
se por meio do caso central e do significado focal, que em outras partes Hart e Raz
usam com tal Fumeza frutífera,parece não haver l>oarazão Para essâ recusa em di-
ferenciar a forma central dos casos periféricos da pníprio ponto de uista interno ou /ega/.
Pois não é dificil discernir que o ponto de vista do iuiz anarquista de Raz,
que sub-repticiamente seleciona e escolhe as leis que itâ fazer cumprir com a in-
tenção de aniquilar o sistemâ como um todo, não é um paradigma quer do ponto
de vista iurídico, quer do ponto de vista legal. Nem o anarqústa nem seus compa-
nheiros iriam considerar isso dessa forma. Por que então itta fazê-lo o teórico des-
critivo? O mesmo valepara a "atitude herdada ou tradicional irrefletida." ou o
28 lb.,pp.95-6; também 86-8,59-ó0, 113, 797,226.
29 bgal S1aem, p. 200, notz 2.
30 Practical Rtason, pp. 777, 777.
31 Hzrt, Concept aJlzw,p.198; também pp. 111,226.
32 1b.,p.171.
33 Lb.,p.171.
27
ÀpREcrÂçÃo E DESCRTÇÃO Do DrRErTo
mero desejo de proceder como os outros", de Hart. Essas são atitudes que, até
certo ponto, tenderão amanter um sistema jurídico (enquanto distinto, digamos,
de um sistema de discrição despótica), se ele já existir. Mas não irão causar a tïan-
sição de uma ordem social pré-jurídica de costumes ou discrição (ou pós-jurídical)
a uma ordem jwídica,pois elas não têm em comum a preocupação, que o próprio
Hart reconhece como a fonte explanatória da ordem jurídica, de remediar os de-
feitos das ordens sociais pré-jurídicas. Da mesma forma, o homem de Hart que é
movido por "estimativas de seus interesses a longo pÍazo" (ou seja, interesse pes-
soal) atenua qualquer preocupação que possa ter pela função da lei como Íesposta
a verdadeiros problemas sociais; como o juiz anarquista de Raz, ele diiui sua sub-
missão à lei e sua busca de métodos legais de pensamento com doses daquele mes-
mo interesse pessoal que é uma função elementar da lei (segundo o ponto de vista
de todos) subordinar às necessidades sociais. Todas essas considerações e atitu-
des, então, são manifestadamente casos desencaminhados, diluídos e atenuados
do ponto de vista prâtico que faz surgir a lei como um tipo significativamente di-
ferenciado de ordem social e a mantém assim. De fato,parasitam esse ponto de
vista.
Da lista de tipos de pontos de vista internos ou legais oferecidos por Hart
eRaz, agora só nos restam o "inteÍesse desinteressado por outrem" e o ponto de
vista daqueles que consideram as ÍegÍas, ou pelo menos as Íegras de reconheci-
mento, como "moÍalmente justifìcadas".3a Se a preocupação desinteressadâ com
outrem é separada da preocupação moral, como o é por Hafi,3s então não {tca
muito claro o que ela envolve,e, na ausência de esclarecimento, deve ser conside-
rada como tendo uma rrÌação com a Ìei e as preocupações legais tão incerta e ins-
tável quanto sua relação com a pÍeocupação moral (de acordo com esse ponto de
vista).
A conclusão a que devemos chegar é clara. Se existe um ponto de vista
sob o qual uma obrigação legal é tratada como, pelo menos presumivelmente,
uma obrigação moral (e, assim, como de "grande importância", a seÍ mantida "em
oposição ao impulso das fortes paixões" e "ao custo de sacrificar considerável
interesse pessoal")36, um ponto de vista segundo o qual o estabelecimento e a
manutenção da ordem jurídica em distinção a uma ordem discricionária ou estati-
camente consuetudinâna são encarados como um ideaÌ moral, quando não uma
exigência premente da justiça, então tal ponto de vista irá constitúÍ o caso central
do ponto de vista legat. Pois apenas segundo tal ponto de vista é uma questão de
34 Y eja R:zz, Practical Rtason, pp. 147 -8.
35 Concep af law, p. 226.
36 1b.,p.169.
28
JOHN FINNIS
suma impoÍtância que o direito, enquanto distinto de outras formas de ordem so-
cial, deva passar a existir e, assim, se tornar um objeto da descrição do teórico.
Mas o termo "moral" tem uma conotâção um tanto incerta. Logo, é preferível for-
mular nossa conclusão em termos de tazoablhdade pútica (veja V.1, V.10, \'L1,
XI.1 e XI.4). Se existe um ponto de vista segundo o qual a instituição do Estado de
Direito (x.4) e a obediência a regras e princípios de direito de acordo com o teor
sáo encandas como requisitos pelo menos presumíveis da propria nzoabllidade
ptáttca, tal ponto de vista é aqueÌe que deve ser usado como padrão de referência
pelo teórico que descreve âs caÍacterísticas da ordem iurídica.
Ainda há mais uma diferenciação possível. Dentre aqueles que, de um
ponto de vista prático , tratàm a lei como um aspecto da tazoabútdade prânca,ha-
verá alguns culas opiniões a respeito do que a razoabllidade prática na verdade
requer nesse domínio são, em detalhes, mats razoâveis do que outras. Então, o
próprio ponto de vista do caso central é o ponto de vista daqueles que nào apenas
apelam à razoablüdade ptâtica, mas que também são razoâveis na prâtica, ou seja:
consistentes; atentos a todos oS aspectos das oportunidades e do florescimento
dos seres humanos, bem como cientes de sua limitada comensurabiìidade; preo-
cupados em remediar defìciências e coiapsos, bem como cientes de suas raízes
nos vários aspectos da personalidade humana, nas condições econômicas e em
outfas condições materiais da interação social.37 Que razão poderia ter o teórico
descritivo para rcieitar as escolhas conceituais e discriminações dessas pessoas,
quando está selecionando os conceitos com os quais irá construir sua descrição do
caso centÍal e depois de todos os outfos casos pafticulares do direito como uma
instituição social específica?
O teórico descritivo de fato não está obrigado a incluir em sua teoria to-
dos os conceitos que as sociedades que está estudando usaram em sua própria in-
teqpretação de suas próprias práticas. Muitos de tais conceitos denunciam uma
fraca sensibilidade a ceftos aspectos do bem-estar humano; outfos denunciam a
influência de mitos ideológicos - por exemplo, de que "o povo" govetna a "si
mesmo" (cf. IX.4), ou de que a "revolução" está substituindo o estado de direito
pela "administração das coisas". Mas é precisâmente um Pensamento prátìca disci-
plinado e bem informado (seja de propósito "teófico", isto é, reflexivo, seia mais
37 Por ttás do princípio cardeal do método de Áristóteles no estudo dos assuntos humanos - ou seja, que
os conceitos devem ser selecionados e empregados substânciâlrnente como são usados na prâttczpelo rpoa-
tlaios (ohomemmaduro dotado de razoabiìidade prática): veja XII.4, adiante - esú o argumento de Platão
(ReptibticalX:582a-e) de que o amante da sabedoria pode entender as preocupações do homem de czrâter
distinto, enquanto que o invetso não é verdadeiro; em outras palavras, as preocupações e o entendimento
do homem madu o e razoâvel fomecem uma base enpíica melhot para a exposição reflexiva dos âssuntos
humanos; veja tmbém R4. III: 408d-409c.
29
APR-ECIÁÇÃO E DESCRIÇÃO Do DIREITO
imediatamente dirigido à ação) que pode fornecer uma crítica desses conceitos a
fim de sobrepujar os obstáculos que eles colocam no caminho do pensamento
claro arespeito do que deveria ser feito. A teoria social descritiva não partilha des-
sa pÍeocupação a respeito do que deveria ser feito. Mas não pode, em suas descri-
ções, passar sem os conceitos que homens dotados de razoabilid ade prátìca acham
apropriados para descreuer para sì mesmo.r o que crêem valet a pena fazer e alcançar
em face de todas as contingências, mal-entendidos e mitos que os confrontam em
suas práticas.
Assim, por meio de uma ionga march a aúavés da metodolo g1a de tral:,a-
lho ou impiícita da jurisprudência analiaca contempoÍânea, chegamos à mesma
conclusão a que Max Weber chegou com mais rapidez (embora com base em uma
ciência social múto mais ampla), qual seja, a de que as avaliações dos próprios
teóricos são um componente indispensável e decisivo na seleção ou na formação
de quaisquer conceitos a serem usados na descrição de aspectos de assuntos hu-
manos, tais como o direito ou a ordem jurídica. Pois o teórico não consegue iden-
nltcat o caso centÍal daquele ponto de vista prático que ele usa pan identifìcar o
caso central de seu assunto, a menos que decida quais realmente são os reqúsitos
da razoablltdade prâttca em relação a todo esse âspecto de assuntos e pÍeocupa-
ções humanos. Em relação à legislação, as coisas mais importantes para o teórico
conhecer e desctever são as coisas que, no julgamento do teórico, toÍnam im-
poÍtante, de um ponto de vistaprátìcl, que exista legislação - as coisas das quais é,
poÍtanto, importante naptânca "cuidar" quando do ordenamento dos assuntos
humanos. E quando essas "coisas importantes" estão (em algumas ou mesmo em
muitas sociedades) na verdade ausentes, degradadas, manipuladas, ou então defì-
cientes, segue-se que as coisas mais importantes para o teórico descrever são
aqueles aspectos da situação que manifestam essa ausência, degradação, manipu-
lação ou defÌciência.
Isso não signiÍìca que a jurisprudência descritiva (e a ciência social como
um todo) esteja inevitavelmente sujeita às concepções e preconceitos de todo teó-
rico a respeito do que é bom e nzoâveI naptânca? Sim e não. Sim, na medida em
que não há como fugir do requisito teórico de que um júzo do alcance e àa ìnpor-
tância deve ser formado para que uma teoria seja mais do que um grande monturo
de fatos heterogêneos descritos com uma profusão de terminologias incomensu-
ráveis. Não, na medida em que a aquisição disciplinada de conhecimento preciso a
respeito dos assuntos humanos - e, portanto, a respeito do que outros têm con-
siderado de importânciaprâtica, e a respeito dos verdadeiros resultados de suas
preocupações - é uma importante ajudapata o teórico reflexivo e crítico em suas
tentativas de converter seus próprios "preconceitos" práticos (e os da sua cultura)
em juízos realmente razoâveis a respeito do que é bom e razoâvelna prática. O co-
nhecimento descritivo pode, assim, provocar uma modifìcação nos iuízos acerca
30
JOHN FNNIS
da importância e do alcance com os quais o teórico abordou seus dados, bem
como sugerir uma Íeconceituação. Mas o conhecimento não tetá sido alcançado
sem uma conceituação preliminar e, poÍtanto, um conjunto preliminar de princí-
pios de seleção e de relevância extraído de algum ponto de vista prático.
Existe, então, um movimento paralâ e para câ entre, por um lado, avaita-
ções do bem humano e de seus requisitos práticos e, por outro lado, descrições
explanatírias (usando todas as técnicas históricas, experimentais e estatísticas
apropriadas paÍa encontÍar todas as inter-relações causais relevantes) do contexto
humano no qual o bem-estar humano é realizado e arruinado de inúmeras manei-
ras. Da mesma forma (como veÍemos:II.4) como não é uma questão de derivar os
júzos básicos a respeito dos valores humanos e dos requisitos da r:zoabtlidade
prática por meio de inferência aparnr dos fatos da situação humana, também não
é uma questão de reduzir uma ciência social descritiva a uma apologia dos juízos
éticos ou políticos, ou a um projeto de distribuir Ìouvores ou culpa entre os atores
no cenário humano: nesse sentido, uma ciência social descritiva é "livre de valo-
res". Mas quando todaa devida ênfase foi dada às diferenças de objetivo e de
método entte a filosofìa práti ca e a cíência sociaÌ descritiva, os probÌemas metodo-
lógicos da formação de conceitos conforme seguimos seu cuÍso neste capítulo
nos compelem a reconhecer que o propósito do equilíbrio reflexivo na ciência so-
cial descritivasó ê alcançável por alguém em quem um grande conhecimento dos
dados e um penetÍante entendimento dos pontos de vista e das preocupações prá-
ticas de outÍos homens estão aliados a um sóìido juízo a respeito de todos os as-
pectos do genúno florescimento e da autêntica nzoabüdade pútica dos seres
humanos.
I.5 A teoria do direito naturú.
Bentham, Austin, I{elsen, \ü7eber, Hart e Raz, todos publicaram implacá-
veis repúdios ao que entendiam como a teoria do direito natural; e FulÌer cuidado-
samente se dissociou dessa teoria em suas formas clássicas. Mas o trabalho teórico
de cada um desses âÌltores foi guiado peia adoção, em bases que não foram expJi-
citadas nem adequadamente justifìcadas, de algum ponto de vista prático como
padrão de relevância e alcance na construção de sua análise descritiva. Uma sólida
teoria do direito natural é uma teoria que explicitamente, com total consciência
da situação metodológica descrita 
^cima, 
reabza uma crítica dos pontos de vista
práticos, a fìm de distinguir o que não é nzoâvel na prâttca do que ê razoâve| na
púnca e, assim, diferenciar o que realmente é importante daquilo que não é im-
37
ApREcrAÇÃo E DESCRTÇÃo Do DrRErro
portante ou é importante apenâs por sua oposição âo que é realmente importante,
ou por sua manipulação desanazoada do que é realmente impoÍtante. Uma teoria
do direito natutal alega ser capaz deidentificar as condicões e os princípios de dis-
cernimento prâtico, da boa e apropriada oÍdem entre os homens e na conduta in-
dividual. A menos que uma alegação como essa seja justificada, a jurisprudência
analitica, em particular, e (pelo menos amasot parte de) todas as ciências sociais,
em geral, não podem ter qualquer critério lustifìcado criticamente pa:maformação
de conceitos gerais e devem se contentaÍ com não ser mais do que manifestações
dos vários conceitos peculiares a povos particulares ef ou a teóricos pâíticulares
que se pfeocupam com esses povos.
Uma teoria do direito natural não precisa ser elaborada primariamente
com o propósito de fotnecer, assim, uma estrutura conceitual justifìcada p^ràumi-
ciência social descritiva. Ela pode ser elaborada, tal como este Ìivro, primariamen-
te como uma contribuição às reflexões prâticas daqueles que se pÍeocupam em
agir, quer como juízes, quer como estadistas, quer como cidadãos. Mas qualquer
que seja o caso, esse empÍeendimento não pode prosseguir em segurânça, sem
um conhecimento de toda a gama das possibiüdades e oportunidades humanas,
inclinações e capacidades, um conhecimento que requer a assistência da ciência
social descrittva e analittca. Existe então uma interdependência mútua, embora
não exatamente simétrica, entre o projeto de descrever os assuntos humanos por
meio de uma teoÍia e o projeto de avaltar as opções humanas com o propósito de
agir, pelo menos remotâmente, de modo razoâvel e bem. As avaliações não são
absolutamente deduzidas das descrições (veja II.4); mas é improvável que aquele
cujo conhecimento dos fatos da situação humana é muito limitado juigue bem
discernindo as implicações práticas dos valores básicos. Da mesma forma,as des-
crições não são deduzidas das avaliações; mas, sem as avaliações, não se pode de-
terminar que descrições são realmente esclarecedoras e significativas.
Notas
I.1
A ducição dat ìnstituQões e práticas huntanas reqaer a identif cação de seas pmpósitos. . . Veja Max Weber,The-
ory of Socìal and Econonic Organiqatìon (ed. T. Parsons, Nova York e Londres: 19af , pp. 88-126; On
Ior,pp.1-10;AlfredSchütz,"ConccptandTheoryFormationinúe SocialScìences" (195a)5J.of
Phìhnpfu, reimpresso cm seus Collected Paper:,vol. I (ed. M. Natanson, Hara:1967),48 nas pp 5B-9;
Eric Voegelin, The New Science of Politict (Chìcago c Londres: 1.952),pp.27-9.
32
JOHN FINNIS
Benthan, a reQeìlo da defnição de lei ...Yeja também Bentham, Colkctedlf/ork: (ed.J. Bowring, Edim-
burgo: 1863), vol. IV, p. 483; e cxcuÍso a XI.B (notas), adiante.
A thnìca de Ke /:en de defnição ...Yeja também Hans Kelsen, Ì)nre Theory afI-^aw @crkeley e Los Angelcs:
1967),pp.30-1.
T,2
A ducrìção de ìn.stiíwiço-u socìai.s, lais conto do direìto, reqter a identfrcação de seus propósitas ottfançõu ... Vcia
também J. Raz, "On thc Functions of thc Law", em Oxford Essals II, pp' 278-304, em 278; I-'ega/
S1sten,p. l'45.
Baq, sabre o critério de dìreito ... Ftaz é. claro quanto a qualqucr te<irico quc busca descrevet o direito dc-
ver decidir entre difercntcs conceitos teóricos e quânto âo fato de a "fotmulação explícita de crité-
tios metateóricos ser umâ condição parâ uma comparação racional e lógica de teorias": Raz, L,egaÌ
S1sten,p.146. É centralpara sua exposição de critórios metatcóricos sua dccisão dc que a teoria jurí-
dica deve explicar o "senso comum e a opinião profìssional": p. 201..8m Lzgal S1:tent, ele dâum"cri-
tério jurisprudencial" (p. 200), qual scja, de quc "um sistema jurídico momentâneo contém todas, e
apenas todas, as lcis rcconhecidas por um órgão primário dc aplicação da iei quc clc institui" (P. 1 92).
Ele sublinha que e sse critério "diz re spe ito ao real comportamcnto dos órgãos primários, não ao que
eles deveriam fazer ..." (p. 198). Mas,emPractìca/Reason, cle critica os teódcos do dircito "que con-
cluítam quc o dircito consistc cm todos os padrõcs que os tribunais realmcnte põem em prática. Iss<l
... confunde sistemas institucionalizados com sistemas dc discrição absoluta" (p. 142). Então, seu
novo critério é estc: um sistcma jurídico contóm "apenas aquelas normas a que seus órgãos primá-
rios são obrigados a obedecer" (p. 1 42; também p. 148). Essa mudança no critério jurisptudencial de
Raz pan que aÌgo laça parte dc um sistema jurídico deve ser \ocaltzada em sua mudança de uma
preocupação em teptoduzìr o ponto de vista um tanto indiferenciado do "homem comum" para
umâ preocupâção em teproduzir o "ponto de vista legaÌ", o ponto de vista de alguóm (paradigmati-
camcnte um juiz, ou um "cidadão idcal cumpridor da lci') que acredita que as pessoas dc alguma for-
m estã.o.Ìtlrfirtcítlzr em seguir âs Íegíâs do sistema: pp. 139, 143,1,71.
I.3
ArìrróÍelei, sobre o signficadofocal e a antílìse de ca.sot centrais ... Veja W. F. R. Hardie,l ittotk': IltltìcalThe'
ary (Oxford:1968), pp. 59-60, ó3-5; Gatrthier-Jollf,11,1, pp. 45-6; II,2, pp. ó86 c scguintes; cf' \V' W.
Fortenbaugh, "Aristotle's Ana\'5i5 of Friendship: Function and Analogy, ResembÌance and Focal
Meaning" (1975) 20, Pltronuì: 51-62; e XIl.4, aàiante. A discussão dc Hart, Concept af Law, pp. 15-16,
234, nào distingue claramente o que Aristóteles chamava de analogia (e na Idade Média chamavam
de "analogia da proporcionalidade') daquilo que e1e chamava de homonímia pros /rz ou signifìcado
focal (chamado na Idade Média de "ana\og1a dc atribuìção ou proporção'). A exposição feita por
Hart nas pp. l5- ló parcce sc concentrâr na primcira, mas a segunda é o dispositivo mais importantc
na teoria dos assuntos humanos. Tcndo observado essa distinção, no cntânto, acho ser conveniente
usar o conceito amplo de "analogia" c "analógico", introduzido na Idade Média c mais ou menos
mantido na fi.losofia desde então. Nessc scntido âmplo, um termo é analógico quando seu significa-
do sc altera sistematicamente (isto é, de acordo comalgum princípio ou fundamento l<igìco) quando
se passâ de um contcxto ou emprego pârâ outro. Para a busca do princípio ou fundamento ìógico
em tais casos, veja tambóm Hart, "Definition and Theory inJurisprudence" (1954) 10 Lp.k 37 nas
pp. 38,44n, 56-9.
33
APRE,CIÂÇÃO E DESCRIÇÃO Do DIREITo
Max lYeber, sobre a constntção de conceitos de tipo ideal para a sociologia geral ...Ye1a Methodolog4 pp. 89-93.
Veja também Alfted Schütz, "The Problem of Rationaüty in úe Social World", em seus Colluted Pa-
pers,vol. II (Haia: 1964),64 nas pp. 81-8.
Diferenciação eníre espécìnens "ntadrros" e 'bnpobrecìdo:" de direito e sìÍenajurídìca ... Austtn reconhecia que
a jurìsprudência dcvia cstudar primariamente os sistemas jurídicos "mais amplos e maduros": veja
Prouince, p. 367 .Yeja também Raz, Legal S1Íent, p. 1.40; Practical lüann, p. 150.
Afreqüêncìa de omnênda oa de casasparticalares não í an crìtéio deciiuo de releuânda 0u centralidade...Vei^
\X/eber, Methodokrgy nas pp. 72-80; Eric Vocgclin, "Thc Theory of Legal Scicnce: a Revìew" (1942),
4 I núsìana I nw Re. 554 nas pp. 558-64.
r.4
Pensantento prátìctt, raqoabìlidade, flosofa üc. . . . Para o emprego que faço dc "prático" em todo este li-
vro, veia Aristótelcs, Nic. Etlt.YI,2:1.139a26-31; De AninaIII,9:4321>27; São Tomás de Aquino,
S.T. I, q. 79, a. l.l;Praz, Practical Reason,pp.10-13. Em Aristótele s, "prático" é distinguido de thearetì-
ke, traduzido na Idade Média como sperulatiaa: veja Aristóteles, local citado, e MeÍa Vl, 1:
1925b19-29. Nem "te<irico", ncm "especulativo" são muito adcquados para úaçff as neccssáÍias
distinções em inglês; nestc capítulo, "descritivo" c "explanação descritiva" foram usados paÍa essc
pÍopósito. A distinção aristotélica/tomista aprcscnta dificuldades intrínsecas, já que a filosofia práti-
ca é "dirigida à ação" apcnas um tânto vagamcntc, isto ó, de um "modo tcórico". A despeito dcssas
dificuldades, tal distinção dcve scr mantida; ela é uma tcstcmunha da consciência antiga da distinção
básica entre "sct" e "dcver-scr" (uma distinção quc cm si mesma não ó absolutamentc simpìes em
suas aplicações).
IYeber, sobre a necessìdat|e de o teórico asarsaaprapia aualiaçãopara estìnara a/cancepara a tearia ducritìua ...
Vcja, acima de ttdo, Methodalogt,pp.5B,76-82,24; tambómJuÌicn F'rctnd,The Socìolog of Max lYeher
(Londrcs: 1968), pp. 51-61. Obviamcntc, Weber encaÍ^\a essas avaliações poÍpaÍtc dos te<iricos
como não-cienti{ìcas, isto é, como carecendo da dignidade da objctividadc: veja II.3 (notas). Daí que
eìc não iria aceitat que a tarcfa do tcórico, ncssa pâÍte de seu trabalho, fosse decidit quais "são real-
mente" as formas básicas do bcm humano e os requisitos da razoabilidadc práticâ. Posso acresccn-
târ quc, ao me referir à a\egaçã<> dc $ícbcr quanto ao fato de a avaÌiação ser necessária para qualquer
ciência social, não cstou concordando com cada aspccto dc sua argumcntaçào afavor dessa alega-
ção, uma argumcntação que não está livÍe da noção ncokantiana dc que todos os conceitos têm dc
ser impostos pcla mente humana sobrc o fluxo dos fcnômenos, um fluxo quc não tcm qualquer es-
trutura inteligívcl própria a scr descobcrta.
A teoia socìal duciÍiua nào dìqrespeìto ao qae deueria serfeito... Assim, o objctivo c os mótodos de uma ju-
risprudência dcscritiva e analitica. getal, tal como a dc Hart ou Raz, devem ser claramente distingui-
dos do objetivo c dos métodos dc uma "teoria jurídica" como concebida por R. M. Dworkin. Para
Dworkin, uma função primordial dc uma "tcoria do dircito" ó "fornccer uma base para o dever judi-
cial"; "os pÍincípios que ela especifica devem tentaÍjl$tifcdras regrâs cstabclccidas [de uma dada
comunidade] identificando as prcocupações e as tradições políticas ou motais que, nâ opinìão do
advogado de quem ela é a teoria, de fâto embâsâm âs regras": Dworkin, TakingWghts Serìows!, Q,on-
drcs, 1977), p. 67. (A cxprcssão "de fato" aqui signiÍìca "realmentc" (como avaliada normativamcn-
te), não "como umâ qucstão dc causa c efcito";vcja tambóm p. 51,linhas 6,11.)Yejatambóm p. 117;
Dworkin, "No Right Ans wer?" , em Essalt, n^ p. 82. É claro quc uma teoria tão relativa às opiniões c
práticas morais dc uma dada comunidade não é uma tcoria gcral como âs teorias do direìto natural
aspiÍam a scr. Mas Dworkin está contemplando uma "teoda getal do direito" que em sua parte nor-
34
JoHN FÌNNIS
mâtivâ &âstânte ambiciosa) iria estabcÌeccr, ìnÍer a/ìa, "padrõcs quc os ,uíze s dcvcm usat patâ tomai
decisão cm casos difíceis, nos termos da lci", c iria cxplicar "por quc c quando os iuízcs, c nào outros
grupos c instítuiçõ>es, dcvcm tomar as decìsões requeridas pcla teotia .,." (TakìngNgbts Serìousl1,pp.
vii-viii). Por razões qLrc não estão claras, cÌe contcmpla uma "parte conceituaÌ" distinta, embora rela-
cionada, quc iria determinar (como não é cxplicado) qucstõcs tais como "Podem os próprios princí
pios mais fundamentais da constituição ... scr considerados como fzzenào parte do direito?'. Dc
qualqucr forma, seu dcbatc com "positivistas" como HaÍt e Raz fracassa, já que clc não consegue
rcconhcccr que o intcrcssc tcórico dcles não ó, como o seu, idcntificat um "crìtério para o dircito"
fundamental para identìfìcar (mesmo nos câsos "difíccis" mais controvcrsos) ondc rcalmente se en-
cootÍâ o dcvcr lcgal (moraÌ c polític<) dc um juiz, cm umâ dada comunidade c em uma dada ópoca.
Pek; contrário, o interessc deles é descrevct o que ó tratado (isto é, accito c cfctivo) como direito cm
uma dada comunidadc c cm umâ dada ép<;ca, bem como gerar conccitos que ìrão pcrmitir quc tâis
dcscriçõcs scjam claras c cxplanatórias, mâs sem a prctensão de forncccr soluções (<>u "respostas
corretas", ou padrões quc iriam, sc aplicados apropriadamcntc, fornccer respostas corretas) para
questôes em disputa cntre âdvogados compctcntes. As "perguntas cmbaraçosas" listadas por Daw-
kin, obra citada, pp. 4, 1 5, 44, não são pcrguntas que Hart ou Raz se proponham a respondcr. Então,
a teoria de Dwol<in é, fundamentalmcntc (cmbora tcnha várias descriçôres iluminadoras), uma tcoria
noÍmâtiva do direito, ofcrcccndo oricntação ao júz quanto a scu dever judicial; a deles é uma tcoria
descriúva, oferecida aos historiadorcs para permitir uma histriria discriminadora dos sistcmas jurídi-
cos a set escrita. O fato dc quc, como já argumentci ncstc capítuk;, o tcórico descriúvo prccisa da as-
sistência de uma teoria normativa gctaÌ para dcscnvolvcr conccitos suficìentemente diferenciados e
padrões razc:âvers de relevância não climina os difcteote s empregos quc setão fcitt>s do cstoque
mais ou mcnos cm comum dc conccitos tcóricos pcÌos tcriricos normativos e pekrs tcriricos dcscriti-
vos Qristriricos), respectivâmcntc.
Eqai/íhio reflexiua na cìência sacial dacrìtìua... O tcórico quc conscguissc chcgar a cssc proprisito seria
aquele cujo pont<> dc vista sis rcmaticamcnte sc rproximassc do "ponto dc vista univcrsal" postulado
por B. J. F.Lonergan,Inrìglrt: A StadJ aíHull/an Understandirry (Londrcs: 1957), pp. 554-68. Como l,o-
nergan observa (p. 56ó), tal ponto dc vista "ó univcrsal não por abstração, mas por potencial com-
pletude. Ele alcança sua comprcensibiüdade não por despir os objetos dc suas pccuÌiaridades" (cf.
KcÌsen, Austin...), "mas por conccbcr os sujcitos" (isto é, pessoas) "cm suas necessidades".
II. In,tcaNs n oe.;nçons
iI.1 Direito natural e teorias de direito natural
() que são prìnctpios de dìreìto natural? O sentido que a expÍessão "direito na-
tural" tem neste livro pode ser indicado nas seguintes aÍÌrmações um tanto banais,
formulações que talvez pareçanì vazias, ou petições de princípio, até serem escÌa-
recidas na PaÍte Dois: existe (i) um conjunto de príncípios práticos básicos que in-
dica as formas básicas de florescimento humano como bens a serem buscados e
realizados, e que é de uma forma ou de outra usado por todos os que ponderam
sobre o que fazer, por mais infundadas que sejam suas conclusões; e (ii) um con-
junto de requisitos metodológicos básicos de razoabilidade ptânca (ela mesma
uma das formasbásicas de florescimento humano) que distingue entre pensâmento
prâtico bem fundado e infundado e que, quando são todos empregados, fornece
os critérios para distinguir entre atos que (sempre ou em circunstâncias particula-
res) são razoâveis levando-se tudo em consideração (e não apenas em relação a
um propósito particular) e atos que são desarazoados levando-se tudo em consi-
deração, isto é, entre modos de agfu que são moraÌmente certos ou moralmente
errados - permitindo, dessa forma, que se formuÌe (iü) um conjunto de padrões
morais gerais.
Pata evitat mal-entendido a respeito do âmbito de nosso assunto neste li-
vro, devo acrescentar aqui que os princípios do direito natural, assim entendidos,
são encontrados não apenâs na filosofìa moral ou êtica e na conduta "individual",
mas também na filosofia política e na jurisprudência, na ação política, nas adjudi-
cações e na vida do cidadão. Pois que esses princípios justifìcam o exercício da
autoridade na comunidade. Eles requeÍem, também, que essa autoridade seia
exercida, na maiona das circunstâncias, de acordo com a maneita conveniente-
mente rotulada de Estado de Direito, com o devido respeito aos direitos humanos
que encarnam os requisitos da justiça e para o propósito de ptomover um bem co-
mum no qual tal respeito pelos direitos é um componente. Mais particularmente,
36
JoHN FtNNts
os princípios do direito natural explicam aforçaobngatona (no sentido mais ple-
no de "obrigação") das leis positivas, mesmo quando essas ieis não podem ser
deduzidas desses princípios. Eaatenção aos princípios, no contexto dessas expla-
nações do direito e da obrigação legal, justifìca encarar certas leis positivas como
radicalmente deÍicientes, precisamente enquanto leis, por falta de conformidade a
esses princípios.
Meu propósito atuai, no entanto, não é antecipar capínrlos posteriores,
mas fazer alguns esclarecimentos preJiminares. Uma primeira distinção essencial é
aquela entfe uma teoda, doutrina ou exposição e o assunto dessa teoria, doutrina
ou exposição. Pode haver uma história de teorias, doutrinas e exposições de as-
suntos que não têm uma história. E os princípios do direito natuïal, no sentido
formulado nos dois paúgrafos precedentes, não têm uma história.
Já que ainda tenho de mostrar que existem de fato princípios do direito
natural, deixe-me colocar as coisas condicionalmente. Princípios desse tipo seriam
válidos, enquanto princípios, por mais que fossem esquecidos, mal empregados
ou desprezados no pensamento prâtico, e por menos que fossem reconhecidos
por aqueles que teorizam reflexivamente a respeito do pensamento humano. Ou
seia, "continuariam valendo" da mesma forma como os princípios matemáticos
da contabilidade "continuam valendo" mesmo quando, como na comunidade
bancânamedieval, são desconhecidos ou entendidos eÍÍoneamente. Então, pode-
ria existir uma história de até que ponto eles foram usados pelas pessoas, explícita
ou implicitamente, para regular suas atividades pessoais. E, poderia existir uma
história de até que ponto os teóricos reflexivos reconheceram os conjuntos de
princípios como válidos ou "contirÌuando a va\er". E poderia existir, ainda, uma
história da popularidade das vânas ï.eorias apresentadas para expìicar o lugar des-
ses princípios no esquem a geral das coisas. Mas do próprio direito natural não po-
deria, rigorosamente falando, existir uma história.
O direito natural não poderia surgir, decÌinat, ser revivido ou encenar
"etemos ÍetoÍÍros". Não poderia ter realizações históricas creditadas a ele. Não
poderia ser Íesponsabiüzado po{ desastres do espírito humano ou por atrocidades
da prâtíca humana.
Entretanto, existe uma história das opiniões ou do conjunto de opiniões,
teorias e doutrinas que afirma que existem princípios do direito natrxal, uma his-
tória das origens, ascensões, declínios e quedas, Íetornos e realtzações e de res-
ponsabiiidades históricas. Quem pensâf que realmente não existem tais princípios
irá considerar que um livro sobre o direito natural deve ser um livro a respeito de
meras opiniões, e que o principal interesse dessas opiniões está nas suas causas e
efeitos históricos. Mas quem considera que existem princípios do direito natural,
no sentido já delineado, deveria ver a importância de manter uma distinção entÍe
o discurso sobre o direito natural e o discurso sobre a doutrina ou as doutrinas do
37
IMÂGENS E oBjEÇÕES
direito natutal.Infelizmente, as pessoas freqüentemente não conseguem mârìter
essa distinção.1
Este é um livro sobre o direito natural. Ele expõe ou exibe uma teoria do
direito naturâI, mas não é a respeito dessa teoria. E também não é a respeito de ou-
tras teorias. Ele se reFere a outÍas teorias apenas para iluminar a teoria exposta
aqú, ou para expltcat poÍ que algumas verdades a respeito do direito natural em
vârias épocas e de variadas maneiras têm sido ignoradas ou ocultadas. Este livro
não entÍa em discussões sobre se as doutrinas do direito natural exerceram uma
influência conservadora ou radical na política ocidental, ou sobre as supostas ori-
gens psicológicas (infantis)2 de tais doutrinas, ou sobre a alegação de que algumas
ou todas as doutrinas específicas do direito natural sã.o altmadas hipocritamente,3
affogantemente4 ou como um disfarce ou veículo para expÍessões de fé eclesiásti-
ca. Pois que nenhuma dessas discussões tem qualquer relação com a questão da
existência de um direito natutal e, se esse foÍ o caso, quai é seu conteúdo. Igual-
mente írrelevante para essa questão é a alegação de que a descrença no direito na-
tural produz frutos amargos. Nada neste livro deve ser interpretado queÍ como
defendendo, quer como negando tais alegações; o presente livro simpiesmente
prescinde de todos esses tipos de questão.
II.2 Validade jurídica e moraüdade
A seção anterior tratou as teorias do direito natural como teorias dos fun-
damentos racionais para o júzo moral, e esse será o foco primário das seções sub-
seqüentes deste capítulo. Mas, na preseflte seção, considero o entendimento mais
restrito e jurídico de "direito natural" e "doutrina(s) do direito nafriïal".
Aqui temos de lidar com a imagem do direito natural nutrida por juristas
como l(elsen ,Hart e Raz. Essa imagem deve estar reproduzida nas próprias pala-
vras deles, já que eles mesmos mal identificam e muito menos fazem citações de
qualquer teórico em particular como defendendo a visão que eles descrevem
2
J
4
Dentre os exemplos noúveis dessa incapacidade, temos A. P. D'Entrèves,Naturallzw I,ondres: 1951, ed.
rcvista.7970), e.g.,pp.73,78,22 etc.iJ'thus Stone, Htnan lzw andHnnan Jusüre (Londres: 1965), caps.2 e7 .
Veja Alf Ross, On law andfustice (I-ondres: 1958), pp. 258,262-3.
Veja Wolígang Friedmann, czttz (7953) 37 Canadian BarRea.7074 eml075.
Veja lfolfgang Friedmann, revisão (1958) e Nar. L.F. 208 em 210; também Hans KeÌsen, Allgeaeine Staats-
lehre @erlìm:1925),p.335, sobre "ingenúdade ou arrogância do dkeito natural" (na passagem omitida da
tradução inglesa de1945 (GeneralTbeory,cf.p.300),zrespeito do caráter totalmente legal do despotismo.)
38
JOHN FINNIS
como a visão da doutrina do direito natural. Joseph Raz proveitosamente resume
e adota a versão de l(elsen desta imagem:
I{elsen corretâmente salienta que, de acordo com âs teorias do direito natural,
não existe quaÌquer noção específica de validade jurídica. O único conceito de
validade é validade de acordo com o direito natural, isto é, validade motal.
Advogados especialìstas em direito natutal só podem judicar uma lei como
morâlmente váÌida, ou sejâ, iusta, ou então como moralmente inváÌida, isto é,
errada. Não podem dizer de uma lei que eÌa é juridicamente válida mas moraÌ-
mente errada" Se é errada e injusta, é também inválida no único sentido de vali-
dade que eles reconhecem.s
Em seus próprios termos, Raz mais tarde define "teóricos do direito natu-
ral" como "aqueles filósofos que pensam que é um critério de adequaçào para as
teorias do direito que elas mostïem ... que é uma veÍdadenecessária que todo di-
reito tenha valor moral".6
De minha parte, não conheço qualquer Íìlósofo que se encaixe, ou tenha
se encaixado, em tal descrição, ou que estaria comprometido com tentar defender
esse tipo de proposta teónca ou metateórica. Âs seções IX.2, X.2, X.5, X.6, XI.4,
XiI.3 e XIL4, adtante, são dedicadas a corrigir essa imagem. Basta dizer aqui que a
niz do mal-entendido parece ser a incapacidade dos críticos modernos de inter-
pÍetar os textos dos teóricos do direito natural de acordo com os princípios de de-
finição que esses teóricos têm, em geÍal, consistente e deliberadamente usado. Já
dei um esboço desses princípios na seção I.3, sob a rubrica de "casos centrais e
signifìcados focais".
 imagem da teoria do direito natural com a qual temos Ìidado está inti-
mamente relacionada, na mente de I(elsen, com outra imagem. Pois que l{elsen
diz que é "um ponto cardeal da doutrina histórica do direito natural ... por mais de
dois mil anos" que ela tente "fundamentar o direito positivo em uma delegação do
direito natvral".T Até aqui, tudo bem (embora essa formulação não seja ciássica).
Mas l(eisen encara a tentatla como "logicamente impossível", com base em que
tal delegação acanetaria atribuir val,idade jurídica a normas não por serem iustas,
mas poÍ causa de sua criação pelo delegado; e isso, poï sua vez,ttia acareta4 diz
5
6
Raz, "Kelsen's Theory of the Basic Norm" (1974) 79 An. J. fuis.94 na p. 100'
PracticalReasan,p. 162. Essa formúação corresponde ao oposto da cârâctenzação do "PositivismoJurídi-
co" construído por Han a fim de definir a "controvérsia entre Direito Natural e PositiüsmoJurídico": Caa-
cept oflz4p.1 81. Veja também Pracücal Beasar,pp. 755,762; pzrece que Râz pretende que todas essas for-
múações se apüquem igualmente a teorias "defìnidoras" e "de abotdagem dedutiva" do direito natural. flá
que ninguém usa a abordagem "definidora", não há necessidade de investigar o valor da suposta disúbú-
ção enúe abordagens "definidoras" e "dedutivas".)
CenralTbeory, p. 472.
39
IÀ4AGENS E oBJEÇÔES
ele, que o delegado poderia ignorar e "substituir" o direito natuta)' "em vista do
fato de que o direito positivo não está, por princípio, sujeito às limitações de ... Sua
... validade material" .8 Lamento, mas o nln seqwìtar é de l(elsen, e não está em suas
fontes; o "princípio" ao qual eie apela é um meroy'etìtìoprìncìpìi. Se pudermos tra-
duzir a parte reievante da teoria de Tomás de Âquino, por exemplo ,pzr.^ a termi-
nologia de I(elsen (na medida do possíve), ela fica como se segue: a validadeiurí-
dica (no sentido focal, moral de "validade jurídica") do direito positivo é derivada
de sua conexão racional com o direito natural (isto é, derivada dele), e essâ cone-
xão êvâltda,normalmente, se, e somente se, (i) o direito surge de um modo que é
luridicamente válido (no sentido especialmente restrito, puramente iurídico de
"vaiidade juddica") e (ii) o direito não é materialmente injusto nem em seu con-
teúdo, nem nas circunstâncias relevantes em que é postulado.e A discussão desses
pontos feita por Tomás é pouco elaborada em compaÍação com o moderno deba-
te jurisprudencial: veja XlI.4, adiante. Mas e1a evita a contradição e/ou a vacuida-
de das quais l(elsen 
^ ^cusa. 
O deiegado não deve delegar incondicionalmente.
Em vista do precedente, não é suqpresa encontÍar l(eisen difundindo ou-
tra imagem desorientadora, e nadaíncomum, da teoria f urídica do direito natural:
Os mestres do direito natural sustentâm, em umâ versão que tem sido um es-
tereótipo desde os Padres da Igte jaatéI{znt,que o direito positivo deriva toda
a sua validade do dìreito natutal;eie é essencialmente umâ mera emanação do
direito natural; as leis e as decisões não criam livremente, meramente teprodu-
zem a verdaàeira lei que de aÌguma forrna jâ existe . . .10
O direito positivo, diz eIe,é assim tratado como umâ mera "cópia" do di-
feito natuïal. Mas tudo isso é caricatura. Podemos nos referir novamente a Tomás
- como sempre, não por qualquer presunção de que tudo o que ele altmaé verda-
de, mas simplesmente porqÌÌe ele é inquestionavelmente um paradigma do "teóri-
co do direito naturaÌ" e domina o período "desde os Padres dalgteia até l{ant",
sintetizando seus predecessoÍes patrísticos e do início da Idade Média e {ìxando o
vocabulário e, até certo ponto, a doutrina dos escolásticos posteriores e, poftanto,
dos primórdios do pensamento moderno. Ora, Tomás realmente aluma que o di-
reito positivo deriva sua valjdade do direito natatal; mas ao mesmíssimo tempo
mostfâ como ele uão é uma meta eÍn nação, ou uma cópia, do direito natutal, e
lb.,pp. 412-13.Yeja também p. 41 1: "Qualquer tentativa de estabelecer uma telação entte os dois sistemas
de normas, em termos de ordens simultaneamente válidas, acaba levando à fusão delas em termos de hipo-
nrmia e hiperonímia, ou seja, lnon reqiltur) ao reconhecimento do direito positivo como direito natural ou
do direito natural como direito positivo".
Veja J.T. I-II, q. 96, a 4c; o eqúvalente tomista do sentido principzl de validade jurídica de Kelsen é a noção
deumâtodesupostacriaçãodedireito serinfmpotestaíencammissam.VejaX.TeXII.2,adiante.
GeneraÌ Theory, p. 416.10
40
JOHN FINNIS
como o legislador go za de toda ahberdade criativa de um arquiteto: a analogia é de
Tomás.l1 Tomás crê que o direito positivo é necessário por duas razões, das quais
uma é a de que o próprio direito natural "de alguma forma jâ existente" não forne-
ce todas ou mesmo amaioria das soluções para os problemas de coordenação da
vida em comunidade. De qualqueÍ ponto de vista razoâve|, as claras elaborações
feitas por Tomás desses pontos (baseadas em uma indicação dada por Âristóte-
les)12 devem ser consideradas uma das partes mais bem-sucedidas de sua obra
nem sempre bem sucedida sobre o direito n í)ral Minha própita discussão das
relações entÍe o direito naturale o conteúdo do direito positivo se encontra prin-
cipalmente na seção X.7, adiante.
Finalmente, podemos notaÍ que ^ ovtra das duas 
justifìcações p^t^ 
^
construção de um sistema de direito positivo para suplementaÍ os requisitos "na-
turais" da moralidade, de acordo com Tomás (que dá a essa justifìcação uma proe-
minência quiçá excessiva), é a necessidade de compeiir, forçar as pessoas egoístas
a2.glrem de modo nzoâvel.I3 Então, é estranho ver l(elsen encontrando ainda ou-
tra "conttadição necessária entre direito positivo e flàtural", dessa vez "porque
uma é uma ordem coerciva, enquanto 
^ouÍra,idealmente, 
é não apenas não-coer-
civa, como, na verdade, tem de proibir quaÌquer coerção entre os homens".14
Essa, que pena, é ainda outra imagem distorcida; uma sól-ida teoria do direito natu-
ral é uma tentativa de expressar reflexivamente os requisitos e ideais da nzoal|ü-
dade prática, não do idealismo; vela X.1, adiante.
IL3 A variedade de opiniões e práticas humanas
H. L. A. Hart disse que "a teoria do direito natural em todas as suas Íoupa-
gens protéicas tenta asseveraÍ que os seres humanos são igualmente dedicados e
concordes a suas concepções de objetivos (a busca do conhecimento, justiça para
seus semelhantes) outros que não o da sobrevivência".15 Quanto a mim, não sei
71 Veja J.T. I-II, q. 95, a.2 (q.91, a.3 e q.95,t.1deve ser lida à luz desse anigo müto preciso, e de q. 99, a.3 ad
2, o,;99, a.5c, q. 100, a.1 1c). A analogia ó explicada adiznte: X.7.
YejzNic.Btb.Y,7i7134b20-24 (teproduzida nas notas a X.7, adiante);Tomâs,emEtb.Y,pzl.72,n" 7023;
cf. Aristóteles, Bltetoic I, 73: 137 3l:.
J.ï I-II, q. 90, a.3 ad2;q.95,2.7c e ad 1; q. 96, a.5c; veja também PÌatão,Rep.519e; Ansmteles,Nh. Éth.X,
9:7780a22.
GeneralTbeory, p. 441.
Hart, "Positivism and the Separation of Law and MoraÌs" (1958) 71 Han. L Rcu.593e, reimpresso em
Dworkin (ed.), Pbilospltl of law (Oxíotd:197T,17 na p. 36.
72
73
47
]MAGENS E OBJEÇÕES
de ninguém que já tenha asseverado isso. Todos os teóricos clássicos do direito
naturalceftamente tomaÍam poÍ aSSente, e muito ffeqüentemente afirmaram com
franqueza,que os seres humanos não se dedicam igualmente à busca do conheci-
mento ou da justiça e estão longe de estar unidos em sua concepção do que consti-
tui um conhecimento que vale a pena ou uma exigência de iustiça. Há múta coisa
a seÍ dita quanto à opinião de Leo Strauss de que o "conhecimento da variedade
indefìnidamente grande das noções de certo e eÍfado está longe de ser incompa-
tível com aídeia de direito nafi)fal que é a condição essencial Païa2, emergência
dessa idéia: o entendimento da vafiedade de noções de certo é a incentivo pan a
busca do direito natrxal".16
Tomás atacou muitas vezes aquestão de até que ponto os sefes humanos
feconheciâm o direito natural.rT Quando suas observações são vistas em coniun-
to, pode-se vef que ele trabalha com uma categotização trípìice dos princípios ou
preceitos do direito n^tural. Em prìmeiro lugar,hâ os princípios mais gerais (corzmu-
nissìma), que não são tanto preceitos mas, "poÍ assim dizeÍ, fins [ou pÍopósitos]
dos preceitos"lTb; eles expressam as foÍmas básicas do bem humano; pelo menos
na medida em que dizem respeito a seu próprio bem, são reconhecidos por qual-
quer um que chegue à idade da razão e que tenha experiência suficiente pâra saber
a que eles se ÍefeÍem, e neste sentido não "podem, efìquanto princípios gerais lìn
unìuersaÌ\, ser eliminados do coração humano".18 Isso é o mais próximo que To-
más chega de fazer a asseÍção que Hart sugeÍe sef o núcleo dateoÀzação do direi-
to natural. Isso implica dizet apenas que quaiquer pessoa sã ê capaz de ver que a
vida, o conhecimento, o companheirismo, a proie e uns poucos outfos aspectos
igualmente básicos da existência humana São, como tais, bens, isto é, coisas que
vale 
^pena 
se ter, deixando de lado todas as dificuldades e as impìicações particu-
lares, todas as avaliações da importânciarcIativa, todas as exigências morais e, re-
sumindo, todas as questões quanto a se e como a pessoa deve se dedicar a esses
bens.
Pois que, em segwndo /wgar,mesmo as implìcações mofais mais elementares
e mais facilmente Íeconhecíveis desses primeiros princípios sáo capazes de ser
obscuras ou de estar distorcidas pafa pessoas específicas e' de fato, para culturas
inteiras, pof causa de preconceito, equívoco, costumes, influência do deseio por
16 Sttawss,Nat*raÌNgltt andHistory (Cb:cago: 1953), p. 10. Igualmente H. Rommen, ïárNat*ralltw (Sr'.Louis
eLondres:194\,p.4.Pztztconsciênciaqueosantigostinhamdavariedadedenoçõesmorais,veiaÂristó-
teles,Nic.Etb.y,T:1734b27-35;1,3: 1094b14-1ó; e para apelos céticos a essa variedade, veja Sextus Empi-
tícus, P1 rrh o n e a r H1p o lp o n s III, xxl, 79 8 -238'
17 -ç.T. I-I| q.93,a.2c;q.94,a.2c,2.4,a.5 zd1,z6c q.99,a.22à 2; q. 100, t.lc,t'3c,a'6c,a'71'c'
77b 77b -ç.T. I-II, q. 100, a.1 1 c; veja também q' 90, a'2 ad 7.
18 S,T.I-II,or.94,a.6c;tambêma.2c;q.'99,a.2ad2;or700, aa.5 ad 1; q' 58, a.5c q.77 '2.2c;DeVeitate,q'76,2'3c'
42
JOHN FINNIS
gratifÌcações especíÍìcas etc.;1e pot exemplo, muitas pessoas (na época de Tomás e
hoje também) acham que a moralidade só diz respeito às relações interpessoais e
que "todas as pessoas são livres panfazer o que quiserem nas questões que só di-
zem respeito a elas mesmas",a"o passo que outÍas não conseguem veÍ que têm
obrigações para com outrem.20 E, em Íerceìro /ugar, extstem muitas questões morais
que só podem ser respondidas corretamente poí alguém que seja sábio e que as
tome profundamente em consider ação.2r
Assim, quando Hart interpõe que a concepção de "fìnal-idade ou bem hu-
manos pafao homem" que foi agasalhadapelos "expoentes clássicos" do direito
natuÍâl era "complexa", "discutível" e "questio flâveI" ,22 os expoentes clássicos te-
riam respondido que de fato era complexa, discutível e questionável, e que eles
haviam dado contdbuições bastante amplas ao debate.z3 Pois que o verdadeiro
problema da moraüdade, e do propósito ou signifìcado da existência humana, não
está em discernir os aspectos básicos do bem-estar humano, mas em integrar es-
ses vários aspectos em compfomissos, projetos e ações inteligentes e razoâveis
que contribuampàtz-compof uma ou outra das muitas formas admiráveis de vida
humana. E certamente nem todos podem veÍ essas coisas diretamente e por com-
pleto, muito menos pô-las em prâaca. O fato de que existe controvérsia não é um
afgumento contÍa um dos lados dessa controvérsia. Um requisito genuíno de ra-
zoabilidade prâttca não faz menos parte do direito natuÍal (para usar a expressão
cÌássica) apenas por não ser universalmente reconhecido ou seÍ contestado ativa-
mente.
Juììus Stone discerniu três "problemas decisivos entre os positivistas e os
advogados especialistas em direito natural" e um deles era o seguinte: "Terão fos
advogados especialistas em direito natural] o direito de alegar que o que aftmam
ser evidente por si mesmo deve set reconhecido por todos como evidente por si
mesmo?"24 A formulação desse problema é confusa: a alegação pertinente seria
"que o que eles assevefam ser evidente por si mesmo é fou deveria ser?] reconhe-
cido como uerdadeìra por todos". Pois o que é importante em uma proposição evi-
dente por si mesma é que as pessoas (com a experiência Íelevante e o entendimen-
.ç.T I-II, q. 100, a.1c (a tazão nzttral de qualquer um pode imediatamente apreender que não se deve rou-
l:z{; q.94, a.4c, 6c (mas povos inteiros deixaram de percebet que o roubo ou o banditismo são errados).
-ç.T. I-II, q. 100, a.5 ad 1; li-li, q. 722, a.7c.
-t.T. l-ll, q. 100, a.tc, a.3c. a.l lc.
Concept af Law,p.787.
Y eja, eg., Nic. Eth. I, 5: 1 095b14-1 0 96'10;Ead. Etb. I,5: 1215b15-1276a70i e S.T' I-II, q 2, aa'1 -6, sobre as
alegações de riqueza, honra, reputação, poder, bem-estar físico e prazer, respectivamente, serem os bens
unificadores da existência humana. A existência de "controvérsia" e "discussão" a respeito dos frns útimos
da existência humana é um tópico de .t.T. l-II, q. 1, a'7; também I, q 2, a.7 ad 1.
Stone, Hunan law and Hman Jusrtre, p. 272.
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]MAGENS E oBJEçoES
to dos termos) concordam com ela sem precisar de provas do argumento; não im-
porta absolutamente se, além disso, reconhecem que eia pertence à categoria filo-
sófica relativamente sofìsticada de "evidente por si mesmo". Mas, mesmo que
corrijamos a formulação de Stone de acordo com o exposto acíma, ela continua
sendo um não-problema, oltra imagem imagSnârta da teoria do direito natural.
Próximo do comecinho da tradição de teotizat sobre o direito natural,
descobrimos que Aristóteles é bem explícito quanto ao fato de a ética só poder ser
discutida proveitosamente com pessoas maduras e experientes, e a idade ser uma
condição necessária mas não sufìciente para 
^ 
maturidade requerida.z5 Ele não
atribui explicitamente ser evidente por si mesmo, ou a indemonstrabilidade ou o
status axiomâtico a quaisquer princípios éticos ou práticos, embora tÍate ceÍtas
coisas como estândo além de questionamento: por exemplo, que ninguém iria de-
sejar atingir a "fel-icidade" ao pteço de perder sua identidade.26 Tomâs, poÍ outÍo
lado, examina o que é evidente por si mesmo, caso úadvzamos proposìtio per se nota
como "proposição evidente por si mesma".Mas,pace Stone, a discussão feitapot
Tomás inicia salientando que, embora algumas proposições sejam evidentes por si
mesmas para "todo mundo", já que todo mundo entende seus teÍmos, outfas pÍo-
posições só são evidentes por si mesmas para os "sábios", jâ que apenas os relati-
vamente sábios (ou cultos) entendem o que significam.27 EIedá dois exemplos do
segundo tipo de proposição evidente por si mesma, tirados do campo da filosofia
especulativa; um deÌes é que "um ser humano é um ser racional", e o outro é que
"um espírito desencarnado não ocupa espaço". Depois, eIe fala sobre princípios
pré-morais evidentes por si mesmos, que mais tarde ele chama de communìssìma,
sem, infelizmente, indicar qual deles - se é que algum é - ele acha ser evidente por
si mesmo apenas para os relativamente sábios. Um exemplo talvez

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