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Violência contra a criança e o adolescente_ Exploração Sexual Infanto Juvenil e Prostituição Infantil (monografia)

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FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO 
PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO 
BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS 
Violência contra a criança e o 
adolescente 
Exploração Sexual Infanto­Juvenil 
Prostituição Infantil 
CUIABÁ/MT 
2008
2 
BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS 
Violência contra a criança e o 
adolescente 
Exploração Sexual Infanto­Juvenil 
Prostituição Infantil 
Monografia  de  Especialização  em 
Direito  da  Criança  e  do 
Adolescente. 
Orientador: Prof. Ms. José Antonio Borges 
CUIABÁ/MT 
2008
3 
BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS 
Violência contra a criança e o adolescente 
Exploração sexual infanto­juvenil 
Prostituição Infantil 
Monografia  apresentada  à  Fundação 
da  Escola  Superior  do  Ministério 
Público  do  Estado  de  Mato  Grosso 
como exigência parcial para obtenção 
do Título de Especialista em Direito da 
Criança e do Adolescente. 
Aprovada pelos membros da banca examinadora com 
menção_______ 
(_____________________________________________________) 
BANCA EXAMINADORA 
_____________________ 
Orientador: Prof. Ms. José Antonio Borges 
Fundação Escola Superior do Ministério Público/MT 
__________________ 
Integrante: Prof. 
...................................................... 
__________________ 
Integrante: Prof. 
...................................................... 
Data de Aprovação ____/_____/_____
4 
DEDICATÓRIA 
Aos  meus  netos:  Ale  Guilherme  Arfux 
da Costa Ribeiro (in memorian), Antonia 
Arfux  Taques  e  Rafael  Vicente  Arfux 
Taques
5 
“É a partir dos que sofrem, dos 
que  estão  marginalizados  (as) 
que  devemos  formular  valores. 
São estas pessoas que através 
de  sua  dor  indicam  os 
caminhos em vista de uma vida 
mais  justa  ou  em  vista  da 
restauração da vida” . 
(Serviço da Mulher Marginalizada)
6 
RESUMO 
O  tema  da  violência  é  cada  vez  mais  freqüente  nas  publicações 
periódicas e científicas. A violência cresce assustadoramente e ainda  não se 
reconhece, com precisão, as causas que a antecedem. Esta problemática está 
relacionada a  outra mais específica, porém não menos importante. Trata­se do 
grave problema que vive a sociedade moderna atual, denominado Exploração 
Sexual Infanto­Juvenil. 
A  prostituição  e  a  exploração  infantil  são  realidades  disseminadas  em 
todo  o  mundo.  Entre  os  fatores  que  levam  à  alta  incidência  da  prostituição 
estão, além da miséria, as tradições sócio­cultural e as pressões exercidas pela 
mídia. 
A cultura coronelista sempre esteve presente na valorização de práticas 
sexuais como  o  incesto,  a  preferência  de  sexo  com meninas  e  a  separação 
entre  a  mulher  doméstica  das  “outras”.  Este  pensamento  leva  ao  crescente 
número de usuários que fortalecem o surgimento e a manutenção das redes de 
exploração  sexual  de  crianças  e  adolescentes.  Geralmente,  as  meninas  da 
classe social menos favorecida têm uma iniciação sexual no seio da família. E, 
as instituições que poderiam reverter essa situação são ausentes nas questões 
preventivas, bem como na orientação sexual dessas crianças e adolescentes. 
Entretanto,  são  inúmeros  os  projetos  nessa  área,  o  que  falta  –  além  da 
conscientização da sociedade – é o interesse por parte do Estado em trabalhar, 
efetivamente, essas questões. Os fatores que impulsionam o quadro da prática 
da  prostituição  têm  contornos  definidos.  Os  estudos  realizados  na  área 
quantificam  e  categorizam  as  diferentes  formas  de  exploração,  abuso  e 
exploração sexual infanto­juvenil. As pesquisas citam a quantidade de 500.000 
meninas  prostituídas,  número  este  que  coloca  o  Brasil  em  segundo  lugar  no 
mundo, superado apenas pela Tailândia. 
Somos da opinião de que a gravidade do problema social ora trabalhado 
pode  se  resolver  conhecendo  as  causas  sociais  que  os  provoca,  buscando 
soluções de diversas formas.  Apesar de que as mais diferentes áreas como a 
Sociologia, Psicologia, Ética, etc., ao estudar o problema ainda não chegaram 
a uma  resposta conclusiva. Dessa  forma, somos  favoráveis que em  todos os 
casos a investigação multidisciplinar deve ser realizada. 
No presente  trabalho consideramos de grande  importância a abordagem 
teórica  e  prática  do  problema  referente  à  exploração  e  ao  abuso  sexual  da 
população  infanto­juvenil,  desde  a sua  perspectiva  e  a  prática  da  busca dos 
direitos.  Na  realidade,  sabemos  que  existem  comportamentos  “sociais”  que 
ainda não estão caracterizados como delitos, a Pornografia, por exemplo. 
Existem  fatores  e  aspectos  teóricos  que ainda  precisam  ser  elaborados 
com a finalidade de vincular (melhor), a lei com a realidade social e garantir a 
prática dos Direitos Humanos ligado ao respeito à pessoa humana, garantindo­ 
lhe a liberdade de seus direitos. 
Violência – Direitos Humanos ­ Exploração e Abuso Sexual – Prostituição
7 
ABSTRACT 
Each  day,  becomes  amore  frequent  issue  in  periodical  and  cientific 
publications. Violence grows and still  its  causes are not well  recognized. This 
difficulty  is  related  to another whuch, although not more specific,  it  is not  less 
imortant.  It  is  the  serious  problem  our  modern  soity  lives  –  Infant  –  Juvenil 
Sexual Exploitation. 
Prostitution  and  infant  explotation  are  disseminated  realities  all  over  the 
world. Among  the  factors  which  bring  a  rise  to  the  prostituion  incidence  they 
are,  besides  mesery,  the  social.  And  cultural  traditions  and  the  pressions 
exercised by the midia. 
The presence of the patriarcal culture continues in the sexual practices as 
family, incest, preference of Sex with girls and the separation between the wife 
and other womwn.  With this factor underlining the present situation, the great, 
number  of  consumers  strengthens  emergence  and  maintenence  of  the  girl 
sexual exploitation network. Generally, girls from the lowest social classes have 
a violent sexual iniciation in their family. The instituions which could change this 
situation  are  absent  in  the  prevention  and  the  children  sexual  orientation. 
Although  there  is  a  great  number  of  projects  in  this  area,  there  is  a  lack  of 
concientization from the soiety, application of these projects from the state. The 
factores  which  push  the  prostitution  practices  assume defined  shapes.  There 
are  recent  quantitatives  studies  which  classift  rhr  different  forms  of  infant  – 
juvenil prostitution.  A  lot was said about quantifyng  the prostitution girls were 
mentioned,  number  which  positiones  Brazil  in  the  word’s  second  place,  only 
behing Tayland. 
In our opinion, the seriosity of the social problem aluded can be resolved 
by  knowing  the  social  causes  which  provoke  them  and  by  questioning  other 
their causes, we could say that we do not have get complete answers from any 
of the sciences which study the problem, like Soliology, Ethics, Psicology, etc. 
Worst it would be to try to final in Politics any solutions for these problems. 
We considere that a miltidiciplinar investigations of the subject should be done. 
In this study, we considere actual and of great teorical, meodological and 
pratical importance to appoach the Infant – Juvenil Sexual Exploitation Problem 
from the perspective and practice of the Law. 
The reality that there are criminal social behaviors and practices which are 
not  yet  labeled  as  infraction  and,  the  negligence  from  the  part  of  social  and 
public institutions – from when it comes to the exercise lf the Law difficults the 
fight against these practices. 
These are technical factors and aspects which still need to be elaborated 
as  to  vinculate  beteer  the  Law  to  the  social  reality  and  to  ajust  the  social 
practice to the Humam Rights, related to the beings, their freedon and rights. 
Violence ­ Right Human  ­ Exploration and Sexual Abuse ­ ProstitutionABSTRACTO
8 
El  tema  de  la  violencia  es  cada  vez  mas  frecuente  en  publicaciones 
periodicas y cientificas. És cierto que la violencia cresce y a ún no se reconoce 
com  precisión  las  causas  que  conceden  a  ella.  Esta  problemática  está 
relacionada  com  outra  que,  a  ún  mas  especifica  no  es  menos  importante. 
Tratase del grave problema que vive la sociedad moderna actual, denominado 
Exploración  Sexual Infancia – Juvenil. 
La  prostitución  y  la  esploración  infantil  son  realidades  diseminadas  en 
todo  el  mundo.  Entre  los  factores  que  llevan  a  la  alta  incidencia  de  la 
prostitución  estan,  fuera  de  la  miseria,  las  tradiciones  socio­culturales  y  las 
presiones ejercidas por la midia. La cultura coronelista se mantiene presente en 
la valorización de prácticas sexuales como el  incest  familiar,  la preferencia de 
sexo com niñas, y  la separación entre  la muyer doméstica y  las “otras”. Com 
esta armación es grande el número de usuarios que fortalece el surgimiento y 
la manutención de    las  redes de exploración sexual de niñas. En general  las 
niñas de los segmentos mas pobres tienen una iniciación sexual violenta en el 
seno  de  la  familia.  Las  instituciones  que  poderian  revertir  esa  situación,  se 
muestran  ausentes  en  la  prevención  y  orientación sexual  de  estos  niños,  no 
obstante haiga imnúmeros de proyectos en esa área, lo que falta es sin duda la 
concientización de  la sociedade, del estado par ala aplicación de  los mismos. 
Los  factores que  impulsan el cuadro de  la práctica de  la prostitución asumen 
contornos definidos. Existen estudios cuantitativos recientes que categorizan y 
estudian las diferentes formas de prostitución infania­ juvenil. Mucho se habla a 
especto de  la contidad de  la prostitución  de  uqe  tratamos. Diversos números 
fueron  sitados.  Llego  a  ser  mensionada  la  cantidad  de  500.000  niñas 
prostituidas,  cifra  que  colocaria  el  Brasil  en  segundo  lugar  en  el  mundo, 
superado apenas por Tailandia. 
Em  nuestra  opinión,  la  gravidad  del  problema  social  aludido  puede  ser 
resuelto, conociendo las causas sociales que las provoca y indagando las mas 
posibles para su solución. Apesar de que, en defirentes áreas, se  intenta dar 
una  respuesta  sobre  las  causas  del  mismo,  podemos  decir  que  a  ún  no 
tenemos  repuestas  completas  en  nunguna  de  las  ciencias  que  studian  el 
problema, como  la Soliologia,  la Ética,  la Psicologia, etc. Tan poco  la politica 
tiene  encontrado  solución  para  estos  problemas.  Em  nuestra  conciencia, 
consideramos  que  a  investigación  multidisciplinar  del  mismo  deve  ser 
realizada. 
En  el  presente  trabajo,  consideramos  actual  y  de  grande  importancia 
teórico  metodológica  que  práctica  y  aborda  el  problema  de  la  Exploración 
Sexual Infancia­Juvenil desde la perspectiva y la práctica del derecho. 
La  realidad  que  tenemos  delante  de  los  ojos  y  que  existen  actos  y 
comportamientos solicales criminosos que a ún no estan caracterizados como 
delitos, bien como existe negligencia por parte de instituciones sociales y de los 
poderes públicos, en la que se refiere el ejecicio de la ley que, debilita la lucha 
contra tal proyecto. Existen factores y aspectos técnicos que a ún precisam se 
elaborados com el  fin de vncular mejor  la  ley com  la  realidad social  y ajustar 
mas  la  práctica  social  al  Derecho  Humano,  ligado  al  respecto  a  la  persona 
humana, la mayor libertaad de sus derechos. 
Violencia – Derechos Humanos ­ Exploración y Abuso Sexual ­ Prostitución
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LISTA DE SIGLAS 
AIDS – Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida 
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito 
C.F. – Constituição Federal 
EUA – Estados Unidos da América 
NCCAPR – Nacional Center on Child Abuse Prevention Research 
FAI – Federação Abolicionista Internacional 
FEBEM – Fundação do Bem–Estar do Menor 
CUT – Central Única dos Trabalhadores 
OIT – Organização Internacional do Trabalho 
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância 
ONG´s – Organizações não Governamentais 
AIJD – Associação Internacional de Justiça e Direito. 
DPCA – Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente 
CRIAD – Conselho Estadual dos Direitos da Criança. 
G.D.F. – Governo do Distrito Federal 
CEDCA – Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. 
PROSOL – Promoção do Bem–Estar Social 
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente 
AMENCAR – Amparo ao Menor Carente 
EMBRATUR – Empresa Brasileira de Turismo 
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes 
CDCA – Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente. 
TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo. 
CEBRID – Centro Brasileiro de informações sobre drogas e Psicotrópicos 
CP – Código Penal 
FORUM DCA/MT – Fórum Estadual de Defesa dos  Direitos da Criança e do 
Adolescente 
CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente 
FUNABEM – Fundação Nacional do Bem ­ Estar do Menor
10 
SUMÁRIO 
Dedicatória 
Resumo 
Abstract 
Lista de Siglas 
Sumário 
1.0 – 
Introdução...............................................................................................12 
1.1 – Histórico............................................................................................14 
1.2 – A Violência de Gênero no Âmbito dos Direitos Humanos...............20 
2.0 – Desenvolvimento.................................................................................22 
2.1 ­ Dos Direitos Humanos.......................................................................22 
2.1.2 ­ Dos Direitos da Criança e do Adolescente......................................23 
2.1.3 ­ Da Tutela Jurisdicional...................................................................27 
2.2 ­  Violência Infanto­Juvenil..................................................................29 
2.3 – Da Prostituição  ................................................................................38 
2.3.1 ­ Considerações Iniciais sobre a Prostituição....................................38 
2.3.2 ­ Formas de Iniciação e Condições de Vida na Prostituição.............42 
2.4 ­  Prostituição Infanto­Juvenil..............................................................44 
2.4.1 – Análises Comparativas – Prostituição em Fortaleza......................49 
2.4.1.1 ­ A Prostituição no Estado do Espírito Santo.................................51 
2.4.1.2 ­ A Prostituição no Estado de Mato Grosso...................................52 
2.4.1.3 ­ A Prostituição em Cuiabá............................................................55 
2.4.2 ­ Do Turismo Sexual Infantil............................................................56 
3.0 – Da Prevenção da Violência Sexual......................................................60 
3.1 ­ Como Intervir e Prevenir a Exploração e a Violência Sexual............62 
3.1.2 – Da Educação Sexual Preventiva.....................................................63 
3.2 – Conseqüências...................................................................................63 
3.2.1 ­ Das Doenças Sexualmente Transmissíveis.....................................64 
3.2.2 ­ Alcoolismo Precoce........................................................................66 
3.2.2.1 – O Álcool na Adolescência...........................................................67 
4.0 ­ Do Sistema da Justiça...........................................................................68
11 
4.1­ Do Sistema Jurídico............................................................................68 
4.1.2 – Da Proteção do Estado à Criança e ao Adolescente......................69 
4.1.3  –  Estatuto  da  Criança  e  do  Adolescente:  Um  Instrumento  na 
Construção de uma Sociedade  Cidadã.........................................70 
4.2 ­ Do Sistema Político............................................................................734.2.1 ­  Instituições Repressivas: O Caso da Polícia Civil.........................73 
4.2.2 ­ A Realidade Brasileira....................................................................74 
5.0 – Considerações Finais...........................................................................76 
6.0 – Bibliografia..........................................................................................78
12 
1.0 – Introdução 
A  violência  cresce  assustadoramente  no  mundo  todo.  Em  cada  país,  os  que 
trabalham com saúde, bem­estar, educação, etc., assim também como os representantes 
dos  governos  têm  expressado  sua  preocupação  com  a  violência  crescente,  e  se  têm 
comprometido a empenhar­se em ações para resolvê­la. No entanto, todos nós sabemos 
que  a  real  solução  destes  problemas  tão  complexos  requer  mudanças  que  sejam, 
igualmente,  profundas.  Tivemos  a  oportunidade  de  estudar os  problemas  das  pessoas 
que  vivem  em  situação  de  conflito  ou  que  vivenciam  tipos  de  violência.  Convém 
assinalar  que  mulheres  e  crianças  não  são  grupos  “especiais”  nessas  situações.  Por 
várias  razões, mulheres e  crianças são alvos de violência, principalmente da violência 
sexual, e da exploração sexual infanto­juvenil. Se olharmos a nossa realidade, a situação 
é  ainda  mais  complexa,  pois  não  estamos  apenas  diante  de  casos  esporádicos  que 
privilegiam uma faixa etária em detrimento de outras. O que se constata é que camadas 
populacionais  inteiras  são  excluídas  por  um  sistema  político­econômico perverso  que 
resguarda a poucos o direito de tudo possuírem, ainda que esta posse resulte em fome, 
doenças e a falta de habitação para milhões de cidadãos brasileiros, ou melhor, para os 
quase­cidadãos  ou  semi­cidadãos,  pois  no  conceito  de  cidadania  não  está  somente  o 
direito/obrigação  de  votar,  mas  todos  os  direitos  e  deveres  inerentes  à  vivência 
comunitária  na  polis,  como  trabalho,  casa,  alimentação,  escola,  saúde,  etc.  E  nesse 
contexto é exatamente a criança a que mais sofre. Primeiro por não ter condições de se 
auto­defender, sendo vítima fácil da desnutrição e de todas as doenças, o que resulta em 
um elevado índice de mortalidade infantil. Desde pequena, a criança é jogada no mundo 
adulto, sendo explorada em sua força de trabalho, ficando distante dos bancos escolares, 
crescendo um  adulto  inabilitado para os  requisitos  de mão­de­obra  especializada. Há, 
ainda, outras formas de exclusão, tais como a permissão de participarem de programas 
impróprios,  pelo  seu  caráter  nocivo  (que  violentariam  uma  premissa  básica  de  serem 
sujeitos  em  processo  de  desenvolvimento  e,  portanto,  merecedores  de  cuidados 
especiais),  além de outras circunstâncias  em que o  envolvimento da criança  não seria 
saudável, tanto para a criança e o/a adolescente como para os seus genitores. Há que se 
buscar  mecanismos,  sobretudo,  como  um  estilo  de  vida,  senão  alternativo,  mas  no 
mínimo  diferenciado  do  senso  comum  no  qual  o  mundo  adulto  relega  à  criança  um 
papel secundário, um submundo de completo descaso. 
A  análise  da  problemática  da  infância  tem  que  ser  entendida  num  contexto 
globalizante da situação do ser humano Desta forma é importante colocar quais são os 
principais problemas que afetam os habitantes do mundo de hoje. Fazer  frente a  isto, 
avaliando as possibilidades críticas de êxito e também os desafios de uma ação contínua 
em  favor  da  infância  e  da  juventude,  necessário  se  faz  esclarecer  que  todos  os 
problemas conforme se detalham, possuem seu próprio caráter e sua profundidade de se 
manifestar,  que não são  idênticas às  conseqüências dessas para a  humanidade em seu 
conjunto  e  para  seus  diversos  grupos  sociais.  Os  problemas  globais  que  afetam  a 
humanidade  vão  desde  a  necessidade  de  impedir  o  atraso  dos  países  em 
desenvolvimento  à  eliminação  de  revoltantes  injustiças  sociais  até  garantir  o 
desenvolvimento equilibrado entre o crescimento demográfico e a dinâmica de oferecer 
alimentos, recursos energéticos, matérias­prima e um efetivo cuidado de meio natural e, 
finalmente o problema do desenvolvimento do homem e da garantia de um futuro digno 
para  ele.  Para  entrarmos  na  análise  a  que  nos  propomos,  retrataremos  alguns  dos 
grandes  problemas  sociais,  tais  como  o  problema  alimentar  que  resulta  de  difícil 
solução,  o  mesmo  que  está  relacionado  intimamente  com  o  desenvolvimento 
demográfico. Durante  os  três  primeiros  quartos do  século,  a população  aumentou  2,6
13 
vezes,  e  a  produção  agrícola  se  desenvolveu  somente  2,8  vezes.  Ocasionando  500 
milhões de pessoas que sofrem de fome crônica e alimentação insuficiente. Mais de 100 
milhões  de  seres  humanos  se  alimentam deficientemente. Durante  os últimos 25  anos 
deste  século,  conforme  cálculos moderados,  a  população  aumentou  em mais  de  60% 
(635 milhões até o ano 2.000). De acordo com as projeções feitas pela ONU (2001), a 
população  mundial  crescerá  em  52%  passando  para  9,3  bilhões.  Como  podemos 
vivenciar  esse  crescimento  populacional,  inevitavelmente,  tem  provocado  um  rápido 
crescimento  no  volume  de  procura  dos  alimentos.  O  diretor  geral  da  FAO,  Jacques 
Diouf, pediu à comunidade internacional não só que atue de imediato para solucionar a 
atual crise alimentar mundial, mas também que aproveite a oportunidade que constitui o 
aumento dos preços dos alimentos e  se evite que esta  situação dramática  se repita no 
futuro 1 .  No  entender  Diouf,  “chegou  o  momento  de  relançar  a  agricultura,  e  a 
comunidade internacional não deveria perder a oportunidade” 2 . 
A formação de cidades de várias dezenas de milhões de habitantes acarreta graves 
problemas  tanto  na  provisão  de  serviços  básicos  como  nas  condições  de  vida  das 
pessoas:  emprego,  assistência  médica,  água  potável,  alimentos.  Em  todo  o  planeta  o 
número da população urbana pode chegar a superar os três bilhões de pessoas. A esses 
problemas se somam outros como os que estão relacionados com os valores humanos e 
particularmente entre adultos, crianças e adolescentes. Justamente neste quesito é que se 
concentra  a  especificidade  da problemática que  abordamos, qual  seja,  o  abuso  sexual 
como  uma  forma  crua  de maltrato  que  interrompe  o  desenvolvimento  harmônico  da 
criança  e  a  possibilidade  a  que  ela  escolha  de  per  si  o  desenvolvimento  de  sua 
sexualidade. 
Resulta  reivindicar os direitos subjetivos e  não somente os direitos objetivos. O 
maltrato é um fenômeno integrado de ações que lesam os direitos das crianças e dos/as 
adolescentes onde quer que estejam desde os círculos mais particulares até o contexto 
geral  da  sociedade  e  do  Estado.  Dessa  forma  a  sociedade  é  deteriorada  quando  as 
condições dos pobres impedem a família de satisfazer as necessidades básicas de seus 
filhos.  O  Estado  é  deteriorador  quando  não  define  políticas  orientadas  à  proteção  da 
criança e da família, quando não prioriza suas descobertas na área social ou quando no 
aparato  legal  introduz postulados  coercitivos  e  práticas  punitivas  que  geram violência 
contra  os  menores  de  idade.  O  abuso  sexual  tem  aumentado  progressivamente  pelas 
trocas na estrutura familiar devido ao crescimento da taxa de divórcios, pais/padrastos 
que  abusam  de  crianças  e  adolescente  os  quais,  segundo  a  ciência,  quando  adultos 
transformam­se, também, em abusadores. Outro fator é a nociva influência dos meios de 
comunicação no comportamento social e bem podem ser qualificados, em muitos casos, 
como motivadores ou indutores para atividades sexuais precoces. 
Veremos neste  trabalho que as crianças e adolescentes do  sexo  feminino  (muito 
embora, os do sexo masculino, também sejam alvos) são presas fáceis da exploração, doabuso  e  da  violência  que  atingem  seu  corpo,  seu  sexo  e  seu  ser.  Trata­se  das 
circunstâncias  que  fazem  parte  da  realidade  da  vida  de  toda  a  população  pobre:  a 
menina, no entanto, por sua múltipla vulnerabilidade – por ser criança, por ser mulher e 
também por ser pobre – é, entre todas as que se encontra em situação de mais alto risco. 
1 In Agraportal. 02/05/2008. 
2 Idem.
14 
1.1­ Histór ico 
Resgatando  a  figura  das  crianças  na  história da  humanidade, observamos que  a 
sua  presença  é  praticamente  nula,  quando  não,  é  recebedora  de  algumas  atenções  e 
cuidados,  pelo  seu  status  enquanto  filho  (a)  de  nobre,  de  castas  especiais,  como 
aconteceu durante a idade antiga. Os estudos históricos sobre a criança e o adolescente 
são muito recentes. Iniciaram­se na década de 60 e se difundiram na década de 70. Estes 
estudos estão fundamentados em diversas fontes: decretos, livros de leis, prescrições da 
igreja,  códigos,  escritos  filosóficos,  escritos  religiosos,  registros  oficiais,  estudos 
demográficos, estudos epidemiológicos e  testemunhos por registros que se baseiam na 
vida de uma  família  (em geral  aristocrática) ou de uma comunidade, em determinado 
momento da história. O reconhecimento da criança como ser diferenciado dependeu dos 
modelos de cultura e dos fatores demográficos, da freqüente mortalidade e do inevitável 
desaparecimento (à mercê do azar), que criava uma indiferença para estes seres frágeis 
com quem  ninguém  queria  se  identificar  nem  se  vincular.  Eram  considerados  com  a 
mesma  ambigüidade  que  o  feto,  e  não  se  avaliava  o  nascimento  como mudança  de 
natureza importante. Segundo Ariés: “não se pensava que esta criança continha já toda 
uma pessoa humana, como cremos habitualmente hoje” 3 . Aristóteles atribuiu à criança 
uma avidez doentia, próxima à loucura. Concedeu­lhe, apesar disto, disposições naturais 
para a virtude ao afirmar que a criança é um ser  irracional carente de entendimento, e 
por capacidades inatas pode adquirir a razão, do pai ou do educador. Hipócrates propõe 
como natural de saber a que crianças convêm educar. Justino, o Santo que viveu entre 
100  e  165  da  era  cristã,  avocando  o  respeito  dos  cristãos  pela  vida  da  criança, 
especificava  ser  esta  fútil  recém­nascida.  Santo Agostinho não  assinala  à  criança, um 
estado de inocência, ao contrário, considera­a um ser de natureza corrompida que não 
pode  ser  salva  a não  ser  com o auxílio  vindo dos  céus.  E  afirma que  se deixarmos o 
menor fazer o que lhe apraz, não há nenhum crime em que não se o veja precipitar. A 
criança  e  o/a  adolescente  durante  os  séculos  suscitaram  desconfiança  e  rechaço.  A 
tradição  do  infanticídio  estava  tão  estabelecida  que  conseguiu  se manter  abertamente 
durante vários séculos, depois da conversão ao cristianismo, até praticamente, ao final 
do  século XVIII. Era  praticado  com  freqüência  não  desdenhável,  já  que  as  tradições 
culturais não ofereciam aos cônjuges outros meios mais cômodos e eficazes para limitar 
sua  descendência  e  porque  a  pessoa  da  criança  não  estava  ainda  verdadeiramente 
sacralizada e tampouco suscitava, em princípio, respeito e amor. À mortalidade infantil 
em  massa,  imputável  pelas  condições  sanitárias  antigas,  se  acrescentava  uma 
mortalidade  imputável  pela  negligência  e  descuido.  O  abandono  da  criança  em  plena 
natureza,  sem  condições  de  viver,  a  incapacidade  dos  pais  em  alimentar  seus  filhos, 
descuidos  e  incidentes  como  a  asfixia  na  cama,  desmame  precoce  ou  negação  de 
alimentos  eram  as  razões  mais  freqüentes  do  infanticídio.  Com  raras  exceções,  nos 
escritos encontrados a criança sempre foi negligenciada pelos meios. No entanto, alguns 
registros da inquisição, como da época do Papa Avignon, Benedito XII (1318­1325), o 
nascimento do filho é cultural e afetivamente vivido, especialmente quando o filho era 
do  sexo masculino  (primogênito),  e  de  origem  aristocrática.  Isto  faz  com que  não  se 
possam generalizar as atitudes hostis em épocas tão longas e em culturas muito diversas. 
Entre os nobres e os ricos, o afastamento dos filhos do ambiente da família, para serem 
criados no campo com nutrizes substitutas é o modelo encontrado na história de vários 
países  como  a  Inglaterra,  França  e  Espanha.  Mesmo  os  príncipes  tinham  famílias 
substitutas, onde mamavam no seio nutriz até os dois ou três anos e ficavam por mais 
3 ARIÉS, Philippe. História da Criança e da Família. p. 276.
15 
tempo,  praticamente  até  o  período  quando  já  passavam pelas  doenças  infantis,  como 
sarampo,  catapora,  coqueluche  e  outras  que  dizimavam  as  crianças.  Sobrevivendo, 
voltavam às suas famílias, onde passavam a ser considerados como pequenos adultos. 
Podemos dividir a história das crianças de acordo com as reações psicológicas dos 
adultos, especialmente a dos pais frente a elas, cuja classificação se deu seis épocas e 
conforme os pais projetam suas emoções: 
•  Modo  Infanticida  –  que  se  estende  desde  a  antigüidade  até  o  século  IV  da  era 
cristã,  no  qual  o  rechaço  está  em  primeiro  plano.  Na  dificuldade  de  cuidar  dos 
filhos, pela ansiedade, os pais os matavam. A imagem de Medéia não é um simples 
mito, mas o reflexo da realidade; 
•  Modo de Abandono – do século IV ao século XIII, corresponde a um período no 
qual os pais começam a aceitar que a criança tenha alma; 
•  Modo Ambivalente – do  século XIV ao XVI, quando a criança era autorizada a 
penetrar  na  vida  emocional  de  seus  pais,  mas  poderiam  ser  perigosas.  Os  pais 
tratam de moldá­las como patrão; 
•  Modo  Intrusivo  –  século  XVIII,  é  uma  época  de  grande  transição.  Os  pais 
começam a se aproximar da criança e ensaiam a conquista de seu espírito, com a 
possibilidade de verdadeira empatia, sem dar importância ao amor; 
•  Modo Social – do século XIX até meados do século XX. A educação passa a ser 
importante. Ela  é menos  um processo  de  conquista  que  um  guia  em  seu  próprio 
caminho. Educação com amor se torna o binômio importante; 
•  Modo de Ajuda – os pais compreendem que os filhos sabem melhor do que seus 
pais  aquilo  que  necessitam  em  cada  idade  da  vida.  A  criança  empurra  seus  pais 
(quando os têm) a tratar de compreender suas necessidades particulares. 
O fenômeno das relações violentas entre pais e filhos talvez tenha estado presente 
desde os  primórdios da  raça  humana. Entretanto,  foi  somente  no  século XX que  este 
fenômeno foi estudado amplamente por diversos  ramos do conhecimento. Em meados 
do  século  XIX  começa  a  se  esboçar  uma  preocupação  com  a  criança,  ou  seja,  ela  é 
descoberta como um ser humano autônomo, percebendo­se com mais profundidade seus 
valores, seus sentimentos. 
Novas  ciências  como  a  Psicanálise,  a  Pediatria,  a  Psicologia  passaram  a  se 
consagrar aos problemas desta etapa da vida, a tal ponto que Ariés chega a dizer que “o 
mundo atual é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância” 4 . A era 
contemporânea marca uma acentuada intervenção do Estado na vida familiar. 
Com Revolução Francesa  e as Constituições baseadas no Código 
Civil  de  Napoleão,  com  a  teoria  da  res  publica  e  com  o 
reconhecimento da cidadania do operariado, a criação e a educação 
dos  menores  —  futuros  cidadãos  —  tornou­se  responsabilidade 
pública. 5 
Isto  vinculou  as  crianças  ao  Estado,  que  começou  a  exigir  dos  pais  deveres  e 
obrigações. As crianças passaram a ser encaradas como pessoas, ou seja, cidadãos em 
formação. Alguns movimentos podem ser percebidos, a partir daí na sociedade burguesa 
em termos da constituição e da destituição do poder familiar. Num primeiro momento, 
os  pais  são  destituídos  deste  poder  sobre  o  filho,  uma  vez  que  a  ele  é  atribuída  uma 
existência pública desde o nascimento.Num segundo momento, o Estado devolve aos 
pais o poder sobre o filho, consagrando­lhes a tarefa de zelar pela educação da criança, 
4 Op. Cit. p. 276. 
5 SIMÕES, Carlos. A família e a propriedade no Código de Menores. p.85
16 
e, num terceiro momento o Estado pode, ainda, confiscar o “pátrio poder” sob diversas 
circunstâncias,  principalmente  no  caso  específico  de  serem  constatadas  ameaças  à 
integridade  física da criança advinda de seus próprios pais. O Estado se organizou de 
forma a tomar conhecimento dos casos de violência imposta às crianças, estabelecendo 
medidas  compatíveis.  A  criança  é  um  fenômeno  moderno,  pode­se  observar  que 
numerosos ramos da Ciência começaram a se preocupar com ela e, evidentemente com 
o  fenômeno  da  violência  a  que  ela  possa  estar  sujeita  em  seu  ambiente  familiar. 
Geralmente  o  termo violência  tem  sido  empregado  em diversas  ciências  como Física, 
Direito,  Moral  e  Filosofia.  No  entender  de  Daniel:  “referir­se  a  situações  de  força 
(sobretudo de procedência exterior à pessoa que a sofre) que se opõe à naturalidade, à 
responsabilidade jurídica, à liberdade moral, etc.” 6 . 
Doutrinadores outros entendem,  também, como a:  “força material,  ativa,  vertida 
para o exterior e causa de prejuízo  físico.  Implica  a  relação energia  física — prejuízo 
físico” 7 . O estudo das relações violentas entre pais e filhos sempre é tratado com certo 
pudor. Este é mais um dos “temas malditos” na medida em que, ao abordá­lo,  se está 
desvelando uma  face  que  a  família  tem  todo  interesse  em manter oculta, preservando 
assim  sua  imagem de  “santuário”.  Por outro  lado, o  estudo do  fenômeno  envolve um 
componente  ameaçador  para  seus  protagonistas  pelas  conseqüências  que  acarreta  na 
legislação  (criminais para  os  agressores),  e possibilidade de  separação da criança  dos 
pais pelas vias de institucionalização, guarda por terceiros, adoção. 
A violência que os pais podem exercer contra os filhos, com fins pretensamente 
disciplinadores,  no  exercício  de  sua  função  socializadora  ou  com  outros  objetivos, 
assume três facetas principais: 
1. Física: quando a coação se processa através de maus tratos corporais (espancamentos, 
queimaduras  etc.)  ou  negligência  em  termos  de  cuidados  básicos  (alimentação, 
vestuário, segurança, etc.); 
2. Sexual: quando a coação se exerce  tendo em vista obter a participação em práticas 
eróticas; 
3.  Psicológica:  quando  a  coação  é  feita  através  de  ameaças,  humilhações,  privação 
emocional. 
As  crianças  estiveram  em  muitos  períodos  da  História  sujeitas,  desde  a  tenra 
idade, a todos os castigos e sanções destinados a adultos incluindo­se até a Pena capital. 
A  história  da  criança  tem  sido  também  a  história  de  um  mundo  de  violências 
perpetradas  contra  ela  na  forma  de  escravidão,  abandonos,  mutilações,  filicídio  e 
espancamentos.  Embora  se  saiba  que  a  violência  contra  a  criança,  perpetradas  nas 
formas acima descritas tenha explicações científicas que procuram correlacioná­la com 
o  contexto  sócio­econômico­político­cultural  em que ela  se  deu  (ou  se  dá),  como por 
exemplo, o filicídio, o trabalho infantil excessivo, etc.; o nosso objetivo será apenas o de 
descrever  alguns  tipos  de  violência  a  título  exemplificativo.  Estes mesmos  exemplos, 
ocorridos em épocas diversas e em contextos também diversos, servirão para provar o 
fato de que a violência contra a criança é um fenômeno presente na raça humana. Não 
foi nossa preocupação apresentar os exemplos de forma cronológica, mas sim, enquanto 
flashes de uma realidade, não importando o período em que estivessem ocorrendo. 
A Bíblia é um dos instrumentos valiosos para se verificar o quanto a perseguição 
às crianças é antiga. Nela são descritos os grandes massacres sofridos na infância, como 
é  o  caso  dos  meninos  judeus  jogados  ao  rio,  por  ordem  do  Faraó,  por  ocasião  do 
6 DANIEL, Eduvaldo. Fenomenologia Crítica da Violência Urbana. p. 127. 
7 FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer  &  FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aspectos jurídico­ 
penais da tortura. p.104.
17 
nascimento  de Moisés.  O mesmo  se  repete  em  relação  aos  primogênitos  egípcios  do 
Êxodo  e  na  matança  de  crianças  nascidas  em  Belém,  ordenada  por  Herodes,  em 
perseguição a Jesus. 
A sociedade espartana, por exemplo, decretava a morte das crianças portadoras de 
defeitos físicos, uma vez que eram consideradas inaptas aos objetivos guerreiros desta 
mesma  sociedade.  Na  antiga  Cartago  eram  freqüentes  os  sacrifícios  de  crianças  aos 
deuses.  Segundo  evidências arqueológicas,  estas  crianças  eram queimadas,  sendo que 
antes  desse  procedimento,  eram  imobilizadas,  utilizando­se  para  isso  de  drogas  ou 
mordaças,  e,  que  essa  prática  se  dava  não  só  por  motivos  religiosos,  mas,  também, 
econômicos. Estudando a história de Cartago, arqueólogos americanos perceberam que 
num  dado  momento  este  povo  parou  de  sacrificar  crianças  trocando­as  por  animais, 
voltando, entretanto, tempos depois, a oferecer de novo crianças aos deuses. Atribuíram 
estas  mudanças  ao  fato  de  que,  no  princípio,  os  cartagineses  tinham  uma  economia 
desenvolvida,  mas  uma  população  pequena,  sendo  que  não  era  conveniente  o 
desperdício  de  recursos  humanos.  Era  preferível  o  sacrifício  de  animais.  Entre  os 
romanos, em alguns períodos do seu império eram executados os varões portadores de 
deficiências  físicas  e  mentais,  bem  como  as  crianças  do  sexo  feminino,  sob 
determinadas condições. Em uma passagem das Metamorphoses, de Ovídio (Livro IX), 
isto se torna claro quando Litus ordena à mulher, no caso de dar à luz uma menina, que 
a mate: “Edita forte tuo fuerit si femina partu (invitus mando, pietas ignosce) necato” 8 . 
Na  idade  contemporânea  tem­se,  por  exemplo,  o  assassinato  de  crianças  na 
Alemanha nazista: 
As  crianças  condenadas  à  morte  eram  enviadas  a  uma  divisão 
infantil  (Goerden,  Eichberg,  Indstei  etc.).  Em  sua  maioria  eram 
envenenadas  com  fortes  doses  de  luminal,  drogas  administradas 
em colheres, como se fossem medicamentos, ou então, misturadas 
com  alimentos.  A  morte  ocorria  alguns  dias  depois  e,  às  vezes, 
semanas mais  tarde. Na  prática,  as  ordens  para matar  crianças  se 
multiplicavam,  incluindo  crianças  com orelhas  disformes,  as  que 
urinavam na cama, as que mesmo sendo perfeitamente sadias eram 
consideradas difíceis de educar. 9 
Posteriormente,  empregou­se  o  método  denominado  eutanásia  infantil,  que 
consistia em deixar as crianças morrerem de fome literal e deliberadamente nas divisões 
infantis.  As  mutilações  impostas  às  crianças  com  o  objetivo  de  convertê­las  em 
“mendigos profissionais” eram relatadas por M. Annaeus Sêneca, já na época de César. 
Este  mesmo  tipo  de  deformação  é  mencionado  como  existente  no  século  XVII  por 
Donzelot: 
Era  realizada  por  mendigos  que  as  compravam  direta  ou 
indiretamente, nos lugares de recolhimento que precederam à Ação 
de São Vicente de Paula ou na famosa Associação de Vagabundos, 
especializada em cirurgia teratológica, que eram os compra­chicos 
(literalmente compra­crianças). 10 
Outros  exemplos  podem  ser  citados  em  termos  de  abandono  de  crianças, 
registrados em diferentes sociedades. Os romanos as lançavam em cestos de vime junto 
ao  tronco  da  Figueira  Ruminal  ou  da  Coluna  Lactaria  no  Forum  Olitorium, 
8 CANTU, César. História Universal. p. 482. 
9 RASCOVSKY, Arnaldo.  O Filicídio. p. 163. 
10 DONZELOT, Jacques.  A Política das Famílias. p. 59.
18 
especialmente  nos  últimos  anos  de  seu  Império,  quando  o  número  de  crianças 
abandonadas  cresceu  de  forma  significativa.  Até  os  nossos  dias,  o  problema  do 
abandono  não  foi  resolvido,  aparecendo  intensamente  em  algumas  partes  domundo. 
Tomemos ainda como exemplo, a Inglaterra nos fins do século passado, onde crianças 
de  04  anos  de  idade  trabalhavam  em  fábricas  e,  a  partir  dos  08  anos  em  minas  de 
carvão, durante 16 horas diárias. 
Em 1817, na Inglaterra cerca de 6% de mortes violentas eram classificadas como 
infanticídios. Os maus  tratos  dirigidos  às  crianças  com fins  pretensamente  educativos 
têm antecedentes remotos. Essas violências sofreram sanções diversas que surgiram na 
forma de legislação específica destinada a salvaguardar a vida das crianças. Para tanto, 
basta que  rebusquemos a  história desde a Antigüidade até  a  Idade Contemporânea. O 
Código  de  Hamurabi,  as  inúmeras  determinações  dos  imperadores  romanos,  a 
introdução dos mais diversos tipos de penalidades para os que maltratam crianças até a 
legislação  atual,  espelham  a  necessidade  de  diferentes  sociedades  em  termos  de 
estabelecer  normas  disciplinadoras  da  violência  contra  a  criança,  qualquer que  seja  o 
tipo desta violência. 
A  violência  sexual  não  é  objeto  de  estudos  severos  por  parte  da  História. 
Primeiro,  pela  deficiência  de  testemunhos,  e,  obviamente,  o  grosso  das  transgressões 
não  ficou  registrado,  pois  estaria  dentro  das  circunstâncias  em  que  a  sociedade 
consideraria  normal  –  previsível  –  a  infração  aos  códigos  vigentes.  O  conceito  de 
estupro  escondia  experiências  muito  mais  elásticas  do  que  ilícitos  penais  cometidos 
contra  a  prática  consentida  da  sexualidade.  Esses  ilícitos  eram  da  competência  de 
instâncias seculares e religiosas. No campo eclesiástico, o mais diretamente interessado 
nesse  assunto  constituía pecado ou  impiedade,  incluído  nas  transgressões  da  carne. O 
estupro era uma das modalidades da conjunção carnal  ilícita, assim como a sedução, o 
rapto  e  a  fraude  sexual.    Todavia,  um  caráter  essencial  o  distinguia:  a  violência 
perpetrada contra a vítima, sempre de menor idade. Violência de um sexo que detinha o 
poder  físico,  econômico,  moral  e  jurídico  sobre  o  outro  e  que  freqüentemente  era 
exercitado pelo pai sobre suas filhas. A definição de estupro fala em atentado ao pudor, 
cometido com violência. As ordenações previam penas severíssimas aos estupradores de 
freiras, donzelas ou viúvas honestas. O Código Penal português estipulava, até em nosso 
século, que aquele que estuprasse mulher virgem ou viúva honesta (maior de 12 anos e 
menor de 17),  teria  a pena de degredo  temporário. Na prática,  as penas sempre  foram 
mais  suaves  do  que  as  leis  estipulavam,  mesmo  estupros  incestuosos  encontravam 
conivência  de  juizes  e  da  sociedade.  Incestos  envolvendo  pais  e  filhas  inserem­se  na 
pauta  sexual  de  longo  passado  histórico.  No  folclore  ibérico,  pais  incestuosos  são 
personagens  banais  dos  romances.    Representam  o  indivíduo  instintual  que  submete 
todos  à  satisfação  de  seus  desejos,  assumindo  posições  anti­éticas  e  anti­sociais.  A 
terceira figura do clássico triângulo Edipiano, a mãe, em algumas versões dos romances, 
lamenta não poder socorrer a filha. Em outras a maldizem,  inculpando­a pelos revezes 
de  seu  casamento. A  dissimulação  dos  estupros era  necessariamente  freqüente, o  que 
explica que os processos arquivados sejam pouco numerosos, dificultando o seu estudo. 
Não obstante, como considera François Giraud 11  nas sociedades coloniais pluri­étnicas 
o problema do estupro era essencial, pois a obsessão da mestiçagem e da pureza racial 
fez das práticas sexuais um jogo fundamental nas estratégias de confronto e de distinção 
social. Os casos de estupro envolvem crianças e adolescentes nos umbrais da puberdade. 
11 
GIRAUD, François.  "Viol et société coloniale: le cas de la Nouvelle­Espagne au XVIIIe siècle". 
Annales 41. 1986.
19 
Boa parte dos crimes ocorria no âmbito doméstico – tal qual hoje ­, ficando claro que a 
violência contra mulheres era tributária do poder macho, da “força e superioridade” dos 
criminosos. 
Analisando  a  nossa  realidade  brasileira,  a  preocupação  com  a  situação  de 
abandono  e marginalidade  da  criança  pobre  não  é  recente.  No  final  do  século XIX, 
surgiram  os  primeiros  movimentos  no  sentido  de  uma  organização  por  parte  da 
sociedade e do Estado para se  lidar com a questão, e, desde então inúmeras tentativas 
são  empreendidas  no  sentido  de  dar  assistência  e  recuperação  a  essas  crianças. 
Constituiu­se uma ampla rede de instituições e programas de atendimento às crianças e 
aos  adolescentes  considerados  carentes,  abandonados  e  delinqüentes,  bem  como  um 
extenso  conjunto  de  leis  de  “proteção”  à  infância,  que  foi  estruturado  a  partir  da 
promulgação do Primeiro Código de Menores (1927). 
O forte domínio exercido pela esfera  jurídica sobre a questão da infância durante 
todo o período de vigência do Código de Menores (1927 – 1990) resultou numa grave 
distorção  de  enfoque.  Os  problemas  relacionados  à  infância,  sobretudo  aqueles  que 
excediam  às  condições  de  resolução  no  âmbito  das  famílias  pobres,  adquiriram  uma 
conotação  predominantemente  jurídica  e  desconectada  do  social.  Essa  distorção 
facilitou a dicotomização entre criança e menor que  se estabeleceu em nosso país, ou 
seja,  “menor”  sendo  invariavelmente  a  criança  pobre,  aquela  que  se  encontra  em 
situação irregular (Código de Menores, 1979), que é abandonada, que perambula pelas 
ruas, que comete atos infracionais. 
Somente nos anos 80 é que se observam fomentar uma nítida reação por parte de 
segmentos, os mais diversos da sociedade, contra o enorme descaso com que se vinha 
lidando  com  a  questão. Muitas  vozes  se  levantaram  e  foi  possível  a  formação  de um 
movimento  em  defesa  da  criança  e  do  adolescente.  Essa  comunhão  de  esforços 
solidificou­se  em  dois  importantes  momentos  da  década,  ou  seja:  participação  no 
processo de elaboração da Constituição Federal (1980), em particular o artigo 227, que 
trata dos direitos da criança e  adolescente  e do Estatuto da Criança e do Adolescente 
(1990), lei que revogou o antigo Código de Menores.  A partir de então, muitos estudos 
vêm sendo empreendidos com relação ao conhecimento sobre as condições de vida da 
infância no Brasil. Entretanto, é cada vez mais freqüente o deslocamento de crianças já 
a  partir  dos  07,  08  anos  de  idade  para  as  ruas  das  grandes  cidades  em  busca  de 
ocupações que lhes garantam algum dinheiro. São os chamados “meninos e meninas de 
rua” – fenômeno que tem sido alvo de preocupação em  todo o país nos últimos anos. 
Mesmo  aqueles  que  não  rompem  com  suas  famílias  estão  expostos  a  todo  o  tipo  de 
violência  e  exploração  nas  ruas,  envolvidos em  atividade  ilegais,  imorais,  “rentosas”, 
como tráfico de drogas, assaltos, prostituição, etc. Associada a essa situação de extrema 
pobreza e vida  indigna para milhões de crianças, observa­se  outro  fenômeno que  tem 
causado  grande  constrangimento  em  todo o país. Trata­se dos  números  alarmantes  de 
crianças  e  adolescentes  que  vêm  sendo  assassinados  em  diversos  estados  brasileiros, 
onde  os  graves  problemas  sociais  tornam  a  vida  urbana  particularmente  difícil, 
encontram­se milhares de casos por ano. Esses crimes, geralmente,  são cometidos por 
grupos  de  extermínio  que  são  contratados  para matar  as  crianças,  que  por  serem  de 
segmentos  pobres da população,  são  vistas  como um mal  para  a  sociedade. O que  se 
desprende desse perfil é que a maioria das crianças e jovens brasileiros não têm sequer 
um  futuro,  pois  os  mesmos  encontram  obstáculos  intransponíveis  para  o  seu 
desenvolvimento pleno, sendo excluídos da participação no processo produtivo do país. 
No  presente  trabalho,  interessa­nos  voltar  o  olhar  para  o  caso  específico  da 
menina. Indagando se as conseqüências dessarealidade atingem igualmente à criança e 
ao adolescente de ambos os sexos. Através de pesquisas e indagações, demonstraremos
20 
que  não,  muito  embora  as  circunstâncias  de  vida  impostas  pela  pobreza  sejam  duras 
para  todos.  As  meninas,  por  sua  condição  de  gênero,  são  em  muitos  aspectos  mais 
sacrificadas. 
1.2 – A Violência de Gênero no Âmbito dos Direitos Humanos 
A  violência  de  gênero  resultante  das  relações  estruturais  de  poder­dominação  e 
privilégio  estabelecidos  entre  homens  e mulheres  na  sociedade  ­,  ocorre  em  todas  as 
classes sociais  e  regiões  do mundo –  tanto desenvolvidas  quanto  subdesenvolvidas  e, 
permeia  todas as dimensões da  vida das mulheres,  seja  no  lar,  no  trabalho ou na  rua. 
Apesar  dos  esforços  sistemáticos  para  entender  a  natureza  e  a  ampla  extensão  da 
violência  ser  relativamente  recentes,  existe  um  número  importante  de  estudos  e 
pesquisas que analisam a violência contra a mulher e os fatores que a desencadeiam e a 
perpetuam.  Os  resultados  dessas  pesquisas  confirmam  a  necessidade  de  se  estudar  a 
violência contra o sexo feminino, a partir de uma perspectiva analítica das relações de 
poder  e  de  gênero.  Ao  mesmo  tempo,  indicam  que  a  desigualdade  que  orienta  essas 
relações e que coloca a mulher em situação desfavorável em relação ao homem, deriva 
de  uma  combinação  de  fatores  culturais  que  repercutem  em  práticas  sistemáticas  de 
discriminação  traduzidas  em  leis,  normas  sociais  e  políticas,  econômicas 
discriminatórias.  Esses  fatores  estão  estritamente  relacionados  aos  baixos  níveis 
educacionais, à falta de profissionalização e à subordinação da mulher dentro do núcleo 
familiar.  Além  das  privações  e  das  péssimas  condições  de  vida  que  uma  proporção 
elevada  de  mulheres  enfrenta  em  cada  país,  especialmente,  nos  países  em 
desenvolvimento, elas também suportam a violência de gênero que, nas diversas regiões 
do mundo  assume distintas  formas,  tais  como maus­tratos  físicos,  tortura psicológica, 
esterilização forçada, mutilação genital, estupros (inclusive os perpetrados por maridos 
ou companheiros) e outros tipos de abuso sexual.  Essa violência é dirigida às mulheres 
apenas pelo fato de serem mulheres. Nós a classificaremos de acordo com as formas sob 
as quais ela se manifesta, quais sejam: 
•  Na  família:  agressão  física  (espancamento,  mutilação,  homicídio,  ausência  de 
assistência  médica),  abuso  sexual  (estupro,  incesto),  agressão  emocional 
(confinamento  doméstico,  não­aceitação  da  sexualidade,  exigência  de  castidade, 
casamento forçado, desvalorização cotidiana, educação discriminatória); 
•  No local de  trabalho: agressão  sexual (assédio,  intimidação, exploração),  salários 
femininos e condições precárias de trabalho; 
•  Na  comunidade:  tráfico,  prostituição  (meninas  da  noite),  estupro;  pena  de morte 
por adultério (legítima defesa da honra), obrigação de reproduzir; 
•  Na mídia: pornografia, pedofilia (comercialização do corpo feminino como objeto 
descartável de prazer); 
•  No  Estado:  violência  política  (através  da  polícia  ou  do  exército,  prisão,  tortura, 
exílio, violência nas prisões, estupro), violência contra a saúde  (tratamento médico 
inadequado,  esterilização  forçada,  manipulação  ginecológica  abusiva, 
desinformação  sobre  contraceptivos),  injustiça  criminal  (absolvição  dos 
estupradores, ausência de proteção à mulher vítima). 
•  Na religião: criação da mulher, condenação do sexo, exigência da virgindade para o 
casamento. 
A  combinação  desses  tipos  de  abuso  com  as  relações  hierárquicas  de  gênero 
fornecem  o  marco  de  referência  para  localizar  os  contextos  onde  ocorre  a  violência 
contra a mulher, isto é, na família, na comunidade e no Estado. A violência doméstica é 
produto de um padrão de relações assimétricas entre homem e mulher, legitimado pela
21 
ideologia  dominante­patriarcal  e  favorecido  pela  forma  na  qual  a mulher  se  encontra 
sujeita aos desígnios sócio­econômicos e culturais prevalecentes, construídos a partir da 
concepção masculina. O lar, em sua grande maioria,  nem sempre  é  um  espaço  onde 
as  mulheres  e as crianças se encontram  protegidas, pelo contrário,  pode tornar­se  um 
lugar perigoso para elas quando são objetos de qualquer forma de abuso. 
Até recentemente a violência intra­familiar era aceita como normal ou atada como 
um assunto de caráter individual ou privado. A dicotomia entre espaço público e espaço 
privado –  com conotação  hierárquica  específica  designada  a  cada  sexo  –  surge  como 
marco de análise a fim de explicar a subordinação da mulher dentro do lar. De acordo 
com este enfoque, a autoridade do homem estende­se a todos os âmbitos da vida social, 
pública  e  privada,  justificando­se  pela  sua  inserção  no  trabalho  produtivo.  Por  outro 
lado, à mulher  se destina o mundo doméstico, um espaço  restrito e  controlado,  com a 
conotação de valores que isto significa, colocando­a, assim, em posição de inferioridade 
no  conjunto  das  relações  sociais,  levando­a,  portanto,  a  assumir  comportamentos 
subordinados e freqüentemente dependentes. Com o tempo, tem sido redimensionada a 
compreensão  intelectual  e  política  das  questões  que  se  colocam,  tanto  para  a  ciência 
quanto para  os movimentos  sociais.  À medida  que  se  começa  entender  a  violência  a 
partir  de  uma  perspectiva  mais  ampla,  os  aspectos  sociais,  econômicos,  políticos  e 
culturais  que  possibilitam  a  explicação  da  violência  estrutural  são  incorporados  na 
análise. Uma das realizações mais  significativas dentro desta perspectiva é a mudança 
da visão dicotômica do público e do privado. A violência  intra­familiar é muito mais 
difundida  do  que  a  refletida  pelas  estatísticas  oficiais,  que  não  conseguem mostrar  a 
magnitude total do problema devido ao fato de que grande parte desta violência não é 
denunciada.  De  qualquer  forma,  as  estatísticas  existentes  mostram  que  na  família  a 
mulher é vulnerável desde que nasce. 
No  Brasil,  de  acordo  com  o  Relatório  da  CPI  da  Violência  (1992),  foram 
registradas  nas Delegacias,  em média,  337  ocorrências  diárias  de  violência  contra  as 
mulheres.  Os  tipos  de  violência  mais  freqüentemente  denunciados  foram  a  lesão 
corporal (26,2%) e a ameaça (16,4%). A categoria dos “outros”, com mais de 59% dos 
casos,  compreende  o  atentado  violento  ao  pudor,  o  rapto,  o  cárcere  privado,  a 
discriminação racial e no trabalho. Não obstante, apesar de existir o reconhecimento dos 
abusos cometidos contra a mulher, como são demonstrados pelos estudos realizados em 
diversas  regiões  do  mundo,  os  direitos  da  mulher  não  têm  sido  considerados  como 
Direitos Humanos e, portanto, de responsabilidade do Estado. É latente que, ao Estado 
cabe  a  responsabilidade  da  proteção  de  todos  os  cidadãos  e  cidadãs.  Na maioria  dos 
países – a exemplo do Brasil ­, essa proteção é estabelecida por sua Constituição, que 
promete  igualdade  para  todos  os  habitantes  da  nação.  Na  realidade,  são  poucos  os 
países que podem mostrar, na prática, a igualdade da mulher, tanto na política nacional 
quanto na externa,  como direito humano básico. Parece até que os Direitos Humanos, 
intrínsecos  à  humanidade,  são  diferentes  dos  direitos  das  mulheres,  como  se  elas 
tivessem  outro  tipo  ou  classe  de  direitos,  diferentes  dos  contemplados  dentro  do 
conjunto  dos Direitos Humanos.  O  combate  à  violência  de  gênero  não  é  um  assunto 
apenas  da  competência  das  mulheres.  Existe  a  necessidade  de  a  sociedade,  em  sua 
totalidade,  reconhecer  os  efeitos  negativos  e  retrógrados  deste  tipo de  violência,  bem 
com se faz necessário perceber que, embora as mulheres sejam as vítimas, essa questão 
não dever ser restritasomente às mulheres. 
Embora  seja  fundamental  a  tomada  de  consciência  social  a  fim  de  combater  a 
violência  contra  a mulher,  tornou­se  também  crucial  a  criação  de mecanismos  legais 
para  contra­atacar  essa  violência.  A  lei  até  agora  tem  falhado  não  só  em  impedir  a
22 
violência, mas  também  em punir  como  agente  de mudança  social  e  em muitos  casos 
expõe, ainda mais, a mulher à exploração e à violência. 
2.0 – DESENVOLVIMENTO 
2.1 – Direitos Humanos 
Os  Direitos  Humanos  devem  ser  concebidos  como  um  conjunto  de  princípios 
garantidores da dignidade humana voltados para a não–agressão e a não–degradação da 
espécie humana. Hoje, mais do nunca, o empenho pela tutela desses direitos implica em 
uma contínua  resistência,  perceptíveis  na  defesa  da  cultura  indígena,  da  ecologia,  dos 
direitos das crianças e adolescente, das minorias étnicas, da paz, etc. 
Segundo  Baratta,  classifica­se  em  dois  os  grandes  grupos  fundamentais  de 
Direitos Humanos: 
Pertencem ao primeiro grupo o direito à vida, à integridade  física, 
à  liberdade  pessoal,  à  liberdade  de  opinião,  de  expressão,  de 
religião,  e  também  os  direitos  políticos.  Ao  segundo  grupo 
pertencem os denominados direitos econômico­sociais, dentre eles 
o direito ao trabalho, à educação etc. 12 
Recorda Baratta que: 
O  conteúdo  normativo  dos  direitos  humanos  entendido  numa 
concepção histórico ­ social,  sobrepõe­se às suas  transcrições nos 
termos do direito nacional e das convenções  internacionais, assim 
como  a  idéia  de  justiça  sempre  ultrapassa  às  suas  realizações 
dentro  do  direito  e  indica  o  caminha  à  realização  da  idéia  do 
homem, ou seja, do princípio da dignidade humana. A história dos 
povos e da sociedade  apresenta­se  como  a história dos contínuos 
obstáculos  encontrados  neste  caminho,  a  história  da  contínua 
violação dos direitos humanos, isto é, da permanente  tentativa de 
se reprimir as necessidades reais das pessoas, dos grupos humanos 
e dos povos. 13 
Os  direitos  do  homem  são  aqueles  cujo  reconhecimento  é  condição  necessária 
para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização. 
Todas  as  Declarações  dos  Direitos  do  Homem  compreendem,  além  dos  direitos 
individuais  tradicionais, que constituem em liberdade,  também os direitos sociais, que 
consiste  em  poder.  Quanto  mais  aumentam  os  poderes  dos  indivíduos  tanto  mais 
diminuem a liberdade dos mesmos indivíduos. O problema fundamental em relação aos 
direitos do homem, hoje, não é o de justificá­los, mas o de protegê­los. Trata­se de um 
problema não filosófico, mas político. A Declaração Universal dos Direitos do Homem 
representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser 
considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido. E essa prova é o consenso 
12 BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a Violência Estrutural e a Violência Penal. Trad. da 
revisão  alemã  (1993)  do  original  espanhol  por  Ana  Lúcia  Sabadell.  Universidade  de  Saarland, 
Alemanha.    Complementa  o  autor  que  “outras  distinções  levam  em  consideração  às  necessidades 
específicas  dos  sujeitos.  Nesse  caso,  distinguem­se  os  direitos  das  pessoas,  dos  grupos,  como  por 
exemplo, no caso das minorias étnicas e os direitos dos povos, entre eles o direito à autodeterminação 
e o direito ao desenvolvimento”. pp .6­7 
13 Idem. p. 04.
23 
geral  acerca  de  sua  validade.  É  indispensável  que  os  Direitos  do  Homem  sejam 
protegidos por normas jurídicas. 
A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral em 20 de 
novembro de 1959, refere­se em seu preâmbulo à Declaração Universal, e, em seguida 
apresenta os problemas dos direitos da criança como uma especificação da solução dada 
ao  problema  dos  direitos  do  homem.  Sê  se  diz  que  a  criança  e  o/a  adolescente  –  em 
virtude de sua imaturidade física e intelectual ­, necessitam de uma proteção particular e 
de cuidados especiais, deixa­se assim claro que os direitos da criança e do/a adolescente 
são  considerados  como um  “ius  singulare”   com relação  a um  “ius  com mune”. Vale 
dizer,  na  medida  em  que  se  impede  ao  homem  de  se  desenvolver  plenamente,  neste 
momento, dá­se o início a um processo de violência, que se manifesta das mais variadas 
formas, servindo­se de diferentes meios. 
2.1.2 – Dos Direitos da Criança e do Adolescente 
O  processo  de  construção  de  um  novo  direito  –  o  Direito  da  Criança  e  do 
Adolescente – que não tem a pretensão de ser autônomo, haja vista que cada vez mais 
tomamos  consciência  da  interdisciplinaridade,  se  apresenta  hoje  como  uma  das  mais 
importantes  discussões.  Esse  direito,  sobre  o  qual  nos  debruçamos,  evidencia  não 
somente a importância, mas a imprescindibilidade da conjugação de conhecimentos. 
O  novo  direito  da  criança  e  do  adolescente  é  construído  com  vistas  ao  Direito 
Internacional  Público e  Privado,  ante  os Tratados  e  as Convenções  Internacionais,  ao 
Direito Constitucional, que no caso brasileiro, deferem absoluta prioridade à criança e 
ao  adolescente,  ao  Direito  Civil,  Penal,  Trabalhista,  Processuais  e  ainda,  leis 
extravagantes. Exemplifica essa defesa de direitos, Ação Civil Pública,  imprescindível 
em  se  tratando  da  tutela  dos  interesses  difusos.  Devemos  considerar,  ainda,  o  seu 
entrelaçamento  com  outras  áreas  do  conhecimento,  que  não  o  jurídico,  como  a 
sociologia,  psicologia  e  criminologia,  conforme  dito  alhures.  Entendemos  como 
necessário elaborarmos um resgate histórico das nossas leis e ações em favor da criança 
brasileira,  para  daí  compreendermos  no  que  consiste,  efetivamente,  a  mudança  de 
paradigma ocorrida. Ou seja, do Direito Tutelar, caracterizador da doutrina da situação 
irregular,  para  um Direito  Protetor,  responsável  pela Doutrina  da  Proteção  Integral. 
Reconstituir a história da criança e do adolescente através das legislações e  iniciativas 
assistenciais  surgidas  em  seu  favor  no  Brasil,  a  partir  de  1823  –  logo  após  a 
independência  política  de  Portugal  (7  de  setembro  de  1822),  implicou  em  resgatar 
aspectos específicos que traçaram e estruturaram esse movimento. 
O  tímido  surgimento  das  primeiras  leis  e  instituições  foi  sendo  firmado 
gradativamente. Quando  da  primeira  colocação  sobre  o  problema  da  criança  (criança 
negra), em virtude do nosso sistema escravocrata, na Constituinte de 1823, não houve 
uma preocupação  com  a  criança  negra  em  si.  Quando  José  Bonifácio  defendia  que  a 
escrava depois do parto teria um mês de convalescência, e durante o ano que se seguisse 
não  trabalharia  longe  “da  cria”  14 ;  antes,  o  que  se  pretendia  era  zelar  por  aquele  que 
constituiria em breve a força de trabalho gratuito, ou seja, o escravo. Com a decretação 
(1871) da Lei do Ventre Livre, fruto da campanha abolicionista, os senhores de escravos 
delineavam  dois  caminhos:  ou  recebiam  do  Estado  uma  indenização  (deixando  no 
abandono as crianças libertas cujos pais permaneciam no cativeiro), ou as sustentavam 
14 Revista Retrato do Brasil. “Organização Social/população: a situação do menor e os órgãos de proteção 
– nossos pixotes”. p.303
24 
e,  em  seguida,  cobrariam  tal  “generosidade”  através  de  trabalhos  forçados  até  que 
completassem 21 anos. 
Observando o processo de  formação das  instituições  que prestavam  serviços de 
assistência  às  crianças  e  aos  adolescentes,  verificamos  que,  no  período  colonial  e  no 
Império, a mesma se dava em três níveis: uma caritativa, prestada pela igreja através das 
ordens religiosas e associações civis; outra filantrópica, oriunda da aristocracia rural  e 
mercantilista e,  a  terceira  (em menor número),  fruto de algumas  realizações da CoroaPortuguesa.  Com  as  mutações  sociais,  políticas  e  econômicas  que  se  sucederam  à 
Abolição  dos  Escravos  (1888)  e  à  Proclamação  da  República  (1889),  a  proteção  e 
assistência  à  criança  tornaram­se  cada  vez mais  uma  necessidade,  sentida,  sobretudo, 
pelo próprio corpo social. A partir de 1920,  fortaleceu­se a opinião de que ao Estado 
caberia  assistir  à  criança. Tanto que  surge desse  período o  trabalho de  formulação de 
uma legislação específica para crianças e adolescentes, o que se consolidou no Decreto 
n. 17.943 – A, de 12 de outubro de 1927, cuja elaboração foi confiada pelo Presidente 
Washington  Luiz  ao  jurista Mello Mattos.  O Código  de Menores  de  1927  conseguiu 
corporificar leis e decretos que, desde 1902, propunha­se a aprovar um mecanismo legal 
que desse especial relevo à questão do menor de idade. Alterou e substituiu concepções 
obsoletas  como  as  de  discernimento,  culpabilidade,  responsabilidade,  discriminando, 
ainda,  que  a  assistência  à  infância  deveria  passar  da  esfera  punitiva  para  a  esfera 
educacional.  A concepção dessa  lei pôs em relevo questões controversa em relação à 
legislação civil em vigor. Com o Código de Menores, o “pátrio poder” foi transformado 
em pátrio dever, pois ao Estado era permitido  intervir na  relação pai/filho, ou mesmo 
substituir a autoridade paterna, caso este não tivesse condições ou se recusasse a dar ao 
filho uma educação regular, recorrendo então o Estado à utilização do internato. Já no 
Código  Civil  (1916),  o  pai,  enquanto  chefe  da  prole  continuava  detendo  o  “pátrio 
poder”, sobre todos os que compunham a estrutura familiar: mulher, filhos, agregados, 
pessoas e bens sob o seu domínio. Na esfera constitucional, as Cartas de 1824 e 1891 
são  omissas  com  relação  à  criança.  A  primeira  a  se  referir  sobre  o  assunto  foi  a 
Constituição de 1934, ao proibir o trabalho para os de idade inferior a 14 anos. A partir 
de  1937,  é  ampliada  a  esfera  de  proteção  à  infância,  ficando  ao  encargo  do  Estado 
assisti­la  nos  casos  de  carência.  A  Constituição  de  1946  continuou  de  igual  modo, 
protegendo­a desde a maternidade. Por sua vez, a Constituição Federal de 1967, seguida 
pela Emenda Constitucional n.1, de 1969, ao instituir a assistência ao universo infanto­ 
juvenil,  não  seguiu,  no  todo,  as  Constituições  precedentes,  determinando  duas 
modificações,  quais  sejam:  a  primeira,  referente  à  idade  mínima  para  a  iniciação  ao 
trabalho, que passa a  ser de 12 anos,  e,  a  segunda,  instituindo o e sino obrigatório e 
gratuito  nos  estabelecimentos  oficiais  para  as  crianças  de  07  a  14  anos  de  idade.  A 
postura assumida pelo Estado brasileiro de permitir o trabalho de crianças com 12 anos, 
a  partir  de  1967,  significou  um  retrocesso  com  relação  às  legislações  da maioria  dos 
países. 
A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro 
de 1988 significou um grande avanço nos Direitos Sociais e isto por sua vez beneficiou, 
entre outros, a criança e o/a adolescente, ou, deveria ter beneficiado, vez que ao declarar 
absoluta  prioridade  em  todas  as  circunstâncias  à  população  infanto­juvenil.  Nessa 
perspectiva,  tem­se  exemplificativamente,  que  a  idade  mínima  para  admissão  ao 
trabalho é, novamente, fixada aos 14 anos (artigo 7º, XXXIII), sob a forma de aprendiz. 
Muito  embora,  na  Convenção  de  n.  182  e  Recomendação  de  n.  190,  a  OIT  tenha 
deliberado ao empregador admitir apenas os maiores de 16 anos. Nesse sentido, o Brasil 
deliberou pelo  trabalho sob a  forma de aprendiz a partir dos 14 anos,  fato gerador de 
polêmica em nossa sociedade. Por um lado, opinam alguns que é melhor trabalhar que
25 
ficar nas ruas. Outros, mais engajados na legislação de proteção integral à criança e ao 
adolescente  (a  exemplo  desta  autora),  opina  no  sentido  de  que  lugar  de  crianças  e 
adolescente  é,  justamente, no orçamento público gozando de prioridade,  a  fim de que 
possam gozar de todos os seus direitos e garantias fundamentais. Quanto à educação, a 
referida  Carta  Política,  em  seu  artigo  208,  determina  como dever  do  Estado  garantir 
ensino fundamental (primeiro grau), obrigatório e gratuito, até mesmo para os que a ele 
não tiverem acesso na idade própria. Consoante a presente análise histórica, verificou­se 
que  a  expressão  “menor”  foi  usada  como  categoria  jurídica  desde  as  Ordenações  do 
Reino, como caracterizadora da criança ou do adolescente envolvidos com a prática de 
infrações Penais. Já no Código de Menores de 1927, o termo foi utilizado para designar 
aqueles  que  se  encontrava  em  situações  de  carência  material  ou  moral,  além  de 
infratoras (conforme dito alhures). 
Com o  surgimento  do  Código  de Menores  de  1979,  surge  uma  nova  categoria: 
“menor em situação irregular”, isto é, o menor de 18 anos, abandonado materialmente, 
vítima  de  maus­tratos,  em  perigo  moral,  desassistido  juridicamente,  com  desvio  de 
conduta ou autor de infração penal. O Código de Menores, apesar de ter constituído um 
avanço em algumas direções, continha, no entanto, aspectos controversos que permitiam 
questionamentos e críticas, como é o caso das características inquisitoriais do processo 
envolvendo crianças e adolescentes, quando a própria Constituição garantia ao maior de 
18 anos ampla defesa. O referido Código não previa o princípio do contraditório. Outro 
fato  que  pode  ser  colocado  como  exemplo  dessa  distorção  era  a  existência,    para  os 
menores de 18 anos da prisão cautelar, vez que ao “menor” a que se atribuía a autoria de 
infração  penal,  podia  ser  apreendido  para  fins  de  verificação,  o  que  significava  uma 
verdadeira afronta aos direitos da criança  e do adolescente,  na medida em que para o 
adulto  a  Prisão  Preventiva  só  poderia  ser  aplicada  em  dois  casos:  flagrante  delito  ou 
ordem  escrita  e  fundamentada  de  autoridade  judiciária  competente  (artigo  5º,  LXI, 
Constituição Federal 1988). 
O  Estatuto  da  Criança  e  do  Adolescente  veio  pôr  fim  a  estas  e  tantas  outras 
situações  que  implicavam  numa  ameaça  aos  direitos  da  criança  e  do  adolescente. 
Suscita no seu conjunto de medidas uma nova postura a ser tomada tanto pela família, 
pela sociedade, como também pelo Estado, objetivando resguardar os direitos da criança 
e do/a adolescente zelando para que não sejam, sequer, ameaçados. No entanto, embora 
existam pessoas comprometidas com a causa e que não se cansam de  interceder nesse 
sentido, observamos que o Estatuto até hoje não ser  tornou eficaz em face da  falta de 
implementação por parte do governo.  Do universo de documentos  internacionais que 
objetivam resguardar as garantias dos Direitos Infanto­Juvenis destaca­se a Convenção 
Internacional  sobre  os  Direitos  da  Criança  aprovada  pela  Assembléia  das  Nações 
Unidas em 20 de novembro de 1989. Se elaborarmos uma análise pormenorizada desse 
Tratado de Direitos Humanos, constatamos a sua efetiva  influência sobre o Estatuto da 
Criança  e  do Adolescente.  Nesse  sentido,  chama  atenção  o  fato  de  que  a  Convenção 
Internacional não se configura numa simples carta de  intenções, vez que tem natureza 
coercitiva e exige dos Estados­Partes que a subscreveu e ratificou um determinado agir, 
consistindo, portanto, num documento que expressa de forma clara, sem subterfúgios, a 
responsabilidade de todos com o futuro. 
A  referida  Convenção  trouxe  a  proteção  integral  para  o  universo  jurídico  da 
Doutrina. Situa a criança dentro de um quadro de garantia  integral, evidencia que cada 
país deverá dirigir  suas políticas e diretrizes  tendo por objetivo priorizar os  interesses 
das  novas  gerações.  A  infância  passa  a  ser  concebida  não  mais  como  um  objeto  de 
medidas  tuteladoras  o  que  implica  reconhecer  a  criança  e  o/a  adolescentesob  a 
perspectiva de sujeitos de direitos.
26 
O Estatuto da Criança e do Adolescente,  ao assegurar em seu art. 1º a proteção 
integral  à  criança  e  ao  adolescente,  reconheceu  como  fundamentação  doutrinária  o 
princípio da Convenção que em seu artigo 19 determina: 
Os  Estados  Partes  adotarão  todas  as  medidas  legislativas, 
administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a 
criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso 
sexual,  enquanto  a  criança  estiver  sob  a  custódia  dos  pais,  do 
representante  legal  ou  de  qualquer  outra  pessoa  responsável  por 
ela. 15 
A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 227, caput: 
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e 
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, 
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, 
à  dignidade,  ao  respeito,  à  liberdade  e  à  convivência  familiar  e 
comunitária,  além  de  colocá­los  a  salvo  de  toda  forma  de 
negligência,  discriminação,  exploração,  violência,  crueldade  e 
opressão. 
A  atual  Carta  Política  tem  essa  nova  base  doutrinária,  na  qual  implica  que, 
fundamentalmente,  as  crianças  e  adolescentes  brasileiros  passam  a  ser  sujeitos  de 
direitos. Essa categoria encontra sua expressão mais significativa na própria concepção 
de Direitos Humanos de Lefort: “o direito a  ter  direitos” 16 ,  ou  seja, da dinâmica dos 
novos direitos que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. 
A Lei anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente  (Código de Menores de 
1979) fundamentava­se na doutrina da situação irregular, isto é, havia um conjunto de 
regras jurídicas que se dirigiam a um tipo de criança ou adolescente específico, aqueles 
que  estavam  inseridos  num quadro de patologia  social,  elencados  no  seu artigo  2º. O 
que equivale afirmar, no entender de Amaral e Silva, que tal doutrina: 
Confunde na mesma situação irregular, abandonados, maltratados, 
vítimas  e  infratores.  Causa  perplexidade  que  se  considerasse  em 
situação irregular o menino abandonado ou maltratado pelo pai, ou 
aquele de saúde ou da educação por incúria do Estado. 17 
Salienta o citado autor que, estará sim em situação irregular: 
(...) aquele que descumprir os deveres inerentes ao pátrio poder ou 
quem  negligenciar  políticas  sociais  básicas.  Está  em  situação 
irregular,  de  ilegalidade,  o  pai  que  abandona  ou  o  Estado  que 
negligencia nunca o abandonado, a vítima. 18  (sic) 
15 Aliás,  tal regra repetiu o que já havia sido colocado na Declaração Universal dos Direitos da Criança 
(1959),  que  no  seu  princípio  de  n.  9  dispõe:  “A  criança  gozará  proteção  contra  quaisquer  formas  de 
negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma”. 
16 LEFORT, Claude.     Pensando o Político: ensaios sobre  sobre democracia, revolução e à liberdade, p. 
58. 
17 AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. Comentários do debatedor.  In Simonetti, C.  et ali  (orgs.)  – 
“Do avesso ao Direito, p. 37. 
18 Idem.
27 
O  Código  de  Menores  de  1979,  ao  se  dirigir  a  uma  categoria  de  crianças  e 
adolescentes  (os  que  se  encontravam  em  situação  irregular),  colocava­se  como  uma 
legislação  tutelar.  Na  realidade,  tal  tutela  pode  ser  entendida  como  culturalmente 
inferiorizadora,  pois  implica  no  resguardo  da  superioridade  de  alguns,  ou  mesmo de 
grupos,  sobre  outros,  como  a  história  registrou  ter  ocorrido,  e  ainda,  ocorrer  com  as 
mulheres, índios e outros. 19 
Dessa  forma,  a  Lei  8069/90  significou  a  convicção  de  que  a  criança  e  o 
adolescente  são  merecedores  de  direitos  próprios  e  especiais  que,  em  razão  de  sua 
condição  específica  de  pessoas  em  desenvolvimento  necessitam  de  uma  proteção 
especializada,  diferenciada  e  integral.  O  advento  de  uma  legislação  que  se  ocupasse 
seriamente dos direitos da infância e da adolescência era de caráter imprescindível, pois 
havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de “menores” 
para a de cidadãos.  O Estatuto da Criança e do Adolescente tem a relevante função ­ ao 
regulamentar o texto constitucional­, de fazer com que este último não se        constitua 
em  letra  morta.  No  entanto,  a  simples  existência  de  leis  que  proclamem  os  direitos 
sociais  por  si  só  não  consegue  mudar  as  estruturas.  Antes  há  que  se  conjugar  aos 
direitos,  uma  política  social  eficaz  que  de  fato,  assegure materialmente  os  direitos  já 
positivados,  conforme  nos  referimos  anteriormente.  E  isto  significa  que  se  dê  um 
impulso  aos  dois  grandes  princípios  da  Lei  n.  8069/90,  o  da  descentralização  e  o  da 
participação.  A  implementação  deste  primeiro  princípio  deve  resultar  numa  melhor 
divisão  de  tarefas,  de  empenhos,  entre  a  União,  os  Estados  e  os  Municípios  no 
cumprimento dos direitos sociais. No que tange à participação, esta, importa na atuação 
sempre progressiva e constante da sociedade em todos os campos da ação. 
2.1.3  – Da Tutela Jurisdicional 
A  Lei  n.  8069/90  diz  respeito  à  possibilidade  dos  direitos  das  crianças  e  dos 
adolescentes serem demandados em juízo. Portanto, ao tratar da tutela jurisdicional dos 
interesses individuais, difusos e coletivos, chama a atenção o fato de que o Estatuto da 
Criança  e  do  Adolescente  está  em  consonância  com  as  novas  diretrizes  da 
processualística civil, por três motivos: 
1º  ­  Ao  contemplar  os  meios  judiciais  garantidores  dos  interesses  da  criança  e  do 
adolescente  (sobretudo  no  que  diz  respeito  aos  direitos  coletivos  e  difusos), 
percebe­se  que  a  natureza  privatista  do  direito  processual  está  sendo  objeto  de 
profundas  modificações,  as  quais  remetem  à  necessidade  de  superação  de 
determinadas estruturas tradicionais. Por conseguinte, a Lei em comento, ao admitir 
o ingresso em juízo dos mais variados tipos de demandas que visem à proteção de 
seus interesses, importa um significativo avanço no campo processual, vez que não 
está presa à  idéia de procedimentos, de rito, considerando merecedor de atenção o 
conteúdo do direito que está sendo pleiteado; 
2º – Ao se preocupar com o tema do acesso à justiça, esta nova lei atenta ao fato de que 
hoje, a garantia desse acesso se constitui num dos mais elementares direitos, pois 
19 Neste quesito, muito oportuna a crítica de Zaffaroni ao afirmar  que:  “Ao  longo de  toda a história da 
humanidade,  a  ideologia  tutelar  em  qualquer  âmbito  resultou  em  um  sistema  processual  punitivo 
inquisitório. O tutelado sempre o tem sido em razão de alguma inferioridade (teológica, racial, cultural, 
biológica, etc.), colonizados, mulheres, doentes mentais, minorias sexuais etc., foram psiquiatrisados ou 
considerados inferiores e, portanto, necessitados de tutela”. Zaffaroni, Raul. Do Advogado – artigo 206: 
In Cury, Munir et ali (coords.). Estatuto da Criança e do Adolescente: comentários jurídicos e sociais. p. 
640.
28 
a sociedade pouco a pouco passou a compreender que não mais é suficiente que o 
ordenamento  jurídico contemple direitos,  antes é  imprescindível que estes sejam 
efetivados, sendo que a propositura em juízo é, portanto, um dos mecanismos que 
visam a sua aplicabilidade; 
3º – O acesso à Justiça na interposição de interesses afetos à criança e ao adolescente se 
constitui, ainda, em mais um fator a corroborar no processo de transformação do 
próprio  Poder  Judiciário,  o  qual  passa  a  ser  um  instrumento  de  expansão  da 
cidadania.  Isto  se dá porque da  antiga  posição de  árbitro de  litígios  de  natureza 
inter­subjuntiva,  agora  é  chamado  a posicionar­se  diante  de  situações de  caráter 
trans­individual, como o são os direitos sociais. 
Uma das  inovações trazidas pelo Estatuto da

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