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1 FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS Violência contra a criança e o adolescente Exploração Sexual InfantoJuvenil Prostituição Infantil CUIABÁ/MT 2008 2 BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS Violência contra a criança e o adolescente Exploração Sexual InfantoJuvenil Prostituição Infantil Monografia de Especialização em Direito da Criança e do Adolescente. Orientador: Prof. Ms. José Antonio Borges CUIABÁ/MT 2008 3 BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS Violência contra a criança e o adolescente Exploração sexual infantojuvenil Prostituição Infantil Monografia apresentada à Fundação da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso como exigência parcial para obtenção do Título de Especialista em Direito da Criança e do Adolescente. Aprovada pelos membros da banca examinadora com menção_______ (_____________________________________________________) BANCA EXAMINADORA _____________________ Orientador: Prof. Ms. José Antonio Borges Fundação Escola Superior do Ministério Público/MT __________________ Integrante: Prof. ...................................................... __________________ Integrante: Prof. ...................................................... Data de Aprovação ____/_____/_____ 4 DEDICATÓRIA Aos meus netos: Ale Guilherme Arfux da Costa Ribeiro (in memorian), Antonia Arfux Taques e Rafael Vicente Arfux Taques 5 “É a partir dos que sofrem, dos que estão marginalizados (as) que devemos formular valores. São estas pessoas que através de sua dor indicam os caminhos em vista de uma vida mais justa ou em vista da restauração da vida” . (Serviço da Mulher Marginalizada) 6 RESUMO O tema da violência é cada vez mais freqüente nas publicações periódicas e científicas. A violência cresce assustadoramente e ainda não se reconhece, com precisão, as causas que a antecedem. Esta problemática está relacionada a outra mais específica, porém não menos importante. Tratase do grave problema que vive a sociedade moderna atual, denominado Exploração Sexual InfantoJuvenil. A prostituição e a exploração infantil são realidades disseminadas em todo o mundo. Entre os fatores que levam à alta incidência da prostituição estão, além da miséria, as tradições sóciocultural e as pressões exercidas pela mídia. A cultura coronelista sempre esteve presente na valorização de práticas sexuais como o incesto, a preferência de sexo com meninas e a separação entre a mulher doméstica das “outras”. Este pensamento leva ao crescente número de usuários que fortalecem o surgimento e a manutenção das redes de exploração sexual de crianças e adolescentes. Geralmente, as meninas da classe social menos favorecida têm uma iniciação sexual no seio da família. E, as instituições que poderiam reverter essa situação são ausentes nas questões preventivas, bem como na orientação sexual dessas crianças e adolescentes. Entretanto, são inúmeros os projetos nessa área, o que falta – além da conscientização da sociedade – é o interesse por parte do Estado em trabalhar, efetivamente, essas questões. Os fatores que impulsionam o quadro da prática da prostituição têm contornos definidos. Os estudos realizados na área quantificam e categorizam as diferentes formas de exploração, abuso e exploração sexual infantojuvenil. As pesquisas citam a quantidade de 500.000 meninas prostituídas, número este que coloca o Brasil em segundo lugar no mundo, superado apenas pela Tailândia. Somos da opinião de que a gravidade do problema social ora trabalhado pode se resolver conhecendo as causas sociais que os provoca, buscando soluções de diversas formas. Apesar de que as mais diferentes áreas como a Sociologia, Psicologia, Ética, etc., ao estudar o problema ainda não chegaram a uma resposta conclusiva. Dessa forma, somos favoráveis que em todos os casos a investigação multidisciplinar deve ser realizada. No presente trabalho consideramos de grande importância a abordagem teórica e prática do problema referente à exploração e ao abuso sexual da população infantojuvenil, desde a sua perspectiva e a prática da busca dos direitos. Na realidade, sabemos que existem comportamentos “sociais” que ainda não estão caracterizados como delitos, a Pornografia, por exemplo. Existem fatores e aspectos teóricos que ainda precisam ser elaborados com a finalidade de vincular (melhor), a lei com a realidade social e garantir a prática dos Direitos Humanos ligado ao respeito à pessoa humana, garantindo lhe a liberdade de seus direitos. Violência – Direitos Humanos Exploração e Abuso Sexual – Prostituição 7 ABSTRACT Each day, becomes amore frequent issue in periodical and cientific publications. Violence grows and still its causes are not well recognized. This difficulty is related to another whuch, although not more specific, it is not less imortant. It is the serious problem our modern soity lives – Infant – Juvenil Sexual Exploitation. Prostitution and infant explotation are disseminated realities all over the world. Among the factors which bring a rise to the prostituion incidence they are, besides mesery, the social. And cultural traditions and the pressions exercised by the midia. The presence of the patriarcal culture continues in the sexual practices as family, incest, preference of Sex with girls and the separation between the wife and other womwn. With this factor underlining the present situation, the great, number of consumers strengthens emergence and maintenence of the girl sexual exploitation network. Generally, girls from the lowest social classes have a violent sexual iniciation in their family. The instituions which could change this situation are absent in the prevention and the children sexual orientation. Although there is a great number of projects in this area, there is a lack of concientization from the soiety, application of these projects from the state. The factores which push the prostitution practices assume defined shapes. There are recent quantitatives studies which classift rhr different forms of infant – juvenil prostitution. A lot was said about quantifyng the prostitution girls were mentioned, number which positiones Brazil in the word’s second place, only behing Tayland. In our opinion, the seriosity of the social problem aluded can be resolved by knowing the social causes which provoke them and by questioning other their causes, we could say that we do not have get complete answers from any of the sciences which study the problem, like Soliology, Ethics, Psicology, etc. Worst it would be to try to final in Politics any solutions for these problems. We considere that a miltidiciplinar investigations of the subject should be done. In this study, we considere actual and of great teorical, meodological and pratical importance to appoach the Infant – Juvenil Sexual Exploitation Problem from the perspective and practice of the Law. The reality that there are criminal social behaviors and practices which are not yet labeled as infraction and, the negligence from the part of social and public institutions – from when it comes to the exercise lf the Law difficults the fight against these practices. These are technical factors and aspects which still need to be elaborated as to vinculate beteer the Law to the social reality and to ajust the social practice to the Humam Rights, related to the beings, their freedon and rights. Violence Right Human Exploration and Sexual Abuse ProstitutionABSTRACTO 8 El tema de la violencia es cada vez mas frecuente en publicaciones periodicas y cientificas. És cierto que la violencia cresce y a ún no se reconoce com precisión las causas que conceden a ella. Esta problemática está relacionada com outra que, a ún mas especifica no es menos importante. Tratase del grave problema que vive la sociedad moderna actual, denominado Exploración Sexual Infancia – Juvenil. La prostitución y la esploración infantil son realidades diseminadas en todo el mundo. Entre los factores que llevan a la alta incidencia de la prostitución estan, fuera de la miseria, las tradiciones socioculturales y las presiones ejercidas por la midia. La cultura coronelista se mantiene presente en la valorización de prácticas sexuales como el incest familiar, la preferencia de sexo com niñas, y la separación entre la muyer doméstica y las “otras”. Com esta armación es grande el número de usuarios que fortalece el surgimiento y la manutención de las redes de exploración sexual de niñas. En general las niñas de los segmentos mas pobres tienen una iniciación sexual violenta en el seno de la familia. Las instituciones que poderian revertir esa situación, se muestran ausentes en la prevención y orientación sexual de estos niños, no obstante haiga imnúmeros de proyectos en esa área, lo que falta es sin duda la concientización de la sociedade, del estado par ala aplicación de los mismos. Los factores que impulsan el cuadro de la práctica de la prostitución asumen contornos definidos. Existen estudios cuantitativos recientes que categorizan y estudian las diferentes formas de prostitución infania juvenil. Mucho se habla a especto de la contidad de la prostitución de uqe tratamos. Diversos números fueron sitados. Llego a ser mensionada la cantidad de 500.000 niñas prostituidas, cifra que colocaria el Brasil en segundo lugar en el mundo, superado apenas por Tailandia. Em nuestra opinión, la gravidad del problema social aludido puede ser resuelto, conociendo las causas sociales que las provoca y indagando las mas posibles para su solución. Apesar de que, en defirentes áreas, se intenta dar una respuesta sobre las causas del mismo, podemos decir que a ún no tenemos repuestas completas en nunguna de las ciencias que studian el problema, como la Soliologia, la Ética, la Psicologia, etc. Tan poco la politica tiene encontrado solución para estos problemas. Em nuestra conciencia, consideramos que a investigación multidisciplinar del mismo deve ser realizada. En el presente trabajo, consideramos actual y de grande importancia teórico metodológica que práctica y aborda el problema de la Exploración Sexual InfanciaJuvenil desde la perspectiva y la práctica del derecho. La realidad que tenemos delante de los ojos y que existen actos y comportamientos solicales criminosos que a ún no estan caracterizados como delitos, bien como existe negligencia por parte de instituciones sociales y de los poderes públicos, en la que se refiere el ejecicio de la ley que, debilita la lucha contra tal proyecto. Existen factores y aspectos técnicos que a ún precisam se elaborados com el fin de vncular mejor la ley com la realidad social y ajustar mas la práctica social al Derecho Humano, ligado al respecto a la persona humana, la mayor libertaad de sus derechos. Violencia – Derechos Humanos Exploración y Abuso Sexual Prostitución 9 LISTA DE SIGLAS AIDS – Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito C.F. – Constituição Federal EUA – Estados Unidos da América NCCAPR – Nacional Center on Child Abuse Prevention Research FAI – Federação Abolicionista Internacional FEBEM – Fundação do Bem–Estar do Menor CUT – Central Única dos Trabalhadores OIT – Organização Internacional do Trabalho UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância ONG´s – Organizações não Governamentais AIJD – Associação Internacional de Justiça e Direito. DPCA – Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente CRIAD – Conselho Estadual dos Direitos da Criança. G.D.F. – Governo do Distrito Federal CEDCA – Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. PROSOL – Promoção do Bem–Estar Social ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente AMENCAR – Amparo ao Menor Carente EMBRATUR – Empresa Brasileira de Turismo CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes CDCA – Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente. TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo. CEBRID – Centro Brasileiro de informações sobre drogas e Psicotrópicos CP – Código Penal FORUM DCA/MT – Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente FUNABEM – Fundação Nacional do Bem Estar do Menor 10 SUMÁRIO Dedicatória Resumo Abstract Lista de Siglas Sumário 1.0 – Introdução...............................................................................................12 1.1 – Histórico............................................................................................14 1.2 – A Violência de Gênero no Âmbito dos Direitos Humanos...............20 2.0 – Desenvolvimento.................................................................................22 2.1 Dos Direitos Humanos.......................................................................22 2.1.2 Dos Direitos da Criança e do Adolescente......................................23 2.1.3 Da Tutela Jurisdicional...................................................................27 2.2 Violência InfantoJuvenil..................................................................29 2.3 – Da Prostituição ................................................................................38 2.3.1 Considerações Iniciais sobre a Prostituição....................................38 2.3.2 Formas de Iniciação e Condições de Vida na Prostituição.............42 2.4 Prostituição InfantoJuvenil..............................................................44 2.4.1 – Análises Comparativas – Prostituição em Fortaleza......................49 2.4.1.1 A Prostituição no Estado do Espírito Santo.................................51 2.4.1.2 A Prostituição no Estado de Mato Grosso...................................52 2.4.1.3 A Prostituição em Cuiabá............................................................55 2.4.2 Do Turismo Sexual Infantil............................................................56 3.0 – Da Prevenção da Violência Sexual......................................................60 3.1 Como Intervir e Prevenir a Exploração e a Violência Sexual............62 3.1.2 – Da Educação Sexual Preventiva.....................................................63 3.2 – Conseqüências...................................................................................63 3.2.1 Das Doenças Sexualmente Transmissíveis.....................................64 3.2.2 Alcoolismo Precoce........................................................................66 3.2.2.1 – O Álcool na Adolescência...........................................................67 4.0 Do Sistema da Justiça...........................................................................68 11 4.1 Do Sistema Jurídico............................................................................68 4.1.2 – Da Proteção do Estado à Criança e ao Adolescente......................69 4.1.3 – Estatuto da Criança e do Adolescente: Um Instrumento na Construção de uma Sociedade Cidadã.........................................70 4.2 Do Sistema Político............................................................................734.2.1 Instituições Repressivas: O Caso da Polícia Civil.........................73 4.2.2 A Realidade Brasileira....................................................................74 5.0 – Considerações Finais...........................................................................76 6.0 – Bibliografia..........................................................................................78 12 1.0 – Introdução A violência cresce assustadoramente no mundo todo. Em cada país, os que trabalham com saúde, bemestar, educação, etc., assim também como os representantes dos governos têm expressado sua preocupação com a violência crescente, e se têm comprometido a empenharse em ações para resolvêla. No entanto, todos nós sabemos que a real solução destes problemas tão complexos requer mudanças que sejam, igualmente, profundas. Tivemos a oportunidade de estudar os problemas das pessoas que vivem em situação de conflito ou que vivenciam tipos de violência. Convém assinalar que mulheres e crianças não são grupos “especiais” nessas situações. Por várias razões, mulheres e crianças são alvos de violência, principalmente da violência sexual, e da exploração sexual infantojuvenil. Se olharmos a nossa realidade, a situação é ainda mais complexa, pois não estamos apenas diante de casos esporádicos que privilegiam uma faixa etária em detrimento de outras. O que se constata é que camadas populacionais inteiras são excluídas por um sistema políticoeconômico perverso que resguarda a poucos o direito de tudo possuírem, ainda que esta posse resulte em fome, doenças e a falta de habitação para milhões de cidadãos brasileiros, ou melhor, para os quasecidadãos ou semicidadãos, pois no conceito de cidadania não está somente o direito/obrigação de votar, mas todos os direitos e deveres inerentes à vivência comunitária na polis, como trabalho, casa, alimentação, escola, saúde, etc. E nesse contexto é exatamente a criança a que mais sofre. Primeiro por não ter condições de se autodefender, sendo vítima fácil da desnutrição e de todas as doenças, o que resulta em um elevado índice de mortalidade infantil. Desde pequena, a criança é jogada no mundo adulto, sendo explorada em sua força de trabalho, ficando distante dos bancos escolares, crescendo um adulto inabilitado para os requisitos de mãodeobra especializada. Há, ainda, outras formas de exclusão, tais como a permissão de participarem de programas impróprios, pelo seu caráter nocivo (que violentariam uma premissa básica de serem sujeitos em processo de desenvolvimento e, portanto, merecedores de cuidados especiais), além de outras circunstâncias em que o envolvimento da criança não seria saudável, tanto para a criança e o/a adolescente como para os seus genitores. Há que se buscar mecanismos, sobretudo, como um estilo de vida, senão alternativo, mas no mínimo diferenciado do senso comum no qual o mundo adulto relega à criança um papel secundário, um submundo de completo descaso. A análise da problemática da infância tem que ser entendida num contexto globalizante da situação do ser humano Desta forma é importante colocar quais são os principais problemas que afetam os habitantes do mundo de hoje. Fazer frente a isto, avaliando as possibilidades críticas de êxito e também os desafios de uma ação contínua em favor da infância e da juventude, necessário se faz esclarecer que todos os problemas conforme se detalham, possuem seu próprio caráter e sua profundidade de se manifestar, que não são idênticas às conseqüências dessas para a humanidade em seu conjunto e para seus diversos grupos sociais. Os problemas globais que afetam a humanidade vão desde a necessidade de impedir o atraso dos países em desenvolvimento à eliminação de revoltantes injustiças sociais até garantir o desenvolvimento equilibrado entre o crescimento demográfico e a dinâmica de oferecer alimentos, recursos energéticos, matériasprima e um efetivo cuidado de meio natural e, finalmente o problema do desenvolvimento do homem e da garantia de um futuro digno para ele. Para entrarmos na análise a que nos propomos, retrataremos alguns dos grandes problemas sociais, tais como o problema alimentar que resulta de difícil solução, o mesmo que está relacionado intimamente com o desenvolvimento demográfico. Durante os três primeiros quartos do século, a população aumentou 2,6 13 vezes, e a produção agrícola se desenvolveu somente 2,8 vezes. Ocasionando 500 milhões de pessoas que sofrem de fome crônica e alimentação insuficiente. Mais de 100 milhões de seres humanos se alimentam deficientemente. Durante os últimos 25 anos deste século, conforme cálculos moderados, a população aumentou em mais de 60% (635 milhões até o ano 2.000). De acordo com as projeções feitas pela ONU (2001), a população mundial crescerá em 52% passando para 9,3 bilhões. Como podemos vivenciar esse crescimento populacional, inevitavelmente, tem provocado um rápido crescimento no volume de procura dos alimentos. O diretor geral da FAO, Jacques Diouf, pediu à comunidade internacional não só que atue de imediato para solucionar a atual crise alimentar mundial, mas também que aproveite a oportunidade que constitui o aumento dos preços dos alimentos e se evite que esta situação dramática se repita no futuro 1 . No entender Diouf, “chegou o momento de relançar a agricultura, e a comunidade internacional não deveria perder a oportunidade” 2 . A formação de cidades de várias dezenas de milhões de habitantes acarreta graves problemas tanto na provisão de serviços básicos como nas condições de vida das pessoas: emprego, assistência médica, água potável, alimentos. Em todo o planeta o número da população urbana pode chegar a superar os três bilhões de pessoas. A esses problemas se somam outros como os que estão relacionados com os valores humanos e particularmente entre adultos, crianças e adolescentes. Justamente neste quesito é que se concentra a especificidade da problemática que abordamos, qual seja, o abuso sexual como uma forma crua de maltrato que interrompe o desenvolvimento harmônico da criança e a possibilidade a que ela escolha de per si o desenvolvimento de sua sexualidade. Resulta reivindicar os direitos subjetivos e não somente os direitos objetivos. O maltrato é um fenômeno integrado de ações que lesam os direitos das crianças e dos/as adolescentes onde quer que estejam desde os círculos mais particulares até o contexto geral da sociedade e do Estado. Dessa forma a sociedade é deteriorada quando as condições dos pobres impedem a família de satisfazer as necessidades básicas de seus filhos. O Estado é deteriorador quando não define políticas orientadas à proteção da criança e da família, quando não prioriza suas descobertas na área social ou quando no aparato legal introduz postulados coercitivos e práticas punitivas que geram violência contra os menores de idade. O abuso sexual tem aumentado progressivamente pelas trocas na estrutura familiar devido ao crescimento da taxa de divórcios, pais/padrastos que abusam de crianças e adolescente os quais, segundo a ciência, quando adultos transformamse, também, em abusadores. Outro fator é a nociva influência dos meios de comunicação no comportamento social e bem podem ser qualificados, em muitos casos, como motivadores ou indutores para atividades sexuais precoces. Veremos neste trabalho que as crianças e adolescentes do sexo feminino (muito embora, os do sexo masculino, também sejam alvos) são presas fáceis da exploração, doabuso e da violência que atingem seu corpo, seu sexo e seu ser. Tratase das circunstâncias que fazem parte da realidade da vida de toda a população pobre: a menina, no entanto, por sua múltipla vulnerabilidade – por ser criança, por ser mulher e também por ser pobre – é, entre todas as que se encontra em situação de mais alto risco. 1 In Agraportal. 02/05/2008. 2 Idem. 14 1.1 Histór ico Resgatando a figura das crianças na história da humanidade, observamos que a sua presença é praticamente nula, quando não, é recebedora de algumas atenções e cuidados, pelo seu status enquanto filho (a) de nobre, de castas especiais, como aconteceu durante a idade antiga. Os estudos históricos sobre a criança e o adolescente são muito recentes. Iniciaramse na década de 60 e se difundiram na década de 70. Estes estudos estão fundamentados em diversas fontes: decretos, livros de leis, prescrições da igreja, códigos, escritos filosóficos, escritos religiosos, registros oficiais, estudos demográficos, estudos epidemiológicos e testemunhos por registros que se baseiam na vida de uma família (em geral aristocrática) ou de uma comunidade, em determinado momento da história. O reconhecimento da criança como ser diferenciado dependeu dos modelos de cultura e dos fatores demográficos, da freqüente mortalidade e do inevitável desaparecimento (à mercê do azar), que criava uma indiferença para estes seres frágeis com quem ninguém queria se identificar nem se vincular. Eram considerados com a mesma ambigüidade que o feto, e não se avaliava o nascimento como mudança de natureza importante. Segundo Ariés: “não se pensava que esta criança continha já toda uma pessoa humana, como cremos habitualmente hoje” 3 . Aristóteles atribuiu à criança uma avidez doentia, próxima à loucura. Concedeulhe, apesar disto, disposições naturais para a virtude ao afirmar que a criança é um ser irracional carente de entendimento, e por capacidades inatas pode adquirir a razão, do pai ou do educador. Hipócrates propõe como natural de saber a que crianças convêm educar. Justino, o Santo que viveu entre 100 e 165 da era cristã, avocando o respeito dos cristãos pela vida da criança, especificava ser esta fútil recémnascida. Santo Agostinho não assinala à criança, um estado de inocência, ao contrário, consideraa um ser de natureza corrompida que não pode ser salva a não ser com o auxílio vindo dos céus. E afirma que se deixarmos o menor fazer o que lhe apraz, não há nenhum crime em que não se o veja precipitar. A criança e o/a adolescente durante os séculos suscitaram desconfiança e rechaço. A tradição do infanticídio estava tão estabelecida que conseguiu se manter abertamente durante vários séculos, depois da conversão ao cristianismo, até praticamente, ao final do século XVIII. Era praticado com freqüência não desdenhável, já que as tradições culturais não ofereciam aos cônjuges outros meios mais cômodos e eficazes para limitar sua descendência e porque a pessoa da criança não estava ainda verdadeiramente sacralizada e tampouco suscitava, em princípio, respeito e amor. À mortalidade infantil em massa, imputável pelas condições sanitárias antigas, se acrescentava uma mortalidade imputável pela negligência e descuido. O abandono da criança em plena natureza, sem condições de viver, a incapacidade dos pais em alimentar seus filhos, descuidos e incidentes como a asfixia na cama, desmame precoce ou negação de alimentos eram as razões mais freqüentes do infanticídio. Com raras exceções, nos escritos encontrados a criança sempre foi negligenciada pelos meios. No entanto, alguns registros da inquisição, como da época do Papa Avignon, Benedito XII (13181325), o nascimento do filho é cultural e afetivamente vivido, especialmente quando o filho era do sexo masculino (primogênito), e de origem aristocrática. Isto faz com que não se possam generalizar as atitudes hostis em épocas tão longas e em culturas muito diversas. Entre os nobres e os ricos, o afastamento dos filhos do ambiente da família, para serem criados no campo com nutrizes substitutas é o modelo encontrado na história de vários países como a Inglaterra, França e Espanha. Mesmo os príncipes tinham famílias substitutas, onde mamavam no seio nutriz até os dois ou três anos e ficavam por mais 3 ARIÉS, Philippe. História da Criança e da Família. p. 276. 15 tempo, praticamente até o período quando já passavam pelas doenças infantis, como sarampo, catapora, coqueluche e outras que dizimavam as crianças. Sobrevivendo, voltavam às suas famílias, onde passavam a ser considerados como pequenos adultos. Podemos dividir a história das crianças de acordo com as reações psicológicas dos adultos, especialmente a dos pais frente a elas, cuja classificação se deu seis épocas e conforme os pais projetam suas emoções: • Modo Infanticida – que se estende desde a antigüidade até o século IV da era cristã, no qual o rechaço está em primeiro plano. Na dificuldade de cuidar dos filhos, pela ansiedade, os pais os matavam. A imagem de Medéia não é um simples mito, mas o reflexo da realidade; • Modo de Abandono – do século IV ao século XIII, corresponde a um período no qual os pais começam a aceitar que a criança tenha alma; • Modo Ambivalente – do século XIV ao XVI, quando a criança era autorizada a penetrar na vida emocional de seus pais, mas poderiam ser perigosas. Os pais tratam de moldálas como patrão; • Modo Intrusivo – século XVIII, é uma época de grande transição. Os pais começam a se aproximar da criança e ensaiam a conquista de seu espírito, com a possibilidade de verdadeira empatia, sem dar importância ao amor; • Modo Social – do século XIX até meados do século XX. A educação passa a ser importante. Ela é menos um processo de conquista que um guia em seu próprio caminho. Educação com amor se torna o binômio importante; • Modo de Ajuda – os pais compreendem que os filhos sabem melhor do que seus pais aquilo que necessitam em cada idade da vida. A criança empurra seus pais (quando os têm) a tratar de compreender suas necessidades particulares. O fenômeno das relações violentas entre pais e filhos talvez tenha estado presente desde os primórdios da raça humana. Entretanto, foi somente no século XX que este fenômeno foi estudado amplamente por diversos ramos do conhecimento. Em meados do século XIX começa a se esboçar uma preocupação com a criança, ou seja, ela é descoberta como um ser humano autônomo, percebendose com mais profundidade seus valores, seus sentimentos. Novas ciências como a Psicanálise, a Pediatria, a Psicologia passaram a se consagrar aos problemas desta etapa da vida, a tal ponto que Ariés chega a dizer que “o mundo atual é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância” 4 . A era contemporânea marca uma acentuada intervenção do Estado na vida familiar. Com Revolução Francesa e as Constituições baseadas no Código Civil de Napoleão, com a teoria da res publica e com o reconhecimento da cidadania do operariado, a criação e a educação dos menores — futuros cidadãos — tornouse responsabilidade pública. 5 Isto vinculou as crianças ao Estado, que começou a exigir dos pais deveres e obrigações. As crianças passaram a ser encaradas como pessoas, ou seja, cidadãos em formação. Alguns movimentos podem ser percebidos, a partir daí na sociedade burguesa em termos da constituição e da destituição do poder familiar. Num primeiro momento, os pais são destituídos deste poder sobre o filho, uma vez que a ele é atribuída uma existência pública desde o nascimento.Num segundo momento, o Estado devolve aos pais o poder sobre o filho, consagrandolhes a tarefa de zelar pela educação da criança, 4 Op. Cit. p. 276. 5 SIMÕES, Carlos. A família e a propriedade no Código de Menores. p.85 16 e, num terceiro momento o Estado pode, ainda, confiscar o “pátrio poder” sob diversas circunstâncias, principalmente no caso específico de serem constatadas ameaças à integridade física da criança advinda de seus próprios pais. O Estado se organizou de forma a tomar conhecimento dos casos de violência imposta às crianças, estabelecendo medidas compatíveis. A criança é um fenômeno moderno, podese observar que numerosos ramos da Ciência começaram a se preocupar com ela e, evidentemente com o fenômeno da violência a que ela possa estar sujeita em seu ambiente familiar. Geralmente o termo violência tem sido empregado em diversas ciências como Física, Direito, Moral e Filosofia. No entender de Daniel: “referirse a situações de força (sobretudo de procedência exterior à pessoa que a sofre) que se opõe à naturalidade, à responsabilidade jurídica, à liberdade moral, etc.” 6 . Doutrinadores outros entendem, também, como a: “força material, ativa, vertida para o exterior e causa de prejuízo físico. Implica a relação energia física — prejuízo físico” 7 . O estudo das relações violentas entre pais e filhos sempre é tratado com certo pudor. Este é mais um dos “temas malditos” na medida em que, ao abordálo, se está desvelando uma face que a família tem todo interesse em manter oculta, preservando assim sua imagem de “santuário”. Por outro lado, o estudo do fenômeno envolve um componente ameaçador para seus protagonistas pelas conseqüências que acarreta na legislação (criminais para os agressores), e possibilidade de separação da criança dos pais pelas vias de institucionalização, guarda por terceiros, adoção. A violência que os pais podem exercer contra os filhos, com fins pretensamente disciplinadores, no exercício de sua função socializadora ou com outros objetivos, assume três facetas principais: 1. Física: quando a coação se processa através de maus tratos corporais (espancamentos, queimaduras etc.) ou negligência em termos de cuidados básicos (alimentação, vestuário, segurança, etc.); 2. Sexual: quando a coação se exerce tendo em vista obter a participação em práticas eróticas; 3. Psicológica: quando a coação é feita através de ameaças, humilhações, privação emocional. As crianças estiveram em muitos períodos da História sujeitas, desde a tenra idade, a todos os castigos e sanções destinados a adultos incluindose até a Pena capital. A história da criança tem sido também a história de um mundo de violências perpetradas contra ela na forma de escravidão, abandonos, mutilações, filicídio e espancamentos. Embora se saiba que a violência contra a criança, perpetradas nas formas acima descritas tenha explicações científicas que procuram correlacionála com o contexto sócioeconômicopolíticocultural em que ela se deu (ou se dá), como por exemplo, o filicídio, o trabalho infantil excessivo, etc.; o nosso objetivo será apenas o de descrever alguns tipos de violência a título exemplificativo. Estes mesmos exemplos, ocorridos em épocas diversas e em contextos também diversos, servirão para provar o fato de que a violência contra a criança é um fenômeno presente na raça humana. Não foi nossa preocupação apresentar os exemplos de forma cronológica, mas sim, enquanto flashes de uma realidade, não importando o período em que estivessem ocorrendo. A Bíblia é um dos instrumentos valiosos para se verificar o quanto a perseguição às crianças é antiga. Nela são descritos os grandes massacres sofridos na infância, como é o caso dos meninos judeus jogados ao rio, por ordem do Faraó, por ocasião do 6 DANIEL, Eduvaldo. Fenomenologia Crítica da Violência Urbana. p. 127. 7 FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer & FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aspectos jurídico penais da tortura. p.104. 17 nascimento de Moisés. O mesmo se repete em relação aos primogênitos egípcios do Êxodo e na matança de crianças nascidas em Belém, ordenada por Herodes, em perseguição a Jesus. A sociedade espartana, por exemplo, decretava a morte das crianças portadoras de defeitos físicos, uma vez que eram consideradas inaptas aos objetivos guerreiros desta mesma sociedade. Na antiga Cartago eram freqüentes os sacrifícios de crianças aos deuses. Segundo evidências arqueológicas, estas crianças eram queimadas, sendo que antes desse procedimento, eram imobilizadas, utilizandose para isso de drogas ou mordaças, e, que essa prática se dava não só por motivos religiosos, mas, também, econômicos. Estudando a história de Cartago, arqueólogos americanos perceberam que num dado momento este povo parou de sacrificar crianças trocandoas por animais, voltando, entretanto, tempos depois, a oferecer de novo crianças aos deuses. Atribuíram estas mudanças ao fato de que, no princípio, os cartagineses tinham uma economia desenvolvida, mas uma população pequena, sendo que não era conveniente o desperdício de recursos humanos. Era preferível o sacrifício de animais. Entre os romanos, em alguns períodos do seu império eram executados os varões portadores de deficiências físicas e mentais, bem como as crianças do sexo feminino, sob determinadas condições. Em uma passagem das Metamorphoses, de Ovídio (Livro IX), isto se torna claro quando Litus ordena à mulher, no caso de dar à luz uma menina, que a mate: “Edita forte tuo fuerit si femina partu (invitus mando, pietas ignosce) necato” 8 . Na idade contemporânea temse, por exemplo, o assassinato de crianças na Alemanha nazista: As crianças condenadas à morte eram enviadas a uma divisão infantil (Goerden, Eichberg, Indstei etc.). Em sua maioria eram envenenadas com fortes doses de luminal, drogas administradas em colheres, como se fossem medicamentos, ou então, misturadas com alimentos. A morte ocorria alguns dias depois e, às vezes, semanas mais tarde. Na prática, as ordens para matar crianças se multiplicavam, incluindo crianças com orelhas disformes, as que urinavam na cama, as que mesmo sendo perfeitamente sadias eram consideradas difíceis de educar. 9 Posteriormente, empregouse o método denominado eutanásia infantil, que consistia em deixar as crianças morrerem de fome literal e deliberadamente nas divisões infantis. As mutilações impostas às crianças com o objetivo de convertêlas em “mendigos profissionais” eram relatadas por M. Annaeus Sêneca, já na época de César. Este mesmo tipo de deformação é mencionado como existente no século XVII por Donzelot: Era realizada por mendigos que as compravam direta ou indiretamente, nos lugares de recolhimento que precederam à Ação de São Vicente de Paula ou na famosa Associação de Vagabundos, especializada em cirurgia teratológica, que eram os comprachicos (literalmente compracrianças). 10 Outros exemplos podem ser citados em termos de abandono de crianças, registrados em diferentes sociedades. Os romanos as lançavam em cestos de vime junto ao tronco da Figueira Ruminal ou da Coluna Lactaria no Forum Olitorium, 8 CANTU, César. História Universal. p. 482. 9 RASCOVSKY, Arnaldo. O Filicídio. p. 163. 10 DONZELOT, Jacques. A Política das Famílias. p. 59. 18 especialmente nos últimos anos de seu Império, quando o número de crianças abandonadas cresceu de forma significativa. Até os nossos dias, o problema do abandono não foi resolvido, aparecendo intensamente em algumas partes domundo. Tomemos ainda como exemplo, a Inglaterra nos fins do século passado, onde crianças de 04 anos de idade trabalhavam em fábricas e, a partir dos 08 anos em minas de carvão, durante 16 horas diárias. Em 1817, na Inglaterra cerca de 6% de mortes violentas eram classificadas como infanticídios. Os maus tratos dirigidos às crianças com fins pretensamente educativos têm antecedentes remotos. Essas violências sofreram sanções diversas que surgiram na forma de legislação específica destinada a salvaguardar a vida das crianças. Para tanto, basta que rebusquemos a história desde a Antigüidade até a Idade Contemporânea. O Código de Hamurabi, as inúmeras determinações dos imperadores romanos, a introdução dos mais diversos tipos de penalidades para os que maltratam crianças até a legislação atual, espelham a necessidade de diferentes sociedades em termos de estabelecer normas disciplinadoras da violência contra a criança, qualquer que seja o tipo desta violência. A violência sexual não é objeto de estudos severos por parte da História. Primeiro, pela deficiência de testemunhos, e, obviamente, o grosso das transgressões não ficou registrado, pois estaria dentro das circunstâncias em que a sociedade consideraria normal – previsível – a infração aos códigos vigentes. O conceito de estupro escondia experiências muito mais elásticas do que ilícitos penais cometidos contra a prática consentida da sexualidade. Esses ilícitos eram da competência de instâncias seculares e religiosas. No campo eclesiástico, o mais diretamente interessado nesse assunto constituía pecado ou impiedade, incluído nas transgressões da carne. O estupro era uma das modalidades da conjunção carnal ilícita, assim como a sedução, o rapto e a fraude sexual. Todavia, um caráter essencial o distinguia: a violência perpetrada contra a vítima, sempre de menor idade. Violência de um sexo que detinha o poder físico, econômico, moral e jurídico sobre o outro e que freqüentemente era exercitado pelo pai sobre suas filhas. A definição de estupro fala em atentado ao pudor, cometido com violência. As ordenações previam penas severíssimas aos estupradores de freiras, donzelas ou viúvas honestas. O Código Penal português estipulava, até em nosso século, que aquele que estuprasse mulher virgem ou viúva honesta (maior de 12 anos e menor de 17), teria a pena de degredo temporário. Na prática, as penas sempre foram mais suaves do que as leis estipulavam, mesmo estupros incestuosos encontravam conivência de juizes e da sociedade. Incestos envolvendo pais e filhas inseremse na pauta sexual de longo passado histórico. No folclore ibérico, pais incestuosos são personagens banais dos romances. Representam o indivíduo instintual que submete todos à satisfação de seus desejos, assumindo posições antiéticas e antisociais. A terceira figura do clássico triângulo Edipiano, a mãe, em algumas versões dos romances, lamenta não poder socorrer a filha. Em outras a maldizem, inculpandoa pelos revezes de seu casamento. A dissimulação dos estupros era necessariamente freqüente, o que explica que os processos arquivados sejam pouco numerosos, dificultando o seu estudo. Não obstante, como considera François Giraud 11 nas sociedades coloniais pluriétnicas o problema do estupro era essencial, pois a obsessão da mestiçagem e da pureza racial fez das práticas sexuais um jogo fundamental nas estratégias de confronto e de distinção social. Os casos de estupro envolvem crianças e adolescentes nos umbrais da puberdade. 11 GIRAUD, François. "Viol et société coloniale: le cas de la NouvelleEspagne au XVIIIe siècle". Annales 41. 1986. 19 Boa parte dos crimes ocorria no âmbito doméstico – tal qual hoje , ficando claro que a violência contra mulheres era tributária do poder macho, da “força e superioridade” dos criminosos. Analisando a nossa realidade brasileira, a preocupação com a situação de abandono e marginalidade da criança pobre não é recente. No final do século XIX, surgiram os primeiros movimentos no sentido de uma organização por parte da sociedade e do Estado para se lidar com a questão, e, desde então inúmeras tentativas são empreendidas no sentido de dar assistência e recuperação a essas crianças. Constituiuse uma ampla rede de instituições e programas de atendimento às crianças e aos adolescentes considerados carentes, abandonados e delinqüentes, bem como um extenso conjunto de leis de “proteção” à infância, que foi estruturado a partir da promulgação do Primeiro Código de Menores (1927). O forte domínio exercido pela esfera jurídica sobre a questão da infância durante todo o período de vigência do Código de Menores (1927 – 1990) resultou numa grave distorção de enfoque. Os problemas relacionados à infância, sobretudo aqueles que excediam às condições de resolução no âmbito das famílias pobres, adquiriram uma conotação predominantemente jurídica e desconectada do social. Essa distorção facilitou a dicotomização entre criança e menor que se estabeleceu em nosso país, ou seja, “menor” sendo invariavelmente a criança pobre, aquela que se encontra em situação irregular (Código de Menores, 1979), que é abandonada, que perambula pelas ruas, que comete atos infracionais. Somente nos anos 80 é que se observam fomentar uma nítida reação por parte de segmentos, os mais diversos da sociedade, contra o enorme descaso com que se vinha lidando com a questão. Muitas vozes se levantaram e foi possível a formação de um movimento em defesa da criança e do adolescente. Essa comunhão de esforços solidificouse em dois importantes momentos da década, ou seja: participação no processo de elaboração da Constituição Federal (1980), em particular o artigo 227, que trata dos direitos da criança e adolescente e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), lei que revogou o antigo Código de Menores. A partir de então, muitos estudos vêm sendo empreendidos com relação ao conhecimento sobre as condições de vida da infância no Brasil. Entretanto, é cada vez mais freqüente o deslocamento de crianças já a partir dos 07, 08 anos de idade para as ruas das grandes cidades em busca de ocupações que lhes garantam algum dinheiro. São os chamados “meninos e meninas de rua” – fenômeno que tem sido alvo de preocupação em todo o país nos últimos anos. Mesmo aqueles que não rompem com suas famílias estão expostos a todo o tipo de violência e exploração nas ruas, envolvidos em atividade ilegais, imorais, “rentosas”, como tráfico de drogas, assaltos, prostituição, etc. Associada a essa situação de extrema pobreza e vida indigna para milhões de crianças, observase outro fenômeno que tem causado grande constrangimento em todo o país. Tratase dos números alarmantes de crianças e adolescentes que vêm sendo assassinados em diversos estados brasileiros, onde os graves problemas sociais tornam a vida urbana particularmente difícil, encontramse milhares de casos por ano. Esses crimes, geralmente, são cometidos por grupos de extermínio que são contratados para matar as crianças, que por serem de segmentos pobres da população, são vistas como um mal para a sociedade. O que se desprende desse perfil é que a maioria das crianças e jovens brasileiros não têm sequer um futuro, pois os mesmos encontram obstáculos intransponíveis para o seu desenvolvimento pleno, sendo excluídos da participação no processo produtivo do país. No presente trabalho, interessanos voltar o olhar para o caso específico da menina. Indagando se as conseqüências dessarealidade atingem igualmente à criança e ao adolescente de ambos os sexos. Através de pesquisas e indagações, demonstraremos 20 que não, muito embora as circunstâncias de vida impostas pela pobreza sejam duras para todos. As meninas, por sua condição de gênero, são em muitos aspectos mais sacrificadas. 1.2 – A Violência de Gênero no Âmbito dos Direitos Humanos A violência de gênero resultante das relações estruturais de poderdominação e privilégio estabelecidos entre homens e mulheres na sociedade , ocorre em todas as classes sociais e regiões do mundo – tanto desenvolvidas quanto subdesenvolvidas e, permeia todas as dimensões da vida das mulheres, seja no lar, no trabalho ou na rua. Apesar dos esforços sistemáticos para entender a natureza e a ampla extensão da violência ser relativamente recentes, existe um número importante de estudos e pesquisas que analisam a violência contra a mulher e os fatores que a desencadeiam e a perpetuam. Os resultados dessas pesquisas confirmam a necessidade de se estudar a violência contra o sexo feminino, a partir de uma perspectiva analítica das relações de poder e de gênero. Ao mesmo tempo, indicam que a desigualdade que orienta essas relações e que coloca a mulher em situação desfavorável em relação ao homem, deriva de uma combinação de fatores culturais que repercutem em práticas sistemáticas de discriminação traduzidas em leis, normas sociais e políticas, econômicas discriminatórias. Esses fatores estão estritamente relacionados aos baixos níveis educacionais, à falta de profissionalização e à subordinação da mulher dentro do núcleo familiar. Além das privações e das péssimas condições de vida que uma proporção elevada de mulheres enfrenta em cada país, especialmente, nos países em desenvolvimento, elas também suportam a violência de gênero que, nas diversas regiões do mundo assume distintas formas, tais como maustratos físicos, tortura psicológica, esterilização forçada, mutilação genital, estupros (inclusive os perpetrados por maridos ou companheiros) e outros tipos de abuso sexual. Essa violência é dirigida às mulheres apenas pelo fato de serem mulheres. Nós a classificaremos de acordo com as formas sob as quais ela se manifesta, quais sejam: • Na família: agressão física (espancamento, mutilação, homicídio, ausência de assistência médica), abuso sexual (estupro, incesto), agressão emocional (confinamento doméstico, nãoaceitação da sexualidade, exigência de castidade, casamento forçado, desvalorização cotidiana, educação discriminatória); • No local de trabalho: agressão sexual (assédio, intimidação, exploração), salários femininos e condições precárias de trabalho; • Na comunidade: tráfico, prostituição (meninas da noite), estupro; pena de morte por adultério (legítima defesa da honra), obrigação de reproduzir; • Na mídia: pornografia, pedofilia (comercialização do corpo feminino como objeto descartável de prazer); • No Estado: violência política (através da polícia ou do exército, prisão, tortura, exílio, violência nas prisões, estupro), violência contra a saúde (tratamento médico inadequado, esterilização forçada, manipulação ginecológica abusiva, desinformação sobre contraceptivos), injustiça criminal (absolvição dos estupradores, ausência de proteção à mulher vítima). • Na religião: criação da mulher, condenação do sexo, exigência da virgindade para o casamento. A combinação desses tipos de abuso com as relações hierárquicas de gênero fornecem o marco de referência para localizar os contextos onde ocorre a violência contra a mulher, isto é, na família, na comunidade e no Estado. A violência doméstica é produto de um padrão de relações assimétricas entre homem e mulher, legitimado pela 21 ideologia dominantepatriarcal e favorecido pela forma na qual a mulher se encontra sujeita aos desígnios sócioeconômicos e culturais prevalecentes, construídos a partir da concepção masculina. O lar, em sua grande maioria, nem sempre é um espaço onde as mulheres e as crianças se encontram protegidas, pelo contrário, pode tornarse um lugar perigoso para elas quando são objetos de qualquer forma de abuso. Até recentemente a violência intrafamiliar era aceita como normal ou atada como um assunto de caráter individual ou privado. A dicotomia entre espaço público e espaço privado – com conotação hierárquica específica designada a cada sexo – surge como marco de análise a fim de explicar a subordinação da mulher dentro do lar. De acordo com este enfoque, a autoridade do homem estendese a todos os âmbitos da vida social, pública e privada, justificandose pela sua inserção no trabalho produtivo. Por outro lado, à mulher se destina o mundo doméstico, um espaço restrito e controlado, com a conotação de valores que isto significa, colocandoa, assim, em posição de inferioridade no conjunto das relações sociais, levandoa, portanto, a assumir comportamentos subordinados e freqüentemente dependentes. Com o tempo, tem sido redimensionada a compreensão intelectual e política das questões que se colocam, tanto para a ciência quanto para os movimentos sociais. À medida que se começa entender a violência a partir de uma perspectiva mais ampla, os aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais que possibilitam a explicação da violência estrutural são incorporados na análise. Uma das realizações mais significativas dentro desta perspectiva é a mudança da visão dicotômica do público e do privado. A violência intrafamiliar é muito mais difundida do que a refletida pelas estatísticas oficiais, que não conseguem mostrar a magnitude total do problema devido ao fato de que grande parte desta violência não é denunciada. De qualquer forma, as estatísticas existentes mostram que na família a mulher é vulnerável desde que nasce. No Brasil, de acordo com o Relatório da CPI da Violência (1992), foram registradas nas Delegacias, em média, 337 ocorrências diárias de violência contra as mulheres. Os tipos de violência mais freqüentemente denunciados foram a lesão corporal (26,2%) e a ameaça (16,4%). A categoria dos “outros”, com mais de 59% dos casos, compreende o atentado violento ao pudor, o rapto, o cárcere privado, a discriminação racial e no trabalho. Não obstante, apesar de existir o reconhecimento dos abusos cometidos contra a mulher, como são demonstrados pelos estudos realizados em diversas regiões do mundo, os direitos da mulher não têm sido considerados como Direitos Humanos e, portanto, de responsabilidade do Estado. É latente que, ao Estado cabe a responsabilidade da proteção de todos os cidadãos e cidadãs. Na maioria dos países – a exemplo do Brasil , essa proteção é estabelecida por sua Constituição, que promete igualdade para todos os habitantes da nação. Na realidade, são poucos os países que podem mostrar, na prática, a igualdade da mulher, tanto na política nacional quanto na externa, como direito humano básico. Parece até que os Direitos Humanos, intrínsecos à humanidade, são diferentes dos direitos das mulheres, como se elas tivessem outro tipo ou classe de direitos, diferentes dos contemplados dentro do conjunto dos Direitos Humanos. O combate à violência de gênero não é um assunto apenas da competência das mulheres. Existe a necessidade de a sociedade, em sua totalidade, reconhecer os efeitos negativos e retrógrados deste tipo de violência, bem com se faz necessário perceber que, embora as mulheres sejam as vítimas, essa questão não dever ser restritasomente às mulheres. Embora seja fundamental a tomada de consciência social a fim de combater a violência contra a mulher, tornouse também crucial a criação de mecanismos legais para contraatacar essa violência. A lei até agora tem falhado não só em impedir a 22 violência, mas também em punir como agente de mudança social e em muitos casos expõe, ainda mais, a mulher à exploração e à violência. 2.0 – DESENVOLVIMENTO 2.1 – Direitos Humanos Os Direitos Humanos devem ser concebidos como um conjunto de princípios garantidores da dignidade humana voltados para a não–agressão e a não–degradação da espécie humana. Hoje, mais do nunca, o empenho pela tutela desses direitos implica em uma contínua resistência, perceptíveis na defesa da cultura indígena, da ecologia, dos direitos das crianças e adolescente, das minorias étnicas, da paz, etc. Segundo Baratta, classificase em dois os grandes grupos fundamentais de Direitos Humanos: Pertencem ao primeiro grupo o direito à vida, à integridade física, à liberdade pessoal, à liberdade de opinião, de expressão, de religião, e também os direitos políticos. Ao segundo grupo pertencem os denominados direitos econômicosociais, dentre eles o direito ao trabalho, à educação etc. 12 Recorda Baratta que: O conteúdo normativo dos direitos humanos entendido numa concepção histórico social, sobrepõese às suas transcrições nos termos do direito nacional e das convenções internacionais, assim como a idéia de justiça sempre ultrapassa às suas realizações dentro do direito e indica o caminha à realização da idéia do homem, ou seja, do princípio da dignidade humana. A história dos povos e da sociedade apresentase como a história dos contínuos obstáculos encontrados neste caminho, a história da contínua violação dos direitos humanos, isto é, da permanente tentativa de se reprimir as necessidades reais das pessoas, dos grupos humanos e dos povos. 13 Os direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização. Todas as Declarações dos Direitos do Homem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que constituem em liberdade, também os direitos sociais, que consiste em poder. Quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos tanto mais diminuem a liberdade dos mesmos indivíduos. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é o de justificálos, mas o de protegêlos. Tratase de um problema não filosófico, mas político. A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido. E essa prova é o consenso 12 BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a Violência Estrutural e a Violência Penal. Trad. da revisão alemã (1993) do original espanhol por Ana Lúcia Sabadell. Universidade de Saarland, Alemanha. Complementa o autor que “outras distinções levam em consideração às necessidades específicas dos sujeitos. Nesse caso, distinguemse os direitos das pessoas, dos grupos, como por exemplo, no caso das minorias étnicas e os direitos dos povos, entre eles o direito à autodeterminação e o direito ao desenvolvimento”. pp .67 13 Idem. p. 04. 23 geral acerca de sua validade. É indispensável que os Direitos do Homem sejam protegidos por normas jurídicas. A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral em 20 de novembro de 1959, referese em seu preâmbulo à Declaração Universal, e, em seguida apresenta os problemas dos direitos da criança como uma especificação da solução dada ao problema dos direitos do homem. Sê se diz que a criança e o/a adolescente – em virtude de sua imaturidade física e intelectual , necessitam de uma proteção particular e de cuidados especiais, deixase assim claro que os direitos da criança e do/a adolescente são considerados como um “ius singulare” com relação a um “ius com mune”. Vale dizer, na medida em que se impede ao homem de se desenvolver plenamente, neste momento, dáse o início a um processo de violência, que se manifesta das mais variadas formas, servindose de diferentes meios. 2.1.2 – Dos Direitos da Criança e do Adolescente O processo de construção de um novo direito – o Direito da Criança e do Adolescente – que não tem a pretensão de ser autônomo, haja vista que cada vez mais tomamos consciência da interdisciplinaridade, se apresenta hoje como uma das mais importantes discussões. Esse direito, sobre o qual nos debruçamos, evidencia não somente a importância, mas a imprescindibilidade da conjugação de conhecimentos. O novo direito da criança e do adolescente é construído com vistas ao Direito Internacional Público e Privado, ante os Tratados e as Convenções Internacionais, ao Direito Constitucional, que no caso brasileiro, deferem absoluta prioridade à criança e ao adolescente, ao Direito Civil, Penal, Trabalhista, Processuais e ainda, leis extravagantes. Exemplifica essa defesa de direitos, Ação Civil Pública, imprescindível em se tratando da tutela dos interesses difusos. Devemos considerar, ainda, o seu entrelaçamento com outras áreas do conhecimento, que não o jurídico, como a sociologia, psicologia e criminologia, conforme dito alhures. Entendemos como necessário elaborarmos um resgate histórico das nossas leis e ações em favor da criança brasileira, para daí compreendermos no que consiste, efetivamente, a mudança de paradigma ocorrida. Ou seja, do Direito Tutelar, caracterizador da doutrina da situação irregular, para um Direito Protetor, responsável pela Doutrina da Proteção Integral. Reconstituir a história da criança e do adolescente através das legislações e iniciativas assistenciais surgidas em seu favor no Brasil, a partir de 1823 – logo após a independência política de Portugal (7 de setembro de 1822), implicou em resgatar aspectos específicos que traçaram e estruturaram esse movimento. O tímido surgimento das primeiras leis e instituições foi sendo firmado gradativamente. Quando da primeira colocação sobre o problema da criança (criança negra), em virtude do nosso sistema escravocrata, na Constituinte de 1823, não houve uma preocupação com a criança negra em si. Quando José Bonifácio defendia que a escrava depois do parto teria um mês de convalescência, e durante o ano que se seguisse não trabalharia longe “da cria” 14 ; antes, o que se pretendia era zelar por aquele que constituiria em breve a força de trabalho gratuito, ou seja, o escravo. Com a decretação (1871) da Lei do Ventre Livre, fruto da campanha abolicionista, os senhores de escravos delineavam dois caminhos: ou recebiam do Estado uma indenização (deixando no abandono as crianças libertas cujos pais permaneciam no cativeiro), ou as sustentavam 14 Revista Retrato do Brasil. “Organização Social/população: a situação do menor e os órgãos de proteção – nossos pixotes”. p.303 24 e, em seguida, cobrariam tal “generosidade” através de trabalhos forçados até que completassem 21 anos. Observando o processo de formação das instituições que prestavam serviços de assistência às crianças e aos adolescentes, verificamos que, no período colonial e no Império, a mesma se dava em três níveis: uma caritativa, prestada pela igreja através das ordens religiosas e associações civis; outra filantrópica, oriunda da aristocracia rural e mercantilista e, a terceira (em menor número), fruto de algumas realizações da CoroaPortuguesa. Com as mutações sociais, políticas e econômicas que se sucederam à Abolição dos Escravos (1888) e à Proclamação da República (1889), a proteção e assistência à criança tornaramse cada vez mais uma necessidade, sentida, sobretudo, pelo próprio corpo social. A partir de 1920, fortaleceuse a opinião de que ao Estado caberia assistir à criança. Tanto que surge desse período o trabalho de formulação de uma legislação específica para crianças e adolescentes, o que se consolidou no Decreto n. 17.943 – A, de 12 de outubro de 1927, cuja elaboração foi confiada pelo Presidente Washington Luiz ao jurista Mello Mattos. O Código de Menores de 1927 conseguiu corporificar leis e decretos que, desde 1902, propunhase a aprovar um mecanismo legal que desse especial relevo à questão do menor de idade. Alterou e substituiu concepções obsoletas como as de discernimento, culpabilidade, responsabilidade, discriminando, ainda, que a assistência à infância deveria passar da esfera punitiva para a esfera educacional. A concepção dessa lei pôs em relevo questões controversa em relação à legislação civil em vigor. Com o Código de Menores, o “pátrio poder” foi transformado em pátrio dever, pois ao Estado era permitido intervir na relação pai/filho, ou mesmo substituir a autoridade paterna, caso este não tivesse condições ou se recusasse a dar ao filho uma educação regular, recorrendo então o Estado à utilização do internato. Já no Código Civil (1916), o pai, enquanto chefe da prole continuava detendo o “pátrio poder”, sobre todos os que compunham a estrutura familiar: mulher, filhos, agregados, pessoas e bens sob o seu domínio. Na esfera constitucional, as Cartas de 1824 e 1891 são omissas com relação à criança. A primeira a se referir sobre o assunto foi a Constituição de 1934, ao proibir o trabalho para os de idade inferior a 14 anos. A partir de 1937, é ampliada a esfera de proteção à infância, ficando ao encargo do Estado assistila nos casos de carência. A Constituição de 1946 continuou de igual modo, protegendoa desde a maternidade. Por sua vez, a Constituição Federal de 1967, seguida pela Emenda Constitucional n.1, de 1969, ao instituir a assistência ao universo infanto juvenil, não seguiu, no todo, as Constituições precedentes, determinando duas modificações, quais sejam: a primeira, referente à idade mínima para a iniciação ao trabalho, que passa a ser de 12 anos, e, a segunda, instituindo o e sino obrigatório e gratuito nos estabelecimentos oficiais para as crianças de 07 a 14 anos de idade. A postura assumida pelo Estado brasileiro de permitir o trabalho de crianças com 12 anos, a partir de 1967, significou um retrocesso com relação às legislações da maioria dos países. A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988 significou um grande avanço nos Direitos Sociais e isto por sua vez beneficiou, entre outros, a criança e o/a adolescente, ou, deveria ter beneficiado, vez que ao declarar absoluta prioridade em todas as circunstâncias à população infantojuvenil. Nessa perspectiva, temse exemplificativamente, que a idade mínima para admissão ao trabalho é, novamente, fixada aos 14 anos (artigo 7º, XXXIII), sob a forma de aprendiz. Muito embora, na Convenção de n. 182 e Recomendação de n. 190, a OIT tenha deliberado ao empregador admitir apenas os maiores de 16 anos. Nesse sentido, o Brasil deliberou pelo trabalho sob a forma de aprendiz a partir dos 14 anos, fato gerador de polêmica em nossa sociedade. Por um lado, opinam alguns que é melhor trabalhar que 25 ficar nas ruas. Outros, mais engajados na legislação de proteção integral à criança e ao adolescente (a exemplo desta autora), opina no sentido de que lugar de crianças e adolescente é, justamente, no orçamento público gozando de prioridade, a fim de que possam gozar de todos os seus direitos e garantias fundamentais. Quanto à educação, a referida Carta Política, em seu artigo 208, determina como dever do Estado garantir ensino fundamental (primeiro grau), obrigatório e gratuito, até mesmo para os que a ele não tiverem acesso na idade própria. Consoante a presente análise histórica, verificouse que a expressão “menor” foi usada como categoria jurídica desde as Ordenações do Reino, como caracterizadora da criança ou do adolescente envolvidos com a prática de infrações Penais. Já no Código de Menores de 1927, o termo foi utilizado para designar aqueles que se encontrava em situações de carência material ou moral, além de infratoras (conforme dito alhures). Com o surgimento do Código de Menores de 1979, surge uma nova categoria: “menor em situação irregular”, isto é, o menor de 18 anos, abandonado materialmente, vítima de maustratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta ou autor de infração penal. O Código de Menores, apesar de ter constituído um avanço em algumas direções, continha, no entanto, aspectos controversos que permitiam questionamentos e críticas, como é o caso das características inquisitoriais do processo envolvendo crianças e adolescentes, quando a própria Constituição garantia ao maior de 18 anos ampla defesa. O referido Código não previa o princípio do contraditório. Outro fato que pode ser colocado como exemplo dessa distorção era a existência, para os menores de 18 anos da prisão cautelar, vez que ao “menor” a que se atribuía a autoria de infração penal, podia ser apreendido para fins de verificação, o que significava uma verdadeira afronta aos direitos da criança e do adolescente, na medida em que para o adulto a Prisão Preventiva só poderia ser aplicada em dois casos: flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (artigo 5º, LXI, Constituição Federal 1988). O Estatuto da Criança e do Adolescente veio pôr fim a estas e tantas outras situações que implicavam numa ameaça aos direitos da criança e do adolescente. Suscita no seu conjunto de medidas uma nova postura a ser tomada tanto pela família, pela sociedade, como também pelo Estado, objetivando resguardar os direitos da criança e do/a adolescente zelando para que não sejam, sequer, ameaçados. No entanto, embora existam pessoas comprometidas com a causa e que não se cansam de interceder nesse sentido, observamos que o Estatuto até hoje não ser tornou eficaz em face da falta de implementação por parte do governo. Do universo de documentos internacionais que objetivam resguardar as garantias dos Direitos InfantoJuvenis destacase a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança aprovada pela Assembléia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Se elaborarmos uma análise pormenorizada desse Tratado de Direitos Humanos, constatamos a sua efetiva influência sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, chama atenção o fato de que a Convenção Internacional não se configura numa simples carta de intenções, vez que tem natureza coercitiva e exige dos EstadosPartes que a subscreveu e ratificou um determinado agir, consistindo, portanto, num documento que expressa de forma clara, sem subterfúgios, a responsabilidade de todos com o futuro. A referida Convenção trouxe a proteção integral para o universo jurídico da Doutrina. Situa a criança dentro de um quadro de garantia integral, evidencia que cada país deverá dirigir suas políticas e diretrizes tendo por objetivo priorizar os interesses das novas gerações. A infância passa a ser concebida não mais como um objeto de medidas tuteladoras o que implica reconhecer a criança e o/a adolescentesob a perspectiva de sujeitos de direitos. 26 O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao assegurar em seu art. 1º a proteção integral à criança e ao adolescente, reconheceu como fundamentação doutrinária o princípio da Convenção que em seu artigo 19 determina: Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela. 15 A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 227, caput: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A atual Carta Política tem essa nova base doutrinária, na qual implica que, fundamentalmente, as crianças e adolescentes brasileiros passam a ser sujeitos de direitos. Essa categoria encontra sua expressão mais significativa na própria concepção de Direitos Humanos de Lefort: “o direito a ter direitos” 16 , ou seja, da dinâmica dos novos direitos que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. A Lei anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Código de Menores de 1979) fundamentavase na doutrina da situação irregular, isto é, havia um conjunto de regras jurídicas que se dirigiam a um tipo de criança ou adolescente específico, aqueles que estavam inseridos num quadro de patologia social, elencados no seu artigo 2º. O que equivale afirmar, no entender de Amaral e Silva, que tal doutrina: Confunde na mesma situação irregular, abandonados, maltratados, vítimas e infratores. Causa perplexidade que se considerasse em situação irregular o menino abandonado ou maltratado pelo pai, ou aquele de saúde ou da educação por incúria do Estado. 17 Salienta o citado autor que, estará sim em situação irregular: (...) aquele que descumprir os deveres inerentes ao pátrio poder ou quem negligenciar políticas sociais básicas. Está em situação irregular, de ilegalidade, o pai que abandona ou o Estado que negligencia nunca o abandonado, a vítima. 18 (sic) 15 Aliás, tal regra repetiu o que já havia sido colocado na Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), que no seu princípio de n. 9 dispõe: “A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma”. 16 LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre sobre democracia, revolução e à liberdade, p. 58. 17 AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. Comentários do debatedor. In Simonetti, C. et ali (orgs.) – “Do avesso ao Direito, p. 37. 18 Idem. 27 O Código de Menores de 1979, ao se dirigir a uma categoria de crianças e adolescentes (os que se encontravam em situação irregular), colocavase como uma legislação tutelar. Na realidade, tal tutela pode ser entendida como culturalmente inferiorizadora, pois implica no resguardo da superioridade de alguns, ou mesmo de grupos, sobre outros, como a história registrou ter ocorrido, e ainda, ocorrer com as mulheres, índios e outros. 19 Dessa forma, a Lei 8069/90 significou a convicção de que a criança e o adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento necessitam de uma proteção especializada, diferenciada e integral. O advento de uma legislação que se ocupasse seriamente dos direitos da infância e da adolescência era de caráter imprescindível, pois havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de “menores” para a de cidadãos. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem a relevante função ao regulamentar o texto constitucional, de fazer com que este último não se constitua em letra morta. No entanto, a simples existência de leis que proclamem os direitos sociais por si só não consegue mudar as estruturas. Antes há que se conjugar aos direitos, uma política social eficaz que de fato, assegure materialmente os direitos já positivados, conforme nos referimos anteriormente. E isto significa que se dê um impulso aos dois grandes princípios da Lei n. 8069/90, o da descentralização e o da participação. A implementação deste primeiro princípio deve resultar numa melhor divisão de tarefas, de empenhos, entre a União, os Estados e os Municípios no cumprimento dos direitos sociais. No que tange à participação, esta, importa na atuação sempre progressiva e constante da sociedade em todos os campos da ação. 2.1.3 – Da Tutela Jurisdicional A Lei n. 8069/90 diz respeito à possibilidade dos direitos das crianças e dos adolescentes serem demandados em juízo. Portanto, ao tratar da tutela jurisdicional dos interesses individuais, difusos e coletivos, chama a atenção o fato de que o Estatuto da Criança e do Adolescente está em consonância com as novas diretrizes da processualística civil, por três motivos: 1º Ao contemplar os meios judiciais garantidores dos interesses da criança e do adolescente (sobretudo no que diz respeito aos direitos coletivos e difusos), percebese que a natureza privatista do direito processual está sendo objeto de profundas modificações, as quais remetem à necessidade de superação de determinadas estruturas tradicionais. Por conseguinte, a Lei em comento, ao admitir o ingresso em juízo dos mais variados tipos de demandas que visem à proteção de seus interesses, importa um significativo avanço no campo processual, vez que não está presa à idéia de procedimentos, de rito, considerando merecedor de atenção o conteúdo do direito que está sendo pleiteado; 2º – Ao se preocupar com o tema do acesso à justiça, esta nova lei atenta ao fato de que hoje, a garantia desse acesso se constitui num dos mais elementares direitos, pois 19 Neste quesito, muito oportuna a crítica de Zaffaroni ao afirmar que: “Ao longo de toda a história da humanidade, a ideologia tutelar em qualquer âmbito resultou em um sistema processual punitivo inquisitório. O tutelado sempre o tem sido em razão de alguma inferioridade (teológica, racial, cultural, biológica, etc.), colonizados, mulheres, doentes mentais, minorias sexuais etc., foram psiquiatrisados ou considerados inferiores e, portanto, necessitados de tutela”. Zaffaroni, Raul. Do Advogado – artigo 206: In Cury, Munir et ali (coords.). Estatuto da Criança e do Adolescente: comentários jurídicos e sociais. p. 640. 28 a sociedade pouco a pouco passou a compreender que não mais é suficiente que o ordenamento jurídico contemple direitos, antes é imprescindível que estes sejam efetivados, sendo que a propositura em juízo é, portanto, um dos mecanismos que visam a sua aplicabilidade; 3º – O acesso à Justiça na interposição de interesses afetos à criança e ao adolescente se constitui, ainda, em mais um fator a corroborar no processo de transformação do próprio Poder Judiciário, o qual passa a ser um instrumento de expansão da cidadania. Isto se dá porque da antiga posição de árbitro de litígios de natureza intersubjuntiva, agora é chamado a posicionarse diante de situações de caráter transindividual, como o são os direitos sociais. Uma das inovações trazidas pelo Estatuto da
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