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MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: PERSPECTIVA SOCIO-HISTÓRICA E NEUROPSICOLÓGICA AULA 3 Prof. Reginaldo Daniel da Silveira 2 CONVERSA INICIAL Perspectiva neuropsicológica O interesse pelo conhecimento que veio a se chamar de neuropsicologia é bastante remoto, e na história do desenvolvimento humano várias linhas de pensamento surgiram: a concepção de que a sede anatômica que explicava os processos mentais era o coração, depois o cérebro e, a partir de então, novas ideias apareceram, algumas em experimentos, e outras pela concepção de pensadores. Estudar a neuropsicologia é estudar neurotransmissores e por meio destes abstrair ideias sobre equilíbrio/desequilíbrio neuroquímico, uso de psicofármacos para medicar problemas relacionados aos processos mentais e aplicar saberes também no processo ensino-aprendizagem. TEMA 1 – UM BREVE HISTÓRICO DA NEUROPSICOLOGIA A neuropsicologia investiga as relações entre as funções psicológicas e a atividade cerebral. De modo específico, estuda funções cognitivas como memória, linguagem, raciocínio, habilidades visuoespaciais, reconhecimento e capacidade de resolução de problemas, entre outras. Dalgalarrondo (2008) explica as alterações classicamente estudadas pela neuropsicologia, como as afasias (perda de linguagem), as agnosias (perda de capacidade de reconhecimento), as amnésias (déficits de memória) e as apraxias (perda da capacidade de realizar gestos complexos). Sua origem situa-se entre os séculos XIX e XX, mas a história das investigações psicológicas e atividades cerebrais começou na antiguidade. Papiros faraônicos já indicavam o conhecimento dos egípcios sobre o funcionamento do cérebro (Reis, 2019). Um desses papiros, descoberto por Edwin Smith no século XIX, descreve detalhadamente pelo menos 48 casos a respeito de tratamentos racionais, com prognósticos (Pinheiro, 2005). A curiosidade pelo cérebro fez a craniotomia ser usada de forma indiscriminada ao longo da evolução humana. Estudos arqueológicos datados da antiguidade (8.000 a 5.000 a.C.) mostram, em diferentes lugares e culturas, crânios trepanados em cirurgias realizadas por perfurações no crânio (Hamdan; Pereira; Sá Riechi, 2011). 3 Chamam a atenção desde a antiguidade três perspectivas relacionais, nas quais hipóteses se confrontavam: (1) cardíaca x cérebro; (2) localizacionismo x holismo; e (3) funcionalismo x cognitivismo (Hamdan; Pereira; Sá Riechi, 2011). Essa diversidade de estudos entre cérebro e comportamento gerou diferentes percepções até chegarmos à neuropsicologia atual. Nem sempre o cérebro foi visto como a morada da mente. Os egípcios, por exemplo, viam o coração como local da alma; eles embalsamavam cuidadosamente o coração de seus mortos, mas o cérebro era simplesmente jogado fora. O coração seria pesado na vida após a morte para determinar o destino do falecido. Os antigos povos da Índia e da China tinham concepções errôneas semelhantes (Gazzaniga; Heatherton, 2005, p. 121). O nascimento da biologia e a teoria da seleção natural de Charles Darwin (7809-1882) marcaram o século XIX, fazendo com que a evolução conceitual da mente como atributo supremo e divino passasse por diferentes interpretações até ser vista no âmbito do sistema nervoso humano (Pinheiro, 2005). Contribuíram para isso quebras de paradigma como saber que o córtex cerebral não era apenas uma área de funcionamento homogêneo, mas uma estrutura heterogênea de funções mentais em diminutas porções anatômicas. A denominação localizacionista proposta pelos fundadores da frenologia1 considerando qualidades atribuídas a diferentes regiões do córtex cerebral foi considerada acertada, bem como a percepção de que o córtex está conectado à medula espinal e pode controlar os movimentos. Dois erros, porém, foram considerados: (1) a crença de que atributos mentais se expressam na anatomia externa do crânio; e (2) a atribuição de características psicológicas extremamente refinadas às diferentes regiões (Gazzaniga; Heatherton, 2005). No meio do caminho, os frenologistas foram confrontados com a teoria da equipotencialidade, que dizia estarem todos os processos mentais distribuídos igualmente a todas as partes do córtex. Para provar isso, o cientista francês Marie-Jean-Pierre Flourens (1794-1867) removia sistematicamente partes do cérebro de animais e observava seu comportamento subsequente (Gazzaniga; Heatherton, 2005). Não obstante os métodos de Flourens terem apresentado falhas na sequência de conclusões errôneas em experimentos com pássaros e 1 Os fundadores da frenologia foram Franz Joseph Gal (1758-1852), um dos primeiros a ilustrar com precisão as circunvoluções cortais, e Johann Spurzheim (1776-1832), pioneiro em fazer correlações experimentais e estimulações localizadas (Relvas, 2012). 4 anfíbios, a controvérsia entre os defensores da equipotencialidade e frenologistas continuou. Em 1861, um homem em estado terminal conhecido como Monsieur Leborgne, incapaz de dizer nada além da palavra tan, foi internado sob os cuidados do médico Paul Broca (1824-1880). Após a morte dele, Broca examinou-lhe o cérebro e encontrou uma grande lesão de um acidente vascular cerebral – um vaso sanguíneo bloqueado no lado esquerdo. O caso foi considerado um significativo achado, havia ali a porção anatômica responsável por uma das características humanas, a linguagem. Essa pequena região frontal do cérebro passou a ser conhecida como área de Broca (Gazzaniga; Heatherton, 2005). O século XX sublinhou a confirmação da neuropsicologia como especialidade do conhecimento. A partir da década de 1950, ela se diferenciou da neurologia, da psicologia e da psiquiatria, abrindo caminho para os estudos atuais sobre atenção, aprendizagem, percepção e memória por meio de métodos da psicologia experimental (Hamdan; Pereira; Sá Riechi, 2011). Atualmente, no entender de Gazzaniga e Heatherton (2005), conhecemos uma parte da superfície do cérebro, e longe de ser uma estrutura uniforme, ela é uma colcha de retalhos de muitas áreas altamente especializadas. Os autores atentam para uma organização dividida em regiões correspondentes a complexos traços de personalidade, como os frenologistas defendiam. As áreas cerebrais são especializadas para componentes mais rudimentares da percepção, do comportamento e da vida mental. Destaca-se que uma grande área do cérebro é dedicada a diferentes aspectos da visão, por exemplo, e outra, a produzir movimentos simples. Outro ponto ressaltado pelos autores citados é sobre o mito do uso limitado do nosso cérebro. Uma concepção errônea semelhante está corporificada no mito comum de que nós só utilizamos uma pequena porcentagem, digamos 10%, de nosso cérebro, com a implicação de que seríamos mais inteligentes ou mais criativos se utilizássemos uma parte maior do cérebro, ou de que não seríamos muito diferentes se usássemos menos. Isso está absolutamente errado. Uma vez que as regiões cerebrais são altamente especializadas, a atividade em uma área em um momento inadequado seria desastrosa. Além, a perda até mesmo de uma pequena região cerebral provoca a perda da função daquela região. Em certa extensão, nós nos recuperamos dos danos sofridos pelo cérebro, mas, com maior frequência, perder uma parte dele causa déficits, muitos dos quais são óbvios. (Gazzaniga; Heatherton, 2005, p. 123) 5 TEMA 2 – PERSPECTIVA ECONÔMICA DA MEDICALIZAÇÃO Estudos sobre o tratamento dos transtornos mentais mostraram em seu desenvolvimento um arcabouço de argumentos para explicar o que leva o indivíduo a ter comportamentos psicológicos desajustados. Na visão de Gazzaniga e Heatherton (2005), a teoria psicanalítica de Freud defendia que os transtornos de ansiedade eram resultados de impulsos sexuais e agressivos reprimidos, argumentos não confirmados e não úteis paratratar a ansiedade. As evidências mostraram ao longo do tempo que as técnicas cognitivo-comportamentais funcionam melhor para tratar a maioria dos transtornos de ansiedade. Segundo os autores, o uso de drogas ansiolíticas também é benéfico em alguns casos, embora existam riscos de efeitos colaterais, assim como de recaídas, depois que o tratamento terminar. O exemplo dado dos tranquilizantes mostra que funcionam enquanto a medicação estiver sendo tomada, mas pouco fazem para aliviar a fonte do problema. Essas inflexões nos levam a buscar entender o que são e quais os efeitos que os psicofármacos provocam no indivíduo. Medicamentos psicofármacos ou psicotrópicos são substâncias químicas que atuam sobre o sistema nervoso central, com efeitos nos processos mentais; nesse sentido, são consideradas drogas que estimulam ou deprimem a atividade mental (Cintra et al., 2019). Os psicofármacos se dividem em ansiolíticos, sedativos e hipnóticos (tratamento da ansiedade), antipsicóticos (usados nas psicoses) e antidepressores (para perturbações do humor). Usar ou não usar um psicofármaco está relacionado ao diagnóstico apresentado. As indicações médicas destacam a importância da medicação em esquizofrenia, transtorno bipolar, depressões graves ou controle de ataques de pânico. Cordioli (2005) reporta também o uso em fobias específicas, transtornos de personalidade e problemas situacionais. 2.1 Neurotransmissores Neurotransmissores são substâncias químicas que carregam sinais entre neurônios (Weiten, 2010). Os sinais são as informações transmitidas de um para o outro (sinapses). Entendidos como unidades básicas do sistema nervoso, os neurônios são células especializadas em comunicação; diferem da maioria das 6 outras células por serem excitáveis, uma vez que operam por meio de impulsos elétricos e se comunicam por sinais químicos. Pode-se dizer que eles: (1) recebem informações dos neurônios vizinhos (recepção); (2) integram esses sinais (condução); e (3) passam sinais para outros neurônios (transmissão). Uma corrente de estudos defende que são os desequilíbrios químicos nos mensageiros (neurônios) os causadores de distúrbios (depressão, déficit de atenção/hiperatividade e outros). Para Smith e Strick (2001, p. 26), “qualquer mudança no clima químico delicadamente equilibrado do cérebro pode interferir nesses neurotransmissores e prejudicar a capacidade do cérebro de funcionar adequadamente”. As autoras dão o exemplo de pessoas intoxicadas com álcool que experienciam uma alteração temporária da química cerebral, com efeitos na fala, na coordenação motora e na capacidade de solução de problemas. Nesse sentido, tais desequilíbrios neuroquímicos interfeririam na capacidade de aprendizagem. Vejamos alguns dos principais neurotransmissores que estariam dentro da perspectiva de desequilíbrio químico. 2.2 Monoaminas As monoaminas são neurotransmissores sintetizados nos neurônios a partir de aminoácidos (moléculas formadoras de proteínas) que regulam os estados de excitação e afeto e motivam o comportamento (Gazzaniga; Heatherton, 2005). As quatro monoaminas são adrenalina, noradrenalina, dopamina e serotonina. A adrenalina é encontrada principalmente no corpo e em pequena quantidade no cérebro e é responsável pela explosão de energia corporal. A noradrenalina, por sua vez, corresponde a estados de excitação e vigilância e tem maior influência no cérebro, geralmente para inibir potenciais de ação (Gazzaniga; Heatherton, 2005). A dopamina é um neurotransmissor associado ao prazer e à satisfação. Os sentimentos de satisfação, quando desejados, fazem que o indivíduo repita comportamentos (alimentos, sexo e drogas, entre outros) que levem à sua liberação. Para Freitas e Amarante (2017), a dopamina, juntamente com a adrenalina e a serotonina, pode explicar os efeitos dos desequilíbrios químicos nos transtornos, especialmente esquizofrenia, ansiedade e depressão. A serotonina está relacionada a estados emocionais, impulsos e o sonhar. Quando os níveis de serotonina são baixos, pode haver humor triste, 7 ansiedade, desejo de comer e agressividade. As drogas que bloqueiam sua reabsorção são usadas atualmente para tratar de transtornos mentais e comportamentais como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos alimentares e obesidade (Gazzaniga; Heatherton, 2005).2 As controvérsias a respeito do desequilíbrio químico ainda vão continuar, considerando-se não haver estudos definitivos comprovando que depressão, TDAH e outros distúrbios sejam causados por baixa produção de certos neurotransmissores. Uma comprovação com raízes biológicas ainda está por vir (Müller, 2017). TEMA 3 – ASPECTOS NEUROPSICOLÓGICOS DA MEDICALIZAÇÃO Ao se falar em aspectos neuropsicológicos da medicalização, é impossível ignorar que o desenvolvimento de medicamentos psicotrópicos nas últimas seis décadas trouxe resultados positivos notadamente na diminuição de sintomas em alucinações e delírios. Deve-se considerar, contudo, que “na maioria das vezes, os pacientes também apresentam questões interpessoais e psicossociais subjacentes ao quadro clínico, as quais não são resolvidas exclusivamente pela farmacoterapia” (Rodrigues; Silva; Cordioli, 2014, p. 611). Entende-se, assim, que os chamados prejuízos no funcionamento ocupacional, social e interpessoal vão além de uma medicalização extrema. A hipótese natural quanto ao uso de psicofármacos para problemas neuropsicológicos é a sua aplicabilidade em manifestações sintomáticas bem definidas, considerando-se o paciente como sujeito de um processo de busca do bem-estar, da saúde, de um viver mais digno. Pesquisas de campo, contudo, segundo ressaltam Ignacio e Nardi (2007), mostram que a medicalização por psicofármacos acaba se apresentando como estratégia de controle próprio à biopolítica. É patente a constatação de que, para transtornos como esquizofrenia, os medicamentos sejam o tratamento preferencial (Cordioli, 2005). Nesses casos, o pressuposto é de que a dopamina em excesso está associada aos sintomas 2 Esses autores também citam aminoácidos que funcionam sozinhos como neurotransmissores: o GABA (ácido gama-aminobutírico), que é o transmissor inibidor primário no sistema nervoso, operando em todo o cérebro; e o glutamato, que é o transmissor excitatório primário no sistema nervoso e está envolvido na transmissão neuronal. Além disso, cadeias de dois ou mais aminoácidos existem no cérebro e no corpo para modular a neurotransmissão. São os peptídeos, a colecistocina (CCK), as endorfinas e a substância P. 8 mais característicos do transtorno (delírios e alucinações). A maior parte das drogas úteis amortece a atividade da dopamina no cérebro, porém é preciso estar ciente, como sublinha Weiten (2010), que as evidências ligando a esquizofrenia a níveis altos de dopamina são cercadas de inconsistências, complexidades e problemas interpretativos. Ao nosso ver, cria-se aqui, como em todo o processo de medicalização, uma dialética entre o cuidado e a medicalização, ou seja, assumem-se as contribuições do modelo biomédico e usa-se o mesmo para dar fiança a qualquer prescrição, mesmo diante de inconsistências. Por mais bem intencionado que seja o profissional, ele “precisa seguir o modelo”. Parte-se do diagnóstico para o tratamento e do tratamento para o diagnóstico, como se apenas existissem o médico e o paciente. Ignacio e Nardi (2007) entendem que o dispositivo de medicalização se apresenta como estratégia de controle dos corpos e da população. O controle se dá pela dependência, assistencialismo e individualismo, características transportadas ao jogo de influências, como acontece em exemplos dados por Pombo (2017) quanto à promoção e mudança de diagnósticos. No Japão, especialistas foram contratados para trabalhar no país os conceitos de depressão e deantidepressivo. A linguagem da depressão entendida como “severa doença psiquiátrica” foi substituída por “alma com resfriado”, com a intenção de mostrar aos japoneses que a doença é tão simples e comum quanto um resfriado. Além disso, “ensinou-se” à população que os sintomas somáticos da ansiedade social podiam ser tratados com antidepressivos. O consumo deles aumentou consideravelmente, gerando a ideia de que ansiedade e depressão eram uma mesma doença. Outro exemplo dado pela autora foi o comercial televisivo do Paxil nos Estados Unidos. Por estar “lotado” o mercado de antidepressivos, a indústria farmacêutica conseguiu autorização para promovê-lo ao “mercado da ansiedade”. Pombo (2017) conta que a propaganda visava divulgar o tratamento do Paxil para o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), com o slogan “Paxil... sua vida está esperando”. Confira texto e detalhes do vídeo: “Se você é uma das milhões de pessoas que vivem com preocupação e ansiedade incontroláveis, e com vários desses sintomas [sintomas rolam na tela: preocupação... ansiedade... tensão muscular... cansaço... irritabilidade... inquietação... distúrbios do sono... falta de concentração...], você pode estar sofrendo de Transtorno de Ansiedade Generalizada, e um desequilíbrio químico 9 pode ser o responsável. Paxil atua para corrigir esse desequilíbrio e aliviar a ansiedade”. Tavares (2010) relata em sua experiência de psicólogo ser possível atestar inexistir na depressão pacientes isentos de intervenção medicamentosa, uma vez diagnosticados sob esse rótulo psicopatológico. No ambiente escolar, queixas comportamentais têm aumentado a estatística dos diagnósticos psiquiátricos na infância. As estratégias privilegiam práticas medicalizantes impactadas pela mídia em discursos biomédicos. Os psicofármacos são a categoria de remédios mais buscados, entre os quais a Ritalina e o Concerta, ambos com a substância metilfenidato, especialmente quando é apresentado o diagnóstico de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Ricci e Cini (2017) defendem que a utilização do tratamento medicamentoso pode reduzir alguns sintomas do TDAH, porém isso não é suficiente para ensinar novas habilidades de adequação social. O remédio controla sintomas, mas não resolve a questão comportamental e as dificuldades associadas (baixa autoestima, dificuldade de adaptação e outras). Além disso, existem as contraindicações e os efeitos colaterais graves, situações que poderiam ser evitadas com o ajuste. Ao nosso ver, assim como não podemos reduzir todos os problemas de saúde a processos medicalizantes, entre as formas de se lidar com tal desafio está a de evitar em nós mesmos os erros reducionistas. Não podemos reduzir o todo pela parte, tal qual acontece no ato de medicalizar com a posse de protocolos diagnósticos, prescrições e procedimentos médicos, dispensando-se o sujeito, a pessoa humana. Mesmo que sejamos limitados, dependentes, submissos, somos seres psicossociais, e uma forma de enfrentar nossas dificuldades é usando isso em nossas fragilidades, mirando-se na própria medicalização. As estereotipias e limitações desse modelo médico-centrado, que parece guiar-se pelo lema “psicofármacos para todos e para sempre”, se contrapõem às orientações mais modernas e socialmente atentas da atual Política Nacional de Saúde Mental que, apoiada na Lei n. 10.216/2002, preconiza uma atenção psicossocial atenta às complexidades e especificidades do sujeito em sofrimento psíquico. Não se pode desconsiderar que limitações e insuficiências na aplicação dessas diretrizes facilitem o desenvolvimento reducionista e pouco 10 responsável que implementa a medicalização sistemática dos usuários desses serviços (Ferrazza et al., 2010). TEMA 4 – RELAÇÃO ENTRE A NEUROPSICOLOGIA E A EDUCAÇÃO A neuropsicologia abrange uma linha de conhecimento que envolve a análise biopsicológica e comportamental do educando. Estudos sobre a anatomia e a fisiologia do sistema nervoso central explicam, modelam e descrevem os mecanismos neuronais presentes no ensino-aprendizagem por meio da percepção, cognição, motricidade e emoções (Relvas, 2012). Aos educadores, é relevante uma base de saber sobre dificuldades apresentadas por alunos para avaliar adequadamente as necessidades e criar um plano educacional que atenda às necessidades. Isso não significa que o professor deva ser um exímio conhecedor do cérebro humano, estrutura responsável pelo núcleo de inteligência e aprendizagem do organismo. É incomum encontrar em sala de aula um docente que, por exemplo, saiba diferenciar claramente que capacidades ou comportamentos se referem a cada um dos hemisférios cerebrais. Não se espera também que ele entenda os circuitos neuronais interatuantes na estrutura cerebral que ajudem uma criança a brincar com isso ou aquilo ou que permitam ao estudante escolher o curso na universidade (Gazzaniga; Heatherton, 2005). Se o hemisfério esquerdo é o do raciocínio lógico, planejamento, matemática, atenção, memória de longo prazo e linguagem, e o direito refere-se a imaginação, intuição, compreensão, senso artístico e criatividade etc., a aplicabilidade desse tipo de conhecimento, entre outros, estaria no planejamento de atividades educacionais. Nessa continuidade, a neuropsicologia ajuda a desenvolver o pensamento crítico, a socialização e a resolução de conflitos, e treinamentos na área para educadores, legisladores educacionais, pais e comunidade educacional como um todo são importantes. Na concepção de quem escreve estas linhas, no domínio da neuropsicologia, a comunicação pedagógica do professor entra em conexão com as funções cerebrais de quem o vê, o escuta e com ele interage. O cérebro respondente do aluno responde aos estímulos à sua volta e fortalece algumas sinapses e enfraquece outras. A aprendizagem é, assim, o resultado do envio de mensagens entre os neurônicos e que produzem alterações químicas e estruturais no sistema nervoso de cada pessoa. 11 O processo de aprendizagem mostra-se desafiador à sua essência, o professor e ao seu ambiente, a sala de aula, o que, no entender de Relvas (2012), implica promover maior convergência entre ciência, ensino, aprendizagem e educação. O professor, ao estabelecer as estratégias de ensino em relação ao seu conteúdo em seus planejamentos, deve se sensibilizar que as suas turmas constituem em uma biologia cerebral, tal qual uma verdadeira ecologia cognitiva. Afinal, funcionam em movimentos ininterruptos de transformações intrínsecas e extrínsecas. É preciso que o professor perceba que, neurofisiologicamente, os alunos estão com os sistemas de sentidos biológicos muito estimulados e, por conseguinte, existe um movimento de conexões nervosas que nunca estancam. (Relvas, 2012, p. 54) A simples menção do termo biológico no âmbito da neuropsicologia pode levar a pensar nos mesmos erros da medicalização, mas a direção é usar o conhecimento biológico para aplicá-lo a um processo histórico-cultural de facilitação da aprendizagem. O que conhecemos de uma parte (por exemplo, o cérebro) não é o todo (fenômenos psicossociais), mas, ao tomar pé de sua existência e funcionalidade, podemos reconhecer que o processo de aprendizagem de cada pessoa está associado à construção de pontes entre a objetividade e a subjetividade, entre o que observa e o observado que coexistem juntos, se humanizam e trocam saberes (Relvas, 2012). Ao nosso ver, a neuropsicologia aplicada às práticas pedagógicas não é um receituário pronto de ideias ou um laboratório de análises já elaboradas, mas uma visão integral e abrangente no ensino e na aprendizagem. Sua importância reside na preparação de professores para intervir em problemas de aprendizagem. Há sempre uma parcela de contribuição para processos medicalizantes quando o professor, diante de um aluno dificuldadeem conversar, prestar atenção ou controlar seus impulsos, simplesmente expressa: “este menino tem algum tipo de transtorno, é preciso levá-lo a um médico”. Voltamos a frisar não ser necessário um título de Ph.D. em psicologia ou em educação para ensinar. Espera-se o que Smith e Strick (2001) atribuem aos pais para os filhos: fazer o máximo com as capacidades que têm, encorajando-os a crer que podem superar obstáculos, com objetivos realistas, orgulho e responsabilidade. 12 TEMA 5 – PERSPECTIVAS NEUROPSICOLÓGICAS DA MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO Diante do aumento na produção e prescrição do metilfenidato no Brasil, Rici e Cini (2017) salientam que vivemos em um tempo em que “medicar” é mais fácil e prático do que “educar”. Dois fenômenos inter-relacionados se sobressaem: a medicalização e a patologização na infância (Cruz; Okamoto; Ferrazza, 2016). A neuropsicologia entra nesse contexto por ser uma área interdisciplinar que integra saúde e educação e de certa forma oferece subsídios para investigação das bases cerebrais do comportamento, sendo usada como instrumento para diagnóstico e intervenção em problemas apresentados. Informações biológicas estão presentes na neurociência, e isso é decorrência da sua finalidade de existir. Causas fisiológicas de dificuldades encontradas por estudantes no ambiente escolar são paredes prisionais que, como diz Monzée (2006), levam o indivíduo a ser forçado para o próprio bem a viver um diagnóstico médico alegando que ele sofre de uma malformação neurológica. Esse “diagnóstico médico” nem sempre se refere a um processo puramente médico. Professores internalizam a ideia de que há outros especialistas além de si mesmos para os problemas da escola, criando uma “legitimidade educacional”, em que lhes cabe apenas obedecer ao propósito de ensinar (cumprir horário, seguir o conteúdo programático e outros) e nenhuma responsabilidade com fracassos escolares. Isso, de alguma forma, habilita a maior medicalização escolar e institucionaliza a escola médica. No olhar neuropsicológico, ações, sensações, emoções e comportamentos decorrem da interação entre bilhões de células nervosas em múltiplos sistemas e subsistemas. De acordo com Monzée (2006), o cérebro regula todas as funções fisiológicas do corpo (respiração, circulação sanguínea, metabolismo, hormônios e outros) e garante a sobrevivência. Comportamentos diagnosticados apenas como déficits neurológicos têm efeitos prejudiciais ao indivíduo em sua dimensão de relacionamentos. O autor afirma que um déficit de saúde mental raramente é detectável usando sintomas como os diagnósticos biológicos objetivos, uma vez que também são utilizados processos avaliativos comportamentais (pistas) para rastrear condições psiquiátricas. Nesse contexto, acontece o risco de confusão entre pistas comportamentais e sintomas, e a ausência de marcadores biológicos pode levar 13 à exigência rápida de medicamentos nem sempre necessários. O risco amplia- se com modos de intervenção estritamente médicos, em vez da observação de mudanças no ambiente escolar ou familiar. Ricio (2013) alerta para que, além da atenção ao contexto escolar ou familiar, a educação deve levar em conta o contexto político e social do qual as práticas de padronização e medicalização fazem parte, para não correr o risco de tornar a escola cada vez mais próxima do modelo capitalista de ação pedagógica carimbada pelo mercado. Acrescentamos a isso a visão sistêmica em que os pontos positivos do indivíduo podem ser buscados. NA PRÁTICA Na prática, a medicalização se vale da neuropsicologia para diagnosticar e medicalizar, justificando desequilíbrios neuroquímicos no indivíduo. Por outro lado, na escola, uma postura ativa dos professores apoiados na neuropsicologia ajuda a entender melhor as crianças com dificuldades de aprendizagem. Obter informações sobre o desenvolvimento físico, social e psicológico é de grande valia, bem como observações dos pais e observações formais (em atividades pedagógicas). Se o professor perceber problemas de aprendizagem, pode buscar a avaliação neurológica, não como uma forma de diagnosticar, mas de entender o aluno. FINALIZANDO Podemos finalizar este estudo pleiteando que a neuropsicologia não deva ser usada para medicalizar, mas para desmedicalizar, até porque teorias como a do desequilíbrio neuroquímico não possuem confirmação definitiva. Descrições neuropsicológicas (incompletas) baseadas no modelo médico escolar estigmatizam deficiências, a exemplo do que acontece na rotulação do TDAH. A neuropsicologia pode ser usada para verificar pontos fortes do indivíduo, e não a centralização nas deficiências. As escolas devem apoiar o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional dos alunos, especialmente quando surgem desafios à saúde física ou mental. O saber neuropsicológico das dificuldades de aprendizagem deve ser usado para uma visão sistêmica do aluno. 14 REFERÊNCIAS ALMASAN, D. A.; GIMENEZ, R. M. Formas de tratamento do paciente esquizofrênico. 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