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MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: PERSPECTIVA SOCIO-HISTÓRICA E NEUROPSICOLÓGICA AULA 4 Prof. Reginaldo Daniel da Silveira 2 CONVERSA INICIAL Movimento stop DSM, fórum sobre medicalização da educação e da sociedade e outros movimentos A busca de conhecimentos para entender os processos de medicalização apresenta entre seus fatores o forte crescimento nos diagnósticos psiquiátricos protocolados com o apoio de manuais como o DSM-5, considerado a bíblia da psiquiatria, e o CID-11, com a inclusão de uma classificação de “patologias mentais”. A diagnosticação, junto com a prescrição não devidamente controlada de psicotrópicos, são elementos combatidos em movimentos que juntam pessoas e instituições, estabelecem datas para lembrar a luta contra a medicalização, criticam o tecnocientificismo e a postura reducionista biomédica, procuram alternativas e discutem os desafios existentes nos processos de desmedicalização. TEMA 1 – OS MANUAIS DIAGNÓSTICOS E A MEDICALIZAÇÃO A concepção de que problemas cotidianos podem ser diagnosticados pela medicina é uma tendência presente que vem dos tempos remotos da existência humana até os dias atuais. A nosso ver, ela está associada à condição de orientar para medicar aqueles que apresentam comportamentos não aceitáveis. Além desse caráter evolutivo, a medicalização dos comportamentos humanos considerados socialmente indesejáveis, de acordo com Conrad (2007, citado por Figueira; Caliman, 2014), se estende a quase todos os domínios da existência. Comportamentos que entram no espectro das queixas médicas, moléstias, enfermidades, doenças crônicas, distúrbios, limitações funcionais, deficiência e incapacidade para o trabalho se inserem no rol de fenômenos complexos e mal definidos (Di Nubila; Buchalla, 2008). Para essas autoras, diferentes sistemas conceituam deficiência ou incapacidade de acordo com necessidades e regulações próprias, embora as definições em geral careçam de critérios específicos. Nesse contexto, o uso de manuais como os códigos da CID- 11 ou DSM-5 tornam-se fontes de consulta, e é necessário que se estabeleçam limites, dentro de um amplo conjunto de situações. 3 Di Nubila e Buchalla (2008) argumentam que a deficiência muitas vezes não é observada diretamente, mas permite ser inferida com base em causas presumidas (prejuízos, danos) e possíveis consequências – ou seja, uma restrição ou incapacidade para desempenhar normalmente vários papéis, principalmente de trabalho. Danos causadores de deficiência precisam ser avaliados medicamente, e a certificação clínica do dano, nem sempre necessária, não garante propriedade com vistas a atestar a incapacidade para o trabalho ou elegibilidade para benefícios. A certificação de deficiência ou incapacidade assume poder litigioso por não se saber de fato quais são suas definições legais, administrativas, sociais e culturais, já que, a nosso ver, estas correspondem a visões hierarquizadas por setores, dessa ou daquela área. Tais definições são feitas com regulações que não asseguram critérios precisos, e as perguntas que precisariam ser mais bem respondidas seriam: Quem é e quem não é elegível? Que critérios podem ser estabelecidos? Uma classificação de doenças pode ser definida como um sistema de categorias às quais são remetidas as entidades mórbidas de acordo com algum critério estabelecido. Há muitas escolhas possíveis destes critérios. O anatomista, por exemplo, desejaria talvez uma classificação baseada na localização da afecção, ao passo que o patologista está principalmente interessado na natureza do processo mórbido, o médico sanitarista na etiologia e o clínico na manifestação particular objeto de sua assistência. Em outras palavras, existem muitos eixos de classificação e o interesse do investigador determinará aquele eixo a ser escolhido. A classificação estatística das doenças e dos traumatismos depende, portanto, do uso que terão os dados a serem colhidos. (OMS; Centro da OMS para Classificação de Doenças em português; Ministério da Saúde/Universidade de São Paulo; Opas, 1980, p. 6) As duas referências mundiais de manuais para consulta de diagnósticos de doenças são o CID e o DSM. O CID está em sua décima primeira edição, e o DSM, na quinta. CID-11 quer dizer Classificação Internacional de Doenças, e o número 11 é a versão (mais atualizada). Já o DSM-5 significa Diagnostic and Statistical Manual (Manual de Diagnóstico e Estatístico), com o número 5 representando a edição. O manual CID-11 é o critério adotado no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ele abrange todas as doenças, incluindo os transtornos mentais, e foi elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Já o DSM-5, que se refere aos transtornos mentais, é utilizado em pesquisas e possui itens detalhados em forma de tópicos; foi elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (Ferri; Galduróz, 2017). 4 O ceticismo e não aceitação plena de profissionais da saúde e usuários para os diagnósticos do DSM-5 foi noticiado há alguns anos por matéria jornalística da CNN: “Acreditamos que agora existem evidências esmagadoras de que o DSM-5 não é cientificamente confiável [e] estatisticamente não confiável", disse o psicólogo clínico Peter Kinderman, diretor do Instituto de Psicologia, Saúde e Sociedade da Universidade de Liverpool. Ele está ajudando a organizar a campanha internacional com pedidos de petição nos Estados Unidos, Reino Unido e França. (Gray, 2013) O CID-11 é mais amplo que o DSM-5 em seu escopo e autoria porque abranger, além de doenças médicas propriamente ditas, também os transtornos mentais. Entre as diferenças entre os dois manuais, Cuncic (2020) cita que o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), até então não considerado, foi adicionado ao CID-11, uma vez que esse diagnóstico foi realizado principalmente nos Estados Unidos. Isso vem afetando as taxas de diagnósticos desse transtorno em todo o mundo. Outro ponto é o Transtorno de Estresse Agudo (TEA), que não é mais incluído no CID como transtorno mental, mas como uma reação ao trauma, o que contrasta com o DSM-5. TEMA 2 – OS MOVIMENTOS CONTRA A MEDICALIZAÇÃO Profissionais envolvidos com as áreas da saúde e educação, como este que escreve estas linhas, psicólogos, psiquiatras, especialistas e interessados em geral sobre como lidar com nossas subjetividades sem cair na armadilha da patologização, preocupam-se com o aumento do número de diagnósticos médicos e responsivamente medicalizantes em crianças, jovens e adultos. Diagnósticos e prescrições médicas precisam ser reavaliados em situações nomeadas como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Transtorno Opositivo Desafiador (TOD), Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e mesmo situações de obesidade e dislexia que estão entre a relação de distúrbios em nossas salas de aula. Movimentos por um protagonismo mais amplo para discutir a patologização e o excesso de diagnósticos presentes nos processos de medicalização ainda são embrionários no Brasil, mas há exemplos importantes. É o caso do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, cujo objetivo é articular entidades, grupos e pessoas para o enfrentamento e 5 superação desses problemas, além de mobilizar a sociedade para uma visão crítica (Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2013). Material disponibilizado pelo Fórum orienta e explica conceitos sobre medicalização, políticas públicas, diretrizes governamentais, projetos de lei e outros. Pontos críticos como o reducionismo da dislexia a uma doença neurológica, para explicar fracasso escolar, são explicitados, ao lado de recomendações aos profissionais da educação e da saúde. Derivam de iniciativas com o Fórum movimentos como a institucionalização de uma data para registrar a luta contraatos de diagnosticar, prescrever, patologizar e controlar. Na cidade de São Paulo, Projeto de Lei n. 15.554, de autoria do vereador Eliseu Gabriel, sancionou em 2012 a data de 11 de novembro como o Dia Municipal de Luta contra a Medicalização da Educação e da Sociedade, que passou a fazer parte do calendário oficial do município (São Paulo, 2012). O movimento nacional em torno desse dia vem se expandindo no Brasil e ganhando seguidores, como acontece em todo o mundo. A data de 11 de novembro passou a ser estadualizada em São Paulo, foi instituída também em Salvador e já se espalha por outras cidades como Campinas e Sorocaba. Pela nossa ótica, o ato de se estabelecer uma data para registrar a importância de lutar contra a medicação é relevante para despertar a atenção, informar e conscientizar profissionais e cidadãos comuns. Com base em medidas como essa, cria-se motivação a fim de que entidades, movimentos e grupos se articulem e discutam o tema. Para movimentar-se, valem várias estratégias. A Associação Brasileira de Cientistas para Desconstrução de Diagnósticos e Desmedicalização (AbCd) apresenta-se como uma rede de escolas comprometidas com a infância saudável e desmedicalizada. Ela anuncia estar aberta à inscrição de instituições que queiram se responsabilizar por acolher os estudantes sem o discurso e a prática medicalizante em diagnósticos de dificuldades de aprendizagem pedagogicamente e epistemologicamente infundados. A AbCd apresenta alguns fatores críticos em favor da desmedicalização. Após a publicação do TDAH no DSM-3, milhares de crianças do mundo inteiro passaram a ser medicadas com Ritalina ou Concerta, submetendo-se a efeitos colaterais perversos como crise de ansiedade, insônia, disritmia cardíaca, depressão e perda de criatividade. Esses fatos não foram publicizados, como já 6 vimos em tópicos anteriores. O alerta é para a inexistência de fundamento científico ou pedagógico que caracterize o TDAH, dislexia ou TOD. A área médica, no entanto, apresenta com frequência procedimentos complexos como tomografias computadorizadas por emissão de pósitrons (PETs), “mostrando” como o cérebro TDAH funciona de forma distinta do cérebro “normal”, o que impulsiona a ideia de transtorno para o público em geral. De acordo com a AbCd ([s.d.]), invariavelmente os sintomas de TDAH e TOD estão atrelados ao ambiente escolar e não aparecem de forma evidente em consultas médicas. Danos cerebrais são inferidos exclusivamente com base em sinais comportamentais sem qualquer evidência neurológica de dano. O modo de se estabelecerem ações contrárias à medicalização varia de acordo com a autoridade social ou cultural e o nível de mobilização das pessoas que denota resistência à intervenção médica. Sobre isso, Minakawa e Frazão (2018) reforçam a visão de que Estado e sociedade são as forças motrizes entre a modernidade e a pós-modernidade, e isso significa que o ambiente pode ser propício à desmedicalização tanto quanto à medicalização. Nesse sentido, é preciso combater o que Tesser (2006) nomeia como iatrogênese clínica (danos ao indivíduo pela tecnologia médica, diagnóstica e terapêutica), Iatrogênese social (efeito social danoso da medicina) e iatrogênese cultural (destruição do potencial cultural para agir de modo autônomo na doença, dor e morte). TEMA 3 – OS MOVIMENTOS SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO Em uma metáfora na qual alunos são bonecos sem faces triturados em um moedor de carne, Machado e Freitas (2014) fazem referência a um desenho do cartunista italiano Francesco Tonucci denominado “a grande máquina escolar”, no livro Com olhos de criança, publicado em 1997 no Brasil. A lembrança nos remete a aulas de pós-graduação que ministramos presencialmente, em todo o Brasil, e também a distância. Usávamos um videoclipe da música “Another Brick in the Wall”, de Pink Floyd, para caracterizar o ensino difundido no século XVIII pelo Iluminismo, no qual o aluno era submetido a normas e proibições e em que a prioridade era acatar tudo o que viesse do professor, sem qualquer restrição. Esse resgate nos encaminha à crítica de Foucault ao controle da existência e à economia do poder, uma fixação para levar o indivíduo a produzir sob ordens pedagógicas, tecnológicas e programas e dispositivos institucionais 7 diversos (Machado; Freitas, 2014). Lembrar Pink Floyd, “Another Brick in the Wall”, usado em nossas aulas como crítica ao ensino rígido e tradicional, é emblemático para tratar da medicalização em trechos que ouvimos. […] I don't need no arms around me. [Eu não preciso de braços ao meu redor.] And I don't need no drugs to calm me. [E eu não preciso de drogas para me acalmar.] I have seen the writing on the wall. [Eu vi os escritos no muro.] Don't think I need anything at all. [Não pense que preciso de algo, absolutamente.] No! Don't think I'll need anything at all. [Não! Não pense que eu preciso de alguma coisa afinal.] All in all it was all just bricks in the wall. [Tudo era apenas um tijolo no muro.] All in all you were all just bricks in the wall. [Todos são somente tijolos na parede.] (Pink Floyd, 1979) Entendemos que movimentos pela medicalização são estruturais, expansivos e fortemente vinculados a um processo histórico e que estiveram presentes no discurso higienista dos séculos XIX e XX, conforme comentam Figueira e Caliman (2014) ao citar Caponi (2007). Tal tendência se caracterizou como um ramo da higiene pública. Os autores reportam que na sequência de movimentos veio o processo de psiquiatrização, que viu o domínio particular de desvios no indivíduo como uma ameaça social. Isso ganhou ares numa higienização de todo corpo social, uma espécie de “medicina do não patológico”, como já manifestara Foucault (Figueira; Caliman, 2014). Nesse seguimento, regras de conformidade e ordem social que apresentassem algo desviante passavam imediatamente para o processo de psiquiatrização. Servindo-se da escola tradicional, disciplinadora e reducionista, ilustramos o entendimento de que essas características a transformaram em um instrumento a serviço da medicalização. Para Machado e Freitas (2014), a máquina escolar objetivou trabalhar as virtualidades do sujeito internalizado na forma de poder sobre a criança. Aliado a isso, a concepção de falta e imperfeição predominante na organização ocidental serviu ao interesse de práticas e políticas pedagogizantes. Atendeu-se, portanto, aos interesses do capitalismo pela socialização do corpo como objeto e força de produção e de trabalho (Machado; Freitas, 2014). Rego (2006) é citado pelos autores em termos de doença do não aprender, que, ao precisar de tratamento, leva o medicamento a ser a palmatória química (Machado; Freitas, 2014). 8 Outra tendência caracterizadora de movimento medicalizador foi a transfiguração da família do século XVIII: de transmissora do nome e dos bens, passou a ser agente de normatização, discriminadora da sexualidade e corretora da anormalidade (Machado; Freitas, 2014). Para as autoras, os pais ficaram com a missão de diagnosticar doenças nos filhos, a exemplo de terapeutas e agentes de saúde; para isso, o controle familiar deveria ser sempre submisso à intervenção do saber médico conforme a visão foucaultiana. Deve ainda ser discutida a tendência tecnológica e biopolítica na medicina moderna, com efeitos agindo sobre o caráter político econômico, a ênfase na medicalização da saúde pública, a regulação moral do corpo e a normalização da população. Martins (2012) entende que essa disposição faz com que a vida seja regulada pelo discurso médico e induz os indivíduos a adotarem determinadas formas de viver, pensar e se comportar. TEMA 4 – OS MOVIMENTOS SOBRE ALTERNATIVAS PARA DESMEDICALIZAÇÃO As alternativas sobre desmedicalização podem ser vistas, pela nossa ótica, no sentido de impedir a medicalizaçãona família, no trabalho e na escola como forma de movimentos contrários. O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade propõe cursos e seminários para favorecer a compreensão das necessidades na educação, saúde e vida de crianças, adolescentes, familiares e seus grupos sociais. Essas ações servem para: (1) apoiar a abordagem desmedicalizante das necessidades individuais e coletivas no trabalho de profissionais e serviços de educação e saúde; e (2) fornecer instrumentos potencializadores de práticas de educação e cuidados em saúde que contemplem a diversidade, nas formas de ser e aprender, respeitando os direitos das crianças e adolescentes (Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2013). Com vistas a agir no sentido de reverter posturas profissionais medicalizantes, duas hipóteses apontadas por Minakawa e Frazão (2018) podem ser úteis para aplicação na saúde pública: (1) avaliar determinantes sociais, qualidade de vida e projeto de felicidade, tendo em conta a influência de noção de saúde por mecanismos sociopolíticos; e (2) definir de que forma são distribuídos os recursos (a nosso ver, não só financeiros, mas também técnicos, 9 científicos e culturais) para implementar estratégias de saúde e provisão de programas. Pela nossa percepção, a realidade brasileira no plano “público” espelha um modelo de atenção de saúde ao cidadão construído num contexto sócio-histórico de erros e acertos em que a prática assistencialista se esconde debaixo de um véu explorativo de procedimentos biomédicos. Nesse viés, entendemos que o nexo saúde-doença não pode estabelecer uma relação de dependência que ameace a dignidade individual e torne o sujeito dependente exclusivamente da governabilidade que o administra. A proposta inicial seria identificar os determinantes sociais que trafegam entre o assistencialismo (doutrinamento dominador, manipulador e estimulador de subserviência) e a assistência social (política pública, preventiva e protetiva padronizada e organizada). O assistencialismo é impeditivo à desmedicalização, por ser paliativo e perpetuador de favores mantenedores de quem está no poder; a assistência social, por outro lado, se vale de procedimentos técnico-científicos, visando ao atendimento especializado e generalista, ao mesmo tempo que leva o usuário a ser protagonista diante de situações de riscos e vulnerabilidade social. A assistência social é usada para orientar, elaborar estudos, relatórios, pareceres e laudos, estimular serviços, programas e políticas sociais etc. Os determinantes sociais seriam observados também em sua associação com o que Minakawa e Frazão (2018) chamam de menores níveis de saúde, além de formular estratégias à população como um todo. A segunda proposta por nós interpretada seriam ações para a monitoria do equilíbrio entre fatores políticos, sociais e econômicos, uma tarefa de profundidade sujeita a desvios no fluxo de conscientização, mas bastante necessária. Nessa linha, o sentido geral estaria vinculado às características estruturais de governabilidade responsável pela gestão de saúde, em que o Estado fiscaliza, monitora e age sobre o próprio governo, uma espécie de ouvidoria de apoio estratégico, especializado, mediador imparcial e independente na busca de soluções de divergência e agente de mudanças. O sentido específico seria identificar suscetibilidades e exposição a riscos da população com a adoção de medidas assistenciais (não assistencialistas) para proteção. Aqui, o econômico e o social causadores da doença devem ser enfrentados por estratégias econômicas e sociais. 10 Movimentos contra a medicalização podem ser desmedicalizadores surgidos por iniciativa dos próprios usuários, como a Associação Brasileira de Cientistas para Desconstrução de Diagnósticos e Desmedicalização (AbCd), ou planejados e organizados no âmbito da saúde pública – nesse caso, podemos citar as estratégias conhecidas como Clínica Ampliada (CA), Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) e a Prevenção Quaternária (P4) no Programa de Saúde da Família (PSF) do Sistema Único de Saúde (SUS). Estas últimas têm um caráter efetivo, por não anular o serviço médico, e sim transformá-lo em favor de uma consciência individual mais plena e saudável no sentido sistêmico. A exemplo do que falamos no parágrafo anterior, Freitas e Amarante (2017) sugerem a possibilidade de se instituírem nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e na Estratégia Saúde da Família (ESF) iniciativas como a feita por ex-pacientes psiquiátricos, ao produzir cartilhas-guia para usuários se livrarem de drogas psiquiátricas. O autor cita ainda o Projeto Icarus, uma iniciativa em parceria com a Freedom Center, uma ONG americana que elaborou uma cartilha com 52 páginas informativas sobre os danos com drogas psiquiátricas. São mais de dez anos de trabalho com apoio de sobreviventes tratados com drogas profissionais, além de famílias, profissionais e organizações. TEMA 5 – OS DESAFIOS DA DESMEDICALIZAÇÃO Quando se pensa no contexto brasileiro, é possível que o primeiro desafio da desmedicalização deva ser a desigualdade socioeconômica do país. Bianchi (2018), ao se referir à América Latina, frisa a evidência das desigualdades: por um lado, grandes setores da população têm acesso limitado a serviços e medicamentos básicos, o que faz da saúde um direito restrito; de modo concomitante, por outro lado, há um excessivo uso de drogas (psiquiátricas) e serviços nos setores mais economicamente favorecidos. Isso quer dizer que existe uma curva cujos extremos são a exclusão de alguns setores, e, numa outra alçada, a supermedicalização e hiperconsumo de medicamentos de terceiros. Por um lado, temos a atmosfera favorável ao uso de mecanismos manipuladores para viabilizar o controle e o assistencialismo; por outro, há o reconhecimento de uma psiquiatria dominante na esteira de um vetor capitalista e biomédico. Nessa premissa básica, muitos usuários enfrentam dificuldade em 11 se abrir para uma mudança de paradigma, até mesmo por um obstáculo apresentado por Freitas e Amarante (2017): ao se confiar nos recursos pessoais dos indivíduos, teme-se que isso possa vir a ameaçar os poderes já constituídos. Há aqui uma questão de consciência. Para ilustrar, poderíamos considerar que a tomada de consciência sobre tomar drogas psiquiátricas diz respeito tanto às doses regulares como às altas dosagens. O desafio é como libertar as pessoas desse problema (Freitas; Amarante, 2017), uma vez que a propaganda oficial afirma serem as drogas ilegais uma de nossas maiores desgraças. Um fator complementar a acrescentar é que, em função do número de consumidores de drogas legais adquiridas na farmácia, muito provavelmente as psiquiátricas são as que mais danos produzem. As inflexões até este momento nos levam a refletir sobre o fato de que, em um exemplo oportuno, gastos com o narcotráfico mundial são extremamente altos, o que nos faz perguntar com desprazer: quanto isso rivaliza com a expansão dos lucros financeiros da indústria farmacêutica? O crescimento no consumo de drogas ilegais, como diz Birman (2014, p. 27), é “foco insistente da crítica da mídia internacional e está no centro da política de estados hegemônicos, em contrapartida, não se fala quase nada desta segunda expansão, de forma significativa” (os ganhos financeiros da indústria farmacêutica). A ideia é de que existe uma legitimidade efetiva, pois as drogas legais são produzidas para a promoção do bem – e não do mal –, assim isso não seria um problema, mas a melhoria das perturbações psíquicas nas populações (Birman, 2014). Um complemento a Birman (2014) é a construção e banalização de dispositivos tecnológicos vindos discursivamente da ciência por meio da psicofarmacologia em especial. Tais dispositivos tecnológicos indicam a perspectiva deinstalação de laboratórios químicos de produção de drogas ilícitas em regiões como a Floresta Amazônica e o Afeganistão, e, em outra perspectiva, o incremento de novas misturas passíveis de ganho econômico dos narcotraficantes. É oportuno ainda ressaltar “o volume de notícias circulando na mídia e contribuindo para ampliar o contingente de adeptos de pretensas soluções geradoras de bem-estar e de níveis mais elevados de saúde” (Barros et al., 2008, p. 31), fator que revela a publicidade sob controle da indústria farmacêutica como um enorme obstáculo à medicalização. Acrescentamos aqui, pelo nosso ponto 12 de vista, a busca do bem-estar como um processo determinado pela tendência do mercado capitalista. Por fim, a psiquiatrização da existência humana é, sem dúvida, o grande desafio para a desmedicalização. Entretanto, a nosso ver ela se instaurou como decorrência do Estado de bem-estar social, em que o Estado se tornou o agente regulamentador da vida social, política e econômica. Para isso, estabeleceu parceria com empresas privadas e sindicados, e o que vimos pode ser entendido no texto abaixo sobre o Estado mínimo. [...] desde o final dos anos 1970 a proposição do Estado mínimo se impôs ao Estado do bem-estar social, deixando à economia toda a liberdade para a sua expansão, que passou então a comandar o funcionamento efetivo dos diferentes Estados-nação. Estes perderam então o poder de realizar decisões fundamentais no que tange às suas populações, ficando à mercê de decisões tomadas alhures pelas empresas transnacionais. Vale dizer, com a constituição do Estado mínimo o poder soberano dos diversos Estados foi restringido, em nome do poder assumido pela economia e pelo mercado. Com isso, enfim, a política foi esvaziada em nome da gestão e a governança passou a regular assim as práticas do Estado neoliberal. (Birman, 2014, p. 30) Freitas e Amarante (2017) nos acenam uma inflexão sobre o usuário, consumidor da psiquiatria tóxica. No passado, o desafio da reforma da assistência psiquiátrica era como reintegrar milhares de pacientes que haviam passado parte significativa de suas vidas em instituições asilares e que sofriam os efeitos do próprio tratamento. Hoje em dia, o número de pacientes crônicos que dependem de tratamento medicamentoso para o resto da vida é muito maior do que os internados em manicômios. Nesse sentido, de que maneira os cronificados poderão se recuperar e levar uma vida livre dessa medicação psiquiátrica da qual dependem? NA PRÁTICA Qualquer ação executada para desmedicalizar leva em conta a realidade histórica, social, econômica e política. No Brasil, a desigualdade socioeconômica não é ignorada e se apresenta como desafio a ser superado. O capitalismo tornou-se norteador para o controle do capital e os meios de produção. Por estar sob domínio de políticos, empresários e donos de indústrias, criou-se um lado perverso a serviço de uma pequena parcela da população. Ainda assim, observa-se que ações em níveis e esferas diferentes mobilizam recursos por intermédio de comunidades, e isso expande fontes de resistência. Ao mesmo 13 tempo, em nossa percepção, há o poder de formar uma contra-hegemonia baseada em propostas, debates, formas de comunicação e redes de discussão para transformações. FINALIZANDO Nossa análise final vê os processos de medicalização e desmedicalização envoltos na prática marcada por uma dialética. Ação biomédica é indispensável para atender às demandas dos usuários e, ao mesmo tempo, apresenta-se inadequada, incompleta e danosa, especialmente por uma postura médica iatrogenicamente cultural. A dualidade lógica nos coloca diante de uma perspectiva na qual não podemos aceitar o biologismo reducionista que desconsidera a cultura sobre a constituição psíquica. De igual modo, não podemos excluir ação médica vigente, pois isso seria não levar em conta contribuições que, de uma forma ou de outra, têm servido para tratar doenças graves. Incluem-se aqui algumas contribuições em medicamentos imprescindíveis para tratamentos graves e a parcela de contribuição diagnóstica do DSM-5 e CID-11. 14 REFERÊNCIAS ABCD – Associação Brasileira de Cientistas para Desconstrução de Diagnósticos e Desmedicalização. Quem somos. [S.d.]. Disponível em: <http://desmedicalizacao.org/#sobre>. Acesso em: 04 abr. 2020. BARROS, J. A. C. de et al. Os fármacos na atualidade: antigos e novos desafios. Brasília: Anvisa, 2008. BIANCHI, E. La medicalización contra las cuerdas. 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