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A filha de Sião - Joseph Ratzinger

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Prévia do material em texto

2
Sumário
Capa
Rosto
PREFÁCIO
Capítulo 1 - A MARIOLOGIA NO CONTEXTO BÍBLICO
Capítulo 2 - A FÉ MARIANA DA IGREJA
1. O dogma mariano originário: Virgem e Mãe
a) Os textos neotestamentários
b) O sentido teológico
2. Isenta do pecado de Adão
3. A assunção corporal na glória celestial
Ficha Catalográfica
3
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PREFÁCIO
O pequeno livro que aqui apresento ao público é a reprodução de três conferências
feitas por mim na primavera de 1975 em Puchberg, próximo a Linz. Após anos de
declínio do culto mariano na Igreja, houve um desejo de constatar, da maneira mais
sóbria possível, o que havia efetivamente permanecido da fé mariana, e o que deveria
continuar a permanecer. Tratava-se, então, de uma introdução que não tinha a
necessidade de um detalhamento completo, mas que tinha de mostrar corretamente a
perspectiva a partir da qual tanto o elemento particular quanto o todo pudessem ser
compreendidos de forma adequada.
Com isso ficam marcados, ao mesmo tempo, a intenção e os limites desta
publicação. Durante o processo de revisão procurei conscientemente não mudar o
caráter do conjunto; não se quer, aqui, assumir o lugar de um tratado, mas
simplesmente procurar abrir os olhos para a estruturação do significado, de modo que
se possibilite, também, o acesso a obras de maior amplitude. Para que esses limites de
minha modesta pesquisa não sejam confundidos, procurei preservar, também, o caráter
descontraído e improvisado, típico da linguagem de conferência. Também não me
pareceu enquadrar-se naquilo a que o texto se propunha algo de efetivamente completo
– como, por exemplo, um exame pormenorizado do testemunho oferecido por Mateus
acerca do nascimento virginal. Espero que esse pequeno livro possa, à sua maneira,
contribuir para que aquilo que há de imperecível na fé mariana da Igreja seja
novamente compreendido e assumido.
Por fim, não poderia deixar de agradecer ao meu caríssimo amigo Hans Urs von
Balthasar pelo fato de ter arrancado de mim esse manuscrito e de, pacientemente, tê-lo
revisto para fins de publicação, após minha nomeação como arcebispo de Munique e
Freising, tornada pública na festa do Anúncio do Senhor a Maria, que me cobriu de
novas atribuições.
Pentling, por ocasião da celebração da Ascensão de Cristo, 1977.
Joseph Ratzinger
4
Capítulo 1
A MARIOLOGIA NO CONTEXTO BÍBLICO
Diante da fé e da piedade mariana da Igreja, o atento observador da vida eclesial
de hoje irá se deparar com uma discrepância particular. Por um lado, nasce a
impressão de que a mariologia seria um subproduto da cristologia, surgido a partir
de fundamentos irracionais; mais até: parece ser uma reminiscência de
antiquíssimos modelos da história das religiões, que retornam incessantemente, e
que se fazem valer também no cristianismo, ainda que não possuam, em um olhar
mais próximo, nem fundamentação histórica, nem teológica – histórica, porque na
vida de Jesus Maria desempenhou claramente um único papel, que teria sido
ressaltado de forma equivocada; e teológica, porque na estrutura do Credo neo-
testamentário a Virgem-Mãe não possuía lugar algum. Ao contrário, não há
nenhum constrangimento em se apontar a origem extracristã do elemento mariano:
ela estaria nos mitos egípcios, no culto da Grande Mãe, em Diana de Éfeso, que
teria se transformado, no concílio ali realizado, de modo totalmente espontâneo, na
“Mãe de Deus” (Τεοτóχος)... Por outro lado, no entanto, estimula-se e se alardeia a
generosidade diante das diversas formas de piedade: pondo-se de lado as tendências
puritanas, deve-se deixar os romanos com sua Madonna.[1] Por detrás disso pode-
se perceber uma atitude que, após a onda de racionalização do cristianismo, torna-
se cada vez mais forte a olhos vistos: trata-se da busca ansiosa por uma resposta
também para o sentimento na esfera da religião; a busca ansiosa de que também na
religião a imagem da mulher como virgem e mãe possa ter um lugar. Certamente,
não basta a mera tolerância diante de costumes diversificados para uma justificação
da piedade mariana: se o seu fundamento é tão fútil como parece ser nas
considerações citadas acima, o contínuo incentivo da piedade mariana não passaria
de um costume que contradiz a verdade. Ou esses hábitos esmorecem e atrofiam,
uma vez que a sua raiz, a verdade, está ressequida, ou continuam a grassar, em
contraste com a consciência, e destruindo, assim, a harmonia entre verdade e vida.
Desse modo, acabam conduzindo a um envenenamento do organismo espiritual-
eclesial, cujas consequências são incalculáveis.
Faz-se necessária, então, uma reflexão mais profunda. Antes da análise de textos
isolados, deve haver um olhar permanente para o todo, para a questão estrutural;
somente assim iremos conseguir um enquadramento razoável das particularidades.
Afinal de contas, haverá um lugar nas Sagradas Escrituras para algo como a
mariologia, em toda a estruturação de sua fé e de sua oração? Pode-se abordar essa
questão, por assim dizer, metodologicamente, de frente para trás: em uma leitura
que parta do Novo Testamento para chegar ao Antigo, ou vice-versa, partindo do
Antigo Testamento e, lentamente, chegando até o Novo. E melhor ainda será que
esses dois caminhos se unam em uma interação recíproca e que desse processo
5
resulte a imagem mais exata possível. Se lemos, primeiramente, de frente para trás
ou, mais precisamente, do fim para o início, torna-se evidente que a figura mariana
do Novo Testamento é totalmente tecida pelos fios do Antigo Testamento, nos
quais se deixam distinguir claramente duas, ou até mesmo três linhas de tradição,
que são utilizadas para apresentar o mistério de Maria. Em primeiro lugar, assume-
se, para a sua descrição, a figura das grandes mães do Antigo Testamento: Sara, e
especialmente Ana, a mãe de Samuel; em seguida, é utilizada toda a teologia da filha
de Sião, na qual acima de tudo os profetas expuseram o mistério da eleição e da
aliança, o mistério do amor de Deus para com Israel. No Evangelho de João pode-
se, talvez, reconhecer uma terceira linha: também a figura de Eva, a “mulher”, é
utilizada para a interpretação de Maria.[2]
Essas observações, que deveremos aprofundar mais adiante, nos dão o itinerário
rumo ao interior do Antigo Testamento, e mostram onde se encontram, ali, os
elementos prenhes de promessas futuras. Toda a piedade mariana, bem como a
teologia mariana posterior, apoiam-se fundamentalmente na existência, no Antigo
Testamento, de uma teologia da mulher profundamente consolidada e
imprescindível para a sua construção geral: a figura da mulher na estrutura da fé e
da piedade veterotestamentárias como um todo, ao contrário de um preconceito
largamente difundido, ocupa um lugar insubstituível.[3] Essa é uma realidade que
raras vezes é examinada satisfatoriamente, de forma que, já a partir de uma leitura
unilateral do Antigo Testamento, nenhuma porta pode ser aberta para a
compreensão do elemento mariano na Igreja do Novo Testamento. Observa-se
usualmente apenas este lado: os profetas levam adiante uma luta rigorosa em torno
da unicidade de Deus contra a tentação do politeísmo e, na situação específica, uma
luta contra as deusas celestiais, uma luta contra a religião da fertilidade, que
representa Deus como homem e mulher. Por sua vez, isso constitui, na prática, uma
luta tenaz contra a representação cultual da mulher divina na prostituição do
templo, uma luta contra um culto que celebra a fertilidade, através da imitação, na
luxúria cultual. A idolatria, a partir desse ponto de vista, é preferencialmente
descrita na literatura veterotestamentária como “luxúria”. A recusa dessas
representações parece ter como consequência o fato de o culto de Israel ser
primariamente uma tarefa dos homens, uma vez que, neste caso, a mulher
permanece relegada ao átrio do templo.[4]
A partir daí, conclui-se que na fé do Antigo Testamento a mulher não teria
absolutamente nenhuma colocação positiva; que não existiria uma teologia da
mulher nem poderia existir, pois, bem ao contrário, tudo concorreria para o ladoinverso, onde se procura excluir a mulher da teologia, do discurso de Deus. O que
significaria, portanto, que a mariologia poderia ser considerada, na realidade,
apenas como a introdução de um modelo não bíblico. Seria, então, consequente a
afirmação de que no Concílio de Éfeso (431), onde o título de “Mãe de Deus”,
dado a Maria, foi confirmado e defendido, a “Grande Mãe”, oriunda da devoção
pagã e anteriormente rejeitada, teria assegurado o seu lugar na Igreja. No entanto,
são justamente os pressupostos veterotestamentários dessa visão que estão
6
equivocados, pois, apesar de a fé profética rejeitar o modelo da Divindade como
“sizígia” – entendido como um par masculino e feminino – e sua correspondência
cultual na prostituição sagrada, ela confere à mulher, todavia, à sua maneira, e em
seu modelo de fé e de vida, uma posição imprescindível, cuja correspondência na
vida humana é o matrimônio.[5] O matrimônio é, aqui, tradução imediata da
teologia, consequência de uma imagem de Deus; aqui, e precisamente aqui, há uma
teologia do matrimônio, no sentido próprio, assim como no culto da fertilidade há
uma teologia da prostituição.[6] Certamente, no Antigo Testamento isso permanece
ainda obscurecido por muitos compromissos, mas aquilo que Jesus determina em
Mc 10,1-12, e que é especificado teologicamente de maneira mais abrangente em Ef
5, é pura consequência da teologia veterotestamentária; ao mesmo tempo, com essa
consequência põe-se em evidência, então, também a ideia e a realidade da
virgindade, que está estreitamente ligada à estruturação teológica do matrimônio, e
que não está contra ela, mas significa o seu fruto e a sua confirmação.
Mas tentemos, por fim, chegar aos detalhes. Na medida em que reconstruímos,
no Antigo Testamento, os elementos com os quais o Novo Testamento explica
teologicamente a figura de Maria, nós nos deparamos de imediato com cinco linhas
de uma teologia da mulher.
1. Em primeiro lugar, devemos agora mencionar a figura de Eva, que é descrita
como a companhia necessária para estar diante do homem, Adão, cuja existência
“não seria boa” (Gn 2,18) sem ela. Ela não provém da terra, mas dele próprio: na
“lenda” da costela manifesta-se a mais íntima relação de reciprocidade entre
homem e mulher, a única em que se realiza a totalidade do ser humano; o caráter
determinantemente criatural do homem se mostra no “ser um só” entre o homem e
a mulher, onde ele deve se realizar plenamente, assim como anteriormente Gn 1,27
já havia descrito o homem, em sua semelhança a Deus, desde o início, como
masculino e feminino, ligando misteriosamente tal semelhança a essa relação
recíproca. Certamente, o texto deixa clara, também, a ambivalência dessa
correlação: a mulher pode se tornar tentação para o homem, embora ao mesmo
tempo seja a mãe de toda a vida, e é daí que vem o seu nome; parece-me
significativo que ele seja formulado, em Gn 3,20, após a queda do pecado original,
após as palavras de condenação pronunciadas por Deus, e que só então a dignidade
e a grandeza da mulher, intactas, venham a ser expressas. Ela conserva o mistério da
vida, o poder antagônico à morte, que por sua vez, enquanto potência do nada, é a
antítese de Iahweh, o Criador da vida, e o Deus dos vivos. Ela, que oferece o fruto
da morte, e cuja missão é misteriosamente irmanada à morte, é, no entanto, também
a guardiã do selo da vida, e a antítese da morte. A mulher, que carrega as chaves da
vida, toca desse modo diretamente no mistério do Ser, o Deus vivo, do qual em
última instância vem toda a vida, e que justamente por isso é chamado de Vida, de
Vivente.[7] Veremos, mais adiante, de que modo precisamente essas conexões são
retomadas no dogma da Assunção.
2. Nos relatos do Antigo Testamento sobre a promessa, os pais aparecem, com
efeito, no primeiro plano, como os verdadeiros protagonistas da história, mas as
7
mães também desempenham um papel específico. Sara-Agar, Raquel-Lia, Ana-
Penina são aquelas duplas de mulheres em que se desenha o elemento específico do
caminho da promessa. Em cada caso se confrontam a fertilidade e a esterilidade, e
nesse confronto se chega a um notável cruzamento de valores.[8] Para o
pensamento arcaico, a fertilidade é sinônimo de bênção; a esterilidade, de maldição.
Aqui, porém, as coisas se invertem: em última instância, a mulher estéril acaba
provando ser sempre a abençoada, enquanto a fértil fica habitualmente para trás, ou
chega mesmo a ter de lutar contra a maldição do repúdio, de não ser amada.
Apenas aos poucos, lentamente, o conteúdo teológico dessa subversão dos valores é
esclarecido; Paulo desenvolve a partir daí a sua teologia do nascimento espiritual: o
verdadeiro filho de Abraão não é propriamente aquele que dele descende
fisicamente, mas aquele que é concebido de uma nova maneira, superior àquela do
mero nascimento físico, através do poder criador das palavras de promessa
proferidas por Deus. Não é mais a vida física, enquanto tal, a riqueza, mas somente
a promessa, que está acima da vida, é capaz de tornar a vida plenamente vida (cf.
Rm 4; Gl 3,1-14; 4,21-31).
O canto de Ana, que ressoa novamente no Magnificat de Maria, havia
desenvolvido a partir daí, em um estágio anterior da evolução veterotestamentária,
uma teologia da graça: o Senhor ergue do pó os desprezados e levanta das cinzas o
indigente (1Sm 2,8). A atenção de Deus para com os pequeninos, impotentes e
rejeitados, e nessa atenção o amor de Deus que redime verdadeiramente, reluz para
Ana e para Maria nesse singular fenômeno das mulheres não
abençoadas/abençoadas. O mistério do último lugar (Lc 14,10) é anunciado, bem
como o da troca de lugares entre o primeiro e o último (Mc 10,31) e a inversão dos
valores no Sermão da Montanha, a inversão daqueles valores terrenos que se
fundamentam na hybris. No entanto, também a teologia da virgindade tem, aqui, o
seu primeiro e ainda velado indício: a infertilidade terrena transforma-se em
verdadeira fecundidade...
3. Nas margens do cânon veterotestamentário, em seus escritos tardios,
desenvolve-se um tipo novo e, todavia, também totalmente originário de teologia da
mulher: são evidenciadas as figuras redentoras de Ester e Judite que, no entanto,
retomam uma antiquíssima tradição, que está representada, por exemplo, na figura
da juíza Débora. Ambas as mulheres possuem um traço essencial em comum com as
grandes mães: a primeira é viúva e a outra é mulher do harém, na corte real persa;
ambas se encontram – ainda que de modos diversos – em uma situação de opressão;
ambas personificam um Israel derrotado: Israel enviuvado, que definha em meio à
tristeza; Israel deportado e humilhado entre os povos, subserviente ao seu arbítrio.
Ambas, porém, incorporam igualmente a indestrutível força espiritual de Israel, que
não é capaz de triunfar à maneira de uma potência mundial, e justamente por isso
consegue zombar dos poderosos e vencê-los. Assim a mulher, enquanto redentora,
enquanto personificação da esperança de Israel, coloca-se ao lado da mãe
abençoada/não abençoada. É significativo que desde sempre a mulher, com efeito,
jamais figure como sacerdotisa, mas como profetisa e como juíza/redentora no
8
pensamento e na fé de Israel, e desse modo se apresenta o seu elemento específico,
e o lugar que lhe é destinado.[9] Com isso repete-se e é reforçado aquilo que já foi
dito: aquela que é estéril, aquela que é impotente, torna-se redentora, pois ali está o
lugar da revelação para o poder de Deus. A mulher permanece, após a queda do
pecado, “mãe da vida”.
4. Na figura novelístico-teológica das mulheres redentoras está já pressuposto e
novamente expresso aquilo que o anúncio profético havia desenvolvido, em um
aprofundamento teológico, a partir da imagem das grandes mulheres maternais, e
aquilo que deve ser visto como o verdadeiro ponto central na teologia
veterotestamentária da mulher: o próprio Israel, o povo escolhido, é ao mesmo
tempo apresentado como mulher, como virgem, como amada, como noiva e como
mãe. As grandes mulheres de Israel representam aquilo que esse próprio povoé. A
história dessas mulheres se torna teologia do povo de Deus e ao mesmo tempo, com
isso, teologia da Aliança. Na medida, porém, em que torna compreensível a
categoria da aliança e confere a esta última seu conteúdo e sua direção espiritual, a
figura da mulher se insere no mais íntimo da piedade e do relacionamento com
Deus. Presumivelmente, o conceito de aliança foi, em primeiro lugar, extensamente
marcado pelo modelo dos pactos de vassalagem do antigo Oriente, de acordo com
os quais o grande rei distribui direitos e obrigações.[10] Esse conceito político-
jurídico, entretanto, é cada vez mais aprofundado e superado na teologia profética:
a relação de aliança entre Iahweh e Israel consiste em uma aliança de amor
matrimonial, que o próprio Iahweh (assim apresenta Oseias de modo grandioso)
aprofunda e ultrapassa: ele amou Israel, a jovem donzela, com um amor que se
mostra indestrutível e eterno. Ele pode se enraivecer com a mulher da sua
juventude, por causa do seu adultério, e pode castigá-la, mas tudo isso, no entanto,
se volta ao mesmo tempo contra si próprio, magoando-o, ele, o amante cujas
“entranhas se remexem” – ele não consegue repudiá-la sem punir-se a si mesmo.
Desse modo, é na sua própria e mais íntima consternação de amante que se
fundamenta o caráter eterno e irrevogável da aliança: “Como poderia eu
abandonar-te, ó Efraim, entregar-te, ó Israel? (...) Meu coração se contorce dentro
de mim, minhas entranhas comovem-se. Não executarei o ardor da minha ira, não
voltarei a destruir Efraim, porque eu sou um Deus e não um homem, eu sou santo
no meio de ti, não retornarei com furor” (Os 11,8s).[11] A divindade de Deus não
se apresenta mais no poder do castigo, mas no caráter indestrutível e constante do
seu amor.
Isso significa que, na relação entre Deus e Israel, não somente Deus, mas
também Israel participa como mulher, e que nesse relacionamento Israel é, a um só
tempo, virgem e mãe. E é por essa razão que a aliança sobre a qual se fundamenta o
caráter israelita de povo de Deus, e o de cada indivíduo israelita, manifesta-se entre
as pessoas na fidelidade da aliança matrimonial, e não de outro modo: o
matrimônio é a forma, resultante da aliança, do relacionamento recíproco entre o
homem e a mulher, e sobre esse relacionamento recíproco se baseia toda a história
humana. Ele traz consigo a teologia, mais até, só é possível e compreensível, acima
9
de tudo, teologicamente. Todavia, significa primordialmente também o seguinte: a
Deus, o Único, de acordo com sua revelação na história, não pertence uma deusa; a
Ele pertence Israel, a criatura eleita, a filha de Sião, a mulher. Suprimir a mulher do
conjunto da teologia significa negar a Criação e a Eleição (a história da salvação) e,
com isso, abolir a revelação. Nas mulheres de Israel, nas mães e nas redentoras, em
sua esterilidade fecunda, manifesta-se de modo mais puro e profundo aquilo que
vem a ser a Criação e a Eleição, aquilo que “Israel” é, enquanto povo de Deus. Uma
vez, porém, que eleição e revelação se identificam, manifesta-se aqui, e somente
aqui, enfim, quem e o que é Deus em sua verdadeira profundidade.
Certamente essa linha veterotestamentária permanece incompleta e em aberto,
exatamente como todas as demais linhas do Antigo Testamento. Seu significado
definitivo só será alcançado no Novo Testamento: na mulher que é designada, ela
própria, como o verdadeiro resto santo, a autêntica filha de Sião, e que assim se
torna a mãe do Salvador, de fato, a Mãe de Deus. Uma admissão do Cântico dos
Cânticos no cânon bíblico, diga-se de passagem, teria sido impossível se não
existisse uma teologia do amor e da mulher. Textualmente examinados, seriam
certamente cantos de amor profano com um acentuado colorido erótico. Eles foram
inseridos no cânon como expressão do diálogo entre Deus e Israel, e nessa medida
tal leitura é qualquer coisa menos uma mera alegoria.[12]
5. Nos escritos tardios do Antigo Testamento desenvolve-se, ainda, mais uma
singular linha que, do mesmo modo, não pode ser explicada apenas no contexto
veterotestamentário: a figura da Sabedoria (Sophia) adquire um significado central.
Ela deve ter sido recebida a partir do modelo egípcio, adaptado agora, porém, à fé
de Israel. A “Sabedoria” aparece como intermediária da Criação e da história da
salvação, como a primeira criatura de Deus, onde se manifesta a pura forma original
da sua vontade criadora, e igualmente a pura resposta, que ele encontra; com efeito,
pode-se dizer que precisamente essa ideia da resposta é marcante para a noção
veterotestamentária de sabedoria. A criação responde, e a resposta se encontra
próxima de Deus, como um parceiro de jogo ou como um amante.[13]
Havíamos constatado, anteriormente, que o Novo Testamento recorre às mães
da Antiga Aliança, à teologia da Filha de Sião e, certamente, também a Eva, e
engloba essas três linhas para a interpretação de Maria. Temos, agora, de
acrescentar que a liturgia da Igreja amplia essa teologia veterotestamentária da
mulher do Novo Testamento, na medida em que ela também compreende
marianamente Ester e Judite, as mulheres redentoras, e na medida em que faz as
leituras sobre a sabedoria referindo-se a Maria. Isso foi bastante criticado pelo
movimento litúrgico e pela teologia de orientação cristocêntrica do século XX;
afirmava-se que esses textos só poderiam e deveriam ser lidos cristologicamente.
Após anos de uma adesão resoluta a essa visão, torna-se cada vez mais claro para
mim que ela não soube compreender, na realidade, o elemento específico dos textos
sobre a sabedoria. É, de fato, verdade que a cristologia contém em si elementos
essenciais da noção de sabedoria, de tal modo que devemos falar de um fio
condutor cristológico, que leva adiante, no Novo Testamento, o pensamento sobre
10
a sabedoria. Por outro lado, porém, sobra aqui um resto que não se deixa integrar
completamente na cristologia: “sabedoria” é um termo feminino, tanto no hebraico
quanto no grego, e na consciência linguística dos antigos esse não é um mero e
vazio fenômeno gramatical. “Sophia”, enquanto feminino, permanece naquela
esfera da realidade que é representado pela mulher, o feminino por excelência. Ela
significa a resposta ao chamado divino da criação e da eleição. Ela expressa
justamente o fato de que existe a pura resposta, e de que nela o amor de Deus
encontra a sua morada irrevogável. Para fazer jus a toda a complexidade do
assunto, certamente teríamos também de levar em consideração que o termo
“espírito” é feminino na língua hebraica (ainda que não no grego) e que, por essa
razão, a imagem original do feminino, em uma doutrina do espírito, deve ser
perscrutada, de alguma forma velada e misteriosa, no próprio Deus. No entanto,
doutrina do espírito e doutrina da sabedoria são duas linhas de tradição distintas; a
partir de uma perspectiva neotestamentária, a sabedoria se refere, por um lado, ao
Filho enquanto a Palavra na qual Deus cria, mas por outro lado também à criatura,
ao Israel verdadeiro, que é personificado na serva humilde, cujo ser, por completo,
está no gesto do “Fiat mihi secundum verbum tuum”. A Sophia se refere ao Logos,
a Palavra [Wort] que funda a sabedoria, mas também à resposta [Antwort] da
mulher, que recebe a sabedoria e lhe traz fruto. A eliminação do elemento mariano
da sofiologia anula, no fim, toda uma dimensão do fato bíblico, do fato cristão.
Podemos agora, então, afirmar: a figura da mulher é indispensável para a
estrutura da fé bíblica. Ela expressa a realidade da Criação, e expressa a
fecundidade da graça. A partir do momento em que, no Novo Testamento, os
esquemas abstratos da esperança de uma intervenção de Deus em favor do seu povo
recebem um nome concreto e personificado na figura de Jesus Cristo, é ressaltada,
também, a figura da mulher, considerada apenas tipologicamente, até então, em
Israel, e certamente personalizada de modo provisório nas grandes mulheres de
Israel, com um nome, e como síntese do princípio da mulher, de modo que o
princípio só é real na pessoa, mas a pessoa, precisamenteenquanto indivíduo,
aponta para além de si mesma, para aquela amplitude que carrega consigo, e que ela
representa: Maria.[14] Negar ou recusar o elemento feminino – ou seja,
concretamente, o elemento mariano – conduz, em última instância, à negação da
Criação e da realidade da graça, a uma concepção solitária da atuação de Deus, que
faz da criatura uma máscara e, com isso, acaba justamente por desconhecer o Deus
da Bíblia, por esta descrito como o Criador e o Deus da Aliança – o Deus para
quem o castigo infligido à amada, o seu repúdio, torna-se paixão por amor,
chegando até a cruz, que não por acaso é interpretada pelos Padres como evento
nupcial, como aquele sofrimento em que Deus toma sobre si o sofrimento dos
infiéis, para atraí-los, assim, irrevogavelmente para si em um amor eterno.[15]
11
Capítulo 2
A FÉ MARIANA DA IGREJA
No primeiro giro de nossas considerações, o discurso partiu diretamente apenas
das afirmações do Antigo Testamento, certamente de um modo, por assim dizer,
retroativo, como que lendo e contemplando o Antigo Testamento no Novo. Não
por acaso. O Novo Testamento se fundamenta, como um todo, no Antigo, e não
pretende ser nada além de uma nova leitura do Antigo Testamento à luz daquilo
que se passou com e através de Jesus de Nazaré.[16] Na mariologia, porém, sob
certo aspecto, chega-se a um ponto nodal dessa conexão, e ela não pode sequer ser
encontrada senão na percepção de Maria enquanto noiva, em unidade com a
teologia profética do povo de Deus, e tecida desde o princípio por Lucas e João, os
dois escritores marianos do Novo Testamento, totalmente a partir da fé do Antigo
Testamento: se em Cristo está presente a novidade da sua palavra, da sua vida, da
sua Paixão, de sua cruz e ressurreição, que marca também a diferenciação e o
rompimento, Maria incorpora, por sua vez, a continuidade no silêncio e na fé, que
se consuma nos pobres de Israel, naqueles a quem são dirigidas as bem-
aventuranças: felizes são os pobres “em espírito”. As bem-aventuranças são,
fundamentalmente, apenas uma variação da parte central do Magnificat: expulsou
dos tronos os poderosos e elevou os humildes. Esse trecho central do Magnificat é,
ao mesmo tempo, e acima de tudo, o centro da teologia bíblica do Povo de Deus. É
também a partir daí que deve ser analisada a estrutura especial dos dogmas
marianos, que, na forma como se apresentam, não podem de forma alguma ser
deduzidos a partir de textos isolados do Novo Testamento, mas expressam a grande
perspectiva da unidade dos dois testamentos. Eles só podem se tornar visíveis a um
modo de ver que perceba essa unidade, isto é, dentro de uma perspectiva que
compreenda e ratifique a interpretação “tipológica”, e a harmonia da única história
de Deus em meio à diversidade das histórias exteriores.
Com esses critérios metodológicos tornam-se, ao mesmo tempo, evidentes as
razões que permitiram que a mariologia se tornasse suspeita na Modernidade, seja
através de uma revolta contra ela, seja isolando-a em um romantismo perigoso.
Quando a unidade entre Antigo e Novo Testamento é destruída, perde-se o espaço
da mariologia, de uma mariologia saudável. Essa unidade entre os testamentos, por
sua vez, é também o pressuposto para que a doutrina da Criação e a doutrina da
Graça permaneçam intactas. Na Modernidade, porém, a perda da exegese
tipológica (da coesão da única história nas várias histórias) conduziu, de fato, à
separação dos testamentos, e através de um isolamento da doutrina da Graça
ameaça, ao mesmo tempo, e a olhos vistos, a doutrina da Criação. Nessa medida,
pode-se acrescentar de passagem, a mariologia é um sintoma para percebermos até
que ponto o peso do elemento cristológico está sendo colocado de forma justa ou
12
não.
Isso não significa, de forma alguma, que os textos neotestamentários não sejam
importantes; apenas foi indicada a perspectiva na qual eles podem desenvolver o
seu pleno significado. Pelo simples fato de que não tentaremos, aqui, uma
elaboração totalmente científica da mariologia, mas apenas uma reflexão atenta
sobre os conteúdos fundamentais da piedade mariana na Igreja, buscaremos, a
seguir, um caminho abreviado: a mariologia não será construída, peça por peça, a
partir dos seus elementos neotestamentários; ao contrário, tentarei salientar de
imediato os três grandes dogmas marianos, cuja apresentação sucessiva irá, por si
só, trazer à tona também os fundamentos bíblicos. Assim sendo, de que afirmações
trataremos?
1. O mais antigo dogma mariano, e o mais fundamental, afirma: Maria é virgem
(ἀεὶ παrϑέυος: Symbola DS 10-30; 42/64; 72; 150) e mãe, e pode, com efeito, ser
chamada de “Mãe de Deus” (Τεοτóχος: DS 251, Concílio de Éfeso). As duas coisas
estão estreitamente ligadas: quando ela é chamada de Mãe de Deus, isso constitui,
antes de tudo, uma expressão da unidade entre ser-Deus e ser-homem em Cristo,
que é tão profunda que não se pode, para os eventos carnais, como aquele do seu
nascimento, construir um Cristo meramente humano, separado da totalidade de sua
existência pessoal. Essa havia sido a argumentação dos nestorianos, que queriam
admitir apenas a designação de “Mãe de Cristo” (Χριστοτόχος) no lugar do termo
“Mãe de Deus”. Entretanto, em tal divisão da figura de Cristo, na qual o elemento
biológico-humano é claramente separado do ser divino, ocultam-se decisões
antropológicas e teológicas de grande significação: por detrás da fórmula “genitora
de Deus” está a convicção de que a unidade desse Cristo seria de tal maneira que
não consigo destilar, em algum ponto específico, o Cristo meramente corpóreo,
pois no homem também o corpóreo é humanamente corpóreo, assim como nos
confirma a biologia mais recente.[17] De resto, é verdade que nesse homem o
humano é humano de uma maneira única, isto é, como humanidade do Deus-
homem; o divino se uniu ao homem de forma tão verdadeira e real, que não se
detém em nenhuma soleira do ser-homem, mas adentra justamente nesse ser-
homem, em sua totalidade e, consequentemente, também enquanto ser corpóreo.
Por isso, então, o nascimento não deve ser reduzido a um ato meramente somático,
do modo como aparece em nossa filosofia da emancipação (que, em última
instância, é profundamente hostil ao corpo e à criação), onde o elemento do gênero
aparece como um detalhe ínfimo e verdadeiramente escandaloso, que não tem
absolutamente nada a ver com o homem enquanto tal. Todavia, se a unidade do
homem permanece sendo da forma como era percebida pela fé dos concílios, a
maternidade de Maria tem a ver, então, profundamente com o mistério da
Encarnação enquanto tal, e chega ao centro do próprio mistério. Assim sendo, o
axioma cristológico da encarnação de Deus em Cristo se torna necessariamente
mariológico, o que, na verdade, já era desde o início. Mas o contrário também é
verdadeiro: somente quando a cristologia é entendida de um modo tão radical que
também chega a Maria e se torna mariologia, esta mesma, a mariologia, adquire a
13
radicalidade que deve ter, de acordo com a fé da Igreja. O surgimento de um
sentido realmente mariológico é a medida para sabermos se o conteúdo cristológico
está plenamente presente. O nestorianismo significa a construção de uma cristologia
que exclui o nascimento e a mãe, de uma cristologia sem consequências
mariológicas. Mas justamente o fato de Deus ser afastado para tão longe do homem,
a ponto de tornar o nascimento e a maternidade – ou seja, sua corporeidade como
um todo – algo exterior a ele, acabou se tornando, então, um claro sinal, para a
consciência cristã, de que não se estava mais falando realmente de encarnação
(fazer-se carne), de que o próprio centro do mistério de Cristo se encontrava
ameaçado ou fora já destruído. A cristologia foi defendida, então, na mariologia; o
que não significa, obviamente, a construção de uma concorrência que fizesse
diminuir a cristologia, mas apenas o triunfo amplo de uma profissão de fé em Cristo
levada ao seu extremo último.
A fé da Igreja, em conformidade com o testemunho de Mateus e Lucas,
percebeu o caráter particular dessamaternidade, que requer o homem como um
todo naquele que ali nasce, na unidade entre ser-mãe e ser-virgem, unidade na qual,
ao mesmo tempo, a associação vetero- testamentária entre abençoada e não
abençoada, fértil e estéril, se mostra uma figura de significado perene. O estado de
solteiro e a infertilidade, até então a maldição de ter ficado sozinho e, dessa forma,
sem futuro e, portanto, sem presente, pode agora, enquanto virgindade, apresentar
o mistério da renúncia e da fecundidade como sempre válido, e junto com o
matrimônio, para o qual aponta, manifestar a particularidade do Deus que busca o
homem e o abençoa, na Criação e na Redenção.
2. A partir das mesmas raízes da teologia do Povo de Deus e de sua plena
realização na nova maternidade de Maria, cresce, aos poucos, a certeza da ausência
de pecado em Maria, como expressão de sua eleição particular: Immaculata
Conceptio (DS 2800 até 2804).
3. Por sua vez, a profissão de fé na ausência de pecado em Maria leva à
convicção de sua participação no destino de ressurreição do Filho e na sua vitória
sobre a morte (DS 3900-3904).
14
1. O DOGMA MARIANO ORIGINÁRIO: VIRGEM E MÃE
a) Os textos neotestamentários
A purificação do cristianismo, a busca da sua essência original, acontece hoje, na
era do pensamento histórico, quase sem exceção, no modo como são buscadas suas
formas mais antigas, e apresentando-as como o único critério determinante: o
originário é confundido com o antiquíssimo. Por sua vez, a fé da Igreja vê nos
testemunhos dos apóstolos algo vivo, que conserva sua lei estrutural justamente
pelo fato de se desenvolver.
De que modo foi percorrido o caminho que levou à profissão de fé na
maternidade virginal de Maria? De acordo com o intuito geral do nosso ensaio, essa
questão não deverá, aqui, mais uma vez, ser conduzida na forma de uma análise
estritamente científica; tentaremos, simplesmente, abarcar os principais estágios do
crescimento da tradição a ela correspondente. Em Paulo, a questão do nascimento
de Jesus não desempenha, ainda, nenhum papel teológico; sua fé se desenvolve
inteiramente a partir da profissão de fé na cruz e na ressurreição. Apenas em uma
passagem se permite fixar um prelúdio longínquo daquela afirmação que será,
então, transmitida expressamente nos relatos de Mateus e Lucas sobre a infância.
Quando, em Gl 4,4, Paulo afirma que Jesus “nasceu de uma mulher”, quer
simplesmente afirmar que Jesus participou dos aspectos normais do “ser homem”,
que ele assumiu plenamente a “condition humaine”.[18] Para Paulo, isso significa,
antes de tudo, que Jesus se curvou ante o peso da Lei, de uma religião que se
tornou lei e, com isso, acabou produzindo mais medo que esperança, mais divisão
que união. Não há nada além disso nessa passagem. Certamente, se quisermos ler
todo o contexto, de forma mais abrangente, para adiante, por assim dizer, em
direção ao futuro, poderemos escutar, talvez, ainda que de modo contido, algo a
mais da futura teologia do mistério do Natal. Pois, no fim das contas, Paulo coloca,
no contexto maior dessa frase, a existência cristã em conexão com os dois filhos de
Abraão: Isaac e Ismael. Ele afirma que o herdeiro da promessa não é aquele que
descende carnalmente de Abraão – Ismael –, mas aquele que foi gerado pelo
espírito, pela força viva da promessa. Ele coloca os cristãos, a partir de Jesus, nessa
linha do nascimento espiritual, na linha de Isaac, que expressa o novo nascimento
de Abraão por parte daqueles que creem em Cristo (Gl 4,21-34).[19]
Tudo isso não é mais que um prelúdio, as linhas não são prolongadas. Apenas
em Mateus e Lucas isso irá acontecer, e, com efeito, de duas maneiras. Em primeiro
lugar, deve-se notar aqui a função especial da árvore genealógica com a qual é
descrita a origem de Jesus, mas ao mesmo tempo procuraremos uma explicação da
sua essência. A árvore genealógica em Mateus mostra Jesus como filho de Abraão,
mas acima de tudo o descreve como o verdadeiro Davi, no qual o sinal da
esperança, que esse rei se tornara de modo crescente para o seu povo, realiza-se
plenamente. Lucas vai além, percorrendo de volta o caminho de Jesus até Adão,
“que vem de Deus” (3,38). Adão, ou seja, o homem por excelência. Uma árvore
15
genealógica que retorna até Adão quer mostrar que em Jesus não se realiza apenas a
esperança do rei de Israel, mas a questão acerca do homem em geral, que, de modo
errante e às apalpadelas, está sempre à procura de si mesmo. Jesus é o homem para
todos os homens; o homem em que se realiza a destinação e a origem divinas do
homem. Nele o ser dilacerado do homem é unificado e conservado em Deus, de
onde ele vem e a quem busca, em meio ao seu abandono. Jesus é “Adão” – a forma
do ser humano por excelência. E assim o é porque ele “é de Deus”.
Ambas as árvores genealógicas estão, então, ligadas ao contexto histórico e
humano de Jesus. Ambas, porém, estão convencidas de que Jesus pode ser o fruto
conclusivo apenas porque nele uma nova força penetra na árvore ressequida dessa
história – pois ele não descende apenas de baixo. Ele é, de fato, fruto dessa árvore,
mas a árvore só pode, todavia, dar fruto porque é fecundada a partir de fora. Jesus
descende de baixo e, no entanto, descende ao mesmo tempo do alto – e essas duas
coisas não se contradizem. Ele é totalmente homem, fruto dessa terra, e é assim
justamente, porém, porque não descende apenas dessa terra. Isso se torna evidente
em Mateus no fato de que o esquema da árvore genealógica, que liga os membros
entre si através da expressão “ele gerou”, é rompido na última frase: José, o marido
de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado de Cristo (1,16). Em Lucas, isso é
mostrado quando Jesus não figura como o filho de José, mas como aquele “que era
tido como tal”, e por isso juridicamente denominado como tal (3,23).
O misterioso indício aqui apresentado é desenvolvido de modo mais
pormenorizado nos relatos sobre a infância de Jesus (Mt 1,18-25; Lc 1-2). Não
precisamos examiná-los, aqui, individualmente; apenas alguns pontos de vista do
texto de Lucas, importantes para a compreensão global da figura de Maria, deverão
ser brevemente mencionados. Antes de tudo, é importante a determinação do lugar,
feita por Lucas em uma intencional contraposição com a história precedente, sobre
João Batista. O anúncio do nascimento de João se dá no Templo, a um sacerdote
em exercício – como que de acordo com o ordenamento oficialmente prescrito pela
Lei, em ligação com o seu culto, seu lugar e seu representante. O anúncio a Maria
se dá a uma mulher, em um lugar insignificante da Galileia semipagã, que nem
Flávio Josefo nem o Talmud mencionam. Tudo isso era “insólito para a
sensibilidade judaica. Deus se revela agora onde quer, e a quem quer”.[20] Tem
início um novo caminho, em cujo centro não está mais o Templo, mas a
simplicidade de Jesus Cristo. Ele é, agora, o verdadeiro templo, a tenda do
encontro.
A saudação a Maria (Lc 1,28-32) é formulada em uma estreita ligação com Sf
3,14-17: Maria é a filha de Sião, a quem são dirigidas as palavras daquele texto, a
quem é proclamado o “Alegra-te”, a quem é dito que o Senhor virá até ela; dela é
retirado o temor, pois o Senhor está com ela, para salvá-la.[21] A esse propósito,
Laurentin faz uma bela observação: “Frequentemente, a Palavra de Deus se mostra
como um grão de trigo (...) Compreende-se também por que Maria ficou
perturbada com esse anúncio (Lc 1,29). Seu temor não vem da falta de
compreensão ou daquela angústia mesquinha à qual podemos nos deixar levar. Ele
16
vem da comoção de um daqueles encontros com Deus, daquelas alegrias
incomensuráveis que conseguem abalar as naturezas mais duras”.[22] Na saudação
do anjo revela-se como um todo o motivo basilar da apresentação que faz Lucas da
figura de Maria: ela é a verdadeira Sião, a quem se dirigem as esperanças em todas
as desolações da história. Ela é o verdadeiro Israel, em quem a Antiga e a Nova
Aliança, Israel e a Igreja, são uma coisa só, inseparável. Ela é o “Povo de Deus”,
que dá fruto a partir do poder da graça de Deus.
Finalmente,temos ainda de examinar, aqui, a afirmação com a qual o mistério
da nova concepção e nascimento é cuidadosamente descrito: o Espírito Santo virá
sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. No assim chamado
“paralelismus membrorum” são aqui sobrepostas duas imagens, provenientes de
diferentes linhas de tradição, para ilustrar o misterioso/inefável. A primeira imagem
faz uma alusão ao relato da Criação (Gn 1,2) e caracteriza, assim, o evento como
sendo a Nova Criação: o Deus que chama o ser a partir do nada, e cujo Espírito
pairava sobre os abismos, ele que, enquanto “espírito criador”, é o fundamento de
todos os entes – esse Deus inaugura aqui uma nova criação na antiga, e a partir dela.
Dessa forma, é assinalado com toda a ênfase necessária o corte radical que significa
a vinda de Cristo: sua novidade é tal, que chega até o fundamento do ser; e é de tal
modo, que não pode provir de nenhum outro lugar, senão do poder criador do
próprio Deus. A segunda imagem – “a força do Altíssimo te cobrirá com a sua
sombra” – faz parte da teologia israelita do culto; ela se refere à nuvem que
sombreia o Templo, anunciando assim a presença de Deus. Maria surge como a
tenda sagrada sobre a qual a presença oculta de Deus se torna efetiva.
Antes de nos dedicarmos a uma apreciação teológica conclusiva, devemos, ainda,
responder a dois questionamentos. O primeiro diz respeito à tradição utilizada
aqui, em Lucas e Mateus. A exegese mais recente mostra que os dois evangelistas
deram forma definitiva ao assunto a partir de suas próprias intenções e noções
teológicas; essa contribuição “literária” dos evangelistas não deve, certamente, ser
desprezada. No entanto, a exegese mostra, sem dúvida, também, que os dois
evangelistas se utilizam de um material de tradição preexistente, que antes deles já
havia tomado forma nas comunidades e era por estas transmitido. Com relação a
Lucas, Schürmann vê a possibilidade de designar uma comunidade da Judeia dos
anos sessenta como o grupo precedente que teria servido como mediador da
tradição.[23] Não se poderá contestar que o próprio Lucas quis se remeter a Maria
(e, com isso, também ao círculo mais amplo dos parentes consanguíneos de Jesus).
Consequentemente, a admissão desse trecho no Evangelho é um acontecimento de
natureza particular, no que diz respeito à história da tradição: ela significa que uma
tradição que anteriormente havia sido conservada privadamente, em um círculo
mais restrito, é agora incluída no anúncio e na pregação pública da Igreja,
ganhando a dignidade de uma tradição oficial e comum a toda a comunhão eclesial.
Essa me parece uma observação importante para a questão, sempre evocada, acerca
da antiguidade dessa tradição. Aquilo que distingue a tradição da Páscoa da
tradição do Natal não é simplesmente a antiguidade enquanto tal; Lucas reconduz a
17
história do nascimento à memória de Maria, e não há motivo algum para que o
núcleo teológico da tradição, até então formado, dela desconfiasse, sobretudo
quando se apresenta como comunidade mediadora o grupo dos “irmãos do
Senhor”, cuja importância e posição próprias possuem um valor inestimável. A
diferença com relação ao núcleo não reside, então, na antiguidade, mas na posição
diversa que as tradições a princípio ocuparam, e no fato de que somente mais tarde,
em um determinado estágio do desenvolvimento interno da profissão de fé em
Cristo, tornou-se significativo e necessário integrar também essas tradições na
profissão de fé comum e oficial da Igreja. Isso acontece apenas no momento em
que, por assim dizer, seu lugar interior está preparado, assim como está atravessada
a distância temporal, que nesse campo era especialmente necessária para que
houvesse o devido respeito.
A segunda observação se refere à ação continuada dessa mensagem no interior
do anúncio neotestamentário. Ao prelúdio feito por Paulo corresponde uma
utilização, em João, que expande o evento, em seu caráter histórico e excepcional,
para algo espiritual e coletivo – não um poslúdio, portanto, mas a retomada do
tema em uma fuga musical, que abre sempre, e seguidamente, novas possibilidades
de execução. No prólogo do seu Evangelho, João descreve os cristãos como aqueles
“que não são gerados nem do sangue, nem de uma vontade da carne, nem de uma
vontade do homem, mas de Deus” (1,13). Aqui se liga o mistério paulino à tradição
de Mateus e Lucas, em uma nova unidade: tornar-se cristão significa penetrar no
mistério do novo nascimento de Jesus Cristo, participar do seu nascimento,
nascendo de novo. Naturalmente, surge aqui também a controvérsia sobre o início
do Quarto Evangelho, em geral: não terá João procurado, aqui, assim como nos
sacramentos (batismo e eucaristia) e na escatologia (ressurreição agora e no Juízo
Final), elevar o “vulgar-católico” a um plano espiritual e existencial? Não será essa
uma tentativa de ligá-lo, somente a posteriori, àquilo que ele, na verdade, gostaria
de ter ultrapassado? Não precisamos discutir essa questão de modo mais
prolongado no âmbito de nossas reflexões. Uma única coisa, porém, parece-me
clara, em toda a amplitude das circunstâncias: todo o ímpeto das diretivas
espirituais do Quarto Evangelho é motivado pelo fato de elas possuírem um
fundamento real. O “existencial”, com efeito, não teria mais nada a dizer, se fosse a
explicação do nada. O novo nascimento cristão é possível porque aconteceu
realmente em Jesus e, desse modo, tornou-se possibilidade para todos nós.
18
b) O sentido teológico
Com essas observações já nos situamos plenamente na questão acerca da
interpretação. Por que motivo o fato foi transmitido e respectivamente aceito na
tradição oficial da comunidade eclesial? Somente se nos questionarmos sobre o
fundamento teológico dessa passagem poderemos, com toda a clareza, avaliar
também a importância atribuída à virgindade de Maria em sua maternidade. De que
se tratou, e de que se trata, aqui, exatamente? Parece-me que podem ser
estabelecidos dois fundamentos primordiais.
1. Há uma afirmação sobre a ação de Deus no homem e, com isso, uma
afirmação sobre o próprio homem. A concepção e o nascimento de Jesus significam
um novo início na história, que é mais do que aquela novidade que diz respeito a
cada indivíduo humano. Aqui Deus começa novamente. Aquilo que se inicia possui
a qualidade de uma Nova Criação, que acontece graças a uma intervenção singular
e totalmente específica de Deus. Aqui está verdadeiramente “Adão”, que vem mais
uma vez “de Deus”, e num sentido mais elevado que antes (cf. Lc 3,38). Tal
nascimento só pode acontecer naquela que é “estéril”: aquilo que é prometido em
Is 54,1 torna-se realidade concreta, segundo Lucas, no mistério de Maria – aquele
Israel impotente, repudiado pelos homens e infecundo, deu fruto. Em Jesus, Deus
estabeleceu um novo início em meio à humanidade infecunda e sem esperança, um
novo início que não é o resultado da sua própria história, mas dom do alto. Uma
nova encarnação tem início com ele. Em contraposição a todos os eleitos antes dele,
Jesus não somente recebe o Espírito, mas também existe, em sua vida terrena,
apenas através do Espírito, sendo por isso o verdadeiro profeta, a realização de
todos os profetas. Desse modo, Maria, a estéril/abençoada, torna-se sinal da graça –
sinal daquilo que é verdadeiramente fecundo e redentor: a abertura disponível, que
cede à vontade de Deus.
2. Há, também, no entanto (e até mesmo primariamente), uma afirmação
autenticamente cristológica, que H. Schürmann descreve da seguinte maneira:
“Uma vez que o menino é obra de Deus desde a sua origem, ele será sempre ‘santo’.
O Espírito Santo não irá preenchê-lo, como fez com João Batista ‘no ventre de sua
mãe’ (Lc 1,15), mas o sopro de Deus lhe dispensará vida e existência criativamente,
determinando, assim, sua essência mais íntima e fazendo-o ‘santo’”.[24] Justamente
na contraposição a João, que na sua estreita afinidade com Jeremias (igualmente
chamado desde o seio materno [1,4]) personifica o homem de Deus
veterotestamentário, a afirmação deixa claro aquiloque Lucas deseja apresentar:
aqui está mais do que um profeta, aqui está o “Filho”, pois o Ser enquanto tal é
fruto do Espírito.
Hans Urs von Balthasar fundamentou mais profundamente essa conexão, a
partir da lógica do ser-homem e da lógica da encarnação, que um pouco antes já
ressoava, por ocasião das reflexões sobre o título de “Mãe de Deus”. Se aqui o
Filho se encarnou verdadeiramente, esse acontecimento atinge realmente, então, até
a “carne”, e vice-versa: a “carne” chega até o centro da Pessoa do Logos, uma vez
19
que o homem é uma unidade e uma totalidade. Encarnação significa uma unidade
concreta de vida na ineliminável distinção de ser entre Deus e o homem; ela é de tal
modo efetiva no ser-homem de Jesus, que toda a sua vida penetra no intercâmbio
do Filho com o Pai, seu pensar e seu existir dele provêm e para Ele se dirigem.
Ouçamos, então, o que fala a esse respeito Hans Urs von Balthasar: “Poderia esse
homem, que se encontrava em uma relação tão singular com o ‘Pai no céu’, ao qual
estava obrigado, a Ele se confiando e se remetendo em todos os aspectos, poderia
ele ainda estar ao mesmo tempo obrigado a outro pai? Grosseiramente falando,
poderia ele ter dois pais, o que o teria constrangido humanamente a estar obrigado
a dois pais? Pois ele não vivia em nossa assim chamada ‘sociedade órfã de pai’, em
que o quarto mandamento parece ter desbotado até desaparecer totalmente, e em
que a relação entre pais e filhos não consiste mais em um relacionamento humano
de total solicitude e de um amor reverente e respeitoso, mas é reduzido ao resultado
de um ato sexual casual, que não obriga em nada aos filhos diante dos pais (...) A
relação exclusiva de Jesus com o seu Pai celeste não iria obrigatoriamente magoar
de modo profundo o carpinteiro José, caso este tivesse sido o seu pai biológico? E
poderia Jesus, por acaso, transgredir esse mandamento tão vital para todas as
culturas, logo ele que apontava justamente para a conservação dos Dez
Mandamentos (Mc 10,19)?”.[25] O nascimento terreno, órfão de pai, é a origem
intimamente necessária daquele que apenas a Deus podia chamar de “meu Pai”,
que também enquanto homem era, desde o fundamento, Filho, Filho desse Pai. A
árvore genealógica de José, que os dois evangelistas apresentam, refere-se à
condição jurídica de Jesus na sociedade do seu tempo, remetendo-se a Davi e,
assim, ao seu caráter messiânico. O nascimento a partir da Virgem, porém, remete à
filiação, remete ao Pai e, com isso, àquilo que para Jesus era infinitamente mais
essencial que a messianidade, à qual ele dava pouco valor, pelo menos no confronto
com a compreensão que dela tinham os seus contemporâneos, em sua (deles)
interpretação do Antigo Testamento. O nascimento virginal é a origem necessária
daquele que é o Filho e que somente por isso confere também à esperança
messiânica um sentido permanente e que aponta para além de Israel.[26] Nesse
“novo nascimento” (nova nativitas, afirma a Liturgia Romana), que inclui, ao
mesmo tempo, a renúncia à autodisposição e ao autoplanejamento da vida, na
renúncia à fecundidade terrena, Maria, enquanto mãe, é verdadeiramente a
“genitora de Deus”, e não apenas um órgão de um evento corporal casual. Gerar o
“Filho” implica a entrega de si mesma na ausência da fecundidade; torna-se agora
claro por que a esterilidade é a condição para a fertilidade – o mistério das mães do
Antigo Testamento torna-se transparente em Maria. Ele alcança o seu significado na
virgindade cristã, que começa em Maria.
Sabe-se agora, porém, que o nascimento virginal, enquanto fato, enquanto
realidade efetivamente histórica, é fortemente contestado, e hoje chega a ser
deixado de lado, inclusive, por teólogos católicos: aquilo que importa, diz-se, é
apenas o significado espiritual, o elemento biológico não poderia ter relevância
alguma para a teologia e deveria ser valorizado meramente como um meio
20
simbólico de expressão. No entanto, essa alternativa, por mais plausível que possa
parecer, conduz, na realidade, a um beco sem saída; ela acaba se revelando, em um
exame mais atento, um engano. A condescendente separação da “biologia” do
âmbito teológico empobrece, com efeito, exatamente o homem; ela é, aqui, uma
contradição em si mesma, pois o ponto mais relevante de todo o conjunto está
justamente na afirmação de que no humano também o elemento biológico é
humano, e, com mais razão ainda, no teo-humano nada é meramente “biológico”. A
reclusão do elemento corporal ou sexual na pura biologia é, por conseguinte,
justamente a antítese daquilo que entende a fé que deseja falar da espiritualidade do
biológico e da corporalidade do espiritual e divino. Temos aqui ou tudo ou nada; a
tentativa de, após um cancelamento do elemento biológico, conservar um destilado
espiritual, é a negação daquele espiritual de que fala a fé no Deus feito carne.
Mas, então, de onde nascem propriamente as dificuldades? Eu acredito que
temos de distinguir, aqui, dois planos: há, primeiramente, o plano que abrange os
problemas mais aparentes, as questões certamente importantes dos dados
históricos, mas que, no fundo, têm uma importância secundária. Normalmente,
apenas esses problemas são mencionados, o que torna o debate um simulacro de
luta, uma vez que os verdadeiros fundamentos – que constituem, portanto, o outro
plano – não entram em jogo. Descobrir esses fundamentos deve ser, assim, nossa
tarefa.
Entretanto, comecemos, em primeiro lugar, a examinar as objeções habituais –
as razões de segunda ordem, como eu gostaria de denominá-las. Há pouco
encontramos uma dessas objeções, durante a análise dos textos do Novo
Testamento: chama-se a atenção para o fato de que se trata de tradições
relativamente tardias. Porém, em termos de teoria do conhecimento isso significa
muito pouco, uma vez que a antiguidade enquanto tal não é nenhum critério para a
verdade. Contra tal argumento pode-se objetar que isso teria validade, de fato, em
relação ao desenvolvimento espiritual de certos pontos de vista, mas para
afirmações acerca de acontecimentos, a proximidade cronológica daquilo que é
relatado seria um critério decisivo. Diante disso deve-se, então, insistir também em
uma diferenciação no diagnóstico “relativamente tardio”. A forma literária pode ser
relativamente tardia; a tradição ali formulada, mas por sua vez já formada, remonta
a bem mais longe, e nenhuma crítica histórica está autorizada a descartar que o
núcleo mais primitivo de sua narração pode ser, novamente, mais antigo. Além
disso, é sempre um critério de certa significância a harmonia, no que diz respeito ao
núcleo narrativo, entre duas tradições independentes entre si, ainda que
formuladas, nos detalhes, de modos totalmente diferentes, assim como podemos
verificar entre Mateus e Lucas e suas fontes. Mais além, o caráter fortemente
judaico-cristão do todo tem a sua importância, remetendo, entretanto, àqueles
círculos que entram em questão somente enquanto primeiros portadores daquelas
afirmações. E, por fim, já havíamos observado que há excelentes motivos para a
aceitação tardia, por parte da tradição oficial, daquela tradição inicialmente
transmitida de modo privado. “Tardia”, no sentido próprio, é a promulgação e não
21
o núcleo da tradição em si.
O segundo grupo das objeções mais aparentes refere-se à suposta origem da
ideia da mãe virgem nos paralelos encontrados na história das religiões. Desde
Martin Dibelius faz-se referência, preferencialmente, a Fílon de Alexandria (c. 13
a.C. – 45/50 d.C.); Dibelius pretende mostrar, partindo da exegese filoniana da
maternidade das grandes mulheres do Antigo Testamento – Sara, Lia, Rebeca e
Zípora –, que a ideia da autoria exclusiva de Deus em certos nascimentos seria um
teologúmeno do judaísmo helenístico que teria sido usado pelos cristãos para a
geração de Jesus.[27] G. Guthknecht, prosseguindo e aprofundando as indicações
de Dibelius, procurou esclarecer que não se tratava de uma ideia genuinamente
helenística, mas “de um antigo teologúmeno egípcio”.[28] Diante disso, E.
Nellessen mostrou com umaprecisão irrefutável que a interpretação que Dibelius
dá aos textos de Fílon se apoia em distorções francamente desconcertantes.[29]
Qualquer pessoa que lê o texto por si só, sem se render previamente à autoridade
do grande erudito, pode se convencer do seguinte: aquilo que Fílon oferece é uma
interpretação alegórica e moral das histórias dos Patriarcas, e não um “teologúmeno
helenístico” do nascimento virginal dos homens de Deus; tudo o que dele se pode
deduzir é uma prévia espiritual em direção ao entendimento da virgindade, ao seu
modo especial de fecundidade e de proximidade de Deus, e, nessa medida, a
preparação de um espaço espiritual em que a mensagem do mistério do Natal possa
ser interpretada, mas de modo algum um modelo, em si, da história. Fracassa
igualmente a tentativa que empreende Guthknecht, de reportar as coisas ao mundo
egípcio; também aqui pode-se referir a Nellessen para as particularidades.[30] G.
Delling demonstrou, de modo convincente, que todos os demais paralelos que
forçadamente são colocados em jogo aqui e ali também não são justos.[31] Não há,
em um sentido próprio, paralelos ao relato neotestamentário do Natal na história
das religiões. O que há são motivos afins que, de uma forma ou de outra, tocam de
modo mais ou menos próximo a mensagem cristã, e não vejo nisso nada de
negativo: elas podem ser a manifestação de um arquétipo psicológico que, assim
como todos os arquétipos verdadeiros, testemunham um profundo conhecimento
da realidade em sua confusa nostalgia – um conhecimento que, embora ainda
deficiente, é pressentido e requerido na espera que caracteriza o coração humano.
O caráter resoluto com que o nascimento virginal de Jesus é rejeitado hoje,
todavia, não se explica a partir dos problemas históricos. A razão verdadeiramente
primordial que sustenta os questionamentos históricos encontra-se em outro lugar:
ela está na diferença entre nossa visão de mundo e a mensagem bíblica, e na noção
de que esta última não poderia encontrar lugar algum em um mundo interpretado a
partir das ciências naturais. Nesse ponto deve-se questionar: em que consiste,
propriamente, uma “visão de mundo”? Até que ponto ela tem o caráter de uma
instância para o conhecimento? Quando observamos mais de perto e – como, por
exemplo, o pano de fundo do questionamento que faz Bultmann acerca de nossa
visão de mundo – refletimos sobre os seus componentes, assim como sobre os
componentes das visões de mundo precedentes, podemos afirmar, então: uma visão
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de mundo é sempre uma síntese de saberes e valores que oferecem em conjunto, e
previamente, uma visão geral do real, cuja evidência e cujo caráter obrigatório se
funda sobre a fusão entre esses saberes e valores. No entanto, é exatamente sobre
isso que se funda também a sua problemática: os valores considerados plausíveis, e
que são praticados em um determinado período histórico, adquirem, através da
fusão com aquilo que se conhece, uma segurança e uma naturalidade que não
possuem em si mesmos e que, sob determinadas circunstâncias, podem se tornar
um claro obstáculo a um melhor conhecimento. Aquilo que é plausível pode
conduzir aos vestígios daquilo que é verdadeiro, mas pode, no entanto, ser também
uma oposição à verdade.[32]
No que diz respeito ao pretexto de visão de mundo que poderia nos obrigar,
psicologicamente, a considerar impossível o nascimento virginal, fica então claro
que isso não acontece a partir de um conhecimento, mas de valores. O nascimento
virginal é o improvável, tanto hoje como antigamente, mas de modo algum o
impossível, pura e simplesmente; não há prova alguma para a sua impossibilidade, e
nenhum estudioso sério das ciências naturais afirmaria algo desse gênero. O que
nos “constrange” a explicar como uma impossibilidade aquilo que é o máximo de
improbabilidade intramundana – e uma impossibilidade não apenas para o mundo,
mas também para Deus – não é mais o conhecimento, mas uma estrutura de
valores, com dois componentes primordiais: o primeiro consiste em nosso
cartesianismo impassível – naquela filosofia da emancipação, refratária à Criação, e
que insiste em afastar o corpo e o nascimento do âmbito do humano, para explicá-
lo dentro de uma esfera meramente biológica;[33] o outro consiste em um conceito
de Deus e do mundo que tem como imprópria uma ação concreta e terrena da parte
de Deus que consiga chegar até o biológico e à matéria, um conceito que gostaria de
se libertar dessa possibilidade: no fundo, ao desprezar a alma enquanto falamos do
elemento corpóreo, nós somos dualistas – isso é o que se demonstra nesse ponto.
Façamos, aqui, uma pausa para examinarmos até onde chegamos e para
encontrarmos o próximo passo a ser dado. Podemos, então, afirmar: a verdadeira
razão dos argumentos contrários à profissão de fé na virgindade de Maria não se
encontra no âmbito do conhecimento histórico (exegético), mas nos dados
previamente estabelecidos pela visão de mundo; os argumentos exegéticos
explicitam esses dados com os meios do pensamento histórico sem que recebam,
propriamente deste último, uma validade obrigatória. A partir desse primeiro juízo
desvelou-se, entretanto, um segundo: a causa do “não” se encontra na visão de
mundo, mas suas consequências atingem a imagem de Deus. A disputa
propriamente dita não se encontra, portanto, entre uma ingenuidade histórica e
uma crítica histórica, como se coloca na maioria das vezes, mas entre duas
concepções do relacionamento de Deus com o seu mundo. Pois na concepção de
que aquilo que é totalmente improvável no mundo também é impossível para Deus,
abriga-se o sereno pressuposto de que Deus não é capaz de atingir a história terrena
e vice-versa; seu campo de influência está restrito ao âmbito espiritual. Com isso,
porém, já nos encontramos em uma filosofia pagã, como aquela elaborada por
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Aristóteles, com uma lógica única em seu gênero; a oração e o relacionamento com
Deus são por ele explicados como sendo uma “autoajuda”; com efeito, se as coisas
são como são, não pode restar nada de diferente, em última instância.[34]
Quando, então, nos ocupamos, aqui, de pressupostos e consequências que dizem
respeito ao todo, não se trata, absolutamente, de questões acessórias, mas da
questão central: quem foi esse Jesus? Quem ou o que é o homem? E, no fim das
contas, da questão de todas as questões: quem ou o que é Deus? Dela continua
dependendo sempre, de modo ultimamente decisivo, como se dão as coisas para o
homem – e até mesmo para uma imagem ateia do homem a questão de Deus é
decisiva, no sentido negativo, para a questão sobre o homem. O testemunho do
nascimento de Jesus da Virgem Maria não é uma espécie de ângulo idílico de
devoção, inserido na estrutura da fé neotestamentária; não é uma capelinha privada
de dois evangelistas, que, no fim das contas, poderia ser abandonada. Trata-se da
questão de Deus: Deus é uma profundidade encontrável em algum lugar do Ser
que, por assim dizer, tudo nivela sem que se saiba exatamente como, ou é aquele
que age, que tem poder, que conhece e ama a sua criação, que está presente diante
dela e nela opera incessantemente, também hoje? Trata-se da alternativa: Deus age
ou não? Ele pode, de fato, agir? Se não pode, será então realmente “Deus”? O que
significa, propriamente, “Deus”? A fé no Deus que na Nova Criação permanece
sendo o Criador – Creator Spiritus – faz parte do núcleo do Novo Testamento, é a
sua autêntica força motriz. A mensagem do nascimento de Jesus da Virgem Maria
pretende testemunhar ambas as coisas: Deus age verdadeiramente; realiter, não de
modo meramente interpretativo. E a terra dá seus frutos – justamente porque Ele
age. O “Natus ex Maria virgine” está no núcleo de uma proposição rigorosamente
teo-lógica: ela dá testemunho do Deus que não abandona a Criação. Sobre isso se
funda a esperança, a liberdade, a serenidade e a responsabilidade do cristão.
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2. ISENTA DO PECADO DE ADÃO
Contra o dogma da Imaculada Conceição, sobre o qual iremos agora refletir, há
duas objeções. A primeira afirma: a isenção do pecado original (casofosse verdade)
seria um fato. Fatos, porém, não podem ser deduzidos de especulações, mas apenas
podem ser conhecidos mediante uma comunicação (revelação). Todavia, não há
uma comunicação dessa espécie com relação a Maria. Todo o primeiro milênio
desconhece algo a esse respeito. Consequentemente, a afirmação, todavia proposta,
não poderia representar senão uma transgressão especulativa. A outra objeção
sustenta que, com tal afirmação, a universalidade da graça estaria negada. A disputa
entre os teólogos girava em torno desse problema; a teologia reformada lhe conferiu
uma forma ainda mais fundamental, ao definir a graça essencialmente como uma
justificação do pecador. Basta, aqui, nos reportarmos àquele que é, seguramente, o
representante mais impressionante da fé reformada no século XX, Karl Barth, que
percebe, em uma teologia que pretende atribuir a Maria uma espécie de autonomia
na história da salvação, a tentativa de “elucidar e fundamentar somente a posteriori,
a partir do homem e de sua predisposição”, o milagre da revelação.[35] Para ele, por
isso, o “sim” de Maria pode significar apenas que ela, “apesar dos pecados dos
quais (...) é culpada, é aceita como aquela que concebe o próprio Deus eterno”.[36]
Barth se encontra, aqui, na linha de Lutero, aquela da rígida contraposição entre
Lei e Evangelho: entre Deus e o homem não há nenhum tipo de correspondência
(analogia), mas apenas oposição (dialética). Quando a ação de Deus é apresentada
com base na correspondência, a graça pura, a justificação sem méritos do pecador
parece negada.
Mas será isso justo? O franciscano B. Langemeyer, referindo-se ao Concílio
Vaticano II, aponta uma vez mais, e de modo resoluto, à tipologia (que se poderia
traduzir como doutrina da correspondência), que vincula o Antigo e o Novo
Testamento na unidade íntima que há entre promessa e realização.[37] A tipologia,
enquanto forma de interpretação, encerra em si a analogia, semelhança na
dessemelhança, unidade na distinção. Pois bem, nossas considerações anteriores já
se haviam baseado sobre essa visão, sobre a afirmação da mais profunda unidade
dos Testamentos. Elas se evidenciam, agora, em uma circunstância concreta. Assim,
com relação à nossa questão, Langemeyer aponta que a referência ao resto santo de
Israel, que será salvo, faz também parte fundamental das pregações dos profetas
acerca do Juízo (e nelas está presente o elemento da descontinuidade) – um
pensamento que Paulo retoma expressamente em Rm 11,6, e que vê realizado no
Israel cristão. Resto santo, que significa que a continuidade não subsiste apenas na
vontade divina, enquanto na história haveria somente ruptura e oposição, mas que
também dentro da história há continuidade: a Palavra de Deus não fica no vazio. “O
anúncio de um resto que permanece, de uma raiz santa, seria absurdo se o Antigo
Testamento tivesse conduzido apenas à queda e ao pecado. Haveria, então, apenas
um novo início”.[38] “A ação de Deus não se dá de modo puramente vertical sobre
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a história já formatada por sua própria ação. A fé não cai do céu. Ela é acolhida a
partir do testemunho de fé, em um encontro horizontal/histórico”.[39] “Em Maria,
a descendência física do povo escolhido, junto com a fé na promessa feita a esse
povo, chega à sua garantia total. E com isso – não por obra humana, mas a partir da
graça da Aliança, operante na história – realiza também, finalmente, o sentido de
salvação que competia à Antiga Aliança, de acordo com o plano salvífico de Deus,
isto é, acolher física e espiritualmente o Reino de Deus escatológico, que Deus
gostaria de fazer chegar, através de Israel, a todos os povos da terra”.[40] Resto
santo significa, enquanto afirmação estrutural – mais uma vez o repetimos –, que a
Palavra de Deus dá fruto verdadeiramente, que Deus não é o único ator da história,
que se resumiria a um monólogo de Deus; ao contrario, porém, significa que Ele
encontra resposta, a resposta verdadeira. Em Maria, enquanto resto santo, Antiga e
Nova Aliança são uma coisa só. Ela é totalmente judia, totalmente filha de Israel, da
Antiga Aliança, e justamente por isso filha da Aliança como um todo, totalmente
cristã: mãe da Palavra. Assim, pelo fato de ser a Nova Aliança na Antiga, e na
verdade enquanto Antiga Aliança, enquanto Israel, não há compreensão alguma de
sua missão e de sua pessoa quando se faz uma separação entre Antigo e Novo
Testamento. Uma vez que ela é resposta total e total correspondência, não há
nenhuma possibilidade de compreendê-la quando a graça somente pode ter um
valor de oposição – quando uma resposta, a resposta real da criatura, surge apenas
como uma negação da graça. Na verdade, porém, ela é expressão da graça; pois
uma palavra que jamais fosse recebida, uma graça que permanecesse apenas na
disposição de Deus, sem se tornar uma resposta diante dele, não seria graça alguma,
mas sempre um jogo vazio. Aquilo que foi descrito, a partir de Eva, como a essência
da mulher: aquela que está diante, que provém totalmente do outro e, no entanto, é
verdadeiramente aquela que está diante dele, conserva aqui o seu significado mais
elevado: pura procedência de Deus e, ao mesmo tempo, o mais concreto “estar
diante”, no ser-si-próprio da criatura, que se tornou resposta.
Após esses esclarecimentos, permanece em aberto a primeira questão, que pede
novamente a palavra: muito bem, de um ponto de vista intelectual essa pode ser
uma afirmação razoável, argumenta-se agora, mas quem nos autoriza a afirmar,
como um fato, que é precisamente Maria esse “resto santo”? Não é, aqui, fabricado
um fato a partir de um princípio, fato este que não pode derivar apenas disso?
Sobre isso deveríamos, primeiramente, afirmar que o conceito de fato não pode,
contudo, ser usado em seu rigor positivista, com relação ao pecado original. Pois o
pecado original, em si, não é um fato no sentido positivista, constatável como o fato
de Goethe ter nascido em 28 de agosto de 1749. O pecado original é um “fato”,
uma realidade, de outra espécie, de modo que sobre ele só se pode conhecer e só se
conhece a partir da tipologia: o texto basilar de Rm 5 é uma interpretação
tipológica do Antigo Testamento. O pecado original se torna conhecido no tipo de
Adão e sua recorrência nos pontos críticos da história; sua afirmação se apoia na
identificação tipológica daquele homem com o homem em geral, com o homem
genérico, o homem desde o seu início. O pecado original não é transmitido,
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enquanto fato, desde o início (e de antemão comunicado), mas é reconhecido
através de uma interpretação tipológica da Escritura, e, portanto, por um caminho
teológico (conceitual). Desconhecer isso pode ter sido, talvez, o principal erro da
doutrina neoescolástica do pecado original; no momento em que esse erro foi
cometido, em uma intensidade maior ou menor, acabou conduzindo, em conexão
com a total ausência de uma compreensão da identificação tipológica, a uma
contestação do pecado original, ou seja, à impossibilidade de pensar e falar sobre
ele. Se é assim, fica claro que a isenção do pecado original não pode ser comunicada
como um fato, mas somente pode ser reconhecida tipologicamente, e não de outro
modo.
No entanto, se surge um questionamento sobre uma identificação tipológica que
fundamente a isenção de Maria do pecado original, não há necessidade de procurar
por muito tempo. A Carta aos Efésios descreve o novo Israel, a noiva, com os
predicados: “santa”, “imaculada”, “toda gloriosa”, “sem mancha nem ruga, nem
coisa semelhante” (5,27). Na teologia dos Padres, essa imagem da Ecclesia
Immaculata é posteriormente desenvolvida em textos de uma beleza hínica.[41] Isso
significa que há, na Escritura, e sobretudo nos Padres, desde o início, uma doutrina
da Imaculada, certamente uma doutrina da Ecclesia Immaculata; a doutrina da
Imaculada é antecipada aqui, assim como em toda a mariologia posterior, como
eclesiologia. A imagem da Igreja virgem e mãe foi transferida secundariamente a
Maria, e não o contrário. Quando, então, o dogma da Imaculada aplica na figura
concreta de Mariaas afirmações que inicialmente fazem parte da contraposição
entre o antigo e o novo Israel e que, nesse sentido, constituem uma eclesiologia
tipologicamente desenvolvida, isso significa, consequentemente, que Maria é
apresentada como o início e a concretude pessoal da Igreja. Significa a convicção de
que aquele renascimento do antigo Israel no novo, de que fala a Carta aos Efésios,
tem em Maria o seu lugar concreto de consumação. Ele afirma que esse novo Israel
(que é, ao mesmo tempo, o Israel antigo verdadeiro, o resto santo insuprimível,
mantido pela graça de Deus) não é apenas uma ideia, mas pessoa – Deus não age
por meio de abstrações, nem conceitos; o typus de que fala a eclesiologia do Novo
Testamento e dos Padres existe como pessoa. Pode-se, aqui, perguntar uma vez
mais: bem, realmente existe a doutrina da Imaculada no Novo Testamento; todas
aquelas afirmações marianas não são novas enquanto tais, senão apenas em sua
personificação em Maria. No entanto, quem justifica a personificação do tipo nela,
Maria, e não em outro? Também para essa questão a resposta não é difícil. Pois a
identificação tipológica entre Maria e Israel, a presença do tipo na pessoa está
claramente ratificada em Lucas (e, de um modo diverso, em João).[42] Na estrutura
da teologia bíblica ela não se encontra menos presente que a interpretação
sistemática do tipo Adão-Cristo na doutrina do pecado original. Através da
equiparação que faz Lucas entre a verdadeira filha de Sião e a Virgem que escuta e
crê, ela se encontra plenamente, portanto, no Novo Testamento.
Resta, ainda, uma última questão: o que significa, propriamente, “isenta do
pecado original”? Com razão, Karl Rahner chamou a atenção para o fato de que
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não pode se tratar simplesmente, aqui, de uma afirmação cronológica: justificada
antes dos demais. Tal transladação da justificação na própria ação do devir
existencial, tal identificação entre nascimento e renascimento, entre vida e graça,
deve possuir muito mais um significado axiológico, que vá além da antecipação
temporal.[43] Surge, então, nesse ponto, a pergunta sobre o que se deve entender
por pecado original, e com efeito, talvez só através da aceitação dessa segunda linha
tipológica possamos sanar a situação confusa em que nos encontramos pelo
estabelecimento exclusivo da primeira, aquela de Adão; talvez apenas a partir daqui
possamos encontrar a alavanca para soluções significativas. Com a afirmação da
isenção mariana do pecado original, fica cortada toda visão naturalista acerca dele.
A partir daqui se é obrigado a afirmar que o pecado original não é uma afirmação
sobre algo que está faltando no homem, ou ao homem em si, mas é uma afirmação
relacional, que só pode ser razoavelmente formulada no contexto do
relacionamento Deus-homem. O que vem a ser o pecado não pode ser
compreendido a partir do homem fechado e isolado em si, mas somente em uma
antropologia da relação; o mesmo vale, necessariamente, e de modo ainda mais
vigoroso, para a graça. Poderíamos, então, descrever o pecado original como uma
afirmação sobre a valorização do homem, por parte de Deus; certamente, com isso
deve ficar claro que essa valorização do homem não é algo de exterior a ele, mas,
antes, revela aquilo que ele tem de mais íntimo. A divisão entre aquilo que o
homem é a partir de Deus, e aquilo que ele é em si mesmo, isso é o pecado original,
a contradição entre a vontade do Criador e o ser empírico do homem. A isenção do
pecado original significa, então, que a oposição entre o “é” de Deus e o “não é” do
homem está ausente em Maria, e, portanto, o juízo de Deus sobre ela é puro “sim”,
assim como ela própria permanece diante dele como puro “sim”: o entrelaçamento
do “sim” de Deus com o ser de Maria enquanto “sim”, isso é a isenção do pecado
original. A preservação diante do pecado original não significa, portanto, uma
habilidade especial ou uma capacidade especial; significa, ao invés, que Maria não
reserva para si mesma nenhum âmbito do ser, da vida ou da vontade, mas que,
justamente na plena expropriação de si a Deus ela se apropria verdadeiramente de
si mesma: a graça, enquanto expropriação [Enteignung] se torna resposta enquanto
oferta [Übereignung]. Por outro lado, partindo de um outro ponto de vista, torna-se
aqui compreensível o mistério da fecundidade estéril, o paradoxo das mães estéreis,
o mistério da virgindade: expropriação enquanto apropriação, enquanto lugar da
nova vida.
A doutrina da Imaculada é, com isso, finalmente, a expressão da certeza da fé de
que a Igreja santa existe – como pessoa e em pessoa. Nesse sentido, ela é expressão
da certeza de salvação da Igreja.[44] Dessa certeza faz parte a consciência de que a
Aliança de Deus em Israel não falhou, mas deu fruto, de onde veio a flor, o
Salvador. A doutrina da Imaculada atesta, assim, que a graça de Deus foi poderosa
o bastante para despertar uma resposta; que graça e liberdade, graça e ser-si-
mesmo, renúncia e realização contradizem-se entre si apenas aparentemente, mas na
verdade uma condiciona e constitui a outra.
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3. A ASSUNÇÃO CORPORAL NA GLÓRIA CELESTIAL
De modo ainda mais vigoroso que no caso da doutrina da Imaculada, impõe-se,
aqui, a objeção de que a ressurreição é um fato que deve ser testemunhado e
transmitido, e que não pode ser imaginado. A partir dessa concepção, veio o
veemente protesto da teologia alemã antes da proclamação do dogma, de modo
mais incisivo na conhecida série de artigos de B. Altaner, que mostrou, com toda a
sua erudição de historiador, que o testemunho que nossa afirmação encontra nas
fontes não é anterior ao século V.[45] Fica claro, portanto, que não pode se tratar,
aqui, de uma tradição histórica de um fato histórico, e que a afirmação é entendida
erroneamente se examinada ou apresentada como tal. Nisso está a diferença
decisiva da ressurreição de Jesus, que, na verdade, ultrapassa a história e, nesse
sentido, não representa um fato histórico comum; para ele, no entanto, é essencial
que atinja a história e nela seja manifestada. O texto da bula dogmática de 1950 leva
em conta essa diferenciação, à medida em que não fala de “ressurreição” (anastasis)
com relação a Maria, mas de assumptio ad caelestem gloriam – não de
“ressurreição”, mas de “assunção” em corpo e alma na glória celeste. Com isso, ela
define claramente o conteúdo desse artigo de fé como uma afirmação teológica e
não como histórica.
Porém, o que significa isso? Para um esclarecimento, teríamos de penetrar na
história do desenvolvimento do dogma, assim como nos fatores determinantes para
a sua formação. Seria possível, assim, mostrar que a decisiva força motriz dessa
afirmação foi o culto a Maria; e que o dogma, por assim dizer, tem sua força motriz,
tem sua origem e também o seu objetivo menos no seu conteúdo propositivo que na
ação de homenagem e enaltecimento.[46] Pode-se reconhecer isso também no texto
da proclamação dogmática, quando lá é dito que o dogma seja proclamado para a
honra do Filho, a glorificação da Mãe e a alegria de toda a Igreja.[47] Esse dogma
quis ser um ato de culto, na forma mais elevada de exaltação e louvor a Maria.
Aquilo que faz o Oriente na forma de liturgia, de hino e de ritos, acontece no
Ocidente na forma da proclamação dogmática, que, por assim dizer, quis ser a
forma mais solene de hinologia, e primariamente deve, assim, ser compreendida
como um ato de culto. Isso diferencia os dois últimos dogmas marianos, em certo
sentido, das formas mais antigas em que se configurou a confissão de fé eclesial,
ainda que o caráter doxológico estivesse sempre presente, acentuado de modo mais
ou menos incisivo.
Podemos dizer, então, que a proclamação dogmática de 1950 se trata de um ato
de culto a Maria, que pretende ser a suprema e constante exaltação da Mãe, e
liturgia da fé, por assim dizer, através da forma do dogma. A afirmação de conteúdo
aqui feita está totalmente ordenada ao culto, mas o culto, em contrapartida, se serve
desse conteúdo e encontra aqui a sua razão mais forte: o culto se liga àquela que
vive, que está em casa,

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