Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Daniel Barbosa Andrade de Faria O mito modernista Uberlândia: EdUFU, 2006. 2 Sancho, o supremo idealista, é o microcosmo eterno da humanidade, que se completa com o espírito adjetivo do Cavaleiro da Triste Figura. Heróis comuns a todas as latitudes geográficas, vivem seu instante nacional no território brasileiro da língua deste poema, porque são os dois pólos universais do próprio homem, cidadãos de todas as pátrias, alegorias internacionais do egoísmo e da espiritualidade. (Menotti DelPicchia, em: O Amor de Dulcinéia) 3 Agradecimentos Antes de tudo, contei com uma bolsa de doutorado concedida pela FAPESP, o que tornou este trabalho possível. Ao menos para mim, um dos frutos do amadurecimento intelectual foi ter percebido, ao longo do meu mestrado, mas sobretudo durante o doutorado, que uma tentativa de reflexão, por mais solitária que seja em seus momentos mais delicados, sempre traz à tona um número crescente de pessoas que, das mais variadas maneiras, abalaram nossas certezas. À medida em que meu trabalho foi se tornando mais pessoal, mais independente, eu notava que, paradoxalmente, maiores eram minhas dívidas com relação a mais e mais pessoas (mas infelizmente, terei que limitar estes agradecimentos àqueles que tiveram maior proximidade com minha tese, senão eu correria o risco de iniciar, sem o talento necessário, a minha busca do tempo perdido). Meu aprendizado não se deu apenas no que se refere à teoria, à história ou à literatura. Com minha orientadora, Maria Stella Bresciani, tive um exemplo de postura profissional, de sabedoria, de inquietação. Qualidades que ela também revelou em seu modo ao mesmo tempo doce e libertário de me orientar. A mesma dignidade que notei em minha orientadora do mestrado, a professora Elizabeth Cancelli, em quem também vejo um exemplo – uma grande amiga que também se dispôs a me auxiliar na revisão da tese. Os professores Francisco Foot Hardman e Vavy Pacheco Borges leram uma primeira versão da tese de uma forma que vale muito mais que quaisquer elogios de praxe: o reconhecimento intelectual pelo rigor, pela seriedade. A professora Vavy, tão comprometida com a vida de historiadora que nem sequer aceita agradecimentos pela sua generosidade, que eu sei ir muito além, apesar de incluir, a ética profissional. E, ainda, o professor Hermenegildo Bastos, que sabe ensinar de uma maneira instigante, e cuja generosidade aparece na sua forma delicada de expor as discordâncias. Meus agradecimentos também se estendem aos outros professores da linha de pesquisa Jogos do político, Iara Lis Carvalho Souza e Ítalo Tronca. E especialmente, a Izabel Marson, que me revelou o Dom Quixote, e que é ainda outro exemplo de dignidade profissional, de dedicação à reflexão histórica. Pude ainda participar das reuniões e de um 4 colóquio promovido pelo Núcleo de História e Linguagens Políticas, os quais foram extremamente inspiradores e instigantes. Aprendi ainda com colegas, em várias situações, mas principalmente na cantina do IFCH, alvo recente de um ataque infame e difamante pelos jornais de Campinas promovido por um moralista enfurecido: com João, tive aulas de psicanálise, com Nádia, discuti tantas coisas, com Flávia, fui provocado a pensar a política, com Roberto, percebi o valor da pesquisa. Com todos, e outros que pelas razões já dadas não cito aqui, tentei exercitar a virtude política e existencial da amizade. Agradeço ainda a Jácomo Mandatto, que me recebeu de braços abertos em Itapira, na Casa de Menotti DelPicchia. Por fim, os últimos que são meus primeiros, pois estão no terreno dos meus sentimentos mais profundos. A Amílcar, Carlos Afonso e Antonio Carlos Queiroz pela amizade, pelas conversas sempre saborosas, sobre Mário de Andrade, sobre música, sobre poesia y otras cositas más. A minha família pelo apoio constante, que me vê da mesma forma que Sancho Pança a Dom Quixote, não interessando se meus gigantes não passam de moinhos de vento, com um misto de perplexidade e admiração. Que todos me neguem o valor, que este trabalho seja considerado um fiasco, mas eles sempre me verão como corajoso cavaleiro andante. E o último agradecimento, apaixonado, ao companheirismo sensível e inteligente da querida Giovana. 5 Sumário Prólogo 7 Parte 1. Limpando as armas. Uma exploração no vocabulário estético- político. 1.1 O homem, a morte e o martírio 25 1.2 As multidões, ingratas ou encantadas 50 1.3 Humilhar, verbo transitivo e proposicional 72 1.4 Menotti e o amor do sacrifício 94 1.5 Macunaíma, encantador de multidões 115 1.6 Entre a tormenta e a redenção 137 Parte 2. As diretrizes da administração 2.1 A mitologia de Menotti DelPicchia 164 2.2 A pedagogia de Mário de Andrade 194 2.3 Capítulo final: cada qual é filho das suas obras 223 Epílogo 259 Bibliografia 270 Apêndice 282 6 Prólogo Ocupado leitor, ao ver mais um livro que trata do modernismo brasileiro você provavelmente deve pensar que está diante de um filme já visto muitas vezes, ou então de mais uma descrição das aventuras discretas e formosas dos heróis fundadores de “nossa” literatura contemporânea, que apenas tentasse face às várias outras interpretações existentes adicionar um novo e gracioso rodeio teórico. Porém, mesmo sabendo que isto pode ser considerado um modo caprichoso de redação, fruto de alguma fraqueza de engenho literário, optei por manchar esta versão com o demasiado humano da história, que para alguns apenas gera personagens mirrados, enrugados – ou, pior, demonstra um prurido positivista conspurcando um tema consagrado. Mas esta tentativa, ainda que talvez canhestra, é fruto de um desejo de fugir de um cárcere historiográfico e literário: a cadeia interminável do mito modernista. O que talvez implique uma perda de encantamento, mas que pode vir a contribuir para o surgimento de outras histórias, outras literaturas que já se vêem delinear há algum tempo no horizonte de “nossas” letras. Devo adiantar que este trabalho é uma versão revista de minha tese de doutorado, defendida na Unicamp em 2004, sob orientação da professora Maria Stella Bresciani. Esta correspondeu ainda a uma trilha iniciada com minha dissertação de mestrado, O modernismo que se tornou romântico: Literatura, política e brasilidade, defendida na Universidade de Brasília, sob orientação da professora Elizabeth Cancelli e co-orientação de Hermenegildo Bastos. Naqueles dois trabalhos os leitores porventura interessados poderão encontrar, de modo mais pormenorizado, o catálogo de autores característico dos textos acadêmicos, aqui excluído tendo em vista um percurso menos sinuoso. Meu convite é no sentido de acompanharmos de perto as trajetórias de dois intelectuais associados ao que comumente se nomeia como modernismo, Menotti DelPicchia e Mário de Andrade, ambos nascidos em 1893. Nesta história, veremos nossos personagens procurando estabelecer uma aparência pública, entre os anos de 1921 e 1932 mediante a elaboração de um vocabulário que visava a lhes conferir um lugar próprio nos embates sobre os rumos de uma incerta civilização brasileira, entre os anos de 1932 e 1937 a partir de compromissos institucionais por eles assumidos, de um indisfarçável pendor anaca Realce 7 autoritário, e finalmente entre 1937 e 1945 se debruçando sobre uma memória que vinha esboçando a constelação daquilo que intitulei por mito modernista. Entendendo a formação de um vocabuláriocomo ação política (no sentido de que todo orador inicia seu discurso a partir de uma determinada personificação), e as intervenções instituicionais como efetivações daquele, a pergunta que deu forma a este trabalho foi: em que medida o mito modernista foi escrito nos termos delineados por nossos protagonistas? Ou, sendo mais explícito: quais os vetores políticos do mito modernista? A decisão por este caminho foi tomada desde que a idéia de “modernismo”, no sentido de algo como um movimento tido e havido como luz e espelho da literatura brasileira contemporânea (literatura vista ainda como espelho da “consciência nacional”), levou-me a um certo desconforto, a uma sensação de encarceramento intelectual – sensação que está longe de ser solitária, pois observei em vários colegas e encontrei em outros autores uma inquietação semelhante. A este desconforto corresponde a expectativa mais ou menos disseminada (da qual você talvez partilhe, leitor) de que, quando o assunto é modernismo, tudo está dito. Ora, se um assunto parece assim tão carregado de verdades, pleno e definitivamente constituído, não é isto razão para a nossa desconfiança? Um evento comemorado por intelectuais os mais refinados, rememorado em festas e festivais promovidos pelo Estado, sobretudo nas fases mais autoritárias da história política do Brasil contemporâneo, televisionado, musicado, reivindicado por poetas marginais e concretistas, ensinado nas salas de aulas para crianças, adolescentes, jovens e adultos - um evento deste tipo não merece ao menos uma pulga atrás da orelha? Tudo está dito, nada é perfeito, eis o imprevisto. Só para iniciarmos com um exemplo, uma das coisas que observei durante minha pesquisa é o fato de tanto Menotti quanto Mário terem adotado em suas vidas outros selos de identificação além de “modernistas”, como por exemplo o de “futuristas” entre os anos de 1921 e 1922, o primeiro com maior ardor. O título de “modernista”, ao que me parece, foi instituído por Mário de Andrade alguns anos depois como arma tática de legitimação de um agrupamento literário e político específico, e se tornou canônico e mais abrangente a partir da década de 19301 (segundo suponho, a partir de alguns indícios indiretos que reuni 1 O termo “modernismo” já existia, mas numa outra acepção mais abrangente, que incluía movimentos intelectuais e estéticos, conjuntos de idéias e de propostas poéticas, existentes desde o fim do século XIX. Este sentido ainda é válido em outras línguas, como o castelhano, onde “modernismo” e “vanguardas” não anaca Realce 8 durante minhas pesquisas, ganhando estatuto acadêmico na década de 1950, sobretudo devido à obra de Antonio Cândido, e alcançando expressão editorial massiva durante a década de 1970, então promovida pelo Estado – como se constata observando a grande maioria dos livros então publicados, em co-edições com o Conselho Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Mas esta seria uma outra investigação...). Este aparente pormenor referente ao nome “modernismo” é de grande importância teórica, quando percebemos que tal etiqueta implica a eleição de um projeto estético e político. Sei, contudo, que duvidando da obviedade de uma simples nomeação como esta, corro o risco de tornar meu texto menos gracioso, mais rude. Talvez este seja o preço a ser pago por um exercício que se propõe a fugir de uma tradição literária tão consolidada. Depois de sentir o assombro diante do nome constituído, quase gaguejo quando falo em “modernismo”, o que explica as aspas usadas neste prólogo, mas principalmente a opção narrativa de não iniciar este texto partindo do “modernismo” como conceito, mas perseguir historicamente a constituição do mesmo. Enfim, eis a opção metodológica deste trabalho: acompanhar as idas e vindas de Mário e Menotti, desde os preparativos da Semana de Arte Moderna em 1922 até a década de 1940, tentando evitar que elas fossem atropeladas pelo acúmulo de pressupostos referentes ao tema. No caso de Mário de Andrade, apesar de estar tratando de um autor cujo renome é conhecido por todos os habitantes do distrito literário brasileiro, espero estar trazendo novas indagações. Mas sei que estas se devem, sobretudo, à aparição desta outra personagem Menotti DelPicchia, a quem não tratei como “modernismo desviante”, mas sim como signo cifrado dos sentidos estético-políticos ocultados na idéia mesma de “modernismo”. Escrever um texto sobre “modernismo”, no Brasil, é uma tarefa complicada. Isto, por um lado, deve-se à imensa quantidade de interpretações e reinterpretações, na maioria das vezes redundantes, sobre o “movimento”. Mas, sobretudo, a dificuldade advém da forma como o “modernismo” foi canonizado pela tradição literária brasileira contemporânea. Temas como os de genialidade, originalidade e inauguração, mesmo que incompatíveis com quase todas as propostas teóricas e metodológicas contemporâneas, são termos equivalentes. Um exemplo: na Revista do Brasil, vol. 1, n. 1, de 1916, José Veríssimo publicou um texto chamado “Modernismo”, no qual eram citados, dentre outros: Graça Aranha, Tobias Barreto, Sílvio Romero, evolucionismo, positivismo, Taine, parnasianismo e “poesia científica”. anaca Realce anaca Realce 9 tanto para a historiografia quanto para a teoria literária, quase sempre aparecem, ainda que de modo camuflado, na maioria dos textos sobre o tema. E especialmente no que se refere às obras de Oswald e Mário de Andrade, o aparato intelectual e institucional do cânone quase proíbe qualquer tentativa de leitura distanciada.2 No caso de outros autores, como Graça Aranha,3 Menotti DelPicchia e Cassiano Ricardo, a reificação do “modernismo” como evento necessário e inaugural da literatura no Brasil funciona às avessas. Suas obras, geralmente, são taxadas como desviantes, falsas, equivocadas e mesmo imorais. A pretensão deste trabalho é construir uma leitura histórica das trajetórias de dois intelectuais vinculados à memória instituída do “modernismo”, numa tentativa de se perceberem projeções políticas inscritas em configurações estéticas e literárias. Portanto, não se trata, aqui, de um texto de crítica literária, muito embora esta tenha sido usada algumas vezes como um dos instrumentos disponíveis para o estudo das fontes. Daí a necessidade de se expor, desde já, uma escolha essencial para a realização desta narrativa. Como a meta foi acompanhar a trajetória das formulações dos projetos estético-políticos de Menotti e Mário, as obras destes autores foram as fontes privilegiadas na elaboração dos métodos de análise. Assim, optei, por exemplo, por interpretar o Macunaíma de Mário de Andrade a partir das perspectivas elaboradas pelo próprio autor. Não que se lhe conceda o estatuto de leitor privilegiado da própria obra, nem que se procure inscritos em sua vida os traços explicativos da literatura, mas apenas por se tratar da trajetória de um escritor que propunha seus textos como configurações e reconfigurações de si, num viés marcadamente romântico. Dentre os vários trabalhos que abordam a obra de Mário, existem diversos pontos de partida para a análise (como Propp, Bakhtin, Marx e Northrop Frye). Se, para este trabalho, escolhi as leituras de Mário por Mário e Menotti não é por considerá-las as mais bem acabadas, ou por crer ingenuamente que assim eu me aproximaria da verdade última de obras como Macunaíma, mas tão somente porque os dois são os protagonistas desta história. 2 Este é, por exemplo, de uma maneira geral, o tom da coletânea: Affonso Ávila. O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975. 3 Aqui, a exceção fica por conta do livrode Eduardo Jardim. A Brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978. O autor faz uma análise detida da obra Estética da Vida de Graça Aranha, demonstrando suas repercussões nas propostas de outros “modernistas”. Eduardo Jardim, contudo, não questiona os marcos fundadores da idéia de “modernismo”. anaca Realce anaca Realce 10 Por outro lado, precisamos desconfiar da tese tranqüilizadora acerca da existência de uma única opção autoritária entre os “modernistas”, identificada com os verde-amarelos. Ao contrário, seria interessante se pensar a existência de vários projetos autoritários e conservadores, mas também conflitantes, no(s) movimento(s), bem como no Brasil dos anos 1920 e 1930. Os efeitos da idéia de existência de uma única corrente autoritária aparecem com nitidez em obras como as de Antônio Arnoni Prado e Mônica Pimenta Velloso. Aquele4 explicita seus pressupostos ao nomear os “modernistas” desviantes como falsa vanguarda, conservadores infiltrados naquilo que corresponderia a uma verdadeira vanguarda, concedendo assim uma diferença de estatuto ontológico inaceitável do ponto de vista teórico (o que seria um acontecimento “falso”?) a uma tentativa de delimitação de um campo político. Mais ainda, Arnoni traça uma continuidade entre as falsas vanguardas, de Menotti, Plínio Salgado e Graça Aranha, e o integralismo, incorrendo num duplo equívoco: historiográfico, uma vez que nem todos os verde-amarelos se tornaram integralistas, e, por outro lado, mesmo Mário de Andrade chegou a declarar, algumas vezes, simpatia pelo malfadado movimento; e teórico, ao sobrepor uma teleologia à história. Quanto a Mônica Pimenta Velloso, lança sobre os verde-amarelos o epíteto de “regionalistas”.5 Isto, após tentar demonstrar que o “modernismo”, busca da autenticidade nacional, era incompatível com o regionalismo. Inscrevendo-os, ainda, numa imagem desqualificadora similar à proposta por Arnoni Prado: os verde-amarelos teriam falsas idéias estéticas. Estes falsos “modernistas” trariam consigo um desejo político: o da hegemonia paulista. A autora não atenta para os laços políticos estabelecidos entre “modernistas”, verdadeiros e falsos, e setores da elite política paulista, deixando de notar, por exemplo, que tanto Mário de Andrade quanto Menotti DelPicchia e Cassiano Ricardo participaram do projeto de hegemonia nacional de Armando de Salles de Oliveira, e ainda que Cassiano, num golpe talvez inusitado, nomeou já durante o Estado Novo o gaúcho Getúlio Vagas como líder bandeirante. Quanto à idéia de “regionalismo”, ela é tão evidente 4 Em: 1922: Itinerários de uma falsa vanguarda. São Paulo: Brasiliense, 1983. 5 Em: A brasilidade verde-amarela; nacionalismo e regionalismo paulista. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987. A autora repôs ainda a mesma tese em: “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89-112. Noto, ainda, que em obra recentemente publicada, Luiza Moreira Franco, recorre à mesma estratégia retórica para “exorcizar” o autoritarismo de Cassiano Ricardo. Cf. Meninos, poetas e heróis. Aspectos de Cassiano Ricardo do modernismo ao Estado Novo. São Paulo: EdUSP, 2001. anaca Realce anaca Realce anaca Realce 11 em sua configuração superficial e confusa em sua rede conceitual quanto a de “modernismo”. Na extensa bibliografia sobre o “modernismo” pode-se perceber a recorrência de algumas idéias-chave: a pressuposição romântica do progresso da consciência nacional, na imagem da nação que se torna consciente de si mesma, e do “modernismo” como momento privilegiado desta conscientização. O que geralmente vem acompanhado do jogo entre verdadeiro e falso modernismos, pois a imagem da autenticidade ou do genuinamente nacional implica, por contraposição, a do artifício, da mentira, da farsa. Como se o universo dos verde-amarelos, e no caso aqui discutido, de Menotti DelPicchia, sofresse de uma espécie de defasagem ontológica, como se eles nos conduzissem a um mundo ilusório, fantasmagórico; ou, dito de outro modo, como se o autoritarismo não fosse “real”. Mas não, sobretudo diante de recentes acontecimentos políticos, não é mais possível fugirmos ao desengano: a “realidade” brasileira contemporânea comportou mais de uma forma de autoritarismo... E, em se tratando de política, como diferenciar a realidade e o consenso, a verdade e a persuasão? Sendo assim, como traçar limites claros entre uma falsa e uma verdadeira política? Não seria, então, a prerrogativa autoproclamada de uma política mais “real” uma saída fácil demais? Dom Quixote já não nos ensinou que não é tão simples assim a distinção entre uma estalagem e um castelo? Gostaria de indicar ao meu leitor, como uma das fontes de indagações, a obra de Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945).6 Como bem observado no prefácio escrito por Antônio Cândido, o texto de Miceli traz inquietações e aponta uma série de possíveis análises para o “modernismo” e para a situação dos intelectuais no Brasil contemporâneo, constituindo-se, assim, como um clássico. Devo, porém, notar que penso serem pertinentes as dúvidas de Antônio Cândido acerca da generalidade das categorias sociais, tal como trabalhadas naquele livro. Dúvidas que remetem ao tema mais amplo da relação entre conceitos e história, como por exemplo, os de “oligarquia” e “atraso”, ou a redução de idéias e acontecimentos a um jogo de interesses, à busca de status e consagração. Penso que a sobreposição de uma armadura conceitual sociológica à história reificou o jogo político, ocultando a dimensão agônica de termos constituintes de memórias 6 Em: Sérgio Miceli. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. anaca Realce anaca Realce anaca Realce anaca Realce anaca Realce 12 políticas, as quais estão longe de corresponder à ambição de objetividade por vezes acalentada por cientistas das humanidades. O que nos permite uma última incursão, que diz respeito mais a este texto do que o de Sérgio Miceli. No prefácio, tratando das trajetórias de alguns dos “modernistas”, Antônio Cândido propôs uma diferenciação entre aqueles que serviram ao Estado Novo e outros que se venderam. No primeiro caso, teríamos o exemplo de Drummond, que não teria “alienado” sua dignidade, o que seria expresso nos poemas de O Sentimento do Mundo e Rosa do Povo. No segundo, Cassiano Ricardo como típico intelectual vendido. Em contraponto à afirmação de Antônio Cândido, poderiam ser citados a apresentação de A Revista de 1926, e também o manifesto da Legião de Outubro Mineira, datado de 26 de fevereiro de 1931, redigidos por Carlos Drummond de Andrade.7 Estes textos podem indicar que as idéias de “servir a” ou “vender-se” são, infelizmente, simplificadoras. Ao trabalhar inclusive para o Estado Novo, Drummond poderia simplesmente estar sendo coerente com as idéias que vinha defendendo, pelo menos desde 1926. Tal e qual Cassiano Ricardo. Aliás, a diferença proposta por Antônio Cândido, aponta para outro desdobramento do par verdadeiro vs falso, a idéia de sinceridade – que mistura o existencial ao moral. Trata-se de outra tópica comum aos textos sobre o “modernismo”: a sinceridade de Mário de Andrade8 frente às malasartes de Menotti. Ora, tanto em teoria literária quanto no pensamento político, a idéia de sinceridade é apenas uma variante do malogro, um dos artifícios clássicos da retórica é o mostrar-se autêntico, direto, não-retórico. Da mesma forma que a figura do autor literário é uma construção, da qual os escritos de si, ou autoficcionamentos e as assinaturas que encontramos nas capas dos livros9 são peças fundamentais, a imagem do homem público corresponde a uma representação,a uma 7 Os textos são de fácil acesso. O primeiro está reproduzido em: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 336-338. O segundo, pode ser encontrado em: A Revolução de 30. Textos e Documentos. Brasília: EdUnB, 1982, p. 123-126. 8 Um manancial de representações de Mário de Andrade pode ser encontrado no número comemorativo dos 100 anos do herói da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 36, 1994; com textos de autoria de, dentre outros, Antônio Cândido, Gilda de Mello e Sousa, Telê Ancona Porto Lopez, Raul Antelo. 9 Correntes teóricas as mais variadas que procuraram criticar a centralidade da figura do autor no sistema literário certamente enriqueceram e enriquecem a atividade da leitura. Porém, não posso deixar de notar que a interpretação de uma obra não se inicia na primeira página, mas na capa, com o título e o nome do autor. Pensemos, por exemplo, numa edição de Macunaíma cujo autor fosse Paulo Coelho – isto não modificaria o significado atribuído por leitores à obra? 13 atuação. Assim, em termos literários e políticos, pouco importa se Mário ou Menotti acreditavam no que diziam, ou o que se passava no fundo de seus corações. Em não se tratando de psicologia – como é o caso desta história – a pessoa é o que ela diz e parece ser. Mas não pretendo aqui deixar a impressão de que sou um guerreiro solitário, um herói quixotesco desfazedor de injustiças, nem, muito menos, tento derrubar sozinho a mal- fundada maquinaria do mito modernista. Minhas indagações também resultam de perguntas lançadas por outros estudiosos, embora sejam diferentes.10 Os textos de Maria Stella Bresciani sempre foram fontes de inspiração, principalmente os que tratam de Oliveira Vianna. Além disso, destaco as doze questões feitas por Arnaldo Daraya Contier quanto à utopia da brasilidade musical “modernista”, frente a um mercado de consumo de bens culturais em expansão, à circulação internacional intensa de produtos musicais; a saída, pergunta Arnaldo, seria a instauração de um Estado de controle e repressão estética e política?11 Ou, ainda, a relação entre a constelação de problemas delineados por intelectuais “modernistas” e questões que vinham sendo debatidas por intelectuais brasileiros desde, pelo menos, 1870 – o que coloca em xeque as idéias de originalidade e inauguração – estudada por Francisco Foot Hardman.12 Como observa o autor, o termo “modernismo” tinha, até a canonização da Semana de Arte Moderna de 1922, uma acepção mais abrangente (acepção, aliás, que se encontra nos estudos culturais de outros países) incluindo projetos estéticos e intelectuais do final do século XIX. A delimitação do termo no Brasil acarretou então uma simplificação dos problemas sociais, políticos e culturais levantados pelos projetos de modernidade e modernismos, oscilando entre as ruínas e as utopias. Delimitação que explicaria, inclusive, a invenção de outro termo engenhoso mas embraçoso: o “pré-modernismo”, similar, em sua estratégia de construção de uma teleologia, a “pré-história” ou a “pré-socráticos”. Ou, por fim, embora mantendo-se em parte no âmbito do mito modernista, a proposta de Silviano Santiago de liberação do “jovem escritor brasileiro” (o texto é da década de 1980) em relação a armadilhas artísticas e ideológicas montadas pela vigência do “modernismo” – desdobrado por parte da crítica literária em primeira, segunda, terceira 10 Isso sem falar nas conversas, nos mais variados lugares, com amigos e professores e professores amigos, fonte de verdadeiro aprendizado, mas que infelizmente não podemos citar. 11 Cf. “Modernismos e brasilidade: Música, utopia e tradição”, em: Adauto Novaes (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 259-287. 12 “Antigos Modernistas”, em: Adauto Novaes (org.). Idem, p. 289-305. 14 fases...13 A preocupação de Silviano é referente à prosa literária, mas parece-me que a questão de um encarceramento intelectual pela vigência, na crítica literária, de idéias que remetem ao “modernismo” como o projeto literário brasileiro contemporâneo, também pode ser estendida à historiografia.14 E já que falei novamente em mito modernista, faço aqui uma breve explicação sobre o título deste livro. A princípio, proponho que entendamos o mito no seu sentido mais simples, e ao meu ver mais rico, o de enredo ou trama narrativa. Afastando assim a idéia de mentira ou engodo. O mito modernista é portanto apenas uma forma de se historicizar a literatura basileira contemporânea. Dentre outras coisas que virão à tona apenas no decorrer deste texto, posso adiantar ainda que este mito, unidade narrativa recorrente nas mais diversas versões sobre o “modernismo”, traz consigo as marcas próprias do épico: nele se traça a imagem de um momento que funda a história, engendrando uma comunidade (a nação brasileira), e no qual emergem as figuras de heróis dotados de infalibilidade e confrontados por monstruosas contrafações do caos. Frente a isto, minha proposta foi substituir o mito modernista por outro mito, não épico, mas quixotesco, entendendo-se o Dom Quixote como herói que, ao invés de fundar a historicidade, está em conflito com o histórico, em tensão constante com o mundo da narrativa. Ou seja: tratei Mário e Menotti como heróis quixotescos, o que ao meu ver possibilitou um contraponto crítico ao mito modernista de fundo épico – não contrapondo, portanto, mito a historiografia, mas mito a mito. Assim, nesta história, é o modo narrativo o eixo da revisão crítica proposta para a memória instituída do modernismo. Noto, por fim, que à medida em que este texto for avançando, o leitor perceberá que o termo “mito” ganhará novos significados, isto devido ao fato de ele ter sido peça fundamental no vocabulário político de Menotti DelPicchia (aqui no sentido romântico de 13 Cf. “Fechado para balanço. Sessenta anos de modernismo”, em: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 75-93. Restam, ainda, os ataques de Yan de Almeida Prado, ainda na década de 1970, os quais, no entanto, configuram-se mais como desqualificação moral do que análise propriamente dita. Em: A grande semana de arte moderna. Depoimentos e subsídios para a cultura brasileira. São Paulo: EDART, 1976. Para Yan, os modernistas, e especialmente Mário de Andrade, foram meros “simuladores de talento”. 14 Cito, ainda, o instigante livro de Carlos Sandroni, fundamental para a realização desta história (apesar de o autor “aplicar”, a meu ver, equivocadamente, conceitos e teses de fundo foucaultiano. Isto porque a obra de Foucault está longe de fornecer um modelo teórico a ser “aplicado” ao estudo histórico, caracterizando-se pela formulação de problemas e pela concepção da teoria como estratégia de leitura). Cf. Mário contra Macunaíma. Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1988. anaca Realce anaca Realce anaca Realce 15 narrativa reveladora e ao mesmo tempo formadora de uma entidade nacional). Frente a este uso específico, recorri à visão de Roland Barthes sobre o mito como discurso que esconde o político, mas apenas como uma espécie de antídoto. Isto porque tanto Barthes quanto Menotti leram o mito a partir do prisma da propaganda (a propaganda seria algo como o mito do homem contemporâneo), o primeiro num viés crítico. Se a teoria de Roland Barthes se aproxima da idéia do mítico como engodo, o que é certamente problemático, ao menos ela serve como arma, ainda que desgastada, na luta contra um tipo de discurso político específico: o da propaganda erigida como mito romântico. Assim, neste caso, o mito seria além de trama ou enredo, uma determinada fala política configurada no século XX. Mas além da trama narrativa quecompõe o eixo diacrônico deste trabalho, entre os anos de 1921 e 1945, chamo a atenção do leitor para a organização dos capítulos. O texto está dividido em duas partes, a primeira, uma tentativa de explorar a formação de um vocabulário, de repercussões tanto estéticas quanto políticas, em Mário e Menotti entre os anos de 1921 e 1932. Dois termos, com seus desdobramentos, formaram o eixo deste vocabulário: martírio (expresso sob formas diferentes por Mário e Menotti, tais como sacrifício e humilhação) e multidões. O último capítulo desta primeira parte tematiza a idéia de revolução, que congregou, na configuração dos eventos políticos, os dois vocábulos matrizes: martírio e multidões; sendo, por isso, um bom desfecho para a primeira parte desta história. Na segunda parte, são investigados os desdobramentos administrativos do vocabulário esboçado na primeira parte, com destaque para o período do governo de Armando de Salles Oliveira. Seu título, “As diretrizes da administração”, é uma citação do manifesto verde-amarelo, de ressonâncias tanto na trajetória de Menotti quando na de Mário de Andrade – neste caso, talvez inadvertidamente... O último capítulo desta parte é uma exploração das releituras do passado que nossos dois protagonistas fizeram a partir do golpe de 1937, anos de consagração para Menotti e desenganos para Mário de Andrade. Com isso, a história institucional de ambos os autores durante o Estado Novo saiu do primeiro plano, e talvez para alguns isto torne este texto historiográfico mirrado, caprichoso e seco. Mas penso que, mais do que os discursos que Menotti fez a serviço do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, e do que os projetos de Mário para uma enciclopédia brasileira, ou os trabalhos realizados no âmbito do Patrimônio Histórico, são anaca Realce 16 os textos rememorativos, os discursos sobre consagração e “modernismo” que revelam a rede de aventuras encruzilhadas entre “modernistas” e Estado Novo. Quanto aos autoritarismos, estes já estavam configurados no governo de Armando de Salles Oliveira. Reitero que esta organização em duas partes diz respeito ao fundo quixotesco deste trabalho. Como autênticos Quixotes, nossos heróis aprenderam a ler o mundo em suas bibliotecas, forjando um vocabulário próprio, e saíram à praça pública no afã de corrigir as injustiças e desmazelos que liam na sociedade. Como autênticos Quixotes fizeram do vocabulário sua arma mais aguda na luta contra a história, emblematizada em seus moinhos de vento. Talvez possamos aventar que esta é a condição do intelectual no mundo moderno – o que poderia inclusive ser um objeto de investigação, apesar do ar suspeito de generalidade, mas está claro que é isto mesmo o que o mito épico renega. Devo dizer, por fim, que foi com outro livro que aprendi a ler o Dom Quixote (talvez o Cura tivesse razão, as bibliotecas estão grandes demais). Falo aqui de Políticas da escrita, de Jacques Ranciere, que estabelece o quixotesco como matriz de leitura paras os impasses políticos da escrita nisto que chamamos de modernidade. A formação de um vocabulário, especialmente no caso de escritores, se dá como encontro ou confronto entre letra e história, ou, sendo mais preciso, entre ler e agir. O intelectual na política sempre pode ocupar a posição de “louco das letras”, de intérprete da história que aprende, com Dom Quixote, a transformar estalagens em castelos, e a agir como se a distância entre a leitura do mundo e a leitura dos livros fosse quase nula. No caso de Menotti e Mário este jogo ainda ganhou outra dramaticidade: romanticamente, eles escreviam como se suas vidas estivessem contidas em suas obras – como é o caso notável e gracioso de Amar, verbo intransitivo. Ou seja: em cartas, romances, poemas, nossos dois autores dramatizavam a si mesmos diante do mundo, apresentando-se como homens de letras, quixotescos heróis da escrita. Sempre lembrando que a configuração de um discurso já é ação política, para Menotti e Mário (como para Dom Quixote) ouso dizer que o vocabulário era a personagem. A forma com a qual tentei fazer frente a esta questão foi dividindo o livro em duas partes,15 mas talvez um leitor benevolente perceba uma relação dinâmica entre os eventos narrados e a letra, o vocabulário ou as estratégias de leitura, nesta história. 15 Mas também, quem sabe?, porque o Dom Quixote tem dois livros. anaca Realce anaca Realce 17 Neste passo eu daria por encerrado este prólogo. Mas, infelizmente, ainda resta o principal a ser dito. Refiro-me a dois curtos episódios, os quais, mais do que quaisquer outras observações que tenham sido feitas, antecipam os mais importantes sentidos deste texto rigorosamente historiográfico – constituem, na verdade, duas versões alegóricas do texto, tão esclarecedoras quanto qualquer conceitualização, ainda que por outras vias. Em 1970 Menotti DelPicchia publicou o primeiro volume de suas memórias, A Longa Viagem, pela Editora Martins, cuja sede, por aquelas coincidências que normalmente nos fazem hesitar na distinção entre vida e literatura, encontrava-se no Edifício Mário de Andrade, na cidade de São Paulo. Numa das passagens das memórias, em que Menotti tratava de sua vida escolar, o autor indicou o momento em que descobriu a vocação de poeta. O trecho, descrevendo uma aula do professor Jácomo Stavale, é o seguinte: Abriu o livro. Antes nos olhou com olhos vagos como se nos sentisse ausentes. Leu, com emoção, “As Pombas” de Raimundo Correia. Um arrepio eletrizou meu corpo. Uma sensação inefável de beleza atingiu-me em cheio e augiu quando recitou o verso cromático e evocador de tantas manhãs que eu já conhecera: “raia sanguínea fresca a madrugada”. Fechou o livro. Recolheu a emoção que nele despertara aquele maravilhoso instante lírico. Ordenou: - Vamos à lição. Vocês não entendem nada disto... Caro Jácomo Stavale, no céu onde certamente estás, recebe esta mensagem daquele indócil aluno que te deu tantas dores de cabeça: eu estava integrado na tua emoção, e naquele justo instante, fizeste nascer em mim um poeta!16 Menotti evocava aqui, com todo o teor nitidamente romanceado das autobiografias, a matriz de seu destino. Era como se ele ainda menino, após o conhecimento do livro de poesias de Raimundo Correia, tivesse resolvido, desde então, reencenar aquele momento de integração total promovido pela poesia. Numa acepção romântica, a idéia era a de que a experiência estética promovia a comunhão, um encontro que, no fim das contas, estaria além das palavras. Comunhão que poderia se dar entre duas pessoas, o poeta e seus leitores ou ouvintes, mas também em toda a sociedade, quando a integração se desse entre o criador e o público, as massas ou as multidões hipnotizadas. Mas aqui já estou indo um pouco longe demais, adiantando-me aos passos que nosso herói ainda dará nesta história. Mas gostaria de citar, ainda, o poema completo de Raimundo Correia, embora provavelmente hoje em dia a inclusão de um soneto numa apresentação acadêmica pareça puro 16 In: A Longa Viagem. 1ª Etapa. São Paulo: Livraria Martins/Conselho Estadual de Cultura, 1970, p. 56-57. 18 pedantismo. Mas noto que ele talvez diga coisas que somente se tornarão claras no fim do estudo das trajetórias de Mário e Menotti. Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia, sanguínea e fresca, a madrugada... E à tarde quando a rígida nortada, Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações onde abotoam, Os sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam, Fogem... Mas aospombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais...17 Por enquanto, o que interessa destacar nesta passagem de Menotti é o fato de seu destino ter sido, por ele mesmo, tratado a partir da representação da sobreposição entre literatura e vida. Como se sua trajetória pessoal estivesse inscrita nas letras de um livro preexistente. Ou, por outro lado, como se sua vida fosse a corporificação de uma verdade imersa nos livros. O mesmo, como se perceberá, pode-se dizer quanto ao episódio que escolhi para sinalizar ao meu leitor o percurso de Mário de Andrade. Em ambos os casos, trata-se da questão de como a estética literária funcionou em relação à experiência histórica e política, de como a figura do poeta pôde configurar estratégias de soberania, numa expressão romântica do anseio pela unificação entre espírito e letra, corpo e escrita, que me pareceu demarcar as trajetórias de Mário e Menotti. Então, vejamos o outro episódio, que tem como protagonista Mário de Andrade. Em 14 de setembro de 1940, o autor redigiu uma carta a Oneyda Alvarenga, sua ex-aluna do Conservatório Musical de São Paulo e colaboradora no Departamento de Cultura da cidade. Ali, Mário fez um resumo de suas principais idéias, indicando as leituras que teriam sido básicas para a sua formação. Na parte dedicada à filosofia, o autor disse o seguinte: 17 Raimundo Correia, “As Pombas”, em: Manuel Bandeira (org.). Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. 19 Filósofos mesmo, li poucos. Os sistemas não conseguiam me interessar, principalmente os modernos que me fatigavam pavorosamente. Só Montaigne que aliás é mais moralista que exatamente filosófico. Li Platão quase todo, talvez todo, e bastante Aristóteles. Pra meu uso só quem me interessou foi Epicuro, de que sabia as doutrinas mas não li. E quando me caíram nas mãos os chineses, Confúcio me caceteou, Lao-Tsé me deslumbrou. E o deslumbramento continuou pelo Zenismo e principalmente as doutrinas dos Mestres do Chá. Epicuro, Lao-Tsé e os Mestres do Chá formam a atitude transcendente da minha vida. Mas creio até sensorialmente em Deus, e no recenceamento do dia 1, depois de pequena hesitação, como o papel não comportava um tratado de distinções e ressalvas, acabei escrevendo que era “católico romano”, entenda si puder.18 Desde a primeira vez em que li esta carta, chamou-me a atenção a referência aos Mestres do Chá, exatamente por não saber de quem se tratava, diante da força explícita para a formação da “atitude transcendente da vida” de Mário. Durante as pesquisas, descobri que a referência era um livro de Okakura Kakuso, chamado Le livre du thé. De fato, encontrei a referida obra na biblioteca do autor, resguardada no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. A edição, sem data, está bastante marcada por traços a lápis feitos por Mário quando de sua leitura, provavelmente no início da década de 1920. Na contracapa, vários números indicam as páginas que mais chamaram a atenção do autor. Há também manuscrito o nome de Graça Aranha, com indicações de números de páginas ao lado. E, por fim, também escrito a lápis: “morte de Rikiu – p. 134”. No referido livro, Mário destacou, sublinhando, o trecho da página 12 em que Kakuso explicava que a cerimônia do chá implicava uma concepção integral do homem e da natureza, abarcando uma estética, uma moral, uma higiene. A cerimônia seria pautada pela procura da simplicidade, da não-ostentação, da apreciação direta de sabores e odores, num encontro ao mesmo tempo sensível e espiritual com a natureza. A isso, Kakuso associava, constantemente, uma contraposição ao Ocidente, supostamente dominado pela técnica e pelas máquinas, em síntese, pela alienação do homem com relação à sua natureza. Mário destacou ainda a passagem em que Kakuso explicava que os Mestres do Chá procuraram transformar a arte num modelo de perfeição para a vida, uma vez que a cerimônia indicava a integração mais perfeita entre a prática e a vida contemplativa. Assim, de acordo com Kakuso, a mestria equivaleria à união entre vida e estética, numa transformação minuciosa do cotidiano numa obra de arte. Nesta forma altamente ritualizada 18 Em: Mário de Andrade – Oneyda Alvarenga. Cartas. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 271-272. 20 a apreciação do chá teria sido definida, no Japão, por Sen No Rikiu (1521-1591), como parte fundamental da formação espiritual zen. O fundador da arte do chá teria sido, também segundo Kakuso, um dos favoritos do tirano Toyotomi Hideyoshi, inclusive o acompanhando nas campanhas militares, durante as quais Rikiu promovia cerimônias do chá, como se a violência não manchasse a utopia estético-política. E aqui entra a parte destacada por Mário de Andrade na contracapa do livro, a morte de Rikiu. O Mestre do Chá teria sido vítima de um complô, que o indispôs contra Hideyoshi. O Imperador, convencido de que seu conselheiro estético-espiritual conspirava contra sua autoridade, condenou Rikiu à morte. Numa última homenagem, porém, o Mestre do Chá teve que morrer como um samurai, ou seja, suicidando-se. Ainda de acordo com a narrativa de Kakuso, Rikiu aceitou a condenação, promoveu uma última cerimônia com seus discípulos mais queridos e no fim desta vestiu um manto branco, e então se sacrificou. No fim da página em que se narra a morte de Rikiu, Mário escreveu a lápis: “Sócrates!” Uma clara referência a outro sábio que teria expresso sua virtude ao se sacrificar pela integridade da pólis. Algumas páginas antes, porém, Kakuso fez uma advertência, à qual não se sabe se também Mário prestou atenção; na página 131 o autor dizia que déspotas não são boa companhia para poetas. 21 Parte 1 Limpando as armas. Uma exploração no vocabulário estético-político. Delírios infecundos. Propositadas quebras da verdade tradicional só pra enraivecer adversários porvindouros; tristeza desesperada, iconoclasta, em que víamos (vi) na língua indefesa, na pátria indiferente, inimigos que eram apenas moinhos de vento. (Mário de Andrade, em: “Convalescença”) 1.1 O homem, a morte e o martírio Em 1970, em suas memórias, Menotti DelPicchia deu um espaço significativo à Semana de Arte Moderna, realizada em 1922. Após longos de anos de instauração do “modernismo” como momento privilegiado na formação da literatura brasileira moderna, aquele evento evidentemente estabeleceria um foco organizador para as memórias de um escritor que participara ativamente da organização da Semana. Mesmo que nos idos de 1922 nem ele nem seus outros companheiros de empreitada identificavam-se como modernistas, mas sim futuristas e outros codinomes. Mas além de repor a memória de 1922, o texto de Menotti tem outra faceta, esta sim surpreendente. Trata-se do fato de ali o autor 22 apresentar Mário de Andrade como um Cristo ensanguentado, atacado por uma multidão enfurecida no Teatro Municipal de São Paulo. Segundo Menotti, a reação da platéia lembrava os gritos da “patuléia judaica” exigindo a crucificação de Cristo. Assim, a descrição feita por Menotti tem fortes conotações sacralizadoras, sendo o evento representado como um martírio: Como no Horto o Filho do Senhor, Mário de Andrade pela primeira vez fraquejou. Adivinhei nos seus olhos a súplica que o Cordeiro dirigiu ao Pai celeste na hora suprema de sua agonia: “Afasta de mim esse cálice...” Não havia ceder. Compreendi a angústia do mártir – pois Mário tornou-se o Tiradentes da nossa Inconfidência – e vendo que ele recuava ao impacto estertóreo da platéia, segurei-o pelo paletó e disse: - Mário! Que é isso? O grande artista – glória da geração– reagiu já sereno e heróico.19 Nas memórias de Menotti, esse foi o momento “iluminado”, de renovação espiritual da literatura brasileira. Porém, o que talvez seja ainda mais surpreendente, com tudo o que de reconfiguração narrativa há no ato de rememorar, o tom do texto de Menotti é o mesmo de textos seus e de Mário de Andrade, quando da estréia dos dois autores no início dos anos 1920. Por isso, se pressupor que estes autores, nos anos antecedentes a 1922, tinham um dom de antevisão do que estava por vir, com a canonização de alguns de seus textos sob a égide do “modernismo”, constitui evidente anacronismo (talvez característico quando se trata de marcos como o mito modernista), por outro lado, há pelo menos um elemento que, já naqueles anos, indicava um dos operadores retóricos desta mesma canonização. Neste sentido, o propósito deste texto é delinear o tema do martírio e da morte nos textos de estréia de Mário e Menotti. Deve-se pensar, ainda, que além de lançar novas possibilidades para a interpretação da construção do cânone literário, esta linha de indagação se relaciona ao estudo do sentido político das trajetórias dos autores. Isto porque as diversas encenações da morte estabeleceram, e ainda estabelecem, vínculos afetivos, intelectuais e políticos, configurando inclusive modos de legitimação para diversos exercícios de soberania. Isto porque o espaço conquistado pelo mártir é o da sacralidade, e a voz que se instaura a partir da sacralidade, como o bem demonstrou Alcir Lenharo,20 propõe-se como emanação de um discurso único e inquestionável. Mas não convém que se adiantem muito os argumentos que serão 19 Em: A longa viagem. Da revolução modernista à revolução de 30. op. cit, p. 138. 20 Em: A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986. 23 desenvolvidos neste capítulo, melhor é acompanhar com todos os seus desdobramentos a elaboração de uma estética da morte no futurismo paulista. No mesmo ano da Semana de Arte Moderna, 1922, Menotti lançava a primeira edição de O Homem e a Morte. Naquele momento o livro foi apresentado por Mário de Andrade como um dos pilares da reação literária promovida por Klaxon e seus colaboradores. Juntamente com Os Condenados de Oswald de Andrade e Epigramas irônicos e sentimentais de Ronald de Carvalho, o texto de Menotti perfazia, na perspectiva de Mário, a proclamação da independência da literatura brasileira.21 De autenticamente nacional o texto teria as marcas do lirismo desordenado, da força predominante do subconsciente e de uma eloqüência mística. Por isso, o estilo de Menotti DelPicchia seria marcadamente tropical. Assim, os possíveis defeitos do texto, decorrentes da tendência para os excessos de linguagem, eram produtos “intrinsecamente raciais”, nas palavras de Mário. Porém o livro, além de arrebatar o leitor mediante a exuberância lírica, teria como característica o fato de representar uma idéia, uma concepção sobre o mundo e a história.. Por fim, a resenha situou O Homem e a Morte entre as obras de arte voltadas à vida, cujos autores teriam, como destino, tornarem-se guias de multidões – e, como exemplos que figuravam como possíveis similares de Menotti DelPicchia, Mário listou Maurice Barrès, D’Annunzio e Tolstoi. O Homem e a Morte é uma narrativa em primeira pessoa, onde um homem atormentado narra sua trajetória de desespero. Característica antecipada pelo autor, quando denominou seu texto de “tragédia cerebral”, apontando para o viés subjetivista do protagonista. A personagem, no começo da história, diz que sua tragédia foi fruto do destino, entendido como uma espécie de força divina que o guiara a uma vida eivada de exaltações líricas. Desde o início, o tom do texto é confessional e marcadamente religioso, sendo o destino nomeado como divino, na apresentação de um martírio: Mistério... Sinto apenas uma vontade humana de chorar, uma vontade absoluta de chorar... Meus olhos, porém, são áridos como o da figueira esterilizada pela maldição, quando não ofertou um só fruto à fome d’Aquele que dera sua carne e seu sangue para repasto dos famintos, na ceia da redenção e do sacrifício.22 21 Resenha publicada em: Klaxon,vols 8 e 9, dez/1922, jan/1923. Mas já desde o primeiro número, Klaxon vinha publicando trechos da obra de Menotti. 22 O Homem e a Morte, in: Menotti DelPicchia. Novelas. Obras Completas Vol. III. São Paulo: A Noite Editora, 1946, p. 177. 24 Porém, se a trajetória da personagem foi por ele mesmo divinizada, note-se que, desde o início, ele se colocou no extremo oposto dos martirizados para a sacralização. Sua tragédia era cerebral, seu destino figurado como o da figueira incendiada pela ira de Deus. A aridez de sua vida, delineada pelo tédio, pelos fracassos seguidos em todas as empreitadas e pela sensação de que um mundo vazio de sentido o tomara. A personagem ainda afirmaria que sempre odiara os homens, nunca se sentindo participante da história. Era, em suas próprias palavras, um “nômade sombrio”, um ser dominado pela egolatria, num culto a si mesmo derivado de desesperos raciais herdados. Por isso, sob sua ótica, sua estética era iconoclasta. Portanto, na obra de Menotti, trata-se de um narrador voltado para dramas pessoais, devidos à sensação de irrealidade e isolamento. E, como o texto deixa claro, a rebeldia estética da personagem tinha como fundamento sua crise, traçada em termos morais. Sob importantes aspectos há uma grande semelhança entre o homem de Menotti DelPicchia e a caracterização do ímpeto fáustico feita por Oswald Spengler, na sua morfologia da decadência orgânica do Ocidente. O livro, um dos maiores sucessos editoriais do início do século XX, traçava a história de uma formação cultural cuja morte tinha sido antecipada pela transformação de uma vitalidade coletiva num ajuntamento de intelectos sem alma.23 A cultura ocidental, que teria sido uma força vital criadora, transformara-se, segundo Spengler, numa civilização senil, abstrata e mecanicista. Para o autor a característica dominante do Ocidente, enquanto ainda era cultura viva, teria sido a metafísica do infinito, personificada pelos anelos conquistadores e expansionistas de Fausto, o mito que tinha sido reconfigurado literariamente pela obra de Goethe. O fáustico teria, como configuração estética, a predominância do horizonte e dos espaços amplos, além da recorrência das cores azul e verde, que seriam, de acordo com Spengler, infinitesimais. Do ponto de vista psicológico, a alma fáustica seria basicamente dominada pela vontade, em detrimento da razão. Sendo a vontade responsável pela delimitação do caráter como forma de inserção do homem ocidental no mundo, dada sua predisposição em imprimir a personalidade sobre as coisas. Porém, de acordo com Spengler, o cansaço vital que atingira o Ocidente a partir do século XIX teria dado origem a 23 A Decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p. 47. 25 expressões de uma vontade dirigida para o auto-aniquilamento, cujas expressões máximas seriam o niilismo e a perda do sentido religioso da existência. O autor notava, ainda, na vigência da estética expressionista, na invenção do cinema e no apelo popular das lutas de boxe, símbolos irretorquíveis de que o Ocidente padecia, então, de uma “propensão metafísica para a morte”.24 Neste viés, o homem de Menotti era a representação literária da decadência de uma civilização como um todo, uma vez que seu cansaço pessoal resultava da total ausência de referências concretas para o estabelecimento de um sentido para a vida. Na história de Menotti, o narrador teria tido em toda sua vida um único amigo, Críton, arquiteto campineiro que formara, com ele, o Incompleto Errante. A egolatria teria conduzidoambos a uma procura desesperada por experimentações psíquicas e sensíveis, numa ginástica cotidiana da sensibilidade e num cultivo excessivo das paixões. O desejo da personagem de experimentar a vida em todas suas possibilidades, de todas as formas, repercutia o pacto de Fausto com Mefistófeles. Desta forma, o drama de O Homem e a Morte pode ser lido como a configuração de um declínio simultaneamente histórico e político, encarnados numa personagem. A situação fáustica de busca incansável teria perdurado até o encontro do homem com Kundry, uma mulher misteriosa, de porte aristocrático, que se tornaria seu único e primeiro amor. Os dois, tomados por um paixão intensa, passariam a acreditar que o mundo fora feito para eles. Uma noite, interrompemos bruscamente uma carícia para irmos ver a aurora no mar. Os faróis do auto abriam dois buracos de luz na caligem da bruma. O caminho era um tatear de cego, ao acaso, entre abismos, na noite... A vida do chofer estava nos seus olhos de fogo e nos seus pulsos de atleta. – Depressa! – Depressa! Eu ia mudo e fremente. O vulto de Kundry era um halo de luar fluindo no fundo das almofadas. Nossa ternura parecia jorrar do caos, do mistério recuado de todas as forças obscuras e, na nódoa de pavor, vivia irrealmente, fora de nós, como uma coisa à parte, suspensa entre nossas duas bocas, entre nossos braços inúteis... E uma volúpia parada, imóvel, nos envolvia numa beatitude de êxtases, feita de pensamentos e silêncios graves. De repente, numa curva brusca, à beira de um precipício situado diante de nós, Kundry gritou: - Em frente! Em frente, chofer! O homem deu uma guinada no volante. A máquina, de um pincho, caminhou para o abismo. Um choque atirou-me contra a portinhola do auto. Kundry ria... ria... O carro dependurava-se sobre o precipício, mal sustido por um cabo de aço. O chofer saltara lívido de susto: - Que foi? Que foi? Por que me mandaram seguir em frente? Kundry ria... ria... Depois, comovida, suspirou ao meu ouvido: - Foi Ela que nos acenou, lá embaixo, com uma volúpia mais forte... Eu também desejaria que a máquina tivesse rolado no precipício.25 24 Idem, p. 282. 25 O Homem e a Morte, op. cit., p. 196-197. 26 Nesta passagem, a morte faz seu primeiro aceno explícito na narrativa. De acordo com o protagonista do texto, os apelos mortais nada mais seriam senão o fruto do cultivo excessivo do intelecto, associado às heranças raciais da volúpia bárbara originada nos indígenas, fonte da dimensão aventureira do bandeirismo, da nostalgia lírica do exilado português e do banzo africano. Tais substratos raciais estariam retornando com ímpeto crescente, dada a hipertrofia cerebral das personagens, que viveriam, desta forma, de modo ainda mais intenso a crise do Ocidente. O cultivo da razão teria conduzido, paradoxalmente, a uma vontade em delírio, cujo limite para a saciedade era o domínio e a devastação de todo universo, num excesso de vida que se consumaria no encontro com a morte. Enquanto o Homem e Kundry se deleitavam no exercício meticuloso das paixões, Críton, o arquiteto campineiro, construía para si uma Esfinge. Terminado o projeto, ele seria denominado como o “Templo dos Suicidas”, e ali mesmo Críton se mataria. Neste momento, ao invés de lamentar a perda de seu único amigo, o narrador se rejubilaria, ao sentir próximo o desfecho para o mistério angustiante da vida. A morte de Críton, surgindo como uma iluminação súbita, o levaria ao empreendimento de uma primeira tentativa suicida: a absorção pelo meio social dos freqüentadores da Hípica. Ali, o Homem, nas palavras da personagem, levaria uma vida de sonâmbulo. Assim, o autor apontava uma associação entre a morte e a sociedade contemporânea. Os freqüentadores de salões, bailes e atrações esportivas nada mais seriam do que cadáveres adiados. Porém, o protagonista não conseguiria deixar de imaginar que o mundo era mero pano de fundo para sua tragédia pessoal, não conseguindo, assim, submergir na vida morta de seus coetâneos. Por outro lado, a força de atração exercida por Kundry revelara-se irresistível. Ela encarnava todas as possibilidades da vida, todas as paixões, desejos e mistérios. Contudo, num momento de tédio a dois, Kundry faria ao homem uma pergunta terrível: e se ela nada fosse além de uma invenção, uma ilusão, efeito de algum tipo de encantamento? Sem conseguir responder, em estado de tensão extrema, o narrador teria subitamente acordado num hospício, de onde sairia à procura de sua amada. Porém, noutro delírio, um fauno o advertiria que todo o mundo não passava de um artifício montado por sua mente. A partir disto, o narrador concluiria que toda a vida era uma seguida invenção de máscaras, de ilusões, cujo único termo seria a morte, ou o reencontro da alma consigo mesma. Mais ainda, por fim todo o mistério de Kundry estaria desfeito: ela nada mais era do que a morte. 27 Significativamente, a personagem de Menotti não tinha nome próprio, podendo ser confundida com qualquer pessoa. Talvez por isso, depois de ler o texto do companheiro de Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade afirmou que o fauno que anunciara a vacuidade do mundo estava longe de ser uma alucinação exclusiva do autor. Ao contrário: Esse filho da inquietação contemporânea tem existência real. Anda a nosso lado, com suas formas aduncas, verde-pálidas. Aparece em todos os prazeres, glórias, trabalhos, dores, exultações. E Menotti deu-lhe a imortalidade em algumas das mais inesquecíveis páginas da literatura nacional.26 De acordo com a leitura proposta por Mário, portanto, o texto de Menotti tinha uma determinada conotação realista, no sentido de que seu tema correspondia à verdade do mundo contemporâneo. Por outro lado, paradoxalmente, esta obra, na qual a personagem central concluía que a única metafísica verdadeira era respaldada pelo desejo da morte, e onde o amor e a morte confluíam como experiências complementares, foi entendida por Mário como exemplo de arte voltada para a vida. Se a personagem construída por Menotti levava os anseios estéticos da plenitude à auto-aniquilação, a obra, como um todo, foi interpretada como favorável à vida. Então, como se perceber a possível complementaridade entre o desejo de morte expressa na trama literária de Menotti e o interesse pela vida, autoproclamado em diversos momentos pelos responsáveis pela revista Klaxon, e identificado por Mário no mesmo Menotti DelPicchia, futuro “guia das multidões”? Em primeiro lugar, há um inegável distanciamento entre a proposta da personagem criada por Menotti e a imagem inventada pelo próprio autor para si mesmo e seus companheiros de Semana de Arte Moderna, no início da década de 1920. Que o homem de O Homem e a Morte não era uma representação autobiográfica do autor, pode-se depreender do próprio texto. Quando o narrador se representou como a figueira, símbolo da infidelidade e desobediência a Deus, não se pode deixar de perceber uma intromissão sutil do autor, que dava a entender que o niilismo exposto no texto era um problema a ser enfrentado, mais do que um modelo a ser seguido. Desta forma, Menotti deixava entrever que a morte de uma civilização estava em consonância com o nascimento de algo novo, uma vez que a figueira só é compreensível em oposição a Cristo. E a percepção do que seria esta novidade reside na análise de como Menotti DelPicchia representava sua própria 26 Resenha publicada por Mário em Klaxon, op. cit., p. 29. 28 morte – bem como a de seus companheiros de empreitada, ainda no início da década de 1920. No dia 10 de janeiro de 1921, Menotti foi homenageado com um almoço no Trianon, onde recebeu sua máscara esculpida em bronze por Vitor Brecheret.27 O discurso por ele proferido se iniciava com uma estratégia deconstrução de um orador coletivo, ou seja, Menotti disse não estar falando tão somente em seu nome, mas, pelo contrário, como um ser “desindividualizado”, repercutindo, “anonimamente”, uma causa maior. Causa no mesmo passo associada ao martírio, uma vez que a “rua da Amargura das letras” configurava um “áspero e belo calvário”. Por outro lado o autor, falando na primeira pessoa do plural, opôs o coletivo dos presentes à sua homenagem à maioria dos homens de seu tempo, supostamente tomados pelo utilitarismo e incapazes de perceber as emanações do belo, qualificados, ainda, como sacrílegos. Citando o Evangelho, Menotti DelPicchia falou da arte como missão sagrada, destinada a um pequeno número de praticantes fiéis. Estes estariam dispostos a passar por um calvário iniciático, uma série de provas de dores e sofrimentos, dentre as quais o autor citava a imagem da coroa de espinhos, no sentido de alcançarem a mestria estética, a visão criadora do artista. Falando de seus companheiros de geração, Menotti dizia: O pensamento represado irrompe em escanchoos, por mil brechas. E vós – ó meus irmãos de sonho – que tínheis ontem a função pálida dos troveiros ironizados, hoje, messianicamente, encontrais vosso destino no Apostolado do Verbo novo, a afirmar, em páginas pesadas de eternidade, e esplendor e a glória do pensamento brasileiro!28 O coletivo construído retoricamente no início do discurso de Menotti tinha, como marca homogeneizadora, a disposição martirizante, descrita como atitude por excelência dos criadores da arte e dos seguidores de ideais. Porém o isolamento e a auto-imolação dos artistas, embora trazendo a incompreensão social, foi também descrita como missão piedosa, minoradora das angústias, do cansaço. Neste ponto, a sociedade parecia dividida em dois grupos funcionais: de um lado, os que trabalham, de outro, os que cantam para tornar mais leve o suplício dos primeiros. Sem a poesia, os homens estariam condenados à 27 A notícia saiu no Correio Paulistano, “O Almoço de ontem no Trianon”, assinada pelo próprio autor. Há uma reprodução do texto em: Yoshie Sakiyama Barreirinhas. Menotti DelPicchia. O Gedeão do Modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 185-191. 28 Em: Yoshie Sakiyama Barreirinhas, idem, p. 191. 29 falta de esperança, e Deus, no mesmo momento em que condenara Adão ao trabalho, dera- lhe o dom do canto. Daí a conclusão esboçada por Menotti, para ele e seus companheiros: “é santa a nossa missão na terra”. Prosseguindo o discurso, Menotti, num tom explicitamente bíblico, calcado no tom do Sermão da Montanha, afirmaria que, até então, a luta dos criadores no Brasil fora infrutífera, “natimorta”. Isto devido ao fato da existência de um obstáculo quase intransponível, a existência de uma “legião de analfabetos”. Recorrendo à figura do Jeca Tatu, Menotti traçava uma barreira de ignorância frente aos livros publicados no país, o que tornava as bibliotecas verdadeiras necrópoles. Daí que: “Escrevíeis para um povo que não sabia ler. Clamáveis no deserto.” O que teria mudado, devido a um surpreendente surto de progresso em São Paulo, que se tornara uma metrópole moderna, na qual se unia a parafernália tecnológica ao entrechoque de raças, da qual surgiria “o tipo forte e definitivo da pátria.” Tais mudanças teriam trazido o fim do lirismo romântico, dando ensejo a uma nova estética, forjada na violência e na dramaticidade da vida contemporânea. Já no dia 22 de outubro do mesmo ano, Menotti noticiou uma viagem ao Rio feita por Oswald, Mário de Andrade e Armando Panplona, como uma “bandeira futurista”.29 No texto, Mário foi nomeado como o “papa do novo Credo”, e Oswald, o “bispo”. No texto, o “futurismo paulista” foi apresentado como cisma religioso, na apresentação de novos deuses para a literatura brasileira. A imagem, repetida por diversas vezes nas crônicas de Menotti, já aparecera em maio de 1921.30 Porém, na crônica de então os novos pregadores da religião estética, identificada pelo autor como futurista, eram confrontados a uma geração de decrépitos continuadores de uma arte morta. De acordo com o autor, porém, a própria continuidade da vida, em esplendor e glória, exigia a recorrência de sacrifícios renovadores, além da necessidade de que os novos afiassem novamente as armas criadas pelas gerações passadas (no caso, a poesia). Assim, soma-se às imagens reunidas no discurso do Trianon, a configuração de um grupo específico, responsável pela revitalização da arte no Brasil. Este grupo, nomeado como o dos futuristas de São Paulo, era capitaneado por Mário e Oswald de Andrade, além, obviamente, do próprio Menotti. 29 Ibidem, “A bandeira futurista”, p. 266-268. 30 Ibidem, “Os Velhos”, p. 221-223. anaca Realce 30 Por outro lado, a oposição que aquele discurso estabelecera entre artistas-mártires e sociedade, desdobrava-se numa segunda clivagem, entre os primeiros e uma geração cadavérica de poetas e criadores envelhecidos. A imagem permaneceu central noutro texto, no qual Menotti deu retratos sucintos de alguns dos representantes da inovação do pensamento brasileiro. Ali, Plínio Salgado foi definido como “o parnasianismo agonizante confabulando com a morte para a ressurreição mística de uma individualidade nova”.31 Neste caso, o anseio pela morte foi diretamente associado à estética combatida pelos participantes da Semana de Arte Moderna, e considerada como faceta característica da civilização que morria com o fim do século XIX, nos textos programáticos de Klaxon. Ou seja: a geração de criadores natimortos tinha um rótulo determinado, o de parnasianos. Ainda no mesmo tema, no dia 3 de novembro de 1921, Menotti apresentou o poema que representaria a adesão de Plínio ao “novo credo”, que corresponderia a um simultâneo abandono do parnasianismo, em versos que indicariam a proximidade de sua renovação estética.32 Intitulado “O canto epitalâmico da morte”, o texto do novo futurista descrevia os chamados da morte, numa voz silenciosa, ecoando numa noite sem estrelas. No poema, a morte aparecia como amante formada de trevas, de dimensão cósmica, uma vez que, perfazendo a totalidade do universo, seria destino comum ao poeta e ao sol. Daí que, neste conjunto de artigos de Menotti, Plínio Salgado parecesse ser o exemplo mais acabado de uma poética cuja última resultante era a atração pelo nada. Mas, notava Menotti, da morte simbólica do poeta parnasiano surgia um novo perfil de poeta e profeta. Assim, complementando a imagem da morte necessária de uma civilização exaurida, o martírio simbólico do artista elogiado por Menotti instaurava uma retórica sacrificial como a matriz estética da nova era. Se por um lado a imagem da morte correspondia, nestes textos, ao esgotamento fisiológico esboçado por Spengler na morfologia do Ocidente (num registro explicitamente organicista), por outro a outra morte dos poetas que renasciam como futuristas se dava no âmbito da sacralidade, na encenação de uma nova Via Crucis. 31 Cf. Ibidem, “Maravilhas (Futurismo Sensacional)”, p. 303-305. O texto, publicado em 16 de novembro de 1921, trazia retratos literários de Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Valdomiro Silveira, Martins Fontes, dentre outros (figuras que posteriormente seriam tanto consideradas como “modernistas” quanto “passadistas”). Note-se, ainda, que a descrição de Plínio Salgado parece aproximá-lo da personagem principal de O Homem e a Morte. 32 Ibidem, “Mais um futurista!”, p. 282-286. 31 Os mesmos dispositivos retóricos vinham sendo intensamente explorados por setores de vanguarda artística na Itália, o que torna a escolha por Menotti do título de “futurismo” não meramente casual. Diversos artistas,identificados com o futurismo e outros setores das artes italianas, associavam a renovação estética à regeneração cultural e política de seu país. Por exemplo, Ardengo Soffici, que em 1921 declarara sua adesão ao fascismo, defendia a tese de que a obra de arte era a força propulsora da vida política, sendo capaz de integrar a cultura, a política e a religião, que teriam se dissociado no mundo moderno. O artista italiano considerava o confronto com a morte nas trincheiras da guerra como a experiência emblemática de união entre a arte e a vida, retomando a idéia da necessidade de que uma catástrofe, ou um sacrifício coletivo, pusesse fim à decadência que supostamente tomara conta da Itália.33 Além disso, coincidência ou não, pode-se notar uma semelhança evidente entre a passagem de O Homem e a Morte na qual o narrador e Kundry saem para um passeio automobilístico suicida e o manifesto fundador do futurismo, publicado por Marinetti em 1909.34 O manifesto futurista era precedido por uma curta narrativa, que descrevia o momento da revelação de uma nova vida para Marinetti e seus companheiros. Nela, apresentava-se um grupo de poetas isolados em seu orgulho estético, os quais teriam sido provocados e despertos por sons dos automóveis. Então, cada um deles tomaria a direção de uma daquelas máquinas, saindo em disparada pelas ruas da cidade, caçando, “como novos leões, a Morte na pelagem negra”. Num momento de clímax, Marinetti teria lançado seu carro numa valeta, e ali, no meio do lodo, depois de enfrentar a morte, teria tido como uma espécie de revelação a eclosão das palavras de ordem do futurismo. Estas abarcavam termos como audácia, amor ao perigo, violência e virilidade, no intuito de se livrar a Itália de “sua gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.” O termo-chave para a compreensão da estrutura narrativa do manifesto futurista de 1909 é, portanto, “redenção”. Tema que se baseia num modelo temporal básico: a projeção de um estado inicial de felicidade e plenitude, tornado passado por algum ato instaurador de um presente deficiente, e a promessa de um ato capaz de reencetar a felicidade perdida, 33 Sobre o assunto: Emilio Gentile, “The myth of national regeneration in Italy: from modernist avant-garde to fascism” e Walter Adamson, “Ardengo Soffici and the religion of art”, in: Mathew Affron and Mark Antliff. Fascist visions. Art and ideology in France and Italy. Princeton: Princeton University Press, 1997. 34 Manifesto reproduzido em: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 89-94. anaca Realce 32 sendo este ato comumente entendido como oferta sacrificial à divindade. Oferta que implica também a projeção de uma aura transcendental sobre a personagem sacrificada. No texto de Marinetti, a Itália aparecia assolada por uma elite em decomposição – cujo emblema seria o passadismo, a atração mórbida pelas coisas mortas e decadentes. Neste sentido, a descida do poeta ao lodo, após a morte simbólica do acidente de automóvel, implicava sua consagração, sua transformação em agente capaz de pronunciar as palavras redentoras, de trazer as boas novas. A recorrência da imagem automobilística em O Homem e a Morte de Menotti DelPicchia, neste aspecto, é mais do que repetição de uma espécie de lugar-comum literário, uma vez que implica a reduplicação do modelo de temporalidade das narrativas redentoras – que trazem em seu centro a encenação de um confronto com a morte. Neste sentido, dentre os textos em que, no início da década de 1920, Menotti celebrava a morte redentora, o momento mais notável foi a apresentação de Paulicéia Desvairada, livro de poesias lançado por Mário de Andrade em 1922.35 Ali, Mário foi equiparado a Jesus Cristo, nomeado como o “Crucificado do Livro Fechado” e o “Cristo da Ânsia e do Desvario”.36 Paulicéia Desvairada seria a súmula emocional da vida na grande cidade moderna de São Paulo e, por isso mesmo, seu autor se tornaria alvo do escárnio de “escribas e fariseus”. De acordo com Menotti, Mário estava se preparando para o sacrifício, para a redenção não só de si mesmo, mas de sua terra como um todo, pois suas poesias tinham sido escritas com o próprio sangue. Mesmo que fazendo parte da retórica desenvolvida pelo próprio autor, a leitura que Menotti fez de Paulicéia Desvairada apresenta ressonâncias de temas presentes em Mário de Andrade. Este, tinha como desfecho um longo poema, “As Enfibraturas do Ipiranga”, intitulado pelo autor como um “oratório profano”. Ali, várias vozes poéticas se digladiavam, representando, cada uma, um dos tipos estéticos e políticos presentes na configuração dos conflitos do Brasil de então, nos marcos do que então se considerava a 35 Em: Yoshie Sakaiyama Barreirinhas, op. cit, “Paulicéia Desvairada!”, p. 357-358. 36 Observe-se que, antes da publicação de seu livro, devido a uma polêmica originada quando Oswald divulgara versos de Mário de Andrade, chamando-o de “meu poeta futurista”, o próprio Mário falava de si como um “crucificado nas próprias interrogações”, não fazendo parte, desta forma, de escola alguma. No mesmo artigo, Mário dizia não ser um poeta inspirado por forças divinas, recusando a si o papel de gênio. Cf. “Futurista?!”, artigo publicado no Jornal do Comércio, a 6 de junho de 1921, e reproduzido em: Mário da Silva Brito. História do modernismo brasileiro. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1971, p. 234-238. 33 redenção da literatura brasileira. Marcavam presença no poema “os Orientalismos Convencionais”, que seriam “escritores e demais artífices elogiáveis”; “as Senectudes Tremulinas”, ou “milionários e burgueses”; “os Sandapilários Indiferentes”, ou “operariado, gente pobre”; “as Juvenilidades Auriverdes”, ou, de acordo com o autor, “nós”; e “Minha Loucura”.37 As diversas vozes do poema se opunham às Juvenilidades Auriverdes, instauradores de força vital e criativa para o Brasil: os escritores devido ao apego ao formalismo e às convenções literárias mortas, a burguesia devido à futilidade e superficialidade das normas de reconhecimento social, e o operariado, representado como temeroso e fiel seguidor das palavras de escritores e burgueses. Todos, porém, espantados com a “Verdade” revelada pelas Juvenilidades, acabariam fugindo, escondendo-se. Ao fim do poema, Minha Loucura entoava um canto de resignação e esperança, cujas imagens centrais eram marcadas pelo tom do martírio, com a concomitante promessa de uma nova vida: Chorai! Chorai! Depois dormi! Venham os descansos veludosos Vestir os vossos membros... Descansai! Ponde os lábios na terra! Ponde os olhos na terra! Vossos beijos finais, vossas lágrimas primeiras Para a branca fecundação! Espalhai vossas almas sobre o verde! Guardai nos mantos de sombra dos manacás Os vossos vagalumes interiores! Inda serão um Sol nos ouros do amanhã! Chorai! Depois dormi! A mansa noite com seus dedos estelares Fechará nossas pálpebras... As vésperas do azul... As milhores vozes para vosso adormentar! Mas o Cruzeiro do Sul e a saudade dos martírios... Ondular do vai-vem! Embalar do vai-vem! Para a restauração o vinho dos noturnos!... Mas em vinte anos se abrirão as searas! Virão os setembros das florestas virginais! Virão os dezembros do Sol pojando os grânulos! Virão os fevereiros do café-cereja! Virão os marços das maturações! Virão os abris dos preparativos festivais! 37 Tomo como referência: Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfino. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1987. p. 103-115. 34 E nos vinte anos se abrirão as searas! E virão os maios! E virão os maios! Rezas de Maria...
Compartilhar