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O_mito_modernista Daniel Faria

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Daniel Barbosa Andrade de Faria 
 
 
 
O mito modernista 
 
 
 
Uberlândia: EdUFU, 2006. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Sancho, o supremo idealista, é o microcosmo 
eterno da humanidade, que se completa com o espírito adjetivo 
do Cavaleiro da Triste Figura. 
Heróis comuns a todas as latitudes geográficas, 
vivem seu instante nacional no território brasileiro 
da língua deste poema, porque são os dois pólos universais 
do próprio homem, cidadãos de todas as pátrias, 
alegorias internacionais do egoísmo e da espiritualidade. 
 
(Menotti DelPicchia, em: O Amor de Dulcinéia) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Agradecimentos 
 
 
 
 
 Antes de tudo, contei com uma bolsa de doutorado concedida pela FAPESP, o que 
tornou este trabalho possível. 
Ao menos para mim, um dos frutos do amadurecimento intelectual foi ter percebido, 
ao longo do meu mestrado, mas sobretudo durante o doutorado, que uma tentativa de 
reflexão, por mais solitária que seja em seus momentos mais delicados, sempre traz à tona 
um número crescente de pessoas que, das mais variadas maneiras, abalaram nossas 
certezas. À medida em que meu trabalho foi se tornando mais pessoal, mais independente, 
eu notava que, paradoxalmente, maiores eram minhas dívidas com relação a mais e mais 
pessoas (mas infelizmente, terei que limitar estes agradecimentos àqueles que tiveram 
maior proximidade com minha tese, senão eu correria o risco de iniciar, sem o talento 
necessário, a minha busca do tempo perdido). 
 Meu aprendizado não se deu apenas no que se refere à teoria, à história ou à 
literatura. Com minha orientadora, Maria Stella Bresciani, tive um exemplo de postura 
profissional, de sabedoria, de inquietação. Qualidades que ela também revelou em seu 
modo ao mesmo tempo doce e libertário de me orientar. A mesma dignidade que notei em 
minha orientadora do mestrado, a professora Elizabeth Cancelli, em quem também vejo um 
exemplo – uma grande amiga que também se dispôs a me auxiliar na revisão da tese. Os 
professores Francisco Foot Hardman e Vavy Pacheco Borges leram uma primeira versão da 
tese de uma forma que vale muito mais que quaisquer elogios de praxe: o reconhecimento 
intelectual pelo rigor, pela seriedade. A professora Vavy, tão comprometida com a vida de 
historiadora que nem sequer aceita agradecimentos pela sua generosidade, que eu sei ir 
muito além, apesar de incluir, a ética profissional. E, ainda, o professor Hermenegildo 
Bastos, que sabe ensinar de uma maneira instigante, e cuja generosidade aparece na sua 
forma delicada de expor as discordâncias. 
 Meus agradecimentos também se estendem aos outros professores da linha de 
pesquisa Jogos do político, Iara Lis Carvalho Souza e Ítalo Tronca. E especialmente, a 
Izabel Marson, que me revelou o Dom Quixote, e que é ainda outro exemplo de dignidade 
profissional, de dedicação à reflexão histórica. Pude ainda participar das reuniões e de um 
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colóquio promovido pelo Núcleo de História e Linguagens Políticas, os quais foram 
extremamente inspiradores e instigantes. Aprendi ainda com colegas, em várias situações, 
mas principalmente na cantina do IFCH, alvo recente de um ataque infame e difamante 
pelos jornais de Campinas promovido por um moralista enfurecido: com João, tive aulas de 
psicanálise, com Nádia, discuti tantas coisas, com Flávia, fui provocado a pensar a política, 
com Roberto, percebi o valor da pesquisa. Com todos, e outros que pelas razões já dadas 
não cito aqui, tentei exercitar a virtude política e existencial da amizade. Agradeço ainda a 
Jácomo Mandatto, que me recebeu de braços abertos em Itapira, na Casa de Menotti 
DelPicchia. 
 Por fim, os últimos que são meus primeiros, pois estão no terreno dos meus 
sentimentos mais profundos. A Amílcar, Carlos Afonso e Antonio Carlos Queiroz pela 
amizade, pelas conversas sempre saborosas, sobre Mário de Andrade, sobre música, sobre 
poesia y otras cositas más. A minha família pelo apoio constante, que me vê da mesma 
forma que Sancho Pança a Dom Quixote, não interessando se meus gigantes não passam de 
moinhos de vento, com um misto de perplexidade e admiração. Que todos me neguem o 
valor, que este trabalho seja considerado um fiasco, mas eles sempre me verão como 
corajoso cavaleiro andante. 
 E o último agradecimento, apaixonado, ao companheirismo sensível e inteligente da 
querida Giovana. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Sumário 
 
 
 Prólogo 7 
 
 
 
 Parte 1. Limpando as armas. Uma exploração no vocabulário estético- político. 
 
 
 1.1 O homem, a morte e o martírio 25 
 
 1.2 As multidões, ingratas ou encantadas 50 
 
 1.3 Humilhar, verbo transitivo e proposicional 72 
 
 1.4 Menotti e o amor do sacrifício 94 
 
 1.5 Macunaíma, encantador de multidões 115 
 
 1.6 Entre a tormenta e a redenção 137 
 
 
 
 
 Parte 2. As diretrizes da administração 
 
 2.1 A mitologia de Menotti DelPicchia 164 
 
 2.2 A pedagogia de Mário de Andrade 194 
 
 2.3 Capítulo final: 
 cada qual é filho das suas obras 223 
 
 
 
 Epílogo 259 
 
 Bibliografia 270 
 
 Apêndice 282 
 
 
 
 
 
 
 6 
Prólogo 
 
 
 
 Ocupado leitor, ao ver mais um livro que trata do modernismo brasileiro você 
provavelmente deve pensar que está diante de um filme já visto muitas vezes, ou então de 
mais uma descrição das aventuras discretas e formosas dos heróis fundadores de “nossa” 
literatura contemporânea, que apenas tentasse face às várias outras interpretações existentes 
adicionar um novo e gracioso rodeio teórico. Porém, mesmo sabendo que isto pode ser 
considerado um modo caprichoso de redação, fruto de alguma fraqueza de engenho 
literário, optei por manchar esta versão com o demasiado humano da história, que para 
alguns apenas gera personagens mirrados, enrugados – ou, pior, demonstra um prurido 
positivista conspurcando um tema consagrado. Mas esta tentativa, ainda que talvez 
canhestra, é fruto de um desejo de fugir de um cárcere historiográfico e literário: a cadeia 
interminável do mito modernista. O que talvez implique uma perda de encantamento, mas 
que pode vir a contribuir para o surgimento de outras histórias, outras literaturas que já se 
vêem delinear há algum tempo no horizonte de “nossas” letras. 
Devo adiantar que este trabalho é uma versão revista de minha tese de doutorado, 
defendida na Unicamp em 2004, sob orientação da professora Maria Stella Bresciani. Esta 
correspondeu ainda a uma trilha iniciada com minha dissertação de mestrado, O 
modernismo que se tornou romântico: Literatura, política e brasilidade, defendida na 
Universidade de Brasília, sob orientação da professora Elizabeth Cancelli e co-orientação 
de Hermenegildo Bastos. Naqueles dois trabalhos os leitores porventura interessados 
poderão encontrar, de modo mais pormenorizado, o catálogo de autores característico dos 
textos acadêmicos, aqui excluído tendo em vista um percurso menos sinuoso. 
 Meu convite é no sentido de acompanharmos de perto as trajetórias de dois 
intelectuais associados ao que comumente se nomeia como modernismo, Menotti 
DelPicchia e Mário de Andrade, ambos nascidos em 1893. Nesta história, veremos nossos 
personagens procurando estabelecer uma aparência pública, entre os anos de 1921 e 1932 
mediante a elaboração de um vocabulário que visava a lhes conferir um lugar próprio nos 
embates sobre os rumos de uma incerta civilização brasileira, entre os anos de 1932 e 1937 
a partir de compromissos institucionais por eles assumidos, de um indisfarçável pendor 
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autoritário, e finalmente entre 1937 e 1945 se debruçando sobre uma memória que vinha 
esboçando a constelação daquilo que intitulei por mito modernista. 
Entendendo a formação de um vocabuláriocomo ação política (no sentido de que 
todo orador inicia seu discurso a partir de uma determinada personificação), e as 
intervenções instituicionais como efetivações daquele, a pergunta que deu forma a este 
trabalho foi: em que medida o mito modernista foi escrito nos termos delineados por nossos 
protagonistas? Ou, sendo mais explícito: quais os vetores políticos do mito modernista? 
A decisão por este caminho foi tomada desde que a idéia de “modernismo”, no 
sentido de algo como um movimento tido e havido como luz e espelho da literatura 
brasileira contemporânea (literatura vista ainda como espelho da “consciência nacional”), 
levou-me a um certo desconforto, a uma sensação de encarceramento intelectual – sensação 
que está longe de ser solitária, pois observei em vários colegas e encontrei em outros 
autores uma inquietação semelhante. 
A este desconforto corresponde a expectativa mais ou menos disseminada (da qual 
você talvez partilhe, leitor) de que, quando o assunto é modernismo, tudo está dito. Ora, se 
um assunto parece assim tão carregado de verdades, pleno e definitivamente constituído, 
não é isto razão para a nossa desconfiança? Um evento comemorado por intelectuais os 
mais refinados, rememorado em festas e festivais promovidos pelo Estado, sobretudo nas 
fases mais autoritárias da história política do Brasil contemporâneo, televisionado, 
musicado, reivindicado por poetas marginais e concretistas, ensinado nas salas de aulas 
para crianças, adolescentes, jovens e adultos - um evento deste tipo não merece ao menos 
uma pulga atrás da orelha? Tudo está dito, nada é perfeito, eis o imprevisto. 
Só para iniciarmos com um exemplo, uma das coisas que observei durante minha 
pesquisa é o fato de tanto Menotti quanto Mário terem adotado em suas vidas outros selos 
de identificação além de “modernistas”, como por exemplo o de “futuristas” entre os anos 
de 1921 e 1922, o primeiro com maior ardor. O título de “modernista”, ao que me parece, 
foi instituído por Mário de Andrade alguns anos depois como arma tática de legitimação de 
um agrupamento literário e político específico, e se tornou canônico e mais abrangente a 
partir da década de 19301 (segundo suponho, a partir de alguns indícios indiretos que reuni 
 
1 O termo “modernismo” já existia, mas numa outra acepção mais abrangente, que incluía movimentos 
intelectuais e estéticos, conjuntos de idéias e de propostas poéticas, existentes desde o fim do século XIX. 
Este sentido ainda é válido em outras línguas, como o castelhano, onde “modernismo” e “vanguardas” não 
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durante minhas pesquisas, ganhando estatuto acadêmico na década de 1950, sobretudo 
devido à obra de Antonio Cândido, e alcançando expressão editorial massiva durante a 
década de 1970, então promovida pelo Estado – como se constata observando a grande 
maioria dos livros então publicados, em co-edições com o Conselho Federal de Cultura e o 
Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Mas esta seria uma outra investigação...). 
Este aparente pormenor referente ao nome “modernismo” é de grande importância 
teórica, quando percebemos que tal etiqueta implica a eleição de um projeto estético e 
político. Sei, contudo, que duvidando da obviedade de uma simples nomeação como esta, 
corro o risco de tornar meu texto menos gracioso, mais rude. Talvez este seja o preço a ser 
pago por um exercício que se propõe a fugir de uma tradição literária tão consolidada. 
Depois de sentir o assombro diante do nome constituído, quase gaguejo quando falo em 
“modernismo”, o que explica as aspas usadas neste prólogo, mas principalmente a opção 
narrativa de não iniciar este texto partindo do “modernismo” como conceito, mas perseguir 
historicamente a constituição do mesmo. 
 Enfim, eis a opção metodológica deste trabalho: acompanhar as idas e vindas de 
Mário e Menotti, desde os preparativos da Semana de Arte Moderna em 1922 até a década 
de 1940, tentando evitar que elas fossem atropeladas pelo acúmulo de pressupostos 
referentes ao tema. No caso de Mário de Andrade, apesar de estar tratando de um autor cujo 
renome é conhecido por todos os habitantes do distrito literário brasileiro, espero estar 
trazendo novas indagações. Mas sei que estas se devem, sobretudo, à aparição desta outra 
personagem Menotti DelPicchia, a quem não tratei como “modernismo desviante”, mas sim 
como signo cifrado dos sentidos estético-políticos ocultados na idéia mesma de 
“modernismo”. 
 Escrever um texto sobre “modernismo”, no Brasil, é uma tarefa complicada. Isto, 
por um lado, deve-se à imensa quantidade de interpretações e reinterpretações, na maioria 
das vezes redundantes, sobre o “movimento”. Mas, sobretudo, a dificuldade advém da 
forma como o “modernismo” foi canonizado pela tradição literária brasileira 
contemporânea. Temas como os de genialidade, originalidade e inauguração, mesmo que 
incompatíveis com quase todas as propostas teóricas e metodológicas contemporâneas, 
 
são termos equivalentes. Um exemplo: na Revista do Brasil, vol. 1, n. 1, de 1916, José Veríssimo publicou um 
texto chamado “Modernismo”, no qual eram citados, dentre outros: Graça Aranha, Tobias Barreto, Sílvio 
Romero, evolucionismo, positivismo, Taine, parnasianismo e “poesia científica”. 
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tanto para a historiografia quanto para a teoria literária, quase sempre aparecem, ainda que 
de modo camuflado, na maioria dos textos sobre o tema. E especialmente no que se refere 
às obras de Oswald e Mário de Andrade, o aparato intelectual e institucional do cânone 
quase proíbe qualquer tentativa de leitura distanciada.2 No caso de outros autores, como 
Graça Aranha,3 Menotti DelPicchia e Cassiano Ricardo, a reificação do “modernismo” 
como evento necessário e inaugural da literatura no Brasil funciona às avessas. Suas obras, 
geralmente, são taxadas como desviantes, falsas, equivocadas e mesmo imorais. 
 A pretensão deste trabalho é construir uma leitura histórica das trajetórias de dois 
intelectuais vinculados à memória instituída do “modernismo”, numa tentativa de se 
perceberem projeções políticas inscritas em configurações estéticas e literárias. Portanto, 
não se trata, aqui, de um texto de crítica literária, muito embora esta tenha sido usada 
algumas vezes como um dos instrumentos disponíveis para o estudo das fontes. Daí a 
necessidade de se expor, desde já, uma escolha essencial para a realização desta narrativa. 
Como a meta foi acompanhar a trajetória das formulações dos projetos estético-políticos de 
Menotti e Mário, as obras destes autores foram as fontes privilegiadas na elaboração dos 
métodos de análise. Assim, optei, por exemplo, por interpretar o Macunaíma de Mário de 
Andrade a partir das perspectivas elaboradas pelo próprio autor. Não que se lhe conceda o 
estatuto de leitor privilegiado da própria obra, nem que se procure inscritos em sua vida os 
traços explicativos da literatura, mas apenas por se tratar da trajetória de um escritor que 
propunha seus textos como configurações e reconfigurações de si, num viés marcadamente 
romântico. Dentre os vários trabalhos que abordam a obra de Mário, existem diversos 
pontos de partida para a análise (como Propp, Bakhtin, Marx e Northrop Frye). Se, para 
este trabalho, escolhi as leituras de Mário por Mário e Menotti não é por considerá-las as 
mais bem acabadas, ou por crer ingenuamente que assim eu me aproximaria da verdade 
última de obras como Macunaíma, mas tão somente porque os dois são os protagonistas 
desta história. 
 
2 Este é, por exemplo, de uma maneira geral, o tom da coletânea: Affonso Ávila. O modernismo. São Paulo: 
Perspectiva, 1975. 
3 Aqui, a exceção fica por conta do livrode Eduardo Jardim. A Brasilidade modernista. Sua dimensão 
filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978. O autor faz uma análise detida da obra Estética da Vida de Graça 
Aranha, demonstrando suas repercussões nas propostas de outros “modernistas”. Eduardo Jardim, contudo, 
não questiona os marcos fundadores da idéia de “modernismo”. 
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Por outro lado, precisamos desconfiar da tese tranqüilizadora acerca da existência 
de uma única opção autoritária entre os “modernistas”, identificada com os verde-amarelos. 
Ao contrário, seria interessante se pensar a existência de vários projetos autoritários e 
conservadores, mas também conflitantes, no(s) movimento(s), bem como no Brasil dos 
anos 1920 e 1930. Os efeitos da idéia de existência de uma única corrente autoritária 
aparecem com nitidez em obras como as de Antônio Arnoni Prado e Mônica Pimenta 
Velloso. Aquele4 explicita seus pressupostos ao nomear os “modernistas” desviantes como 
falsa vanguarda, conservadores infiltrados naquilo que corresponderia a uma verdadeira 
vanguarda, concedendo assim uma diferença de estatuto ontológico inaceitável do ponto de 
vista teórico (o que seria um acontecimento “falso”?) a uma tentativa de delimitação de um 
campo político. Mais ainda, Arnoni traça uma continuidade entre as falsas vanguardas, de 
Menotti, Plínio Salgado e Graça Aranha, e o integralismo, incorrendo num duplo equívoco: 
historiográfico, uma vez que nem todos os verde-amarelos se tornaram integralistas, e, por 
outro lado, mesmo Mário de Andrade chegou a declarar, algumas vezes, simpatia pelo 
malfadado movimento; e teórico, ao sobrepor uma teleologia à história. 
Quanto a Mônica Pimenta Velloso, lança sobre os verde-amarelos o epíteto de 
“regionalistas”.5 Isto, após tentar demonstrar que o “modernismo”, busca da autenticidade 
nacional, era incompatível com o regionalismo. Inscrevendo-os, ainda, numa imagem 
desqualificadora similar à proposta por Arnoni Prado: os verde-amarelos teriam falsas 
idéias estéticas. Estes falsos “modernistas” trariam consigo um desejo político: o da 
hegemonia paulista. A autora não atenta para os laços políticos estabelecidos entre 
“modernistas”, verdadeiros e falsos, e setores da elite política paulista, deixando de notar, 
por exemplo, que tanto Mário de Andrade quanto Menotti DelPicchia e Cassiano Ricardo 
participaram do projeto de hegemonia nacional de Armando de Salles de Oliveira, e ainda 
que Cassiano, num golpe talvez inusitado, nomeou já durante o Estado Novo o gaúcho 
Getúlio Vagas como líder bandeirante. Quanto à idéia de “regionalismo”, ela é tão evidente 
 
4 Em: 1922: Itinerários de uma falsa vanguarda. São Paulo: Brasiliense, 1983. 
5 Em: A brasilidade verde-amarela; nacionalismo e regionalismo paulista. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio 
Vargas, 1987. A autora repôs ainda a mesma tese em: “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e 
regionalismo paulista”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89-112. Noto, ainda, que em 
obra recentemente publicada, Luiza Moreira Franco, recorre à mesma estratégia retórica para “exorcizar” o 
autoritarismo de Cassiano Ricardo. Cf. Meninos, poetas e heróis. Aspectos de Cassiano Ricardo do 
modernismo ao Estado Novo. São Paulo: EdUSP, 2001. 
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em sua configuração superficial e confusa em sua rede conceitual quanto a de 
“modernismo”. 
Na extensa bibliografia sobre o “modernismo” pode-se perceber a recorrência de 
algumas idéias-chave: a pressuposição romântica do progresso da consciência nacional, na 
imagem da nação que se torna consciente de si mesma, e do “modernismo” como momento 
privilegiado desta conscientização. O que geralmente vem acompanhado do jogo entre 
verdadeiro e falso modernismos, pois a imagem da autenticidade ou do genuinamente 
nacional implica, por contraposição, a do artifício, da mentira, da farsa. Como se o universo 
dos verde-amarelos, e no caso aqui discutido, de Menotti DelPicchia, sofresse de uma 
espécie de defasagem ontológica, como se eles nos conduzissem a um mundo ilusório, 
fantasmagórico; ou, dito de outro modo, como se o autoritarismo não fosse “real”. Mas não, 
sobretudo diante de recentes acontecimentos políticos, não é mais possível fugirmos ao 
desengano: a “realidade” brasileira contemporânea comportou mais de uma forma de 
autoritarismo... E, em se tratando de política, como diferenciar a realidade e o consenso, a 
verdade e a persuasão? Sendo assim, como traçar limites claros entre uma falsa e uma 
verdadeira política? Não seria, então, a prerrogativa autoproclamada de uma política mais 
“real” uma saída fácil demais? Dom Quixote já não nos ensinou que não é tão simples 
assim a distinção entre uma estalagem e um castelo? 
Gostaria de indicar ao meu leitor, como uma das fontes de indagações, a obra de 
Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945).6 Como bem observado 
no prefácio escrito por Antônio Cândido, o texto de Miceli traz inquietações e aponta uma 
série de possíveis análises para o “modernismo” e para a situação dos intelectuais no Brasil 
contemporâneo, constituindo-se, assim, como um clássico. Devo, porém, notar que penso 
serem pertinentes as dúvidas de Antônio Cândido acerca da generalidade das categorias 
sociais, tal como trabalhadas naquele livro. Dúvidas que remetem ao tema mais amplo da 
relação entre conceitos e história, como por exemplo, os de “oligarquia” e “atraso”, ou a 
redução de idéias e acontecimentos a um jogo de interesses, à busca de status e 
consagração. Penso que a sobreposição de uma armadura conceitual sociológica à história 
reificou o jogo político, ocultando a dimensão agônica de termos constituintes de memórias 
 
6 Em: Sérgio Miceli. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 
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políticas, as quais estão longe de corresponder à ambição de objetividade por vezes 
acalentada por cientistas das humanidades. 
O que nos permite uma última incursão, que diz respeito mais a este texto do que o 
de Sérgio Miceli. No prefácio, tratando das trajetórias de alguns dos “modernistas”, 
Antônio Cândido propôs uma diferenciação entre aqueles que serviram ao Estado Novo e 
outros que se venderam. No primeiro caso, teríamos o exemplo de Drummond, que não 
teria “alienado” sua dignidade, o que seria expresso nos poemas de O Sentimento do Mundo 
e Rosa do Povo. No segundo, Cassiano Ricardo como típico intelectual vendido. Em 
contraponto à afirmação de Antônio Cândido, poderiam ser citados a apresentação de A 
Revista de 1926, e também o manifesto da Legião de Outubro Mineira, datado de 26 de 
fevereiro de 1931, redigidos por Carlos Drummond de Andrade.7 Estes textos podem 
indicar que as idéias de “servir a” ou “vender-se” são, infelizmente, simplificadoras. Ao 
trabalhar inclusive para o Estado Novo, Drummond poderia simplesmente estar sendo 
coerente com as idéias que vinha defendendo, pelo menos desde 1926. Tal e qual Cassiano 
Ricardo. 
Aliás, a diferença proposta por Antônio Cândido, aponta para outro desdobramento 
do par verdadeiro vs falso, a idéia de sinceridade – que mistura o existencial ao moral. 
Trata-se de outra tópica comum aos textos sobre o “modernismo”: a sinceridade de Mário 
de Andrade8 frente às malasartes de Menotti. Ora, tanto em teoria literária quanto no 
pensamento político, a idéia de sinceridade é apenas uma variante do malogro, um dos 
artifícios clássicos da retórica é o mostrar-se autêntico, direto, não-retórico. Da mesma 
forma que a figura do autor literário é uma construção, da qual os escritos de si, ou 
autoficcionamentos e as assinaturas que encontramos nas capas dos livros9 são peças 
fundamentais, a imagem do homem público corresponde a uma representação,a uma 
 
7 Os textos são de fácil acesso. O primeiro está reproduzido em: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda 
européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 336-338. O segundo, pode ser encontrado em: 
A Revolução de 30. Textos e Documentos. Brasília: EdUnB, 1982, p. 123-126. 
8 Um manancial de representações de Mário de Andrade pode ser encontrado no número comemorativo dos 
100 anos do herói da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 36, 1994; com textos de 
autoria de, dentre outros, Antônio Cândido, Gilda de Mello e Sousa, Telê Ancona Porto Lopez, Raul Antelo. 
9 Correntes teóricas as mais variadas que procuraram criticar a centralidade da figura do autor no sistema 
literário certamente enriqueceram e enriquecem a atividade da leitura. Porém, não posso deixar de notar que a 
interpretação de uma obra não se inicia na primeira página, mas na capa, com o título e o nome do autor. 
Pensemos, por exemplo, numa edição de Macunaíma cujo autor fosse Paulo Coelho – isto não modificaria o 
significado atribuído por leitores à obra? 
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atuação. Assim, em termos literários e políticos, pouco importa se Mário ou Menotti 
acreditavam no que diziam, ou o que se passava no fundo de seus corações. Em não se 
tratando de psicologia – como é o caso desta história – a pessoa é o que ela diz e parece ser. 
Mas não pretendo aqui deixar a impressão de que sou um guerreiro solitário, um 
herói quixotesco desfazedor de injustiças, nem, muito menos, tento derrubar sozinho a mal-
fundada maquinaria do mito modernista. Minhas indagações também resultam de perguntas 
lançadas por outros estudiosos, embora sejam diferentes.10 Os textos de Maria Stella 
Bresciani sempre foram fontes de inspiração, principalmente os que tratam de Oliveira 
Vianna. Além disso, destaco as doze questões feitas por Arnaldo Daraya Contier quanto à 
utopia da brasilidade musical “modernista”, frente a um mercado de consumo de bens 
culturais em expansão, à circulação internacional intensa de produtos musicais; a saída, 
pergunta Arnaldo, seria a instauração de um Estado de controle e repressão estética e 
política?11 Ou, ainda, a relação entre a constelação de problemas delineados por intelectuais 
“modernistas” e questões que vinham sendo debatidas por intelectuais brasileiros desde, 
pelo menos, 1870 – o que coloca em xeque as idéias de originalidade e inauguração – 
estudada por Francisco Foot Hardman.12 Como observa o autor, o termo “modernismo” 
tinha, até a canonização da Semana de Arte Moderna de 1922, uma acepção mais 
abrangente (acepção, aliás, que se encontra nos estudos culturais de outros países) incluindo 
projetos estéticos e intelectuais do final do século XIX. A delimitação do termo no Brasil 
acarretou então uma simplificação dos problemas sociais, políticos e culturais levantados 
pelos projetos de modernidade e modernismos, oscilando entre as ruínas e as utopias. 
Delimitação que explicaria, inclusive, a invenção de outro termo engenhoso mas 
embraçoso: o “pré-modernismo”, similar, em sua estratégia de construção de uma 
teleologia, a “pré-história” ou a “pré-socráticos”. 
 Ou, por fim, embora mantendo-se em parte no âmbito do mito modernista, a 
proposta de Silviano Santiago de liberação do “jovem escritor brasileiro” (o texto é da 
década de 1980) em relação a armadilhas artísticas e ideológicas montadas pela vigência do 
“modernismo” – desdobrado por parte da crítica literária em primeira, segunda, terceira 
 
10 Isso sem falar nas conversas, nos mais variados lugares, com amigos e professores e professores amigos, 
fonte de verdadeiro aprendizado, mas que infelizmente não podemos citar. 
11 Cf. “Modernismos e brasilidade: Música, utopia e tradição”, em: Adauto Novaes (org.). Tempo e história. 
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 259-287. 
12 “Antigos Modernistas”, em: Adauto Novaes (org.). Idem, p. 289-305. 
 14 
fases...13 A preocupação de Silviano é referente à prosa literária, mas parece-me que a 
questão de um encarceramento intelectual pela vigência, na crítica literária, de idéias que 
remetem ao “modernismo” como o projeto literário brasileiro contemporâneo, também 
pode ser estendida à historiografia.14 
E já que falei novamente em mito modernista, faço aqui uma breve explicação sobre 
o título deste livro. A princípio, proponho que entendamos o mito no seu sentido mais 
simples, e ao meu ver mais rico, o de enredo ou trama narrativa. Afastando assim a idéia de 
mentira ou engodo. O mito modernista é portanto apenas uma forma de se historicizar a 
literatura basileira contemporânea. Dentre outras coisas que virão à tona apenas no decorrer 
deste texto, posso adiantar ainda que este mito, unidade narrativa recorrente nas mais 
diversas versões sobre o “modernismo”, traz consigo as marcas próprias do épico: nele se 
traça a imagem de um momento que funda a história, engendrando uma comunidade (a 
nação brasileira), e no qual emergem as figuras de heróis dotados de infalibilidade e 
confrontados por monstruosas contrafações do caos. Frente a isto, minha proposta foi 
substituir o mito modernista por outro mito, não épico, mas quixotesco, entendendo-se o 
Dom Quixote como herói que, ao invés de fundar a historicidade, está em conflito com o 
histórico, em tensão constante com o mundo da narrativa. Ou seja: tratei Mário e Menotti 
como heróis quixotescos, o que ao meu ver possibilitou um contraponto crítico ao mito 
modernista de fundo épico – não contrapondo, portanto, mito a historiografia, mas mito a 
mito. Assim, nesta história, é o modo narrativo o eixo da revisão crítica proposta para a 
memória instituída do modernismo. 
Noto, por fim, que à medida em que este texto for avançando, o leitor perceberá que 
o termo “mito” ganhará novos significados, isto devido ao fato de ele ter sido peça 
fundamental no vocabulário político de Menotti DelPicchia (aqui no sentido romântico de 
 
13 Cf. “Fechado para balanço. Sessenta anos de modernismo”, em: Nas malhas da letra. São Paulo: 
Companhia das Letras, 1989, p. 75-93. Restam, ainda, os ataques de Yan de Almeida Prado, ainda na década 
de 1970, os quais, no entanto, configuram-se mais como desqualificação moral do que análise propriamente 
dita. Em: A grande semana de arte moderna. Depoimentos e subsídios para a cultura brasileira. São Paulo: 
EDART, 1976. Para Yan, os modernistas, e especialmente Mário de Andrade, foram meros “simuladores de 
talento”. 
14 Cito, ainda, o instigante livro de Carlos Sandroni, fundamental para a realização desta história (apesar de o 
autor “aplicar”, a meu ver, equivocadamente, conceitos e teses de fundo foucaultiano. Isto porque a obra de 
Foucault está longe de fornecer um modelo teórico a ser “aplicado” ao estudo histórico, caracterizando-se 
pela formulação de problemas e pela concepção da teoria como estratégia de leitura). Cf. Mário contra 
Macunaíma. Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1988. 
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 15 
narrativa reveladora e ao mesmo tempo formadora de uma entidade nacional). Frente a este 
uso específico, recorri à visão de Roland Barthes sobre o mito como discurso que esconde o 
político, mas apenas como uma espécie de antídoto. Isto porque tanto Barthes quanto 
Menotti leram o mito a partir do prisma da propaganda (a propaganda seria algo como o 
mito do homem contemporâneo), o primeiro num viés crítico. Se a teoria de Roland Barthes 
se aproxima da idéia do mítico como engodo, o que é certamente problemático, ao menos 
ela serve como arma, ainda que desgastada, na luta contra um tipo de discurso político 
específico: o da propaganda erigida como mito romântico. Assim, neste caso, o mito seria 
além de trama ou enredo, uma determinada fala política configurada no século XX. 
 Mas além da trama narrativa quecompõe o eixo diacrônico deste trabalho, entre os 
anos de 1921 e 1945, chamo a atenção do leitor para a organização dos capítulos. O texto 
está dividido em duas partes, a primeira, uma tentativa de explorar a formação de um 
vocabulário, de repercussões tanto estéticas quanto políticas, em Mário e Menotti entre os 
anos de 1921 e 1932. Dois termos, com seus desdobramentos, formaram o eixo deste 
vocabulário: martírio (expresso sob formas diferentes por Mário e Menotti, tais como 
sacrifício e humilhação) e multidões. O último capítulo desta primeira parte tematiza a idéia 
de revolução, que congregou, na configuração dos eventos políticos, os dois vocábulos 
matrizes: martírio e multidões; sendo, por isso, um bom desfecho para a primeira parte 
desta história. 
 Na segunda parte, são investigados os desdobramentos administrativos do 
vocabulário esboçado na primeira parte, com destaque para o período do governo de 
Armando de Salles Oliveira. Seu título, “As diretrizes da administração”, é uma citação do 
manifesto verde-amarelo, de ressonâncias tanto na trajetória de Menotti quando na de 
Mário de Andrade – neste caso, talvez inadvertidamente... O último capítulo desta parte é 
uma exploração das releituras do passado que nossos dois protagonistas fizeram a partir do 
golpe de 1937, anos de consagração para Menotti e desenganos para Mário de Andrade. 
Com isso, a história institucional de ambos os autores durante o Estado Novo saiu do 
primeiro plano, e talvez para alguns isto torne este texto historiográfico mirrado, caprichoso 
e seco. Mas penso que, mais do que os discursos que Menotti fez a serviço do 
Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, e do que os projetos de Mário para uma 
enciclopédia brasileira, ou os trabalhos realizados no âmbito do Patrimônio Histórico, são 
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 16 
os textos rememorativos, os discursos sobre consagração e “modernismo” que revelam a 
rede de aventuras encruzilhadas entre “modernistas” e Estado Novo. Quanto aos 
autoritarismos, estes já estavam configurados no governo de Armando de Salles Oliveira. 
 Reitero que esta organização em duas partes diz respeito ao fundo quixotesco deste 
trabalho. Como autênticos Quixotes, nossos heróis aprenderam a ler o mundo em suas 
bibliotecas, forjando um vocabulário próprio, e saíram à praça pública no afã de corrigir as 
injustiças e desmazelos que liam na sociedade. Como autênticos Quixotes fizeram do 
vocabulário sua arma mais aguda na luta contra a história, emblematizada em seus moinhos 
de vento. Talvez possamos aventar que esta é a condição do intelectual no mundo moderno 
– o que poderia inclusive ser um objeto de investigação, apesar do ar suspeito de 
generalidade, mas está claro que é isto mesmo o que o mito épico renega. Devo dizer, por 
fim, que foi com outro livro que aprendi a ler o Dom Quixote (talvez o Cura tivesse razão, 
as bibliotecas estão grandes demais). Falo aqui de Políticas da escrita, de Jacques Ranciere, 
que estabelece o quixotesco como matriz de leitura paras os impasses políticos da escrita 
nisto que chamamos de modernidade. 
 A formação de um vocabulário, especialmente no caso de escritores, se dá como 
encontro ou confronto entre letra e história, ou, sendo mais preciso, entre ler e agir. O 
intelectual na política sempre pode ocupar a posição de “louco das letras”, de intérprete da 
história que aprende, com Dom Quixote, a transformar estalagens em castelos, e a agir 
como se a distância entre a leitura do mundo e a leitura dos livros fosse quase nula. No caso 
de Menotti e Mário este jogo ainda ganhou outra dramaticidade: romanticamente, eles 
escreviam como se suas vidas estivessem contidas em suas obras – como é o caso notável e 
gracioso de Amar, verbo intransitivo. Ou seja: em cartas, romances, poemas, nossos dois 
autores dramatizavam a si mesmos diante do mundo, apresentando-se como homens de 
letras, quixotescos heróis da escrita. Sempre lembrando que a configuração de um discurso 
já é ação política, para Menotti e Mário (como para Dom Quixote) ouso dizer que o 
vocabulário era a personagem. A forma com a qual tentei fazer frente a esta questão foi 
dividindo o livro em duas partes,15 mas talvez um leitor benevolente perceba uma relação 
dinâmica entre os eventos narrados e a letra, o vocabulário ou as estratégias de leitura, nesta 
história. 
 
15 Mas também, quem sabe?, porque o Dom Quixote tem dois livros. 
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 17 
 Neste passo eu daria por encerrado este prólogo. Mas, infelizmente, ainda resta o 
principal a ser dito. Refiro-me a dois curtos episódios, os quais, mais do que quaisquer 
outras observações que tenham sido feitas, antecipam os mais importantes sentidos deste 
texto rigorosamente historiográfico – constituem, na verdade, duas versões alegóricas do 
texto, tão esclarecedoras quanto qualquer conceitualização, ainda que por outras vias. 
 Em 1970 Menotti DelPicchia publicou o primeiro volume de suas memórias, A 
Longa Viagem, pela Editora Martins, cuja sede, por aquelas coincidências que normalmente 
nos fazem hesitar na distinção entre vida e literatura, encontrava-se no Edifício Mário de 
Andrade, na cidade de São Paulo. Numa das passagens das memórias, em que Menotti 
tratava de sua vida escolar, o autor indicou o momento em que descobriu a vocação de 
poeta. O trecho, descrevendo uma aula do professor Jácomo Stavale, é o seguinte: 
 
Abriu o livro. Antes nos olhou com olhos vagos como se nos sentisse ausentes. Leu, com emoção, 
“As Pombas” de Raimundo Correia. Um arrepio eletrizou meu corpo. Uma sensação inefável de 
beleza atingiu-me em cheio e augiu quando recitou o verso cromático e evocador de tantas manhãs 
que eu já conhecera: “raia sanguínea fresca a madrugada”. Fechou o livro. Recolheu a emoção que 
nele despertara aquele maravilhoso instante lírico. Ordenou: - Vamos à lição. Vocês não entendem 
nada disto... 
Caro Jácomo Stavale, no céu onde certamente estás, recebe esta mensagem daquele indócil aluno 
que te deu tantas dores de cabeça: eu estava integrado na tua emoção, e naquele justo instante, 
fizeste nascer em mim um poeta!16 
 
 
 Menotti evocava aqui, com todo o teor nitidamente romanceado das autobiografias, 
a matriz de seu destino. Era como se ele ainda menino, após o conhecimento do livro de 
poesias de Raimundo Correia, tivesse resolvido, desde então, reencenar aquele momento de 
integração total promovido pela poesia. Numa acepção romântica, a idéia era a de que a 
experiência estética promovia a comunhão, um encontro que, no fim das contas, estaria 
além das palavras. Comunhão que poderia se dar entre duas pessoas, o poeta e seus leitores 
ou ouvintes, mas também em toda a sociedade, quando a integração se desse entre o criador 
e o público, as massas ou as multidões hipnotizadas. Mas aqui já estou indo um pouco 
longe demais, adiantando-me aos passos que nosso herói ainda dará nesta história. Mas 
gostaria de citar, ainda, o poema completo de Raimundo Correia, embora provavelmente 
hoje em dia a inclusão de um soneto numa apresentação acadêmica pareça puro 
 
16 In: A Longa Viagem. 1ª Etapa. São Paulo: Livraria Martins/Conselho Estadual de Cultura, 1970, p. 56-57. 
 18 
pedantismo. Mas noto que ele talvez diga coisas que somente se tornarão claras no fim do 
estudo das trajetórias de Mário e Menotti. 
 
Vai-se a primeira pomba despertada... 
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas 
De pombas vão-se dos pombais, apenas 
Raia, sanguínea e fresca, a madrugada... 
 
E à tarde quando a rígida nortada, 
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, 
Ruflando as asas, sacudindo as penas, 
Voltam todas em bando e em revoada... 
 
Também dos corações onde abotoam, 
Os sonhos, um por um, céleres voam, 
Como voam as pombas dos pombais; 
 
No azul da adolescência as asas soltam, 
Fogem... Mas aospombais as pombas voltam, 
E eles aos corações não voltam mais...17 
 
 
 Por enquanto, o que interessa destacar nesta passagem de Menotti é o fato de seu 
destino ter sido, por ele mesmo, tratado a partir da representação da sobreposição entre 
literatura e vida. Como se sua trajetória pessoal estivesse inscrita nas letras de um livro 
preexistente. Ou, por outro lado, como se sua vida fosse a corporificação de uma verdade 
imersa nos livros. O mesmo, como se perceberá, pode-se dizer quanto ao episódio que 
escolhi para sinalizar ao meu leitor o percurso de Mário de Andrade. Em ambos os casos, 
trata-se da questão de como a estética literária funcionou em relação à experiência histórica 
e política, de como a figura do poeta pôde configurar estratégias de soberania, numa 
expressão romântica do anseio pela unificação entre espírito e letra, corpo e escrita, que me 
pareceu demarcar as trajetórias de Mário e Menotti. 
 Então, vejamos o outro episódio, que tem como protagonista Mário de Andrade. Em 
14 de setembro de 1940, o autor redigiu uma carta a Oneyda Alvarenga, sua ex-aluna do 
Conservatório Musical de São Paulo e colaboradora no Departamento de Cultura da cidade. 
Ali, Mário fez um resumo de suas principais idéias, indicando as leituras que teriam sido 
básicas para a sua formação. Na parte dedicada à filosofia, o autor disse o seguinte: 
 
17 Raimundo Correia, “As Pombas”, em: Manuel Bandeira (org.). Antologia dos poetas brasileiros da fase 
parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. 
 19 
 
Filósofos mesmo, li poucos. Os sistemas não conseguiam me interessar, principalmente os 
modernos que me fatigavam pavorosamente. Só Montaigne que aliás é mais moralista que 
exatamente filosófico. Li Platão quase todo, talvez todo, e bastante Aristóteles. Pra meu uso só 
quem me interessou foi Epicuro, de que sabia as doutrinas mas não li. E quando me caíram nas 
mãos os chineses, Confúcio me caceteou, Lao-Tsé me deslumbrou. E o deslumbramento continuou 
pelo Zenismo e principalmente as doutrinas dos Mestres do Chá. Epicuro, Lao-Tsé e os Mestres do 
Chá formam a atitude transcendente da minha vida. Mas creio até sensorialmente em Deus, e no 
recenceamento do dia 1, depois de pequena hesitação, como o papel não comportava um tratado de 
distinções e ressalvas, acabei escrevendo que era “católico romano”, entenda si puder.18 
 
 
 Desde a primeira vez em que li esta carta, chamou-me a atenção a referência aos 
Mestres do Chá, exatamente por não saber de quem se tratava, diante da força explícita para 
a formação da “atitude transcendente da vida” de Mário. Durante as pesquisas, descobri que 
a referência era um livro de Okakura Kakuso, chamado Le livre du thé. De fato, encontrei a 
referida obra na biblioteca do autor, resguardada no Instituto de Estudos Brasileiros, da 
USP. A edição, sem data, está bastante marcada por traços a lápis feitos por Mário quando 
de sua leitura, provavelmente no início da década de 1920. Na contracapa, vários números 
indicam as páginas que mais chamaram a atenção do autor. Há também manuscrito o nome 
de Graça Aranha, com indicações de números de páginas ao lado. E, por fim, também 
escrito a lápis: “morte de Rikiu – p. 134”. 
 No referido livro, Mário destacou, sublinhando, o trecho da página 12 em que 
Kakuso explicava que a cerimônia do chá implicava uma concepção integral do homem e 
da natureza, abarcando uma estética, uma moral, uma higiene. A cerimônia seria pautada 
pela procura da simplicidade, da não-ostentação, da apreciação direta de sabores e odores, 
num encontro ao mesmo tempo sensível e espiritual com a natureza. A isso, Kakuso 
associava, constantemente, uma contraposição ao Ocidente, supostamente dominado pela 
técnica e pelas máquinas, em síntese, pela alienação do homem com relação à sua natureza. 
 Mário destacou ainda a passagem em que Kakuso explicava que os Mestres do Chá 
procuraram transformar a arte num modelo de perfeição para a vida, uma vez que a 
cerimônia indicava a integração mais perfeita entre a prática e a vida contemplativa. Assim, 
de acordo com Kakuso, a mestria equivaleria à união entre vida e estética, numa 
transformação minuciosa do cotidiano numa obra de arte. Nesta forma altamente ritualizada 
 
18 Em: Mário de Andrade – Oneyda Alvarenga. Cartas. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 271-272. 
 20 
a apreciação do chá teria sido definida, no Japão, por Sen No Rikiu (1521-1591), como 
parte fundamental da formação espiritual zen. O fundador da arte do chá teria sido, também 
segundo Kakuso, um dos favoritos do tirano Toyotomi Hideyoshi, inclusive o 
acompanhando nas campanhas militares, durante as quais Rikiu promovia cerimônias do 
chá, como se a violência não manchasse a utopia estético-política. 
 E aqui entra a parte destacada por Mário de Andrade na contracapa do livro, a morte 
de Rikiu. O Mestre do Chá teria sido vítima de um complô, que o indispôs contra 
Hideyoshi. O Imperador, convencido de que seu conselheiro estético-espiritual conspirava 
contra sua autoridade, condenou Rikiu à morte. Numa última homenagem, porém, o Mestre 
do Chá teve que morrer como um samurai, ou seja, suicidando-se. Ainda de acordo com a 
narrativa de Kakuso, Rikiu aceitou a condenação, promoveu uma última cerimônia com 
seus discípulos mais queridos e no fim desta vestiu um manto branco, e então se sacrificou. 
No fim da página em que se narra a morte de Rikiu, Mário escreveu a lápis: “Sócrates!” 
Uma clara referência a outro sábio que teria expresso sua virtude ao se sacrificar pela 
integridade da pólis. 
 Algumas páginas antes, porém, Kakuso fez uma advertência, à qual não se sabe se 
também Mário prestou atenção; na página 131 o autor dizia que déspotas não são boa 
companhia para poetas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 21 
Parte 1 
 
Limpando as armas. 
Uma exploração no vocabulário estético-político. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Delírios infecundos. Propositadas quebras da verdade tradicional 
só pra enraivecer adversários porvindouros; 
tristeza desesperada, iconoclasta, em que víamos 
(vi) na língua indefesa, na pátria indiferente, 
inimigos que eram apenas moinhos de vento. 
 
(Mário de Andrade, em: “Convalescença”) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1.1 O homem, a morte e o martírio 
 
 
 Em 1970, em suas memórias, Menotti DelPicchia deu um espaço significativo à 
Semana de Arte Moderna, realizada em 1922. Após longos de anos de instauração do 
“modernismo” como momento privilegiado na formação da literatura brasileira moderna, 
aquele evento evidentemente estabeleceria um foco organizador para as memórias de um 
escritor que participara ativamente da organização da Semana. Mesmo que nos idos de 
1922 nem ele nem seus outros companheiros de empreitada identificavam-se como 
modernistas, mas sim futuristas e outros codinomes. Mas além de repor a memória de 1922, 
o texto de Menotti tem outra faceta, esta sim surpreendente. Trata-se do fato de ali o autor 
 22 
apresentar Mário de Andrade como um Cristo ensanguentado, atacado por uma multidão 
enfurecida no Teatro Municipal de São Paulo. Segundo Menotti, a reação da platéia 
lembrava os gritos da “patuléia judaica” exigindo a crucificação de Cristo. Assim, a 
descrição feita por Menotti tem fortes conotações sacralizadoras, sendo o evento 
representado como um martírio: 
 
Como no Horto o Filho do Senhor, Mário de Andrade pela primeira vez fraquejou. Adivinhei nos 
seus olhos a súplica que o Cordeiro dirigiu ao Pai celeste na hora suprema de sua agonia: “Afasta de 
mim esse cálice...” Não havia ceder. Compreendi a angústia do mártir – pois Mário tornou-se o 
Tiradentes da nossa Inconfidência – e vendo que ele recuava ao impacto estertóreo da platéia, 
segurei-o pelo paletó e disse: - Mário! Que é isso? 
O grande artista – glória da geração– reagiu já sereno e heróico.19 
 
 Nas memórias de Menotti, esse foi o momento “iluminado”, de renovação espiritual 
da literatura brasileira. Porém, o que talvez seja ainda mais surpreendente, com tudo o que 
de reconfiguração narrativa há no ato de rememorar, o tom do texto de Menotti é o mesmo 
de textos seus e de Mário de Andrade, quando da estréia dos dois autores no início dos anos 
1920. Por isso, se pressupor que estes autores, nos anos antecedentes a 1922, tinham um 
dom de antevisão do que estava por vir, com a canonização de alguns de seus textos sob a 
égide do “modernismo”, constitui evidente anacronismo (talvez característico quando se 
trata de marcos como o mito modernista), por outro lado, há pelo menos um elemento que, 
já naqueles anos, indicava um dos operadores retóricos desta mesma canonização. Neste 
sentido, o propósito deste texto é delinear o tema do martírio e da morte nos textos de 
estréia de Mário e Menotti. 
 Deve-se pensar, ainda, que além de lançar novas possibilidades para a interpretação 
da construção do cânone literário, esta linha de indagação se relaciona ao estudo do sentido 
político das trajetórias dos autores. Isto porque as diversas encenações da morte 
estabeleceram, e ainda estabelecem, vínculos afetivos, intelectuais e políticos, configurando 
inclusive modos de legitimação para diversos exercícios de soberania. Isto porque o espaço 
conquistado pelo mártir é o da sacralidade, e a voz que se instaura a partir da sacralidade, 
como o bem demonstrou Alcir Lenharo,20 propõe-se como emanação de um discurso único 
e inquestionável. Mas não convém que se adiantem muito os argumentos que serão 
 
19 Em: A longa viagem. Da revolução modernista à revolução de 30. op. cit, p. 138. 
20 Em: A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986. 
 23 
desenvolvidos neste capítulo, melhor é acompanhar com todos os seus desdobramentos a 
elaboração de uma estética da morte no futurismo paulista. 
 No mesmo ano da Semana de Arte Moderna, 1922, Menotti lançava a primeira 
edição de O Homem e a Morte. Naquele momento o livro foi apresentado por Mário de 
Andrade como um dos pilares da reação literária promovida por Klaxon e seus 
colaboradores. Juntamente com Os Condenados de Oswald de Andrade e Epigramas 
irônicos e sentimentais de Ronald de Carvalho, o texto de Menotti perfazia, na perspectiva 
de Mário, a proclamação da independência da literatura brasileira.21 De autenticamente 
nacional o texto teria as marcas do lirismo desordenado, da força predominante do 
subconsciente e de uma eloqüência mística. Por isso, o estilo de Menotti DelPicchia seria 
marcadamente tropical. Assim, os possíveis defeitos do texto, decorrentes da tendência para 
os excessos de linguagem, eram produtos “intrinsecamente raciais”, nas palavras de Mário. 
Porém o livro, além de arrebatar o leitor mediante a exuberância lírica, teria como 
característica o fato de representar uma idéia, uma concepção sobre o mundo e a história.. 
Por fim, a resenha situou O Homem e a Morte entre as obras de arte voltadas à vida, cujos 
autores teriam, como destino, tornarem-se guias de multidões – e, como exemplos que 
figuravam como possíveis similares de Menotti DelPicchia, Mário listou Maurice Barrès, 
D’Annunzio e Tolstoi. 
 O Homem e a Morte é uma narrativa em primeira pessoa, onde um homem 
atormentado narra sua trajetória de desespero. Característica antecipada pelo autor, quando 
denominou seu texto de “tragédia cerebral”, apontando para o viés subjetivista do 
protagonista. A personagem, no começo da história, diz que sua tragédia foi fruto do 
destino, entendido como uma espécie de força divina que o guiara a uma vida eivada de 
exaltações líricas. Desde o início, o tom do texto é confessional e marcadamente religioso, 
sendo o destino nomeado como divino, na apresentação de um martírio: 
 
Mistério... Sinto apenas uma vontade humana de chorar, uma vontade absoluta de chorar... Meus 
olhos, porém, são áridos como o da figueira esterilizada pela maldição, quando não ofertou um só 
fruto à fome d’Aquele que dera sua carne e seu sangue para repasto dos famintos, na ceia da 
redenção e do sacrifício.22 
 
21 Resenha publicada em: Klaxon,vols 8 e 9, dez/1922, jan/1923. Mas já desde o primeiro número, Klaxon 
vinha publicando trechos da obra de Menotti. 
22 O Homem e a Morte, in: Menotti DelPicchia. Novelas. Obras Completas Vol. III. São Paulo: A Noite 
Editora, 1946, p. 177. 
 24 
 
 Porém, se a trajetória da personagem foi por ele mesmo divinizada, note-se que, 
desde o início, ele se colocou no extremo oposto dos martirizados para a sacralização. Sua 
tragédia era cerebral, seu destino figurado como o da figueira incendiada pela ira de Deus. 
A aridez de sua vida, delineada pelo tédio, pelos fracassos seguidos em todas as 
empreitadas e pela sensação de que um mundo vazio de sentido o tomara. A personagem 
ainda afirmaria que sempre odiara os homens, nunca se sentindo participante da história. 
Era, em suas próprias palavras, um “nômade sombrio”, um ser dominado pela egolatria, 
num culto a si mesmo derivado de desesperos raciais herdados. Por isso, sob sua ótica, sua 
estética era iconoclasta. Portanto, na obra de Menotti, trata-se de um narrador voltado para 
dramas pessoais, devidos à sensação de irrealidade e isolamento. E, como o texto deixa 
claro, a rebeldia estética da personagem tinha como fundamento sua crise, traçada em 
termos morais. 
 Sob importantes aspectos há uma grande semelhança entre o homem de Menotti 
DelPicchia e a caracterização do ímpeto fáustico feita por Oswald Spengler, na sua 
morfologia da decadência orgânica do Ocidente. O livro, um dos maiores sucessos 
editoriais do início do século XX, traçava a história de uma formação cultural cuja morte 
tinha sido antecipada pela transformação de uma vitalidade coletiva num ajuntamento de 
intelectos sem alma.23 A cultura ocidental, que teria sido uma força vital criadora, 
transformara-se, segundo Spengler, numa civilização senil, abstrata e mecanicista. Para o 
autor a característica dominante do Ocidente, enquanto ainda era cultura viva, teria sido a 
metafísica do infinito, personificada pelos anelos conquistadores e expansionistas de 
Fausto, o mito que tinha sido reconfigurado literariamente pela obra de Goethe. 
 O fáustico teria, como configuração estética, a predominância do horizonte e dos 
espaços amplos, além da recorrência das cores azul e verde, que seriam, de acordo com 
Spengler, infinitesimais. Do ponto de vista psicológico, a alma fáustica seria basicamente 
dominada pela vontade, em detrimento da razão. Sendo a vontade responsável pela 
delimitação do caráter como forma de inserção do homem ocidental no mundo, dada sua 
predisposição em imprimir a personalidade sobre as coisas. Porém, de acordo com 
Spengler, o cansaço vital que atingira o Ocidente a partir do século XIX teria dado origem a 
 
23 A Decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p. 47. 
 25 
expressões de uma vontade dirigida para o auto-aniquilamento, cujas expressões máximas 
seriam o niilismo e a perda do sentido religioso da existência. O autor notava, ainda, na 
vigência da estética expressionista, na invenção do cinema e no apelo popular das lutas de 
boxe, símbolos irretorquíveis de que o Ocidente padecia, então, de uma “propensão 
metafísica para a morte”.24 Neste viés, o homem de Menotti era a representação literária da 
decadência de uma civilização como um todo, uma vez que seu cansaço pessoal resultava 
da total ausência de referências concretas para o estabelecimento de um sentido para a vida. 
 Na história de Menotti, o narrador teria tido em toda sua vida um único amigo, 
Críton, arquiteto campineiro que formara, com ele, o Incompleto Errante. A egolatria teria 
conduzidoambos a uma procura desesperada por experimentações psíquicas e sensíveis, 
numa ginástica cotidiana da sensibilidade e num cultivo excessivo das paixões. O desejo da 
personagem de experimentar a vida em todas suas possibilidades, de todas as formas, 
repercutia o pacto de Fausto com Mefistófeles. Desta forma, o drama de O Homem e a 
Morte pode ser lido como a configuração de um declínio simultaneamente histórico e 
político, encarnados numa personagem. 
 A situação fáustica de busca incansável teria perdurado até o encontro do homem 
com Kundry, uma mulher misteriosa, de porte aristocrático, que se tornaria seu único e 
primeiro amor. Os dois, tomados por um paixão intensa, passariam a acreditar que o 
mundo fora feito para eles. 
 
Uma noite, interrompemos bruscamente uma carícia para irmos ver a aurora no mar. Os faróis do 
auto abriam dois buracos de luz na caligem da bruma. O caminho era um tatear de cego, ao acaso, 
entre abismos, na noite... A vida do chofer estava nos seus olhos de fogo e nos seus pulsos de atleta. 
– Depressa! – Depressa! Eu ia mudo e fremente. O vulto de Kundry era um halo de luar fluindo no 
fundo das almofadas. Nossa ternura parecia jorrar do caos, do mistério recuado de todas as forças 
obscuras e, na nódoa de pavor, vivia irrealmente, fora de nós, como uma coisa à parte, suspensa 
entre nossas duas bocas, entre nossos braços inúteis... E uma volúpia parada, imóvel, nos envolvia 
numa beatitude de êxtases, feita de pensamentos e silêncios graves. De repente, numa curva brusca, 
à beira de um precipício situado diante de nós, Kundry gritou: - Em frente! Em frente, chofer! O 
homem deu uma guinada no volante. A máquina, de um pincho, caminhou para o abismo. Um 
choque atirou-me contra a portinhola do auto. Kundry ria... ria... O carro dependurava-se sobre o 
precipício, mal sustido por um cabo de aço. O chofer saltara lívido de susto: - Que foi? Que foi? Por 
que me mandaram seguir em frente? Kundry ria... ria... Depois, comovida, suspirou ao meu ouvido: 
- Foi Ela que nos acenou, lá embaixo, com uma volúpia mais forte... Eu também desejaria que a 
máquina tivesse rolado no precipício.25 
 
24 Idem, p. 282. 
25 O Homem e a Morte, op. cit., p. 196-197. 
 26 
 
 Nesta passagem, a morte faz seu primeiro aceno explícito na narrativa. De acordo 
com o protagonista do texto, os apelos mortais nada mais seriam senão o fruto do cultivo 
excessivo do intelecto, associado às heranças raciais da volúpia bárbara originada nos 
indígenas, fonte da dimensão aventureira do bandeirismo, da nostalgia lírica do exilado 
português e do banzo africano. Tais substratos raciais estariam retornando com ímpeto 
crescente, dada a hipertrofia cerebral das personagens, que viveriam, desta forma, de modo 
ainda mais intenso a crise do Ocidente. O cultivo da razão teria conduzido, paradoxalmente, 
a uma vontade em delírio, cujo limite para a saciedade era o domínio e a devastação de todo 
universo, num excesso de vida que se consumaria no encontro com a morte. 
 Enquanto o Homem e Kundry se deleitavam no exercício meticuloso das paixões, 
Críton, o arquiteto campineiro, construía para si uma Esfinge. Terminado o projeto, ele 
seria denominado como o “Templo dos Suicidas”, e ali mesmo Críton se mataria. Neste 
momento, ao invés de lamentar a perda de seu único amigo, o narrador se rejubilaria, ao 
sentir próximo o desfecho para o mistério angustiante da vida. A morte de Críton, surgindo 
como uma iluminação súbita, o levaria ao empreendimento de uma primeira tentativa 
suicida: a absorção pelo meio social dos freqüentadores da Hípica. Ali, o Homem, nas 
palavras da personagem, levaria uma vida de sonâmbulo. Assim, o autor apontava uma 
associação entre a morte e a sociedade contemporânea. Os freqüentadores de salões, bailes 
e atrações esportivas nada mais seriam do que cadáveres adiados. Porém, o protagonista 
não conseguiria deixar de imaginar que o mundo era mero pano de fundo para sua tragédia 
pessoal, não conseguindo, assim, submergir na vida morta de seus coetâneos. 
 Por outro lado, a força de atração exercida por Kundry revelara-se irresistível. Ela 
encarnava todas as possibilidades da vida, todas as paixões, desejos e mistérios. Contudo, 
num momento de tédio a dois, Kundry faria ao homem uma pergunta terrível: e se ela nada 
fosse além de uma invenção, uma ilusão, efeito de algum tipo de encantamento? Sem 
conseguir responder, em estado de tensão extrema, o narrador teria subitamente acordado 
num hospício, de onde sairia à procura de sua amada. Porém, noutro delírio, um fauno o 
advertiria que todo o mundo não passava de um artifício montado por sua mente. A partir 
disto, o narrador concluiria que toda a vida era uma seguida invenção de máscaras, de 
ilusões, cujo único termo seria a morte, ou o reencontro da alma consigo mesma. Mais 
ainda, por fim todo o mistério de Kundry estaria desfeito: ela nada mais era do que a morte. 
 27 
 Significativamente, a personagem de Menotti não tinha nome próprio, podendo ser 
confundida com qualquer pessoa. Talvez por isso, depois de ler o texto do companheiro de 
Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade afirmou que o fauno que anunciara a 
vacuidade do mundo estava longe de ser uma alucinação exclusiva do autor. Ao contrário: 
 
Esse filho da inquietação contemporânea tem existência real. Anda a nosso lado, com suas formas 
aduncas, verde-pálidas. Aparece em todos os prazeres, glórias, trabalhos, dores, exultações. E 
Menotti deu-lhe a imortalidade em algumas das mais inesquecíveis páginas da literatura nacional.26 
 
 De acordo com a leitura proposta por Mário, portanto, o texto de Menotti tinha uma 
determinada conotação realista, no sentido de que seu tema correspondia à verdade do 
mundo contemporâneo. Por outro lado, paradoxalmente, esta obra, na qual a personagem 
central concluía que a única metafísica verdadeira era respaldada pelo desejo da morte, e 
onde o amor e a morte confluíam como experiências complementares, foi entendida por 
Mário como exemplo de arte voltada para a vida. Se a personagem construída por Menotti 
levava os anseios estéticos da plenitude à auto-aniquilação, a obra, como um todo, foi 
interpretada como favorável à vida. Então, como se perceber a possível complementaridade 
entre o desejo de morte expressa na trama literária de Menotti e o interesse pela vida, 
autoproclamado em diversos momentos pelos responsáveis pela revista Klaxon, e 
identificado por Mário no mesmo Menotti DelPicchia, futuro “guia das multidões”? 
 Em primeiro lugar, há um inegável distanciamento entre a proposta da personagem 
criada por Menotti e a imagem inventada pelo próprio autor para si mesmo e seus 
companheiros de Semana de Arte Moderna, no início da década de 1920. Que o homem de 
O Homem e a Morte não era uma representação autobiográfica do autor, pode-se 
depreender do próprio texto. Quando o narrador se representou como a figueira, símbolo da 
infidelidade e desobediência a Deus, não se pode deixar de perceber uma intromissão sutil 
do autor, que dava a entender que o niilismo exposto no texto era um problema a ser 
enfrentado, mais do que um modelo a ser seguido. Desta forma, Menotti deixava entrever 
que a morte de uma civilização estava em consonância com o nascimento de algo novo, 
uma vez que a figueira só é compreensível em oposição a Cristo. E a percepção do que 
seria esta novidade reside na análise de como Menotti DelPicchia representava sua própria 
 
26 Resenha publicada por Mário em Klaxon, op. cit., p. 29. 
 28 
morte – bem como a de seus companheiros de empreitada, ainda no início da década de 
1920. 
 No dia 10 de janeiro de 1921, Menotti foi homenageado com um almoço no 
Trianon, onde recebeu sua máscara esculpida em bronze por Vitor Brecheret.27 O discurso 
por ele proferido se iniciava com uma estratégia deconstrução de um orador coletivo, ou 
seja, Menotti disse não estar falando tão somente em seu nome, mas, pelo contrário, como 
um ser “desindividualizado”, repercutindo, “anonimamente”, uma causa maior. Causa no 
mesmo passo associada ao martírio, uma vez que a “rua da Amargura das letras” 
configurava um “áspero e belo calvário”. Por outro lado o autor, falando na primeira pessoa 
do plural, opôs o coletivo dos presentes à sua homenagem à maioria dos homens de seu 
tempo, supostamente tomados pelo utilitarismo e incapazes de perceber as emanações do 
belo, qualificados, ainda, como sacrílegos. Citando o Evangelho, Menotti DelPicchia falou 
da arte como missão sagrada, destinada a um pequeno número de praticantes fiéis. Estes 
estariam dispostos a passar por um calvário iniciático, uma série de provas de dores e 
sofrimentos, dentre as quais o autor citava a imagem da coroa de espinhos, no sentido de 
alcançarem a mestria estética, a visão criadora do artista. Falando de seus companheiros de 
geração, Menotti dizia: 
 
O pensamento represado irrompe em escanchoos, por mil brechas. E vós – ó meus irmãos de sonho 
– que tínheis ontem a função pálida dos troveiros ironizados, hoje, messianicamente, encontrais 
vosso destino no Apostolado do Verbo novo, a afirmar, em páginas pesadas de eternidade, e 
esplendor e a glória do pensamento brasileiro!28 
 
 
 O coletivo construído retoricamente no início do discurso de Menotti tinha, como 
marca homogeneizadora, a disposição martirizante, descrita como atitude por excelência 
dos criadores da arte e dos seguidores de ideais. Porém o isolamento e a auto-imolação dos 
artistas, embora trazendo a incompreensão social, foi também descrita como missão 
piedosa, minoradora das angústias, do cansaço. Neste ponto, a sociedade parecia dividida 
em dois grupos funcionais: de um lado, os que trabalham, de outro, os que cantam para 
tornar mais leve o suplício dos primeiros. Sem a poesia, os homens estariam condenados à 
 
27 A notícia saiu no Correio Paulistano, “O Almoço de ontem no Trianon”, assinada pelo próprio autor. Há 
uma reprodução do texto em: Yoshie Sakiyama Barreirinhas. Menotti DelPicchia. O Gedeão do Modernismo. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 185-191. 
28 Em: Yoshie Sakiyama Barreirinhas, idem, p. 191. 
 29 
falta de esperança, e Deus, no mesmo momento em que condenara Adão ao trabalho, dera-
lhe o dom do canto. Daí a conclusão esboçada por Menotti, para ele e seus companheiros: 
“é santa a nossa missão na terra”. 
 Prosseguindo o discurso, Menotti, num tom explicitamente bíblico, calcado no tom 
do Sermão da Montanha, afirmaria que, até então, a luta dos criadores no Brasil fora 
infrutífera, “natimorta”. Isto devido ao fato da existência de um obstáculo quase 
intransponível, a existência de uma “legião de analfabetos”. Recorrendo à figura do Jeca 
Tatu, Menotti traçava uma barreira de ignorância frente aos livros publicados no país, o que 
tornava as bibliotecas verdadeiras necrópoles. Daí que: “Escrevíeis para um povo que não 
sabia ler. Clamáveis no deserto.” O que teria mudado, devido a um surpreendente surto de 
progresso em São Paulo, que se tornara uma metrópole moderna, na qual se unia a 
parafernália tecnológica ao entrechoque de raças, da qual surgiria “o tipo forte e definitivo 
da pátria.” Tais mudanças teriam trazido o fim do lirismo romântico, dando ensejo a uma 
nova estética, forjada na violência e na dramaticidade da vida contemporânea. 
 Já no dia 22 de outubro do mesmo ano, Menotti noticiou uma viagem ao Rio feita 
por Oswald, Mário de Andrade e Armando Panplona, como uma “bandeira futurista”.29 No 
texto, Mário foi nomeado como o “papa do novo Credo”, e Oswald, o “bispo”. No texto, o 
“futurismo paulista” foi apresentado como cisma religioso, na apresentação de novos 
deuses para a literatura brasileira. A imagem, repetida por diversas vezes nas crônicas de 
Menotti, já aparecera em maio de 1921.30 Porém, na crônica de então os novos pregadores 
da religião estética, identificada pelo autor como futurista, eram confrontados a uma 
geração de decrépitos continuadores de uma arte morta. De acordo com o autor, porém, a 
própria continuidade da vida, em esplendor e glória, exigia a recorrência de sacrifícios 
renovadores, além da necessidade de que os novos afiassem novamente as armas criadas 
pelas gerações passadas (no caso, a poesia). Assim, soma-se às imagens reunidas no 
discurso do Trianon, a configuração de um grupo específico, responsável pela revitalização 
da arte no Brasil. Este grupo, nomeado como o dos futuristas de São Paulo, era capitaneado 
por Mário e Oswald de Andrade, além, obviamente, do próprio Menotti. 
 
29 Ibidem, “A bandeira futurista”, p. 266-268. 
30 Ibidem, “Os Velhos”, p. 221-223. 
anaca
Realce
 30 
 Por outro lado, a oposição que aquele discurso estabelecera entre artistas-mártires e 
sociedade, desdobrava-se numa segunda clivagem, entre os primeiros e uma geração 
cadavérica de poetas e criadores envelhecidos. A imagem permaneceu central noutro texto, 
no qual Menotti deu retratos sucintos de alguns dos representantes da inovação do 
pensamento brasileiro. Ali, Plínio Salgado foi definido como “o parnasianismo agonizante 
confabulando com a morte para a ressurreição mística de uma individualidade nova”.31 
Neste caso, o anseio pela morte foi diretamente associado à estética combatida pelos 
participantes da Semana de Arte Moderna, e considerada como faceta característica da 
civilização que morria com o fim do século XIX, nos textos programáticos de Klaxon. Ou 
seja: a geração de criadores natimortos tinha um rótulo determinado, o de parnasianos. 
 Ainda no mesmo tema, no dia 3 de novembro de 1921, Menotti apresentou o poema 
que representaria a adesão de Plínio ao “novo credo”, que corresponderia a um simultâneo 
abandono do parnasianismo, em versos que indicariam a proximidade de sua renovação 
estética.32 Intitulado “O canto epitalâmico da morte”, o texto do novo futurista descrevia os 
chamados da morte, numa voz silenciosa, ecoando numa noite sem estrelas. No poema, a 
morte aparecia como amante formada de trevas, de dimensão cósmica, uma vez que, 
perfazendo a totalidade do universo, seria destino comum ao poeta e ao sol. Daí que, neste 
conjunto de artigos de Menotti, Plínio Salgado parecesse ser o exemplo mais acabado de 
uma poética cuja última resultante era a atração pelo nada. Mas, notava Menotti, da morte 
simbólica do poeta parnasiano surgia um novo perfil de poeta e profeta. Assim, 
complementando a imagem da morte necessária de uma civilização exaurida, o martírio 
simbólico do artista elogiado por Menotti instaurava uma retórica sacrificial como a matriz 
estética da nova era. Se por um lado a imagem da morte correspondia, nestes textos, ao 
esgotamento fisiológico esboçado por Spengler na morfologia do Ocidente (num registro 
explicitamente organicista), por outro a outra morte dos poetas que renasciam como 
futuristas se dava no âmbito da sacralidade, na encenação de uma nova Via Crucis. 
 
31 Cf. Ibidem, “Maravilhas (Futurismo Sensacional)”, p. 303-305. O texto, publicado em 16 de novembro de 
1921, trazia retratos literários de Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida, Oswald de 
Andrade, Valdomiro Silveira, Martins Fontes, dentre outros (figuras que posteriormente seriam tanto 
consideradas como “modernistas” quanto “passadistas”). Note-se, ainda, que a descrição de Plínio Salgado 
parece aproximá-lo da personagem principal de O Homem e a Morte. 
32 Ibidem, “Mais um futurista!”, p. 282-286. 
 31 
 Os mesmos dispositivos retóricos vinham sendo intensamente explorados por 
setores de vanguarda artística na Itália, o que torna a escolha por Menotti do título de 
“futurismo” não meramente casual. Diversos artistas,identificados com o futurismo e 
outros setores das artes italianas, associavam a renovação estética à regeneração cultural e 
política de seu país. Por exemplo, Ardengo Soffici, que em 1921 declarara sua adesão ao 
fascismo, defendia a tese de que a obra de arte era a força propulsora da vida política, sendo 
capaz de integrar a cultura, a política e a religião, que teriam se dissociado no mundo 
moderno. O artista italiano considerava o confronto com a morte nas trincheiras da guerra 
como a experiência emblemática de união entre a arte e a vida, retomando a idéia da 
necessidade de que uma catástrofe, ou um sacrifício coletivo, pusesse fim à decadência que 
supostamente tomara conta da Itália.33 
 Além disso, coincidência ou não, pode-se notar uma semelhança evidente entre a 
passagem de O Homem e a Morte na qual o narrador e Kundry saem para um passeio 
automobilístico suicida e o manifesto fundador do futurismo, publicado por Marinetti em 
1909.34 O manifesto futurista era precedido por uma curta narrativa, que descrevia o 
momento da revelação de uma nova vida para Marinetti e seus companheiros. Nela, 
apresentava-se um grupo de poetas isolados em seu orgulho estético, os quais teriam sido 
provocados e despertos por sons dos automóveis. Então, cada um deles tomaria a direção de 
uma daquelas máquinas, saindo em disparada pelas ruas da cidade, caçando, “como novos 
leões, a Morte na pelagem negra”. Num momento de clímax, Marinetti teria lançado seu 
carro numa valeta, e ali, no meio do lodo, depois de enfrentar a morte, teria tido como uma 
espécie de revelação a eclosão das palavras de ordem do futurismo. Estas abarcavam 
termos como audácia, amor ao perigo, violência e virilidade, no intuito de se livrar a Itália 
de “sua gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.” 
 O termo-chave para a compreensão da estrutura narrativa do manifesto futurista de 
1909 é, portanto, “redenção”. Tema que se baseia num modelo temporal básico: a projeção 
de um estado inicial de felicidade e plenitude, tornado passado por algum ato instaurador de 
um presente deficiente, e a promessa de um ato capaz de reencetar a felicidade perdida, 
 
33 Sobre o assunto: Emilio Gentile, “The myth of national regeneration in Italy: from modernist avant-garde to 
fascism” e Walter Adamson, “Ardengo Soffici and the religion of art”, in: Mathew Affron and Mark Antliff. 
Fascist visions. Art and ideology in France and Italy. Princeton: Princeton University Press, 1997. 
34 Manifesto reproduzido em: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 
Petrópolis: Vozes, 1973, p. 89-94. 
anaca
Realce
 32 
sendo este ato comumente entendido como oferta sacrificial à divindade. Oferta que 
implica também a projeção de uma aura transcendental sobre a personagem sacrificada. No 
texto de Marinetti, a Itália aparecia assolada por uma elite em decomposição – cujo 
emblema seria o passadismo, a atração mórbida pelas coisas mortas e decadentes. Neste 
sentido, a descida do poeta ao lodo, após a morte simbólica do acidente de automóvel, 
implicava sua consagração, sua transformação em agente capaz de pronunciar as palavras 
redentoras, de trazer as boas novas. 
 A recorrência da imagem automobilística em O Homem e a Morte de Menotti 
DelPicchia, neste aspecto, é mais do que repetição de uma espécie de lugar-comum 
literário, uma vez que implica a reduplicação do modelo de temporalidade das narrativas 
redentoras – que trazem em seu centro a encenação de um confronto com a morte. Neste 
sentido, dentre os textos em que, no início da década de 1920, Menotti celebrava a morte 
redentora, o momento mais notável foi a apresentação de Paulicéia Desvairada, livro de 
poesias lançado por Mário de Andrade em 1922.35 Ali, Mário foi equiparado a Jesus Cristo, 
nomeado como o “Crucificado do Livro Fechado” e o “Cristo da Ânsia e do Desvario”.36 
Paulicéia Desvairada seria a súmula emocional da vida na grande cidade moderna de São 
Paulo e, por isso mesmo, seu autor se tornaria alvo do escárnio de “escribas e fariseus”. De 
acordo com Menotti, Mário estava se preparando para o sacrifício, para a redenção não só 
de si mesmo, mas de sua terra como um todo, pois suas poesias tinham sido escritas com o 
próprio sangue. 
 Mesmo que fazendo parte da retórica desenvolvida pelo próprio autor, a leitura que 
Menotti fez de Paulicéia Desvairada apresenta ressonâncias de temas presentes em Mário 
de Andrade. Este, tinha como desfecho um longo poema, “As Enfibraturas do Ipiranga”, 
intitulado pelo autor como um “oratório profano”. Ali, várias vozes poéticas se 
digladiavam, representando, cada uma, um dos tipos estéticos e políticos presentes na 
configuração dos conflitos do Brasil de então, nos marcos do que então se considerava a 
 
35 Em: Yoshie Sakaiyama Barreirinhas, op. cit, “Paulicéia Desvairada!”, p. 357-358. 
36 Observe-se que, antes da publicação de seu livro, devido a uma polêmica originada quando Oswald 
divulgara versos de Mário de Andrade, chamando-o de “meu poeta futurista”, o próprio Mário falava de si 
como um “crucificado nas próprias interrogações”, não fazendo parte, desta forma, de escola alguma. No 
mesmo artigo, Mário dizia não ser um poeta inspirado por forças divinas, recusando a si o papel de gênio. Cf. 
“Futurista?!”, artigo publicado no Jornal do Comércio, a 6 de junho de 1921, e reproduzido em: Mário da 
Silva Brito. História do modernismo brasileiro. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira/MEC, 1971, p. 234-238. 
 33 
redenção da literatura brasileira. Marcavam presença no poema “os Orientalismos 
Convencionais”, que seriam “escritores e demais artífices elogiáveis”; “as Senectudes 
Tremulinas”, ou “milionários e burgueses”; “os Sandapilários Indiferentes”, ou 
“operariado, gente pobre”; “as Juvenilidades Auriverdes”, ou, de acordo com o autor, 
“nós”; e “Minha Loucura”.37 
As diversas vozes do poema se opunham às Juvenilidades Auriverdes, instauradores 
de força vital e criativa para o Brasil: os escritores devido ao apego ao formalismo e às 
convenções literárias mortas, a burguesia devido à futilidade e superficialidade das normas 
de reconhecimento social, e o operariado, representado como temeroso e fiel seguidor das 
palavras de escritores e burgueses. Todos, porém, espantados com a “Verdade” revelada 
pelas Juvenilidades, acabariam fugindo, escondendo-se. Ao fim do poema, Minha Loucura 
entoava um canto de resignação e esperança, cujas imagens centrais eram marcadas pelo 
tom do martírio, com a concomitante promessa de uma nova vida: 
 
Chorai! Chorai! Depois dormi! 
Venham os descansos veludosos 
Vestir os vossos membros... Descansai! 
Ponde os lábios na terra! Ponde os olhos na terra! 
Vossos beijos finais, vossas lágrimas primeiras 
Para a branca fecundação! 
Espalhai vossas almas sobre o verde! 
Guardai nos mantos de sombra dos manacás 
Os vossos vagalumes interiores! 
Inda serão um Sol nos ouros do amanhã! 
Chorai! Depois dormi! 
A mansa noite com seus dedos estelares 
Fechará nossas pálpebras... 
As vésperas do azul... 
As milhores vozes para vosso adormentar! 
Mas o Cruzeiro do Sul e a saudade dos martírios... 
Ondular do vai-vem! Embalar do vai-vem! 
Para a restauração o vinho dos noturnos!... 
Mas em vinte anos se abrirão as searas! 
Virão os setembros das florestas virginais! 
Virão os dezembros do Sol pojando os grânulos! 
Virão os fevereiros do café-cereja! 
Virão os marços das maturações! 
 
Virão os abris dos preparativos festivais! 
 
37 Tomo como referência: Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfino. Belo Horizonte/São 
Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1987. p. 103-115. 
 34 
E nos vinte anos se abrirão as searas! 
E virão os maios! E virão os maios! 
Rezas de Maria...

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