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ENGIN 15 2019 A Aula como Acontecimento - Maria Cristina

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Prévia do material em texto

A aula como acontecimento
A aula como acontecimento
João Wanderley Geraldi
Palestra proferida na Semana da Prática Pedagógica, Universidade de Aveiro, CIFOP, 2003.
Titulo
A aula como acontecimento
Autor
João Wanderley Geraldi
Artes Gráficas e Serviços de PréPress
design I	GABINETE de IMAGEM
	Fundação João Jacinto de Magalhães
	A080/2O04
Impressão
Típave, Indústrias gráficas de Aveiro Lda.
Edição
Universidade de Aveiro
Campus Universitário de Santiago
3810-193 Aveiro — Portugal
Data
Maio de 2004
Tiragem
1000 Exemplares
Depósito Legal 
n-° 212114/04
ISBN
972-789-123-3
Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida ou transmitida, no todo ou em parte, por quaisquer processo, electrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do Editor.
Em jeito de prefácio
O meu livro
Meu nome é Chico Braúna eu sou pobre de nascença, diserdado de furtuna mas rico de conciença. Nas letra num tive istudo sou mafabeto de tudo de pai, de mãe, de parente. Mas tenho grande prazê Pruquê aprendi a lê duma forma deferente.
ABC nem beabã no meu livro não se incerra. O meu livro é naturá É o má, o céu e a terra, cum a sua imensidade. Livro cheio de verdade, de beleza e de primô, tudo incadernado, iscrito pelo pudê infinito do nosso Pai Criadô.
[...]
Deus quando o mundo criou
ordenou a paz comum
e com amo insinou
O devê de cada um
Os home pra trabaiá
Urn ao outro respeitá
e a boa istrada segui...
e os bichos irracioná
prumode se alimentá
produzi e reproduzi
Ainda hoje os animá
as orde santa obedece
sem uma virga faltá
se aumenta, omenta e cresce
eles que nada imagina
que nada raciocina
não pensa nem tem razão
continua sem disorde
sempre obedecendo as orde
do sinhô da criação.
(Paíativa do Assaré)
Conheci João Wanderley Geraldi em Portos de passagem, O texto na sala de aula, Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação, textos que foram de descoberta de um pensamento comprometido e incomodado sobre a educação linguística, que, pese embora permanentemente apresentado como inconclusivo e incompleto, se organizava em torno de uma concepção de linguagem enquanto actividade constitutiva, colectiva, histórica e social e uma concepção de educação, de ensino e de escola como componentes de um esforço partilhado pela transformação das sociedades. Neste pensamento, estranho a uma tendência europeia mais técnica, mais restrita, mais focalizada sobre produtos e competências, mais arredada também da aula como acontecimento e como tal, mais pobre nas suas interpretações e mais desajeitada nas suas conclusões, fui encontrando elementos estimulantes de propostas de práticas de linguagem alternativas, onde os sujeitos encontrassem espaços organizados e produtivos para contar as suas histórias contidas e para vê-las irem-se tornando progressivamente cada vez mais significativas para eles e para os outros. 
Mas o meu verdadeiro encontro com o Wanderley, sem que ele o soubesse todavia, ocorreu no Porto, em Outubro de 2001, quando comecei a interessar-me por um participante brasileiro no Congresso Internacional Línguas: pontes culturais para o futuro1 que se encontrava sentado atrás de mim e que ia pontuando as intervenções orais dos convidados com histórias onde eu ia redescobrindo, em renovados encantamentos, a linguagem como lugar de inscrição da diferença de cada um e a interacção como espaço de construção dos sujeitos e dos instrumentos simbólicos de comunicação por eles utilizados. No segundo dia do evento soube, através de uma participação anunciada no programa, que se tratava afinal de João Wanderley Geraldi, o tal autor com quem eu já tinha contactado por intermédio dos seus livros. E foi então, ouvindo-o com redobrado envolvimento, que percebi de imediato que aquele era o professor de quem andávamos em vão à procura já há uns tempos no LALE2, para connosco repensar o desenvolvimento do projecto deste laboratório, em torno das questões da educação em línguas e da intercompreensão. Não soube na altura como fazer para o abordar, não ousei dizer-lhe, "Andávamos à sua procura e eu acho que o encontrei!", mas, regressada a Aveiro e ao meu nicho, partilhada esta intuição com os colegas e amigos da área, constatado o entusiasmo imediato que a acolheu, precipitei-me sobre as notas do Encontro, procurei um endereço electrónico que tinha sido projectado, sentei-me ao computador e enviei-lhe uma mensagem mais ou menos neste teor: "Caro colega: chamo-me X, trabalho na Universidade de Aveiro com outros colegas sobre a educação em línguas e os processos de intercompreensão, gostei muito de o ouvir no Porto e todos nós temos o enorme prazer de convidá-!o para uma permanência de um semestre na nossa Universidade, com os seguintes objectivos [que enunciei]" A resposta chegou passadas poucas horas e era, para além de aberta, simpática e cordial, positiva. Caí em mim, de repente, e percebi, num relâmpago, que a coisa era séria.
1 Este congresso, iniciativa conjunta da APEDI. APPP, CEPCEP-UCR CüE e FPCEUP. teve lugar rir. Fnculcinrie <!o Psicologia e Ciências da Educação
	da Universidade do Porto ics dias 15 e l S de Outubro de 2C01.
2 Laboratório Aberto de Aprendizagem das Línguas Estrangeiras, esirjturo do investigação cio CíOTFF i.í.m UiSvcrsicíade de Aveiro.
E a coisa foi, de facto, séria. Vencidos com determinação todos os longos e penosos procedimentos burocráticos, conseguimos trazer o professor Wanderley para o DDTE da Universidade de Aveiro no 2° semestre do ano lectivo 2002/2003, enquadrado peio LALE e pelo Mestrado em Didáctica de Línguas, assim se iniciando um período – tão curto! — de convivência que, e posso aqui alargar a minha voz a todos aqueles, e foram muitos, que com ele trabalharam, foi um dos mais ricos e desafiantes da nossa vida académica e relacional. Desse período, permanecem no nosso horizonte, pelo seu significado e perspectivas educativas que abrem, ideias e conceitos como o de "memória de futuro", cunhado em Bakthin, um autor de referência, de "capatazia pedagógica", ou de "método indiciado". Permanecem também histórias de palavras escritas pelas crianças como indícios de palavras ditas a serem trabalhadas pela escola, como a do "emnino pionheto"3, bem como procedimentos metodológicos, como aquele que, num seminário de pós-graduação, deu origem à designada "regra Leonor", forjada por um dos participantes, a Leonor, a partir de um exemplo em língua portuguesa, e progressivamente confrontada, no seu reduzido poder descritivo, com as múltiplas possibilidades oferecidas pela língua, de forma a evidenciar a fragilidade e arbitrariedade de toda e qualquer tentativa de sistematicidade normativa e a ideia de que o conhecimento não se constrói a partir da fixação, mas a partir do provisório. Ficaram-nos também maravilhamentos pedagógicos, como constantei ofertas de leitura de poemas — um deles transcreve-se no início deste prefácio — ou de contos, com preferência para João Guimarães Rosa, durante os seminários de 3 horas, ao final do dia, que tinham lugar no âmbito de uma disciplina de opção do mestrado em Didáctica de Línguas que o professor regeu.
Mas no texto que agora se publica, e com o qual partilhamos o que foi o nosso encontro com o professor Wanderley, encontrará o leitor, com uma eloquência que eu não saberia ter, a razão das minhas razões.
Não gostaria de usar este prefácio nas suas funções mais tradicionais enquanto gênero discursivo, mesmo reconhecendo que elas são múltiplas, tais como sublinhar a pertinência do texto agora publicado, propor sobre ele um determinado ponto de vista, exaltar a sua qualidade, enquadrá-lo no percurso de um pensamento ou de uma obra, esboçar uma nota curricular do seu autor. Antes queria utilizar este espaço que me foi oeferecido para dizer ao Wanderley, em nome de todos nós, da nossa lembrança viva, do nosso carinho sem limites e da nossa energia, investidosem mil e uma manhas e maneiras de recontar a história iniciada em Aveiro e de reinventar outras, muitas outras, em todos os lugares possíveis. Obrigada por teres partilhado connosco a tua sabedoria e o teu afecto.
Aveiro, 25 de Abril de 2O04
Maria Helena de Araújo e Sá
3 "Era unna vez umpionho quercia ocabelo dai i^m emninopinhetc dapasou um umenino lipo enei pionhc aí pasou um emninc picnheíc tíai ornenino pegcupionho da amunhér pegoupionho da •edcmundosaicgritãdo tcdomundc pegou pionho di até sofinho begcupicnhc." (narrativa escrita de um aluno de 1* série, reprovado).
Breve nota curricular de João Wanderley Geraldi
João Wanderley Geraldi é professor titutar e investigador da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Brasil, onde desenvolve a sua actividade em matérias relacionadas com a filosofia da linguagem e a educação linguística. Autor de uma vasta obra científica e pedagógica e membro de Conselhos Editoriais de revistas conceituadas, persegue também um trabaiho intensivo no âmbito da formação de mestres e de doutores e é presença constante em projectos de formação continuada de professores das redes públicas do ensino básico e médio no Brasil.
Foi contratado com professor catedrático convidado pela Universidade de Aveiro pelo período de 3 meses, entre 17 de Fevereiro e 17 de Maio de 2003, tendo leccionado a disciplina de opção "Linguística aplicada ao ensino de línguas" do mestrado em Didáctica de Línguas, aberta a todos os investigadores da área, colaborado com o programa de pos-graduação do DDTE, realizado vários seminários de investigação e participado activamente nas actividades científicas do Cl-DTFF e, mais restritamente, do LALE.
O texto que agora se publica resulta de uma palestra proferida em 2003 na Semana da Prática Pedagógica organizada anualmente pelo CIFOP da Universidade de Aveiro.
A aula como acontecimento
João Wanderley Geraldi1
Antes de mais nada, quero agradecer o convite para participar desta Semana Pedagógica, possibilitando o reencontro com alguns colegas e amigos e meu primeiro encontro com outros e outras colegas portugueses, todos reunidos neste trabalho conjunto do Departamento e do CIFOP com colegas do ensino básico e secundário de Portugal.
Quando a Professa Luísa Álvares Pereira me fez o convite, ultrapassei a preocupação com o que dizer neste encontro com a lembrança de que a gente diz sempre as mesmas coisas, atendo-se ao que já conhece, e que se espera que se diga, com as variações das circunstâncias e dos objectivos mais imediatos da interlocução do momento. As falas são sempre associacões, liames, teceduras do aqui e agora com o já dito, com o já conhecido, que recebe das circunstâncias interlocutivas novas cores e novos sentidos. Por isso o novo não está no que se diz mas no ressurgimento do já dito que se renova, que é outro e que vive porque se repete. Em consequência, o que é que eu posso dizer senão aquilo que por quase noventa dias venho já proferindo no departamento, nas reuniões do Centro de Pesquisa ou dentro da sala de aula? Obviamente aqui vou articular, de modo que julgo distinto, questões já conhecidas, principalmente por aqueles que estão trabalhando comigo nesta estada em Aveiro, para mim tão frutífera pessoalmente e academicamente2.
Palestra proferida na Semana da Prática Pedagógica, Universidade de Aveiro, CIFOP. 2O03.
1 	Professor da Unicamp, Convidado do Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa da Univ. de Aveiro, fevereiro a maio de 2003. 
2 	Sem dúvida, os agora leitores deste texto estão percebendo que estes enunciados remetem a uma passagem de Martin Heidegger: "o homem não pode verdadeiramente dizer, isto é, mostrar e fazer aparecer senão aquilo que se mostra a ele de si próprio. Que aquilo que de si próprio aparece se manifesta e se dirige a ete", já que são as questões que me provocam aquelas que dirigiram/dirigirão o dizer desta fala/texto.
Gostaria de defender a ideia da aula como acontecimento, e vou-me aproximar desta tese a partir de certos ângulos que, aparentemente, são distantes, para no final tentar costurá-los, numa orientação que dê sentido a esta tese, título tema desta minha fala, com um conjunto de outras teses que, se aceitas, podem implicar a necessidade desta revisão em nossa concepção de aula, entendida sempre como um encontro ritual, e por isso com gestos e fazeres predeterminados, de transmissão de conhecimentos.
Creio que a identidade profissional do professor ao longo da história se construiu, essencialmente, pela sua relação com o conhecimento. mais do que a própria relação pedagógica, isto é, a relação com os aprendentes desenhou os diferentes perfjs profissfonais cuja sequência constitui a história de nossa profissão. Ainda hoje resquícios desta relação com o conhecimento, indícios da sua presença, sustentam nossa formação, a que chamamos de formação inicial. Nesta formação inicial há uma espécie de achego, de aproximação a um conjunto de conhecimentos organizados ao longo da história, e nossa suposta ou efectiva formação se constitui pelo processo de sua aquisição. Nós nos formamos professores ao longo de alguns anos de estudos de certos conteúdos, que adquirimos, que encorpamos, e que nos remodelam, nos tornam a pessoa que não éramos. Seguramente, esse tipo de formação é consequência de um longo processo histórico de construção da identidade profissional do professor, que se mostra nos nossos cursos de formação. Certamente reconhecemos que desta forma nos formamos professores. O que pretendo discutir aqui é que, talvez, isto apenas nos forme, mas não nos torna professores.
Iniciemos por um dos aspectos da escola existente, aquela que conhecemos hoje: lugar em que se ensina, lugar em que se aprende. Como ensinar e aprender demandam objectos, e estes são conhecimentos, então há na escota uma relação com certos conhecimentos. A relação é triádica: o professor, o aluno, e os conhecimentos. Cada proposta pedagógica, na história ou no presente, define diferentes posições para cada um destes três elementos, dando ênfase ora a um, ora a outro destes três polos.
Certamente antes da existência desta escola que reúne professor, alunos e conhecimento, houve outra escola cujo sentido ainda pode ser recuperado quando falamos, por exemplo, em "escola literária", em "escola romântica", "escola arquitetônica" etc. Nesse sentido, anterior ao sentido contemporâneo de escola, as primeiras escolas foram seguramente o que podemos chamar de "escolas de sábios", isto é, aquelas escolas em que há a reunião entre um sujeito que pensa com outros sujeitos, não como alunos, mas como discípulos, de que as escolas dos sofistas, a escola de Sócrates, a escola de Platão, são exemplos. Mas podemos também incluir entre estas "escolas" os conventos da Idade Média, responsáveis pela preservação e também por uma leitura 'retificadora' — lembremos Santo Agostinho e Tomás de Aquino — de uma rica herança cultural clássica. Nestas "escolas" ensinavam aqueles que estavam produzindo conhecimento. Não havia distinção entre o filósofo e o professor de filosofia. Ensinava-se filosofia porque se era filósofo. E na Idade Média, cada fundador ou "patrono" de uma ordem religiosa ou de uma abadia era também o "fundador" de uma certa leitura, de uma certa interpretação dos evangelhos. Que sirvam de exemplo Santo Anselmo, Francisco de Assis ou Tereza de Ávila.
Em resumo, havia um produtor de conhecimentos, e esse produtor de conhecimentos, porque produtor, era buscado por seguidores, voluntários às vezes, forçados outras vezes, por interesses no conhecimento ou por demonstração de prestígio. Para quem está lembrado do romance (ou do filme) "O nome da rosa", Adso de Melk vai conviver/ aprender com Guilherme de Baskerviile. Não é sem dúvidas e sem lembranças que o narrador da história, o noviço Adso se torna o sábio velho frei que rememora: ao longo do enredo do romance convive com Baskerviile. Inicialmente em função de uma demanda dos pais, que o haviam confiado para aprender com o já sábio Baskerville, depois por vontade própria representadana cena em que decide seguir o mestre, sacrificando o amor físico que experimentara e desejara.
Esta "escola de sábios", de que talvez as relações de orientadores de pesquisa com seus orientandos, nos programas de pós-graduação, sejam os últimos resquícios no presente, desaparece na história dos sistemas escolares3. Parece-me que a primeira grande divisão social do trabalho educativo se dará no período do Mercantilismo, já como consequência, inclusive, da expansão europeia, quer pela acção dos comerciantes venezianos (do Adriático para o Oriente) quer pelas conquistas do Ocidente pela acção da Península Ibérica, a que não faltou também o financiamento dos banqueiros toscanos. No Mercantilismo, essa divisão social do trabalho, em nosso campo, constrói pela primeira vez, digamos assim, uma identidade para o professor.
É bastante instrutivo, eu creio que para todos nós, independentemente da área em que actuamos, fazer um retorno à Didáctica Magna, obra de Coménio, nascida na década de 1620. Interessam algumas de suas metáforas, para mim bastante elucidativas da identidade do professor que se começa a desenhar nos começos do século XVII. É com estas metáforas que se constrói a identidade do professor que perdurará por um longo período da nossa história. É preciso lembrar, no entanto, que estas metáforas foram elaboradas no contexto específico da expansão europeia e consequente vontade de expansão do cristianismo, da evangelização, com que o frade Coménio estava comprometido até por dever de ofício4. A título de exemplo, consideremos a seguinte passagem:
...serão hábeis para ensinar mesmo aqueles a quem a natureza, não dotou de muita habilidade para ensinar, pois a missão de cada um (não) é tanto tirar da própria mente o que deve ensinar, como sobretudo comunicar e infundir na juventude uma erudição já preparada e com instrumentos também já preparados, colocados nas suas mãos. Com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer sinfonia, olhando para a partitura a qual talvez ele não fosse capaz de compor nem de executar de cor só com a voz ou com o órgão, assim também por que é que não há o professor de ensinar na escola todas as coisas, se tudo aquilo que deverá ensinar e, bem assim os modos como o há de ensinar, o tem escrito como que em partituras? (Coménio, XXXII-4)
3 Como na história, um sistema de pensamento nasce no outro sistema, è a relatividade deste desaparecimento que as relações de orientadores/ orientandos pode indiciar. Afinal, como enfatiza Sakhtin, o pensamento nasce no pensamento do outro, impregnado de outro e iodo signo festeja sua ressurreição. Por isso ê sempre salutar enxergar o passado no presente, mas sem esquecer que o futuro não é reprodução do presente, por mais estabilizada que seja a estrutura. È da estabilidade das estruturas com a instabilidade das acções que se tece a diferença.
4 Apenas um registro: é interessante notar que Coménio não vivia no "centro" da sociedade de então, nas regiões que detinham o poder económico ou curtursi. Ao contrário, vivia na periferia. Oxalá este fato indicie outro: que é nas margens que se elaboram as metáforas constitutivas do novo. daquilo que esta por-vir.
Há muitas pessoas que precisam aprender, mas a humanidade não dispõe de doutos em número suficiente para lhes ensinar. Então, com resolver o problema? A metáfora do organista, que executa qualquer sinfonia mesmo não sabendo compô-la é extremamente instrutiva: ao ouvinte não interessa saber se o executor é capaz de compor, interessa que acompanhe com maestria a partitura, onde tudo já está escrito. Onde tudo já está composto. É aplicando os sentidos desta metáfora na actividade de ensino - e portanto na actividade pedagógica - que se enumeram as características identitárias dessa profissão de "professor":
1.	ser hábil para ensinar mesmo não sendo muito dotado;
2. 	sua função é comunicar (e infundir) na juventude uma erudição já preparada, e não retirada da própria mente (isto é, não precisa ser produzida por ele próprio);
3. 	para exercer sua função, tudo se lhe dá nas mãos: o quê e o como ensinar (uma partitura já composta)
Deste ponto de vista, o processo de educação se dá como se um de seus agentes, o professor, executasse uma partitura. O professor não precisa ser douto, mas saber tudo o que deve fazer, e este "tudo" lhe é dado nas mãos pelos doutos, que preparariam o que ensinar e como ensinar. Esta passagem de um sujeito de produzia conhecimentos para um sujeito que sabe o saber produzido por outros e que o transmite instaura na constituição mesma da identidade profissional o signo da desactualização, porque como o professor não está produzindo saber que ensina, ele está sempre atrás do saber que está sendo produzido por outros. É necessária uma contínua actualização para estar sabendo o que se produz de novo que, para se tornar objecto de ensino; passará pelo processo de sua transformação em conteúdo de ensino.
Notemos que a redução do professor a executor se dá também no contexto em que o outro elemento da tríade, o aluno, é tomado como uma espécie de receptáculo vazio, a ser preenchido pela instrução escolar.
A profissão de professor emerge na história moderna sob o signo de uma divisão entre produção de conhecimentos e transmissão de conhecimentos, e a modernidade não deixou de aprofundar esta divisão. Digamos que até a segunda revolução industrial atingir todos os seus efeitos, de formas diversificadas entre centros e periferias, o profesgor se define como aquele que sabe um saber produzido por outros e que o transmite a alunos. O modo de conceber a estes variou ao longo deste processo, desde a "tabula rasa" em que inscrever a instrução até o reconhecimento de sua capacidade agentiva no processo de aprendizagem, processo de que o ensino deveria ou poderia ser derivado.
Esta identidade social do professor, o sujeito que sabe o saber produzido por outros, e que o transmite, permanece ao longo da história, mais ou menos do século XVII até inícios do sèculo XX. Desta identidade temos ainda resquícios, nas pequenas aldeias em que o professor é consultado inclusive sobre diferentes problemas, até mesmo de relações familiares. Quer dizer, o professor é um sujeito social que tem um saber e por este saber ele é respeitado. Ele transmite este saber e é pelo saber que tem poder, inclusive de aplicar castigos para filhos dos outros. Não é incomum, pelo menos no Brasil, que pais digam aos professores: "A senhora pode puxar por ele, pode pô-lo de castigo". É por este suposto saber que o professor está autorizado a falar, a impor disciplina e comportamentos.
Neste tempo, coube à escola e aos professores, de forma mais ou menos constante, mas sempre com diferentes matizes, organizar e seriar um conjunto de conhecimentos que a tradição, e depois a ortodoxia escolar, considerou e considera essenciais a formação dos sujeitos sociais. E nesta organização e seriação constituíram-se práticas e saberes que a didáctica, apoiada por outras ciências, foi registrando, analisando e tornando conhecimento. E os conhecimentos se foram avolumando à espera de uma nova divisão social do trabalho...
É com o desenvolvimento das tecnologias que, a partir da segunda revolução industrial, e bem mais fortemente nos inícios do Século XX, outra divisão social do trabalho vai-se operar, construindo uma nova identidade do professor. Identidade cada vez mais aprofundada hoje pelas novas tecnologias da informação: o professor já não mais se define por saber o saber produzido pelos outros, que organiza e transmite didacticamente a seus alunos, mas se define como aquele que aplica um conjunto de técnicas de controle na sala de aula.
Em certo sentido, numa metáfora extremamente forte, a nova identidade do professor é a identidade do capaz, do exercício de uma capatazia, do controle do processo de aprendizagem da criança. Se há um deslocamento, digamos assim, na relação triádica professor, aluno e conhecimento, este deslocamento se dá no tipo de actuação do professor, pois a relação do aluno com o conhecimento nãoé mais mediada pela transmissão do professor, mas sim pelo material didáctico posto na mão do aprendiz, cabendo ao professor o controle do tempo, da postura e dos comportamentos dos alunos durante esta relação com o conhecimento através do material didáctico. Quem instrui é o material didáctico. Ao professor compete distribuir o tempo5, distribuir as pessoas, e verificar se houve "fixação" do conteúdo, comparando respostas dos aprendizes com o "livro do professor", onde exercícios e tarefas estão resolvidas e oferecem a chave de correcção de qualquer desvio. Num mesmo gesto, uma nova identidade e uma fixação dos sentidos.
A profecia comeniana se concretiza: o professor, mesmo "não dotado pela natureza”, pode ensinar porque tudo já lhe é "dado": o que ensinar, como ensinar, os gestos a fazer e as respostas adequadas a aceitar... O que na fase anterior era de responsabilidade da escola e do professor - a transformação do conhecimento em conteúdo de ensino - passa a ser agora atribuição dos autores do material didáctico, das equipas de produção editorial, etc. Restam ao professor controlar os tempos de contacto do aluno com o materiai, conferir as respostas segundo um modelo dado, chamar a atenção dos desvios comportamentais ou acadêmicos6.
5 	Se estivermos alentos, escutaremos em nossa memória as frequentes perguntas: "Terminaram?" "Já leram?" "Mais três minutos para acabar"...
6 	O modelo produzido por esta segunda grande divisão social do trabalho permitiu a existência de professores leigos dando aula. professores • formados em matemática dando aula de português, e isso no Brasil não é nas cidades subdesenvolvidas do nordeste, mas mesmo na cidade de São Pauic. Há alunos de segundo grau que aceitam dar aulas, em escolas públicas, recebendo salários baixíssimos, como se der aulas não fosse uma função de profissionais, mas uma espécie de biscate, de trabalho remunerado, uma espécie de mesada que o pai já não pode dar. Estudantes de segundo grau. professcies do primeiro grau. Afinal, basta aprender c livro didáctico e fazer o que está prescriic. mandar fazer o exercício, corrigir o exercício segundo as resposta dadas no manual do professor, manter corn autoritarismo s disciplina.
A relação directa entre o aprendiz e o conhecimento através dos livros didácticos, do material didáctico, só teve o sucesso que teve entre nós, seguramente porque também se alteraram os próprios mecanismos de subjectivação dos sujeitos. O cuidado de si torna-se uma responsabilidade do próprio aprendiz7. Quer dizer, ele tem que aprender a trabalhar com o material que o professor lhe entrega, que a escola lhe entrega. E ele tem de cuidar de si próprio. E isto implicará inúmeras mazelas que têm sido denunciadas pelo discurso crítico: culpabilização do aluno pelo insucesso escolar, reprodução das realidades sociais, desvalorização das culturas escolarmente não rentáveis, etc.
Neste tempo já não é mais obrigação do professor saber o saber produzido pela pesquisa: esta é uma responsabilidade do autor do livro didáctico, do material didáctico. Há uma nova instância discursiva construída pelas novas relações de produção. E nesta instância são seriados os conteúdos de ensino como se os conhecimentos tivessem diferentes níveis. E esta seriação em abstracto se impõe como aquela adequada a faixas etárias, a estágios de desenvolvimento, etc. Mas o que me parece mais sutil, e que é produto deste processo de transformação dos conhecimentos em conteúdos de ensino é que aqueles são hipóteses formuladas para responder a perguntas, enquanto os conteúdos de ensino são transmitidos como verdades. O que se constrói na ciência como hipótese, na escola vira verdade.
E o modo de exposição desta verdade é uniforme - como a própria verdade se existente o seria. Quer dizer, o prestígio de verdade científica se transfere também para o modo de sua exposição aos aprendizes. E como alguns alcançam o sucesso trabalhando com o material que lhe é entregue, quando há insucesso, este é culpa do aluno. As avaliações de aprendizagem, que deveriam ser diagnósticos de acções a serem executadas no processo de ensino, indicações de caminhos a serem percorridos no aprender a ensinar a aprender, tornam-se verificações de fixação de conteúdos e quando o insucesso surge, culpa é do aluno e não do material com que ele tentou aprender. É que ensinar não é mais um modo de constituir uma civilização, mas um modo de controlar e restringir sentidos. E aprender deixou de ser uma afiliação civilizacional para se tornar um cuidado de si pelo qual é responsável o próprio aprendiz para meihor se situar na estabilidade de um modelo de sociedade que se pensa absolutamente estabilizado e imutável. Se o aluno não aprendeu é porque não estudou, não quis aprender, tem deficiências e por isso ele mesmo é o culpado por sua consequente situação social. O enunciado que melhor resume o sucesso deste modelo de exercício profissional de professor, e de forma de existência da escola, é proferido por pais que dizem "Meu fiiho não nasceu para estudar". A escola conseguiu não só culpabilizar o aluno, mas também ideologizar seus pais.
Escreve-se uma história de inculcação da ideologia da incompetência, operação que atinge preferencialmente sujeitos de determinada classe socíal. E como a escola ensina 'verdades de forma verdadeira”, e neste 'sentido' a escola, e a educação que ela fornece, seria o espaço privilegiado de construção das igualdades sociais entre sujeitos desiguais. Se a alguém lhe foi dada a oportunidade e assim mesmo ele não aprende, trata-se de incapacidade, qualquer que ela seja, e em consequência a inserção social dela resultante não deve ser considerada um problema da estrutura da sociedade, mas um problema individual, uma incompetência para construir o seu próprio cuidado de si.
7 Estou usando muito üvremente resultados dcs estudos de Foucault a propósito das "tecnologias do eu".
Foi neste modelo que nós nos criamos, seguramente ao menos a minha geração. A escola como um lugar de ascensão social, que a estrutura na verdade permitiu a uns poucos para poder continuar mantendo sua própria reprodução. Há que haver exemplos, mínimos, mas exemplos. Eu próprio me incluo com um destes exemplos, afinal sou filho de pai analfabeto, terceira geração de imigrantes. E sempre que me mostram a possibilidade de ascensão via escolarização, eu me pergunto pelos meus outros colegas de primeiro ano primário. Onde está o Alberto, rneu colega de 1º ano, que se sentava na mesma carteira? Eram aquelas velhas carteiras escolares, um banco longo, que ocupávamos dois a dois. Onde estão aqueles que comigo conviveram, que eram do meu bairro e com os quais perdi o contacto? Tenho notícias de apenas um, que morava próximo ao centro, casa que causava invejas. Ele se tornou dentista. De mais ou menos trinta, dois gatos pingados bem sucedidos nos processos escolares. Velhos tempos, década de 1950, Grupo Escolar Zona Industrial.
Mas não é o pequeno número de bem sucedidos, sucesso que escapa por entre as frinchas da estrutura, que motiva a crítica e a crise da escola de hoje.
Este modelo de professor como sujeito que controla o processo da aprendizagem entra em crise nas duas últimas décadas do século XX. E nós estamos vivendo precisamente este momento de crise, cuja amplitude não está deixando nada de fora: estão em crise os sistemas de produção: sobre o desemprego, já nem se pode falar em 'exército de reserva' porque o modelo se constrói pela exclusão explícita; estão em crise os paradigmas científicos: a época da incerteza implica retomadas de questões nunca imaginadas como questões pelos cientistas positivistas de ontem8; estão em crise instituições sociais milenares: valores sob os quais se constituíram as religiões deixaram de ser orientadores de nossas condutas; enfim está em crise nosso modo de habitar o planeta: os problemas ecológicos demandam uma revisão da relação que mantemos com a natureza. Estamos vivendo um momento próximo àquele vivido nos inícios da modernidade.
Ideologicamente, os discursos hegemónicosproferidos não incorporam como problema estrutural seu o processo de exclusão cada vez mais forte e cada vez mais universal. Ao contrário, dão a entender que os 'desempregados' têm que passar por novos processos de formação para obterem lugar no mercado de trabalho, modificado pela tecnologia avançada. Como se re-orientações profissionais fizessem aparecer novos postos de trabalho, sugados pela tecnologizaçao da produção e pela redução dos sujeitos capazes de consumo. Como se o problema da exclusão fosse conjuntural e não estrutural.
A escola é chamada a responder um desafio que não é seu, porque já não é mais um desafio proposto pela relação entre professor, alunos e conhecimentos, mas posto pela vertiginosa obsolescencia de saberes e práticas produtivas. Em consequência assistimos no mundo inteiro reformas curriculares, surgimento de cursos rápidos de treinamento profissional antes realizados no interior das fábricas. Cria-se uma pressa de formação e paradoxalmente chama-se a escola para uma vocação que não é a sua: a de estacionamento provisório de mão de obra descartada pelos tecnológicos globalizados de produção. 
8 É sempre instrutivo retornar ao pequeno grande texto de Boaventura Sousa Santos, Um discurso sobre a ciência para não e*=ouecpr c-'" nossas praticas a crise que estamos vivendo. '
O paradoxal destes discursos que aparentemente defendem uma sólida formação é o esquecimento de que estão no desemprego inúmeros profissionais ontem competentes: estão à procura de emprego também engenheiros, ontem chefes de produção; estão à procura de emprego executivos, ontem dirigentes empresariais. A sanha do lucro corta os mais altos salários, e mais altos precisamente porque mais produtivos, mais competentes. Estes gerentes, chefes de sectores, administradores, engravatados executivos perderam a competência de um dia para outro? Numa noite? Com esse discurso, dá-se a entender que o desemprego é somente nos níveis mais baixos, quando os cortes estão atingindo todos os níveis da 'hierarquia empresarial'.
Obviamente, é entre aqueles que constituem a base da pirâmide social que mais se manifesta a exclusão: sempre coube à pobreza de muitos sustentar a riqueza de poucos.
Nesse contexto, a escola se faz, discursivamente, uma instituição 'tábua de salvação”. E como ‘salvação’ não sobrevive enquanto conceito sem associar-se à ‘culpabilização’ a escola tem sido culpada pelo insucesso de sua formação favce as exigências do mercado. E as políticas educacionais neoliberais, para além de suas reformas curriculares que se constituíram essencialmente pela deficnição de parâmetros de conteúdos a serem ensinaldos, não souberam fazer mais do que propor sistemas de avaliação e avaliações de sistemas/redes de ensino, cujos resultados produzem hierarquizações das instituições de ensino, sinalizando para o ‘mercado consumidor’ quais as escolas nível A9, quais as redes mais preparadas, quais as regiões melhor aquinhoadas. Estou fazendo referência à experiência brasileira, mas certamente o modelo não é brasileiro...
O mercado de trabalho está-se tornando diminuto porque o desenvolvimento humano está permitindo cada vez menos trabalho para a obtenção dos mesmos resultados. O desemprego estrutural — ou a exclusão social como dejecto do modelo de produção — é apenas mais um indício de que estamos numa encruzilhada no nosso modelo de pensar o mundo e nele habitar.
Seria absolutamente tolo imaginar que no entrecruzamento das crises a escola não estaria implicada. E a identidade da profissão de professor permaneceria intocada. Felizmente estamos ultrapassando o modelo de professor 'controlador do processo de aprendizagem do aluno', operador da parafernália didáctico-pedagógica.
Há crise nos processos de produção de conhecimentos, há crise nas formas de inserção social da juventude sufocada pela destruição dos lugares possíveis de trabalho e convívio, não poderia deixar de haver crise na identidade da profissão de professor. E a construção de uma nova identidade não se processará simplesmente na redefinição das formas de relações entre a tríade professor, alunos, conhecimento. E como nossa forma de conhecer o mundo, as gentes e suas relações é constitutiva daquilo que somos, esta nova identidade em construção para o professor terá profundas relações com as novas formas dos conhecimentos: sempre parciais, locais, incertos. Talvez nossa grande aprendizagem com os novos paradigmas científicos e culturais seja a aprendizagem da instabilidade. Por isso nossa nova identidade profissional se constituirá no âmago da solução do conjunto das demais crises, e sua própria é já força de construção de soluções.
9 Felizmente no Brasil não houve o mau gesto de uma classificação por número de-estrelas, infelizmente utilizadas nos galardões militares e nas classificações turísticas de hotéis e afins.
Se apostarmos — como gostaria de apostar – que a identidade profissional do professor é definida pela estrutura global da sociedade, mas seu exercício profissional é também força propulsora de transformações, talvez possamos apontar para a inversão de flecha na relação do professor e alunos com a herança cultural como o ponto de flexão contrução identitária. Esta inversão vem sendo indiciada por noções como a de professor reflexivo, pelas noções de professor pesquisador, peja defesa da pesquisa-ação como forma de estar na sala de aula de todo professor, pelas parcerias construídas nas investigações participantes, etc.
Como nos definimos nesta relação com a herança cultural? Passado o tempo das 'escolas de sábios', o modo de relação com a herança cultural, por nós hoje recebida, no campo das ciências, como um conjunto de disciplinas - a filosofia, a álgebra, a geografia, a história, a literatura, a química, a física, a matemática... - é a de não produtores de cultura, mas de sujeitos que dela se apropriam, especialistas em uma das gavetas/disciplinas. Por longos anos estudamos a disciplina que nos é ensinada; por longos anos vamos às fontes disciplinares e aprendemos mais do que nos é ensinado: estamos prontos, mas não acabados. Vamos para o exercício profissional e nele a todo momento estamos retornando às fontes, retornando a cursos de formação continuada, e ultimamente retornando aos bancos de alunos para aprender a manusear as 'mais recentes descobertas metodológicas', as 'mais recentes receitas de ensinar'... Enfim, de uma forma ou outra, voltamos à herança para melhor apreendê-la. E tendo aprendido o já pronto, estamos aptos a melhor transmitir.
De forma caricata, poderíamos imaginar este tipo de relação: a cabeça do professor, vazia por natureza, é enchida pelo aprendido na formação inicial, e isto é transmitido para a cabeça do aluno, também vazia por natureza. Como neste processo de transmissão (de trabalho!) a cabeça do professor vai-se esvaziando, retorna-se à formação continuada para recarregar a cabeça, que novamente se esvaziará na transmissão e assim sucessivamente. Este tipo de relação pode ser representado pela seguinte figura:
	HERANÇA CULTURAL
	Matemática
	História
	Línguas
	Química
	Geografia
	etc
	PROFESSOR 		 ALUNO
Figura 1.
Creio que há necessidade de invertermos a flecha nesta relação. A herança cultural continua disponível, mas ela deve ser entendida como de fato é: não apenas um conjunto de disciplinas científicas, mas um conjunto de conhecimentos e de saberes. Os primeiros incluem as disciplinas e também seus métodos de pesquisa, seus resultados e seus fracassos, seus caminhos não lineares. Os segundos são constituídos pelas práticas sociais, não chegam à sistematização, mas orientam nossos juízos e muitas de nossas acções quotidianas. O saber é produto das práticas sociais, o conhecimento é a organização desse produto das práticas sociais de forma sistemática, racional, na actividade científica10.
	 PROFESSOR 	 ALUNO
Figura 2.
Como se sabe, estamos hoje cada vez mais indo em busca de saberes que perdemos. Por exemplo, na área da saúde, estamos recuperando os saberesexpressos pela medicina popular dos chás, dos banhos, dos cheiros, etc. Neste sentido, nós estamos nos debruçando sobre a história, e ao mesmo tempo estamos organizando os saberes disponíveis para construir um futuro distinto daquele que nosso modo moderno de ser pretendia descartar. Qual inversão de flecha a se operar nos processos de ensino? Creio que esta inversão, ao mesmo tempo que enriquece o que temos considerado como herança cultural válida, pretende que a relação com o vivido seja a base do processo de ensino. Ao contrário do lema "aprender para viver", trata-se de assumir efectivamente que "vivemos aprendendo". Esta inversão pode ser representada pela figura 2.
10 Faço aqui referência, de forma bastante livre, a distinção entre conhecimentos, e saberes estabelecida por Foucauft.
Na inversão da flecha, o professor do futuro, a nova identidade a ser construída, não é a do sujeito que tem as respostas que a herança cultural já deu para certos problemas, mas a do sujeito capaz de considerar o seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que também já tem um vivido, para transformar o vivido em perguntas. O ensino do futuro não estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas11. Aprender a formulá-las é essencial. Na lição de Saramago, "tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas".
É com as mãos cheias de perguntas que melhor nos orientamos no manuseio da herança cultural. A ela vamos em busca de percursos feitos para responder a outras perguntas. A ela vamos também em busca de respostas que já foram dadas às perguntas que formulamos: não se trata de reinventar a roda! O que importa aqui é que as perguntas dirigem a selecção, construção ou reconhecimento da inexistência de respostas. Creio que o ensino tem dado respostas a alunos que não conhecem as perguntas. Temos aprendido respostas sem sabermos as perguntas que a elas conduziram.
Permitam-me raciocinar com um exemplo, extraído do convívio com professores da cidade de São Paulo. Como vocês sabem, a cidade de São Paulo é uma cidade cheia de problemas, com os treze milhões de habitantes. Uma hora de chuva constante alaga marginais, produz inundações em bairros periféricos, engarrafa o trânsito etc. Em consequências das chuvas e das enchentes, altera-se o funcionamento da escola. Um acontecimento maior se sobrepõe ao dia a dia da escola. é um acontecimento infeliz (parece ser necessária uma catástrofe para que a escola se dê conta dos acontecimentos), mas um acontecimento que consegue 'tocar' na rotina escolar: muitos alunos não conseguem chegar até a escola, vários professores chegam atrasados ou simplesmente não chegam; de muitas turmas, nenhum aluno, de outras, alguns poucos. E há professores ausentes: impossível realizar a troca de turnos previstas pelo 'horário das aulas'. Que fazer? Nestas ocasiões, professores assumem alunos que não são seus, constituem-se grupos independentemente das turmas e das faixas de saberes supostos e de idades vividas. Improvisam algumas actividades. E todos conversam sobre o que está acontecendo, sobre a chuva, sobre a inundação em seu bairro, sobre as dificuldades de chegar à escola, etc. E todos vivem o medo e a insegurança: como voltaremos para casa? Todos de olho na chuva, torcendo para que pare!
Terminada a chuva, desimpedido o trânsito, o sol raiando: o dia seguinte se torna dia de rotina normal. E na escola tudo volta a ser como dantes no quartel de abrantes: abre-se o livro na unidade prevista, lê-se o texto — um poema sobre " Meu Cão Veludo"? — as sinetas voltam a tocar seguindo o horário das aulas, os turnos se repetem, os professores se revezam e os alunos 'estudam' o previsto. De ontem, nada sobra! Nenhuma pergunta. Por que há enchentes? Por que há inundações na cidade? O vivido ontem, hoje não é nem lembrança... O vivido não é interrogado.
11	As respostas existentes para problemas do passado estão disponíveis na rede de computadores, acessíveis na 'navegação internâutica'. Aprender não é se tornar um depósito de respostas já dadas. Saber não é dispor de um repertório de respostas. Saber é ser capaz de compreender problemas, formular perguntas e saber caminhos para construir respostas. A meihor homenagem que podemos prestsr àqueles que a isto se dedicaram ê sabermos as dificuldades dos caminhos da elaboração das perguntas e das respostas. E somente quem aprende percorrer caminhos inexistentes, porque e!es se fazem no percurso, será cspaz de compreender as respostas e os camir.hcs antes percorridos.
Pois a proposta de inversão da flecha demandaria tomar o acontecimento como lugar donde vertem as perguntas. Imagine uma aula em que se interrogue sobre o acontecido. Cada criança volta para a escola cheia de histórias, de coisas a narrar, de peripécias a comentar. Como foram as coisas cá, como foram lá: curiosidades e vida. Para começar a escrever uma resposta sobre as razões de uma hora de chuva tropical causar tais transtornos será necessário misturar conhecimentos e saberes, ultrapassar os limites de disciplinas, passando da ecologia para a antropologia e os modos de ocupação do espaço urbano, para a geografia e os modos de produção industrial e o tratamento de detritos, etc. Mas é preciso ultrapassar o senso comum. E aí está a função do professor, que sozinho não precisa dar conta dos sentidos todos de cada um dos elementos constituintes da resposta a pergunta formulada, mas é seu dever organizar com os alunos mais perguntas e buscar em colegas, em profissionais, nas fontes, na herança cultural, os esclarecimentos disponíveis: é aqui que a pesquisa começa, é aqui que o caminho começa a ser construído e ele somente passa a ter existência depois de percorrido, na narrativa que se escreve deste processo de produção. Enfim, trata-se de pensar o ensino não como prendizagem do conhecido, mas como produção de conhecimentos, que podem resultar também de novas articulações entre conhecimento disponíveis.
Por fim, um segundo exemplo. Busco-o no processo de produção de textos, para vincular esta fala ao tema central desta semana, a literacia. O texto é produto de um trabalho de escrita que não se faz seguindo regras predeterminadas. Todo texto pertence ao gênero que lhe fornece uma ossatura, mas a redacção do texto em si não é uma actividade que segue regras previstas, com resultados de antemão antecipados. Escrever um texto exige sempre que o sujeito nele se exponha, porque ele resulta de uma criação. Por isso cada texto difere do outro, apesar de tratar do mesmo tema e na configuração de um mesmo gênero. A escrita se caracteriza pela singularidade de seus gestos. A esta singularidade corresponde outra singularidade, a da leitura enquanto construção de sentidos.
Mas há condições para que a escrita se dê: um sujeito somente escreve quando tem o que dizer mas não basta ter o que dizer, ele precisa ter razões para dizer o que tem para dizer. Muitas vezes temos algo para dizer a alguém, mas temos razões para não dizer. Mas ainda não basta eu ter o que dizer e ter razões para dizer, eu preciso ter claro para quem eu estou dizendo. Nos processos de produção de textos, nas escolas o aluno não tem para quem dizer o que diz, ele escreve o texto não para um leitor, mas para um professor para quem ele deve mostrar que sabe escrever.
Se tivermos resolvido o que temos a dizer, para quem dizer, razões para dizer, então estaremos em condições de escolher estratégias de dizer, porque elas dependem de nosso assunto, de nossas razões, de nossos interlocutores. Afinal, o estilo é o homem para quem se escreve e não o homem que escreve. O trabalho com as estratégias de dizer não pode ser tratado in vácuo, no vazio. É neste sentido que a área de produção de textos também exemplifica a inversão da flecha de que vimos tratando: o professor somente ensina a escrever se assume os processos de escrever do aluno, tornando-se dele um co-enunciador, um leitor privilegiado e atento, um colaborador capaz de encorajar o outro a continuar buscando a melhor forma de dizer o que quer dizer para quemestá dizendo pelas razões que o levam a dizer.
A complexidade do mundo letrado, e a complexidade da escrita fazem da leitura e da escrita umajtarefa de toda escola, de qualquer área de conhecimento. Aprender a ler um problema de matemática, aprender a formular um problema de matemática não é uma questão somente de forma linguística.Transferir estas questões para o professor de língua portuguesa é imaginar a língua como uma forma sem conteúdo!
A transformação que inversão da flecha na relação com a herança cultural exige que cada sujeito – professor e alunos – se tornem autores: reflectindo sobre o seu vivido, escrevendo seus textos e estabelecendo novas relações como já produzido. Isto exige repensar o ensino como projecto, e para dar conta de um projecto não se pode esporadicamente conceder lugar ao acontecimento. O projecto como um todo tem de estar sempre voltado para as questões do vivido, dos acontecimentos da vida, para sobre eles construir compreensões, caminho necessário da expansão da própria vida. As aprendizagens construídas ao longo do processo de escolaridade podem ser diferentes entre a turma A, B, ou C: isto não importa, o que importa é aprender a aprender, para construir conhecimentos.
Ensinar não é mais transmitir e informar, ensinar é ensinar o sujeito aprendente a construir respostas, portanto só se pode partir de perguntas. Por isso a inversão da flecha. Poderemos não produzir as respostas desejadas, mas somente nossa memória de um futuro outro para as gerações com as quais hoje trabalhamos poderá iluminar nosso processo de construção desta nova identidade: a atenção ao acontecimento é a atenção ao humano e a sua complexidade. Tomar a aula como acontecimento é eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a permanência do mesmo e a fixidez mórbida no passado.
Referência bibliográficas
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