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Filosofia da Educação
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
(adaptados dos apontamentos do Professor Doutor padre Ezio L. Bono)
OBJECTIVO:
A disciplina de Filosofia da Educação (FdE) visa introduzir o estudante à compreensão da natureza desta disciplina a fim de capacitá-lo à reflexão crítica sobre a educação.
Mais do que à parte histórica da Filosofia da Educação (que deveria já ter sido estudada no curso institucional de filosofia) iremos dedicar maior atenção à parte sistemática e temática, com preferência pela época contemporânea.
A matéria se divide em três partes:
1) Parte Sistemática: a primeira parte visa introduzir o estudante à disciplina através do estudo dos objectivos, contexto, tarefas, etc. da FdE,
2) Parte Temática: a segunda parte apresenta uma reflexão do professor sobre alguns temas próprios da FdE;
3) Filosofia da Educação em África: a terceira parte analisa alguns autores africanos que reflectiram sobre a educação (com uma atenção particular a alguns autores moçambicanos)
Cada estudante deverá estudar um texto a escolha de um autor que trata da FdE. Haverá também um trabalho sobre um tema sugerido pelo professor.
PROGRAMA: (Breve excursus sobre a História da Filosofia)
Premissa
1. O que é a Filosofia da Educação?
I Parte Sistemática
2. Filósofo da educação: pedagogista teórico?
3. As tarefas da FdE
4. O quadro epistemológico
5. Correntes teóricas na pedagogia
6. Novos contextos vitais e pesquisa teórica
7. As novas tendências na educação
8. Encaminhamento à pesquisa teórico-pedagógica
9. Teoria e formação docentes
10. As palavras-chave do discurso teórico-pedagógico
II Parte Temática
11. Os fins da educação
12. Educar no mundo futuro: entre globalização e localização
13. Avaliar todos avaliar cada um. Uma perspectiva pedagógica
14. Metodologia e competência pedagógica
15. A comunicação
16. Universidade de qualidade
17. Processo de Bolonha
18. FdE das Universidades Católicas (Ex Corde Ecclesiae)
III Parte: Filosofia da Educação em África
19. O pensamento africano sobre a educação.
20. James Horton
21. Edward Wilmot Blyden (1832-1912)
22. Julius k. Nyerere
23. A educação bantu na África do Sul
24. Adriano Langa
25. Amaral Bernardo Amaral
26. Severino Elias Ngoenha
27. José Paulino Castiano
28. FdE africana: “Muntuismo” para um Personalismo Africano (Ezio Lorenzo Bono)
BIBLIOGRAFIA: A bibliografia será apresentada ao longo do curso.
DIDÁCTICA: As aulas serão dadas em regime de conferência com possibilidade de participação activa por parte dos estudantes
AVALIAÇÃO: -Avaliação da ficha de leitura preparada por cada estudante sobre um texto de FdE a escolha
-Avaliação de um trabalho
-Avaliação da matéria dada durante o curso
OBSERVAÇÕES: Outras informações serão dadas ao longo do curso.
A frequência é obrigatória pelo menos ao 75% das aulas
CONTACTO: O Prof. pode atender os estudantes antes das aulas ou no horário normal de atendimento
Poderá ser contactado também pela email:
eziolorenzobono@hotmail.com ou pelo cel. 828384160.
Haverá também um “grupo de FdE” em Facebook para poder interagir com o docente e com os colegas sobre a disciplina.
(Breve excursus sobre a História da Filosofia)
PREMISSA
Antes de mais nada precisamos definir o “perímetro” da pedagogia que hoje em dia parece ser substituída pelas “Ciências da Educação”, pois hoje se faz pedagogia através de ciências extra-pedagógicas, orientando-as a um senso que é o “formativo/educativo”.
Antes a FdE era identificada com a pedagogia geral (a parte mais formal da pedagogia); hoje a FdE é mais transversal entre os vários saberes da educação. É o momento auto-reflexivo da pedagogia, que se concentra sobre a “logicidade” do discurso e sobre o sentido. A Filosofia não é mais “fundativa” (fundar Weltanshauungen) mas interpretativa, “rigorisa”, racionaliza as experiencias e relativos saberes.
FdE é por um lado geral e sectorial, formal (epistemologia) e material (axiologia). A filosofia (com a crise da metafísica) perdeu a sua hegemonia sobre a pedagogia: Agora a filosofia é mais “pluralista” e “especializada” (não mais “total”). A filosofia é “unitária” mas não mais “unívoca”. É mais “formal”. (Cfr. Cambi, 2008, pp.3-24).
O QUE É “FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO”?
Entre as várias definições de Filosofia da Educação (FdE), preferimos a mais fiel aos termos em causa:
Reflexão crítica (Filosofia) sobre os processos educativos (Educação). A FdE mesmo sendo uma disciplina ligada às disciplinas pedagógicas, é um saber independente.
Poderíamos dizer que a FdE quer fundar criticamente (racionalmente) a pedagogia, pois indaga analiticamente e criticamente os aspectos fundativos e formais da pedagogia: o discurso; o tipo de rigor; a escala de valores. Deste modo a FdE leva a pedagogia ao seu ponto mais alto, o da crítica.
A FdE é correlata à pedagogia geral: funda epistemologicamente e ontologicamente os processos formativos.
Dito em outras palavras mais simples: a pedagogia é o momento prático no processo educativo e a FdE o momento teórico.
A FdE mostra os condicionamentos ideológicos que estão por trás, redefine o estatuto lógico-conceptual, o horizonte teleológico-valorial, a linguagem, a relação com os outros saberes.
É um discurso reflexivo sobre os grandes temas da pedagogia geral: estuda os fins da educação; os meios; as estratégias, os papéis; as componentes... Tem o papel de coordenar as diferentes ciências da educação: tem um papel de síntese. Em conclusão nós gostamos de definir a FdE como pesquisa teórico-pedagógica sobre a educação.
I PARTE SISTEMÁTICA
O FILÓSOFO DA EDUCAÇÃO: Pedagogista teórico?
Tarefa da FdE, como já vimos, é de esclarecer a linguagem científica (ou não científica) sobre a educação. Isso se impõe mais ainda depois da crise da “cientificidade” das ciências tradicionais humanas e sociais.
A pesquisa teórico-pedagógica sobre a educação seguiu duas linhas: uma de epistemologia pedagógica (que privilegia a relação com a pedagogia) e a outra como análise e interpretação teórica directa da experiência educativa, na ordem à qualificação humana da existência pessoal e/ou à questão do sentido da vida e da educação (privilegia a relação com a educação). (Nanni, 2007, p.7)
Esta pesquisa teórico-pedagógica se coloca no contexto de “reabilitação” da filosofia prática. Há um voltar à ética de Aristóteles, à crítica da razão prática de Kant, e ao instrumentalismo melhorista e democrático de Dewey.
Diante da fragmentação de todo o saber, o filósofo da educação se põe como teórico do “todo” do educar: superação da fragmentação mas também do “pensamento único”.
Porque se impõe a reflexão teórico-pedagógica da educação? Porque estão em questão os fundamentos últimos da educação: liberdade, racionalidade, ciência e técnica.
Na tradição ocidental o discurso sobre a educação fazia parte da filosofia prática.
Ponto de partida é a vida (primum vivere). Querendo esclarecer a dimensão teórica dos problemas formativos podemos dizer: 1. Podemos considerar problemática teórico-pedagógica tudo aquilo que se refere à visão geral do mundo e da vida; 2. Interrogação sobre tudo o que se pensa acerca da função educativa e correspondente cultura pedagógica; 3. Re-visitação crítica das grandes categorias de pensamento.
AS TAREFAS DA FDE
1. Esclarecer a linguagem;
2. Função de coordenação crítica;
3. Responder acerca o sentido da educação, o que ela ultimamente é e significa, como e para que educar e o que fazer em educação.
O filosófico é somente um dos pontos de vista da educação, mas visa uma visão global (assim como a “teologia da educação” no campo cristão). Este ponto de vista filosófico é questionado por alguém, pois a FdE de um lado se põe como pensamento do princípio e do sentido e do outro lado nega toda absolutização. Outro limite é que também o momento teorético é condicionado ao momento histórico-cultural, marcado por expectativas e preconceitos.
Mais do que FdE devemos falar de Filosofias da educação,pois existem vários métodos:
Método fenomenológico: dos dados empíricos extrai estruturas essenciais, o sentido dos fenómenos e dos processos educativos.
Método dialéctico: releva as tensões e complexidade da educação. Visões não definitivas mas sempre abertas.
Método hermenêutico: que interpreta o “texto” dos processos históricos vitais. Na pedagogia se parte dos factos educativos para chegar, considerando as expectativas e preconceitos, a uma nova compreensão da situação educativa.
Todos estes métodos em comum têm a ideia de que a teorese filosófico-pedagógica é fundamentalmente uma praxeologia: parte do concreto e volta a ele com propostas de soluções depois de uma reflexão. Isso em conformidade com a tradição que sempre considerou a actividade teorico-pedagógica como uma forma de filosofia pratica, ou seja como uma teorese que ilumina e da as razões à acção e intervenção educativa concreta. (Nanni, 2007, p.15)
NB. É necessário porém não reduzir toda a reflexão sobre a educação à filosofia, pois existem outras fontes: é preciso superar o rigorismo teórico da filosofia: FdE mais do que uma disciplina particular é uma atitude, um modo particular de enfrentar os problemas educativos. Contenutisticamente FdE seria uma série de temas filosóficos que têm um interesse preciso para com a pedagogia (por ex. a relação factos e valores; ciência e filosofia; homem e mundo: a liberdade humana, etc.).
Mais do que FdE deveríamos falar de Filosofia das ciências educativas. Para alguns não é necessária uma disciplina específica para tratar estes temas. A FdE deveria investigar os problemas teóricos da educação segundo as modalidades próprias da filosofia. Diferentemente das outras disciplinas das Ciências da Educação, a FdE privilegia o momento analítico-interpretativo do conhecer. Releva as tendências, as orientações inovadoras da educação, as consequências de algumas decisões e estratégias educativas ou de certas expressões pedagógicas (Nanni, 2007, p.17). Momento prévio às disciplinas metodológicas-projectuais (metodologia, didáctica, docimologia, etc.).
O discurso epistemológico se torna momento critico e justificativo “obrigado” para superar o nível da opinião privada ou ideologia.
A pesquisa do sentido da educação hoje têm prevalentemente a forma laica da pesquisa histórico–hermenêutica ou crítico-radical. Mas em outros ambientes se move dentro de uma tradição filosófica cristã (“filosofar na fé” E. Gilson), que tenta equacionar a razão com a fé (João Paulo II na encíclica Fides et ratio de 1998, fé e razão são as duas asas com que o espírito se enaltece na contemplação da verdade, e impele a pergunta sobre o senso das coisas e a existência do homem. (cfr. também G.Marcel).
EM CONCLUSÃO: ÂMBITOS E FUNÇÕES DA FdE
A FdE é um dos saberes da educação mas que diz respeito a toda pedagogia geral pois os seus temas são gerais tratando-os em modo crítico (filosófico). É um saber reflexivo e meta-reflexivo sobre a pedagogia. Somente a filosofia garante a “criticidade”, com argumentações válidas para todos. A FdE tem um papel radical e um aspecto transversal (porque trespassa várias ciências da educação). O Radicalismo pertence à natureza mesma da filosofia que sempre visa os princípios e os fundamentos (seja para os metafísicos” que para os “cépticos”). A FdE portanto quer chegar à raiz do educar.
A FdE tem 4 aspectos:
1) epistémico (reflexão sobre o saber, saber agir, próprias estruturas regras, funções): complexidade deste saber que encontra outros saberes e os reelabora);
2) axiológico: sem axiologia não há pedagogia, pois a pedagogia viveu de objectivos, projectos (acompanha a política, ideologias, poder sociais, etc.). Agora porém reivindica mais autonomia e redefinir-se no plano valorial iuxta própria principia (segundo os próprios princípios).
Ma como escolher os valores em educação? Escolhendo aqueles mais em sintonia com a pedagogia e a sua vocação como saber/agir (ex. liberdade e empenho; igualdade, responsabilidade, comunidade, etc.) vigiando para que não sejam vazios nem utópicos.
3) fundativo: mesmo não sendo mais “fundativa”, a filosofia exerce sempre uma função crítica, não é mais geral mas regional (não mais apriorística e racionalista-dedutiva, mas histórico-empírica).
Axiologia e ontologia andam junto pois o ser da educação é sempre prepondante mente um ser axiológico)
4) “ensaístico”: pesquisa aberta, variegada, pluralista, não sistemática, fragmentária e fragmentada cujo objectivo não é demonstrar mas compreender, com uma atenção estética que está aberta à verdade. Na verdade a pedagogia não fez grande recurso “Ensaios” preferindo meios mais “pesados” como o tratado ou o manual. O Ensaio tem a vantagem de ser mais imediato e de juntar o localismo do problema e a universalidade da problematização.
(Cfr. Cambi, 20088, pp.25-45).
O QUADRO EPISTEMOLÓGICO.
PEDAGOGIA: disciplina científica relativa à educação. O seu carácter é mais prático do que teórico. Ao longo dos séculos não houve uma reflexão organizada sobre a educação.
Os gregos-romanos tinham uma filosofia política; a patrística uma moral teológica (catequese); a modernidade uma pedagogia mais metodológica e didáctica.
Com a escolarização em massa nascem novas exigências (secc. XVIII-XIX). Na pesquisa da identidade disciplinar se torna fundamental Rousseau: uma nova educação tinha que estar ligada à crítica sócio-cultural e à utopia política. Herbart era para uma pedagogia independente, mas de facto ela acabou sendo colonizada pela várias filosofias (idealismo, positivismo, actualismo, pragmatismo, marxismo, espiritualismo, personalismo...). (Nanni, 2007, p.24).
Nos anos 60-70 também a pedagogia foi contestada, na luta contra a submissão ideológica.
O trabalho da pedagogia como disciplina científica está ainda aberto. A um certo ponto pareceu que a pedagogia ia desaparecer para deixar o lugar às ciências da educação. Estas últimas porém pareciam como um conjunto de disciplinas sem unidade real (triunfo da dispersão, confusão e sobreposição de matérias). (Necessidade de uma sinfonia entre as várias disciplinas para chegar a um produto comum, rigoroso e significativo).
A questão das Ciências da educação se complica mais conforme ao que entendemos por ciência:
1. Ciência como saber crítico e justificativo: aqui entram as ciências relevativas (onde, como, quando há educação: disciplinas histórico-comparativas, ciências humanas e sociais); teóricas (o que significa a educação: FdE, epistemologia pedagógica, teologia da educação); metodológicas (o que fazer na e para a educação: metodologia pedagógica; didácticas...), operativas-instrumentais (com que meios educar: tecnologias educativas, docimologia, estatística, informática...).
2. Ciência como disciplina empírico-logica (biologia, antropologia, psicologia, sociologia da educação...
Os planos dos estudos das várias universidades seguem mais razões de ordem prático ou de tradição académica, do que de ordem teórico-epistemológico.
Actualmente mais do que “Ciências da Educação” se prefere “Ciências da Formação”, pois mais abrangente e inovativo. Entram aqui todas as disciplinas que visam dar mais competências. Aqui a formação não visa tanto o desenvolvimento integral da personalidade, mas somente a aquisição de competências para desenvolver um papel profissional e social.
Por formação se entende somente o aspecto técnico-profissional e não como cultura geral.
Os nós problemáticos:
Definição da própria identidade disciplinar da pedagogia.
A pedagogia sempre se limitou à fase evolutiva e ligada à escola: agora a demanda é mais complexa, cobre todo o arco da vida e com situações culturais diferenciadas.
O fenómeno da globalização que impõe a confrontação e o diálogo interdisciplinar, intercultural e social.
O desafio de hoje à pedagogia é ajudar a repensar a vida humana na sua globalidade e perspectivar um desenvolvimento com o “rosto humano” e ajudar a superar o impasse em que a vida e a cultura se encontram neste começo de século. (Nanni, 2007, p.31)
CORRENTES TEÓRICAS NAPEDAGOGIA
Existem multiplicidade de consciencialização, formas e fontes. Muitas visões globais da educação são veiculadas pelas grandes religiões. Outras teorias pedagógicas se encontram nas teorias de várias ciências (psicologia, sociologia, etc.) e de ideologias (socialista, laica, democrática, etc.).
1. ENDEREÇO NEO-ILUMINISTA LAICISTA.
No ocidente depois da 2ª Guerra Mundial impõe-se o American style (way) of life. Também os modelos educativos e escolares ocidentais seguem a educação e escola dos EUA. A inspiração é a pedagogia deweyana e a modernidade iluminista. Por isso chama-se endereço neo-iluminista e laicista (pois nega qualquer referência religiosa ou ideológica, e se distancia do personalismo cristão e do neo-marxismo). As ideias principais: 1) educação é principalmente educação à razão, história, ciência...; 2) educação do e ao senso crítico; 3) educação é essencialmente educação científica (e tecnológica); 4) visa-se a reforma social e desenvolvimento democrático. Quadro de fundo é o naturalismo, imanentismo sem aberturas à transcendência.
2. ENDEREÇO MARXISTA.
Depois da guerra havia um debate sobre a possibilidade da existência de uma pedagogia marxista. As linhas principais desta pedagogia são: 1) Educação essencialmente politécnica; 2) educação como obra industrial na luta contra os instintos e natureza a fim de dominá-los; 3) ênfase do colectivo.
3. ENDEREÇO PERSONALISTA.
E. Mounier iniciou a corrente da “revolução personalista e comunitária”: mais que um sistema conceptual é uma perspectiva de “pensamento militante” que tem no centro a pessoa. A inspiração é cristã.
As linhas principais: 1) Educação para promover a pessoa e comunidades de pessoas; 2) habilita o sujeito a dirigir o próprio movimento de personalização; 3) educação não é vazio a preencher mas suscitar a pessoa; 4) centralidade do educando no processo educativo; 5) adesão à pedagogia das “escolas novas”; 6) o educando não é “coisa” (res) da família, estado, igreja...; 7) Escola não é somente instrução; 8) Humanidade integral: literatura, arte, ciência, técnica; 9) centralidade educativa da família, 10) laicidade e pluralismo (várias agências educativas). Diante do relativismo e das mudanças, apela aos valores tradicionais clássicos. Educação para preparar à vida e ao uso da razão, graças à aprendizagem de verdades e valores perenes e daquilo que é essencialmente humano. Afinar os métodos e disciplina mental com aprendizagem de matérias logicamente organizadas.
4. HISTORICISMO PEDAGÓGICO
Para esta corrente, o homem realiza-se na história e o mundo e a história são a totalidade e o horizonte de senso do homem: tudo é histórico. Temos aqui uma secularização e laicização da visão do mundo. Esta corrente, mesmo que terminou com a segunda guerra mundial, está ainda muito difundida como mentalidade e incide ainda hoje na instrução escolástica. Contra as ideias do historicismo levantaram-se as vozes de Popper (1902-1994) e de Fukuyama (O fim da história).
(Crise teórica dos anos ’70: neo-niilismo).
5.CORRENTE EMANCIPADORA E NEO-RADICAL.
Esta corrente emancipadora está ligada à “nova esquerda”: a educação, se não quer ser coercitiva e impositiva de modelos sociais dominantes, deve ser anti-autoritária e libertadora das alienações dos povos. O neo-radicalismo quer revolucionar a vida quotidiana e lutar pelos direitos civis, e satisfazer as necessidades do homem. A educação pode ter sentido somente se lutar para este fim, contra o endoutrinamento, autoritarismo, conformismo, injustiças e deve sensibilizar para o senso crítico. Mais que educação devemos falar de convite à auto-direcção.
6.PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO
Trata-se de perspectivas libertadoras vindas do “terceiro mundo” ou dos países em via de desenvolvimento. A PdL mais importante é a de Paulo Freire (1921-1997) com a sua “pedagogia dos oprimidos”. Freire vai além dos extremismos da luta de classe, pois o oprimido liberto pode tornar-se o novo opressor: além da revolução política urge àquela pedagógica. Freire propõe de superar uma educação “bancária” e propõe uma pedagogia problematizante que junta alfabetização com a consciencialização. Privilegia as estratégias da educação comunitária, dialógica, propositiva, onde mais que educadores temos animadores, visando uma “civilização do amor”. Emergem aqui como Freire mistura posições marxistas com as humanistas, personalistas cristãs. Lema dele é “Ninguém, educa ninguém. Ninguém se educa sozinho; Os homens se educam em comunhão”.
7. CORRENTE TECNOLÓGICA FUNCIONALISTA.
Visa mais o desenvolvimento da mente, da formação das inteligências do que as actividades e interesses do estudante e da sua socialização. Há claro aqui o influxo da cibernética, telemática e das ciências da informação.
Os riscos são de uma ciberneutização e computadorização da existência e da educação. Dá-se mais importância às estruturas sócio-económicas-culturais do que aos indivíduos, e o paradigma quase exclusivo para a educação é o do desenvolvimento económico-produtivo (formação profissional) mais do que o desenvolvimento pessoal.
8. CORRENTES E MODELOS TEÓRICOS-PEDAGÓGICOS NA CRISE DA MODERNIDADE
Nos últimos decénios a visão ocidental-moderna foi muito criticada. A escola de Francoforte denunciou a eclipse da razão e a redução da humanidade à uma só dimensão (sócio-económica-política). Por parte religiosa se denuncia o reducionismo imanentista e o materialismo economicista de fundo que visam só o utilitarismo negando cada referência espiritual aberta à transcendência e ao desejo do totalmente outro.
Se fala de ocaso ou fim da modernidade, ou pós-modernidade, ou regurgitação pré-moderna, ou segunda modernidade, (ou modernidade tardia): os seja, crise dos valores da modernidade.
A pedagogia deve abrir-se ao multiculturalismo e à informatização. Os discursos sobre os modelos teóricos se abrem ao diálogo interdisciplinar. Se buscam os “universais” pedagógicos-educativos-formativos que possam dar um sentido às práticas educativas e formativas, recorrendo à reflexão hermenêutica para individuar as boas práticas pedagógicas, sem perder de vista o “todo” e o “inteiro” da formação, aprendizagem, instrução e educação.
ENDEREÇOS TEÓRICOS CRESCIMENTO HUMANO
Estes endereços teóricos servem para sistematizar (visões unitárias) e para a confrontação. Um modelo é um costructo lógico-linguístico que sistematiza os dados relevados na experiência ao redor de uma teoria (com o risco da simplificação da complexidade da realidade). Consegue um pluralismo de modelos (isso é algo de aceite) dependendo dos vários pontos de vista. Por isso modelos sempre criticáveis (para que não produzam “perversidades”). Este pluralismo não deve esquecer porém a busca de pontos em comuns: buscar o que une respeitando o que divide. Para este trabalho é necessária uma clara e sólida filosofia da educação (e para os crentes, uma teologia da educação). (Nanni, 2007, 50)
NOVOS CONTEXTOS VITAIS E PESQUISA TEÓRICA.
Novidades dos anos ’90: sociedade pós-industrial (informatização); exaltação da racionalidade tecnológica; complexificação e diferenciação da sociedade: multiplicação dos centros de poder e crescimento das multinacionais, homologação das classes médias mesmo tendo uma diferenciação; pluralismo cultural e nivelamento; flexibilidade na existência.
PÓS-MODERNIDADE.
Nova modernidade planetária da sociedade da informação; biotecnologias (cyborg). Por isso alguns falam de “modernidade avançada” ou de “hiper-modernidade” ou de “segunda modernidade”. A nova cultura porém mais de que a “racionalidade lógico-científica” se orienta à sensibilidade, emotividade, fantasia, intuição.
Multiplicação das “weltanschauungen”: nenhuma pode impor-se como a mais verdadeira ma somente procurar mais consensos.
Habermas, defensor da modernidade, acusa esta corrente de ser reaccionárias, pré-modernas.
Novos cenários: internacionalização das empresas e mundialização do mercado: o poder económico se concentra em poucas mãos, influenciam a política e reduzem a soberania nacional ou asproduções “doc”, consegue mais homologação cultural e erosão das especificidades nacionais, perca de identidade e aumento das patologias de inseguranças, o “homo oeconomicus” é sempre em “up date”.
Este homem deve acentuar a capacidade de concorrência, funcionalidade, competência e eficiência, conjugando isso com uma maior consciencialização, capacidade de pensamento crítico, do sentido e das virtudes da colaboração e da solidariedade.
Maior desenvolvimento científico-tecnológico: informática; telemática: se fala hoje de “Sociedade do conhecimento”. O problema da “digital divide”. Nascem novas profissões. Há uma “intelectualização” do trabalho, flexibilidade, mobilidade ocupacional, polivalência da cultura profissional. A “new economy” é uma economia da flexibilidade (sociedade pós-industrial). O “virtual” se impõe sobre o “real” (Tv, internet, ...)- nova consciência dos direitos humanos; novas formas de religiosidade (ex. new age, seitas, exoterismo...): “mestiçagem” não só genética, mas também étnica, cultural, religiosa. Há uma “secularização religiosa”, não conseguinte ao triunfo das ciências e técnicas, mas ao entregar-se das mentes e corações ao consumismo, bem-estar, diversão. No mesmo tempo assistimos a uma volta do “sacro”, novas formas de religiosidade “neo-pagãs”.
Urge um diálogo intercultural sem cair no relativismo cultural e valorial. Ao pensamento analítico, lógico e demonstrativo se contrapõe um pensamento mais narrativo, mais expositivo, autobiográfico, explorativo, com uma visão mais “hermenêutica”.
Aumenta a defesa dos direitos humanos, civis e políticos.
Diante desta Globalização podemos abrir-nos ou fechar-nos.
A globalização mostrou os limites da cultura ocidental (a “nudez do rei ocidental”), a sua pretensão de totalidade, a modernidade “sólida” desmoronou: agora temos uma modernidade “líquida” ou “fluida” (Bauman), de improvisação, confusão, fragmentação...
Diante da “globalização” e da “localização” se impõe a “glocalização”: conjugação entre a dimensão mundialista e localista.
(O tema da educação e globalização será retomado na parte temática).
AS NOVAS TENDÊNCIAS NA EDUCAÇÃO
Estímulos novos para a pesquisa teórico-pedagógica vêm das novas tendências dentro da educação.
Existe uma renovada confiança na educação, como meio precioso e indispensável que poderá permitir o alcance dos ideais de paz, liberdade e justiça social. (Na educação um tesouro, Delors, 1997). A educação como meio para combater a pobreza absoluta, a exclusão, conflito entre os povos, guerras, etc. em fim a escola é considerada o meio insubstituível do desenvolvimento pessoal e da inserção social do indivíduo.
E educação não se reduz somente à escola, família, igreja ou associações, mas também na vida social, nas ruas, no desporto, na diversão, na Internet, nos eventos ordinários ou extraordinários… Tudo isso é chamado de “escola paralela”. Além dos educadores tradicionais temos os ídolos dos jovens, os heróis, os cantores, chefes de partidos, etc… Nascem também novos perfis educativos (educador profissional, perito em processos formativos, pedagogista prático, orientador, tutor…).
Educação não é mais só transmissão de saberes mas é um momento de personalização.
As grandes linhas educativas internacionais.
Na Europa há 5 objectivos: 1. estimular a aquisição de novos conhecimentos; 2. aproximar a escola à empresa; 3. lutar contra a exclusão; 4. promover o conhecimento de três línguas europeias; 5. colocar no mesmo plano investimentos matériais e os formativos.
O relatório Reiffers apela a cultivar ambições que vão além de uma perspectiva somente utilitarista e visar a realização da pessoa.
O relatório Delors perspectiva uma educação global que tem como objectivos educativos (4 pilares): 1. aprender a conhecer (saber: uma sólida base cultural); 2. aprender a fazer (sólida competência); 3. aprender a ser (capacidades humanas pessoais: saber ser conscientes, livres, responsáveis, laboriosos, eficientes e eficazes); 4. aprender a viver junto com os outros (viver junto com os outros de maneira democrática, digna, empenhada, participativa, colaborativa e solidária). (Outro dado adquirido é da urgência da formação permanente).
Todos os grandes modelos educativos se reencontram em dois modelos fundamentais: 1. um mais cognitivo-tecnológico; 2. um outro mais neohumanista-solidal. Ambos querem conjugar instrução e formação com o desenvolvimento pessoal e social, dentro da democracia e respeito dos direitos humanos. Todos visam um sistema formativo integrado, que envolve não somente a escola, mas todas as realidades educativas presentes no território, dando vida assim a uma “sociedade educadora”. A mesma escola é vista hoje como comunidade educativa. O docente é visto como mediador e estimulador da aprendizagem: ele fica como chave fundamental do inteiro sistema escolar.
A universidade é sempre mais de “massa” e não mais elitista, humanista e académica. Problema principal é a formação dos formadores e de uma sólida, pertinente e adequada cultura educativa (paidéia).
Problema central da pesquisa pedagógica é a educação das pessoas: mais do que as competências do próprio papel (finalizado à produção) no fim se exigem competências humanas mais gerais que permitam viver a vida em modo digno e humanamente realizado. Formar uma pessoa capaz de relação, diálogo, transcendência e de escolha que exige a assunção de uma responsabilidade das consequências das próprias opções. A responsabilidade (com a atenção a todos) é um dos fins educativos mais excelentes: educação à legalidade, ao “mundialismo”, à cooperação, ao desenvolvimento, ao ecumenismo, à intercultura, à paz… Mais do que a valores válidos só dentro da própria nação, buscar competências humanas internacionalmente reconhecidas. Trata-se de uma “pedagogia da viagem” para o homem de hoje (“homo viator”) que sabe orientar-se e orientar ao longo da sua viagem. “Mas se abre o caminho se há uma meta; se inicia a caminhada se a viagem e a peregrinação valem a pena. Por isso a pesquisa teórico-pedagógica, hoje mais do que ontem, deve lutar para a verdade e deve empenhar-se na busca do sentito”. (Nanni, 2007, p. 85).
ENCAMINHAMENTO À PESQUISA TEÓRICO-PEDAGÓGICA
“A filosofia em geral e hoje a filosofia da educação foram historicamente e ficam o órgão da pesquisa por excelência” (Nanni, 2007, 87), a via mais comum para indagar sobre a problemática de natureza teórica subjacente à prática educativa, seja para definir o campo das disciplinas pedagógicas, seja para avaliar a “cientificidade” do discurso pedagógico e ver a sua concretização.
Por conhecimento científico se entende um nível de elaboração conhecível que seja lógica, argumentada, enquadrada e correctamente exprimida numa linguagem inter-subjectivamente compreensível; se interroga sobre os factos e avança hipóteses de explicação ou tenta elaborar uma explicação racional, rigorosa e compartilhada de factos, eventos, pessoas, coisas...
Desde os meados de 1800 aos meados de 1900 a reflexão sobre a ciência (epistemologia) era entendida em termos positivistas, onde somente as disciplinas físicas, biológicas e matemáticas eram consideradas as únicas que podiam conhecer a realidade.
No nosso tempo historiadores e críticos da ciência sublinham a importância da dimensão vital, humana e histórica da ciência. Do rígido objectivismo e empirismo se passa a consideram mais a complexidade dos problemas, ao envolvimento subjectivo em cada observação e elaboração cognitiva, passando a outros métodos de observação, comparação sócio-histórico, etc.: um novo modo de fazer ciência como o construtivismo e a hermenêutica (círculo hermenêutico de Gadamer).
Por teoria se entende uma reflexão global sobre todas as realidades, e não somente uma abstracção ou intelectualismo contrário à praxis. Nestes últimos tempos, parece voltar o interesse para a teoria na sociedade. Também nos mass-mídia é requerida frequentemente uma “consultação filosófica”. Assim também na escola. O mesmo acontece na pedagogia, com a reflexãoteorico-pedagógica. Neste campo a pesquisa teórico-pedagógica visa quatro sectores: 1) a educação, formação, aprendizagem, didáctica, para mostrar os problemas e os aspectos teóricos e valoriais; 2) o discurso pedagógico, ou seja a pesquisa epistemológica-pedagógica; 3) crítica da “paideia” tradicional e moderna diante da complexidade da sociedade, da globalização e da mundialização do mercado; 4) a relação entre o fazer e o agir na educação (em seguida à irrupção da inovação tecnológica e informática, telemática, robotica, bio-tecnologia que estimulam novas metodologias e didácticas).
Existem muita diversificação e pluralismo. Por exemplo entre os analistas (mundo anglo saxone que privilegia métodos e temáticas analíticas, linguísticas e epistemológicas) e continentais (que privilegiam a hermenêutica dos fenómenos e processos que consideram o património histórico-cultural adquirido). (Nanni, 2007, 94). Na pesquisa teórica contemporânea existe sempre uma dimensão de contextualização e de subjectivismo.
Pistas para a pesquisa:
1) Análise dos “conceitos-chave”; das categorias de fundo; palavra à moda (ex. currículo, comunidade educativa, etc.).
2) paralelamente ver as monografias dos autores, escolas, endereços teóricos gerais, limitando-se sempre à problemática teórico-pedagógica;
3) fazer indagações teóricas sobre problemáticas educativas comuns face às transformações culturais e históricas (família, ideia de homem, princípios deontológicos, etc.);
4) indagação crítica de categorias ou tendências epocais que influenciam a concepção educativa (ex. subjectivismo moderno, racionalidade moderna e pós-moderna, etc.)
Estas são pistas, pois a pesquisa é um campo aberto, ligadas a condições espaço-temporais.
TEORIA E FORMAÇÃO DOCENTES
“O sentido e a utilidade de uma boa teoria pedagógica não sempre aparecem como evidentes a ainda hoje nem sempre são reconhecidos na educação e pedagogia” (Nanni, 2007, 101).
Os cursos de reciclagem geralmente visa a didáctica., ao passo que é bom relacionar a pesquisa teórico-pedagógica com a formação dos docentes para conseguir ter “docentes reflexivos”. O tema da educação antigamente era tratado pela filosofia. Depois veio formar o corpo das disciplinas de “ciências da educação” que porém ficam isoladas entre eles e não sistematizadas. Mas estes cursos estão com muitas limitações (geralmente sem uma pesquisa teórica de referência). È muito necessária uma autêntica filosofia da acção educativa-didáctica, que possa ser utilizada na formação dos docentes, dirigentes escolares, pais e agentes sociais.
Esta preocupação teórica deve considerar a complexidade da sociedade actual: 1. mudanças estruturais e profunda inovações técnicas, 2. Pluralismo; 3. multiculturalismo e globalização; 4. subjectivismo, relativismo, “presentismo” e niilismo. Tudo isso influi na pesquisa teórico-prática. A filosofia então pode pensar mais além, ao inteiro, e não somente deduzir ou reelaborar quanto se aprendeu. Este olhar filosófico deve abrir para a não exaustividade de toda forma de conhecimento e abrir assim ao projecto e inventiva artística (próprio da prática pedagógica) além daquilo que só é útil, eficiente e eficaz. A educação não pode ser reduzida às categorias em que a se quer integrar mas abrir-se à dimensão transcendental ínsita no agir humano e mais ainda naquele educativo. Isto significa estimular mais ainda a pesquisa, na busca dos fundamentos e dos sentidos últimos do agir humano. Assim podemos colher melhor a alteridade e o “mistério” pessoal dos alunos e colegas com que trabalhamos. Visar a busca da verdade e do sentido (pelo menos algumas partículas).
AS PALAVRAS-CHAVES DO DISCURSO TEÓRICO-PEDAGÓGICO
Tarefa da Filosofia da linguagem para a educação é esclarecer as palavras-chaves do discurso pedagógico (isso é necessário também para o “docente reflexivo”).
PRAXE: um agir humano de transformação do real conforme a um projecto (conjugação entre prática e teoria). Depois de Marx se acentua o agir social (transformação humana do real), ou “práticas sociais”: fazer/operar conforme modelos sociais para alcançar objectivos socialmente compartilhados. Entre elas as práticas educativas e formativas.
TEORIA: visão unitária e global da realidade em geral o de alguns aspectos (p.ex. a educação). A diferença das científicas, as teorias filosóficas têm a pretensão (contestada por muitos) de ser “especulativas” ou seja de espelhar a realidade. Para Kant a prática sem teoria é cega e a teoria sem prática é vazia. A conexão praxe-teoria monstra em educação que se trata de uma praxe intencional (visa fins), social, um evento, para produzir “formação”.
CULTURA: conjunto de ideias, valores, modelos comportamentais e técnicas expressivas de um grupo histórico. As culturas permitem “ler” a vida natural e humana a um nível de geralização (impossível individualmente); ampliar os horizontes até o passado; encontrar significados e valores na busca de senso; organizar e consolidar a mente humana; abrir à formação global da pessoa e a competências para a vida profissional.
IDEOLOGIA: concepção do mundo e da vida unificada ao redor de um valor central (ex. liberdade para o liberalismo, etc) a fim de recolher consensos e eficácia política. Depois de Marx se tornou algo de negativo: suporto ideal do poder dominante.
CIÊNCIA: em termo comum ciência é um a saber fundado sobre o controle empírico, logicamente reconstruído e matematicamente exprimido; em sentido mais largo se entende todo o saber crítico consciente e justificado (provado com argumentos controláveis e verificáveis ou falsificáveis). Normalmente se distingue entre ciências formais (matemática, lógica, estatística, etc); ciências da natureza; ciências humanas e sociais (ou do espírito).
As ciências estão organizadas em disciplinas: disciplina é um saber organizado rigorosamente com 1) um objecto material (o que se estuda); 2) objecto formal (ponto de vista que se estuda o objecto); 3) técnicas e métodos; 4) grau de desenvolvimento histórico; 5) bakground “ideológico” (visão geral que está na base); 6) personalidade ou grupos-escolas; 7) contexto histórico-social-económico-político e contribuições dadas para a pesquisa e seu desenvolvimento científico e tecnológico a nível nacional e internacional.
PEDAGOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO: a definição de “guia da criança” está superada. Geralmente se entende qualquer reflexão/pesquisa sobre a educação. A nível cultural se põe na área humanística. A nível científico é uma das ciências humanas que estuda a educação.
VERDADE: no sentido positivista verdade é a ordem lógica entre os conceitos, ou uso recto das regras, técnicas, instrumentos operativos do conhecimento. Mas neste sentido somente o conhecimento científico poderia produzir afirmações verdadeiras a respeito da vida. Mas na realidade não é assim. Há verdades que não podem ser alcançada pela pesquisa científica. Verdade é qualidade da vida pessoal e da existência, um modo humano de encarar a realidade.
VALORES: do grego axía = preço, custo. Foi aplicado à moral. Se entende a qualidade de uma pessoa ou coisa, a sua dignidade. No plural são os ideais. Valor em si, abstracto (ex. amizade, amor, justiças...); como realidade (os bens); como aspiração ao que é bom..; sistema de valores de uma povo... Mas mais do que tudo isso o valore é visto na relação com todas estas coisas.
VIDA HUMANA: é algo que excede a vida vegetativa e animal, pois é pessoa, inteligência, consciência, liberdade.
DESENVOLVIMENTO: no começo o ser humano é incapaz de subsistir sozinho, por isso é um ser em desenvolvimento. A pedagogia se ocupa do desenvolvimento pessoal nas suas diferentes dimensões: físico, psíquico, intelectual, moral, estético, religioso... e nas faixas etárias.
Factores de desenvolvimento: 1. Herança; 2. Ambiente (cultura, bens...); 3. Ajuda ou obstáculos por parte dos outros ou sociedade; 4. Inteiração dinâmica com o ambiente no tempo (experiência).
EDUCABILIDADE: se entende aqueles aspectos da existência do sujeito que precisam deuma intervenção externa para desenvolver-se em modo “optimal”. Seria o campo de acção da actividade do educador.
APRENDIZAGEM: capacidade de mudanças estáveis da personalidade graças à interacção com o ambiente (cultura) num trabalho de reelaboração da experiência.
FORMAÇÃO: imagem integral, completa, de um ser que chega à sua maturidade. Por formar se entende na origem “plasmar” (dar “forma”), depois adequar à cultura local (paidéia); processo de desenvolvimento profissional (“bildung”); aquisição de competências para desenvolver um papel social ou profissional (“training”); geralmente: qualificação humana da vida e do desenvolvimento a todo nível.
Resultado esperado é a construção de uma personalidade humanamente capaz de ser consciente, livre, responsável e solidária.
EDUCAÇÃO: ajuda (individual ou social) para a promoção da qualidade da vida pessoal e comunitária, centrada na personalidade em formação, para alcançar uma capacidade de consciência, liberdade, responsabilidade e solidariedade. A etimologia é incerta: criar (educare) ou extrair (educere) ou seja, como operação maiêutica para desenvolver as qualidades de uma pessoa.
SOCIALIZAÇÃO: aquisição dos comportamentos que visam uma progressiva participação à vida social por parte do indivíduo. É educação social.
INCULTURAÇÃO: a socialização na antropologia cultural é chamada de inculturação. É o conjunto dos processos de aquisição da cultura por parte de indivíduos ou como sistema de transmissão de cultura por parte do grupo. (Na teologia cristã se entende o processo de evangelização dentro de uma cultura).
INSTRUÇÃO: actividade consciente e sistematicamente organizada que visa a aprendizagem da cultura e o desenvolvimento intelectual seja através do ensino que da auto-aprendizagem. Isto leva a uma transformação individual, social, ambiental e histórica.
COMPETÊNCIAS: aquilo que permite um agir, um operar, um produzir, um fazer, válido, eficiente e eficaz, graças a um saber, um saber fazer e um saber trabalhar e colaborar com outros, peritos ou não peritos. Esta ênfase sobre as competências é criticada por muitos pedagogos porque: 1) frisa mais a formação prática, o agir eficiente, mais do que o ser, a contemplação, reduzindo assim a aprendizagem à funcionalidade económica e ao “eficientísmo” produtivo e social; 2) é um termo tirado do mundo do trabalho e aplicado à educação, carente por isso de um estatuto epistemológico.
RELAÇÃO: educação é uma relação educativa (para a tradição era considerada um acidente –eu sujeito do ‘800-; e considerada essencial para o ‘900 –intersubjectividade, diálogo, encontro, comunicação-). Cada ser se constitui sempre a partir de uma relação: intra-pessoal, inter-pessoal, inter-geracional, com os objectos, as instituições (família, Igreja, sociedade), as culturas; relações internacionais.
COMUNICAÇÃO: do latim com-munus, compartilhar uma tarefa, uma palavra. Na comunicação temos também reconstrução de significados, por isso se deve prestar atenção não só à sintaxe, mas também à semântica, à pragmática, à hermenêutica. (Este tema será retomado na parte temática).
SUBJECTIVIDADE PESSOAL: por pessoa referimo-nos à capacidade radical de autonomia, liberdade, responsabilidade, auto-transcendência que se desenvolveu especialmente no pensamento ocidental cristão. É um ser-em-si não reduzível a objecto por ninguém, aberto aos outros, ser de comunhão com o mundo, os outros, Deus.
LIBERDADE: ausência de constrições, capacidade racional e prática de decidir. Torna a acção do homem uma acção humana, sem a qual seriam sub-humanas. Sempre é liberdade do/a...; em...; de...; para.... Para S.Agostinho esta última é a liberdade maior: liberdade para o bem, para o valor. É um acto pessoal e social.
EMANCIPAÇÃO: no campo educativo significa o processo de libertação dos condicionamentos subjectivos, estruturais e institucionais, e aquisição de autonomia pessoal. (É a categoria chave da pedagogia da “nova esquerda” dos anos ’70).
LIBERTAÇÃO: perspectiva não finalística ou “bancária” (Freire) da educação, mas “problematizadora” e libertadora para superar o fatalismo e “mudismo”, e tomar consciência da própria e comum condição de vida visando a “civilização do amor”. A diferença da emancipação (ocidental, subjectiva, anti-autoritária) a pedagogia da libertação é popular, democrática, projectada a um desenvolvimento solidário e comunitário.
AUTOREALIZAÇÃO: pleno desenvolvimento de si e das próprias potencialidades para alcançar a qualidade de vida desejável pela maioria das pessoas. Quer superar a desumanização e a desindividualização da vida, cuidando porém de não cair no narcisismo e culto de si sobre todas as coisas (religião do “eu”).
PROCESSO EDUCATIVO: a relação educativa é um processo, tem dimensão temporal com intervenções apropriadas, coerentes, eficientes, eficazes e válidas. Com o termo processo se entende uma sequência de actos orientados a um objectivo, actividade racionalmente organizada, gradual e cíclica, conforme um plano preestabelecido, compartilhado e suficientemente claro. Assim podemos falar de projectualidade, currículum, planos de estudo que devem ser colectivos mas também personalizados.
EDUCAÇÃO INTENCIONAL/EDUCAÇÃO FUNCIONAL: educação intencional sãos actos educativos que visam um processo educativo, ao passo que a educação funcional são todas as influências (imprevistas) positivas ou negativas que incidem na formação da personalidade (em sociologia e em Claparéde, esta educação funcional é algo de intencional).
EDUCAÇÃO FORMAL: actualmente substitui a “educação intencional”.
EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL: intencional mas não metódica (ex. na família).
EDUCAÇÃO INFORMAL: ocasional, contextual, espontânea (ex. mass-mídia, jogo, diversão...).
EDUCAÇÃO MATERIAL: assunção crítica da cultura e seus conteúdos de verdade e valor.
EDUCAÇÃO FORMAL: formação das capacidades, instrumentos, técnicas, programas (quase prescindindo o sem enfatizar os conteúdos).
- Os neo-iluministas, laicistas etc... preferem a educação formal, pois considera a outra como endoutrinamento.
- Os “perenialistas”, católicos, etc... preferem a educação material, pois considera que a cultura, verdade e valores formem a pessoa.
AUTO-EDUCAÇÃO: quem decide sozinho sobre o desenvolvimento da sua pessoa
ETERO-EDUCAÇÃO: indica a ajuda de outros para a própria educação. Geralmente esta precede e gera a auto-educação.
EDUCAÇÃO NEGATIVA: não fazer nada para educar a pessoa mas deixá-la livre de crescer espontaneamente.
EDUCAÇÃO POSITIVA: Intervir na educação “positivamente” ou seja “pondo” prémios, castigos, prescrições, admonições, etc.
EDUCAÇÃO DIRECTIVA: ênfase do papel de guia e organizador do educador nos processo de aprendizagem e desenvolvimento pessoal.
EDUCAÇÃO NÃO-DIRECTIVA: A liderança da educação é confiada ao mesmo educando ou ao grupo de aprendizagem. O educador só um conselheiro perito, que estimula, acompanha, etc.
II PARTE TEMÁTICA
Nesta parte temática tratamos alguns temas sobre umas problemáticas da pesquisa teórico-pedagógica (FdE).
OS FINS DA EDUCAÇÃO
A interrogação sobre os fins da educação é própria da disciplina “Filosofia da Educação” ou, em outras palavras, da “Teleologia da Educação”. Esta questão é movida pela pergunta fundamental: educar para que?
Queremos afirmar a urgência desta pergunta, pois já somente o facto de por esta pergunta significa afirmar a necessidade de objectivos a serem alcançados com a educação; significa afirmar a necessidade de um sentido, de uma verdade, numa época, como a nossa, que decretou o fim da verdade abandonando o homem ao irracional ou à emoção. Giuseppe Vico (o pedagogista ao qual nos referimos directamente nesta nossa reflexão: G.Vico, Os fins da educação, ed. La Scuola, Brescia, 1985) caracteriza a nossa época como à do “deserto ontológico”, do “eclipse da razão” (p.13) entendida como deseducação a pensar autonomamente, aos valores, à afectividade. As ideologias substituem a racionalidade do indivíduo (idealismo, marxismo...); a ciência não cuida dos problemas últimose supremos, não tem nada a dizer a respeito da “miséria da nossa vida” e do sentido ou não sentido da existência humana (p.22). A ciência não se preocupa com a verdade mas somente com o que é útil, agora e aqui, colocando em discussão as dimensões transcendentais da vida. Deste modo operou-se uma horizontalização da existência e um fechamento dos horizontes da liberdade e da verdade dentro da angústia da vida empírica.
Consegue uma “crise dos fins” que é sintoma da crise da ética e da tentativa de anular a metafísica (filosofia: a filosofia funda a moral) (p.25). A racionalidade é reduzida à sua expressão matemática.
Com a “morte de Deus” (veja os filósofos da suspeita) tudo se torna possível, e de facto tudo foi possível.
A pedagogia, diante do fim das ideologias (como também dos colonialismos) não soube propor-se com ideias fortes acerca da relação verdade-liberdade, mas ficou vítima da ignorância dos fins, ou na falsa ideia dos fins. Assim aconteceu que, depois da 2ª guerra mundial, se passou da ditadura ao consumismo (o que houve no Moçambique em alternativa ao colonialismo?). Criou-se uma sociedade pobre de horizontes de sentido, ou com horizontes pequenos, entregue, muito cedo, ao partitocratismo. E a educação não soube opor nada ao marxismo, capitalismo, tecnicismo, partitocratismo: só silêncio. A crise foi ética. Mas se a ciência não soube propor grandes ideais e valores, há a esperança que o homem possa retomar a direcção do seu destino através uma “ética da mudança” que possa superar os preconceitos do pós-moderno e limitar o domínio e a violência da técnica (p.41). A racionalidade deve voltar a ser crítica, superar o cepticismo para encontrar novas razões. Do mesmo modo a pedagogia deve saber apresentar novos projectos educativos movidos por fortes ideais. Isto comporta a consciencialização do que em pedagogia não é possível uma solução só racional, pois sempre haverá uma incerteza a respeito dos planos e projectos. É necessária uma entrega ao ser fundante e finalizante. Volta a tona a questão da verdade não como fim da existência mas como meio (condição de possibilidade) que nos permite de ser e de agir como homens. Volta de novo a questão dos fins (ponto central da filosofia da educação). A crise dos fins é ligada à crise de educadores os quais não são movidos por ideais fortes; não se interrogam seriamente sobre a questão do “porque viver” e não têm nada de que valia verdadeiramente a pena de entregar a sua existência. O homem acostumou-se a viver “prescindindo de...” (...de Deus, do ser,...), contribuindo assim ao obnubilamento da verdade e da busca da verdade, contentando-se de “verdades” e liberdades efémeras.
Trata-se de uma liberdade que deve ser libertada.
É possível uma educação “prescindindo de...”? Em nome de um laicismo, ecumenismo ou pluralismo, devemos sacrificar o que diz respeito à verdade mais profunda do homem? A “paideia cristã” deve calar diante de um pseudo-ecumenismo? A “deseducação global” (com o seu silêncio sobre a sua verdade) levou o cristão a uma ignorância macroscópica (p.69). Como se pode educar os jovens com o silêncio sobre aquilo que é mais importante para a sua vida?
Já foi dito que há falta de educadores, mas o que significa ser educador? E G.Vico pergunta, quem é o educador autêntico? É antes de mais nada uma testemunha da verdade. Uma “consciência antecipadora” que encontra no seu completamento as premissas da plenitude da sua humanidade. Alguém que tem um fim a perseguir. Alguém que acredita na força revolucionária ínsita na ideia de “pessoa” (que encontra o seu paradigma na encarnação de Deus).
Vico se pergunta: para onde foi a educação cristã? Se encontra ainda hoje a tentar de educar a geração de jovens condenados pelos adultos a viver prescindindo de Deus, da tradição, dos fortes ideais, do sentido da vida. O educador deve levar a redescobrir o amor para a verdade e a educação à sabedoria (p.77). Ser educador cristão é educar à verdade, educar à vida no espírito (se não se educa à verdade, se educa somente à mentira); é educar ao amor para o bem, o verdadeiro, a beleza. Educar os jovens a libertar-se da invasão das ideologias promovendo os instrumentos racionais “meta-ideológicos” (p.91).
A força do cristianismo dentro da sociedade actual é a afirmação da primazia da educação; a defesa das normas universais; a busca contínua da verdade que justifica e dá sentido à existência humana; a experiência de Deus que se deixa encontrar. Tudo isso pode ser resumido na obra da “formação integral” da pessoa. É este o fim da educação: a formação integral da pessoa que envolve todas as dimensões do ser humano. Formação integral comporta também uma visão unitária da realidade; um raciocínio inclusivo e não exclusivo, capaz de dialogar com todos os homens (de qualquer religião) que estão em busca da verdade. Pluralismo não deve significar vazio de conteúdos em nome de uma convivência pobre de fins.
Vico propõe uma pedagogia que pense si mesma como “teleologia pedagógica” que se fundamenta sobre uma antropologia teísta (p.106) sem cair no fundamentalismo religioso. E a ciência? Ela pode dizer algo sobre o desenvolvimento do educando, mas nada sobre a sua essência mais profunda. A reflexão sobre os fins da educação deve conjugar-se com os seguintes termos: fim, sentido, valor, ética, ideal, conduta moral, transcendência, Deus. A educação opera assim um desmascaramento da mentira e da banalidade para educar à autenticidade. A educação visa: a plenitude do homem; a socialização; a reinterpretação da tradição, ao alcance do Bem (felicidade); a aquisição das virtudes.
É preciso recuperar a ideia forte da necessidade de projectos educativos orientados a um fim, que é a revelação da verdade de cada pessoa humana: aos fins podemos e nos devemos educar.
Vico propõe como fim prioritário e fundamental da educação às “Bem-aventuranças”.
A teleologia pedagógica entra necessariamente em diálogo com uma fé (religiosa ou laica) e a filosofia, a partir mesmo dos seus alvores, é uma filosofia da educação.
Educar no mundo futuro: entre globalização e localização
O fenómeno da globalização, típico do nosso tempo, que já tocou os âmbitos da economia e da cultura, toca necessariamente o mundo da educação. Se por anos a reflexão pedagógica era apanágio somente do ocidente, graças à explosão dos mass-mídia e da comunicação planetária, o debate enriqueceu-se com a irrupção de culturas, tradições e práticas educativas diferentes do ocidente.
Este processo de globalização gerou, paradoxalmente o seu contrário, ou seja o processo de localização, onde se impõe a reivindicação de identidades particulares que, no intento de fugir ao nivelamento das culturas (aldeia global), geram a “tribalização” do mundo. Mesmo sendo estes dois processos diametralmente opostos, têm em comum a mesma incapacidade de uma autêntica relação com o outro, com as consequências no primeiro caso (globalização) de um universalismo abstracto com sujeitos desenraizados, e no segundo um particularismo que exclui o outro até chegar ao fenómeno da “limpeza étnica”. [footnoteRef:0] [0: Cfr. CHIOSSO G. (ed), Elementi di Pedagogia, editrice La Scuola, Brescia, 2002, p.226-227]
Afinal qual será o futuro: globalização ou localização? Nem um nem outro mas “glocalização”, ou seja um mundo globalizado na solidariedade, onde se parte da pessoa para construir a unidade com todos os outros.
O documento internacional sobre a educação da Unesco de 1996 (J.Delors), indica como problemas da educação para o terceiro milénio a dialéctica entre global e local, universal e singular, tradição e modernidade, dimensão material e dimensão espiritual.[footnoteRef:1] Em modo especial esta última relação (material/espiritual) leva a uma revisão dos fins da educação que até hoje privilegiaram mais o conhecimento técnico e não os valores da pessoa. [1: Dialéctica (tensão) que reconcilia três forças: competição que fornece os incentivos; colaboração que fortalece; solidariedade que une.Ibidem.
]
O documento insiste sobre a importância da dimensão espiritual para as jovens gerações, abrir para os mistérios do universo, da vida, do nascimento do ser humano, etc. Daí a necessidade de uma reformulação dos programas educativos que olhem para o todo e não somente para as partes. Este é o problema típico da filosofia da educação, que se interroga sobre os fins da educação. Mas para indicar os fins da educação é necessário conhecer qual é a ideia de homem subjacente (antropologia) e consequentemente qual tipo de sociedade (ética social). São estes os pressupostos de toda filosofia da educação: educar quem e para que?
Qual a ideia de homem subjacente? As inúmeras antropologias filosóficas indicam a dificuldade de uma concepção comum e a complexidade do ser humano. Para não perder-se na confusão acerca da ideia de homem, poderá servir como estrada magna a assunção da figura do homem que emerge da carta do Direitos Humanos (a qual completa este ano 60 anos de vida). Mas esta carta é universal?
Dois problemas: do fundamento dos direitos e da relação entre direitos individuais e colectivos.
1. Qual é o seu fundamento? Para muitos o fundamento destes valores da liberdade, igualdade, solidariedade (ou fraternidade) é auto-referencial (o homem e a razão); para muitos outros é etero-referencial (Ser Superior).
2. O segundo problema diz respeito aos “direitos dos povos” que pisam os “direitos do indivíduo” gerando o totalitarismo. Entre estes direitos deve haver complementaridade: em caso de conflito deve-se repartir do homem.
O Estudo dos sistemas educativos dos outros continentes, permite compreender melhor o próprio sistema educativo.
No OCIDENTE (norte-atlântico) o objectivo da educação é a promoção dos direitos do indivíduo (não elencamos aqui todas as pedagogias que apareceram ao longo dos séculos).
Na AMÉRICA LATINA o objectivo da educação é a formação do cidadão (relação com a sociedade), num contexto sociopolítico muito complexo. A pedagogia da libertação têm mesmo come objectivo a consciencialização do homem para que se torne sujeito da própria história.
Na ASIA o objectivo da educação é o alcance do equilíbrio, da harmonia com os outros homens, cosmo e Transcendente. O acto educativo faz viver a união com o universo.[footnoteRef:2] Tagore afirma que pode educar somente quem sabe amar e sabe descobrir as próprias raízes culturais. [2: Cfr. Idem, p. 249]
Os estudiosos do sucesso económico do Japão encontraram o secreto deste sucesso não na organização económica e gestional, mas na educação moral e na dimensão cultural: importância dos valores espirituais no desenvolvimento das sociedades contemporâneas (que somente pensam na ciência e tecnologia); formação espiritual e moral dos jovens; qualidade da vida escolar (atmosfera da escola; estilo de educação, qualidade da relação entre os estudantes; docentes e estudantes; docentes, etc). Síntese entre filosofia e pragmatismo.
Na AFRICA: a ideia de homem subjacente é de um ser em relação com as coisas, os homens vivos e mortos, com Deus. O aforismo que define o homem africano é o famoso de Mbiti: I am becaus we are…
Em MOÇAMBIQUE: para o Prof. Doutor José Paulino Castiano “ainda não se equacionou o estatuto axiológico da educação em Moçambique, ou seja, que valores estão por trás dos esforços da educação para todos”.[footnoteRef:3] Para ele o desafio para responder à questão “educar para que?” passa por equacionar três momentos do estatuto axiológico da educação: [3: CASTIANO J.P., As transformações da educação em Moçambique, em O pós-colonialismo na África lusófona. O Moçambique contemporâneo, Harmattan Italia, Torino, 2006, p. 171]
1. Globalidade. O valor do multi(inter)culturalismo que exige uma ética global. Para Castiano precisa não fugir mas entrar com pés firmes na globalidade, como africanos e como moçambicanos. Conferir dimensão global à educação moçambicana exige uma vigilância contra o imperialismo cultural.
2. Africanidade, ou seja a condição de existência do africano na história moderna. Ser africano não é ter pele negra mas ser solidários com a condição do negro africano (há negros que não são solidários). Os valores e saberes ancestrais deveriam entrar no curriculum.
3. Moçambicanidade: que não significa mistura e nivelamento das culturas particulares (como fez o colonialismo e o regime marxista-leninista). Para que haja unidade deve-se preservar as diferencias.
Severino Ngoenha vê o grande problema da educação em Moçambique na dialéctica entre tradição e modernidade e propõe uma educação para Moçambique baseada nas línguas nativas; uma educação para a responsabilidade, mais comprometida com o desenvolvimento da Nação (atenção ao Mundo e ao Moçambique).[footnoteRef:4] Para Ngoenha as Universidades devem ser centros de investigação. Mas quais são os pressupostos educativos destas Universidades? [4: Cfr. NGOENHA S.E., Estatuto e axiologia da educação, Livreria Universitária UEM, Maputo, 2000
]
Na nossa opinião, uma educação autêntica deve visar a formação integral da pessoa. Estamos de acordo com os ideais da corrente do personalismo, mas de um personalismo africano, que visa a busca da autenticidade africana diante do desafio do terceiro milénio.
Os pontos ideais a serem alcançados são:
1. Primazia da pessoa: atenção a cada um, propondo caminhos formativos personalizados.
2. Inserção dentro do território segundo o principio de subsidiariedade com o estado, promovendo a responsabilidade dos entes públicos e da sociedade civil. Contribuir para a construção de uma “Sociedade Educadora” onde todos os agentes educativos trabalham em união para os mesmos valores.
3. Superação do modelo educativo ocidental que privilegiou mais a “horizontalização” técnica (causalidade instrumental, “como”) do que a causalidade eficiente (“porque”), criando assim uma dicotomia entre fenómenos naturais e espirituais. É necessário abrir-se a outras visões originais. Por exemplo em África onde a dimensão religiosa é tão forte, como excluir o estudo do fenómeno espiritual nas universidades e nas escolas em geral? Quem afirma que a ciência é laica afirma algo de preconceituoso pois a ciência é ciência, e diz respeito a tudo, também o fenómeno religioso. Existe um laicismo medíocre que quer fazer calar o religioso. Parece que na educação não deve entrar a política nem a religião. Mas nós achamos que o que não deve entrar é o partidarismo político e o proselitismo religioso. A educação não pode preterir da formação política e espiritual do homem, pois seria preterir a natureza mesma do homem.
4. Educar ao pluri-multi-inter-culturalismo (direito a existirem, integração). Educar á acolhida do outro (Lévinas, Dussel). Procurar valores comuns para construir um único mundo (e não terceiros mundos) para todos, onde cada um pode desenvolver as suas potencialidades.
Acolher então os desafios positivos da globalização, superando os limites da “localização” para alcançar uma “glocalização”.
Avaliar todos Avaliar cada um. Uma perspectiva pedagógica
Tratamos da questão da avaliação do ponto de vista teórico (a docimologia é propriamente o estudo científico da avaliação escolar): não queremos dar aqui soluções práticas ao problema da avaliação, mas somente sugerir reflexões que nos permita depois deduzir práticas pedagógicas.
Para esta nossa reflexão nos inspiramos ao pedagogo, Giuseppe Bertagna, e à sua obra “Avaliar todos, avaliar cada um. Uma perspectiva pedagógica” (Ed.La Scuola, Brescia, 2004).
(Nb. Introduzir o tema com o mito de Procuste)
Primeira premissa (obvia?) é que educar não é avaliar.
Segunda premissa é a afirmação (obvia?) que existe uma diferença enorme entre as pessoas, e isso pedagogicamente exige uma diferenciação do ensino e consequentemente dos critérios de avaliação.
Terceira premissa é que se parte da pessoa singular (homem) para depois raciocinar sobre todas as pessoas (sociedade, humanidade).
É necessário evitar dois empobrecimentos: o empobrecimento de todos os quais seriam privados da contribuição de cada um (poisponto de partida da teoria é a empiria: não se pode deduzir o homem da humanidade); e o empobrecimento de cada um, reduzido à educação de todos (reduzir o intelecto dos estudantes o torna mesmo mais reduzido: efeito Pigmalião).
Mas é necessário ter standard de avaliação? Sim, mas somente se estabelecido a posteriori, pois se decidido a priori causa:
1. um nivelamento dos resultados sobre valores médios, prejudicando assim os fortes e o fracos;
2. a substituição da centralidade da pessoa com as metas a serem alcançadas;
3. estandardização das actividades educativas.
Os dois valores antinómicos a serem equacionados são a educação pessoal de cada um e a educação média de todos e igual para todos, pois se é verdade que não há educação sem personalização, assim não há educação sem universalização e socialização.
Esta antinomia poderá ser governada com a distinção pedagógica entre as categorias da capacidade/competência (que diz respeito à pessoa, o “cada um”) e dos conhecimentos/habilidades (que envolve o “todos”).
Um modelo de sistema educativo nacional deve proporcionar a passagem do estatalismo à autonomia dos estabelecimentos de ensino, baseando-se sobre 4 princípios.
1. Princípio da subsidiariedade: se baseia sobre a centralidade da pessoa: valorização da identidade de cada um; planos dos estudos personalizados. Este princípio de subsidiariedade pressupõe a confiança no estudante.
É necessária a passagem do mono-centrismo estatal ao poli-centrismo institucional, pois a pessoa cresce junto a várias entidades educativas (sociais) como; a família, as instituições escolásticas, os entes locais, associações, as igrejas... Daqui podemos afirmar que a educação não é só do estado mas da República, que inclui todas estas entidades educativas.
2. Princípio de equidade: é necessário evitar a fragmentação do sistema de ensino nacional, pois iria criar escolas de primeiras e segundas categorias. Cabe ao governo ditar as normas gerais da educação e os níveis essenciais das prestações; instituir um sistema nacional de avaliação e fiscalizar: garantir o direito à instrução a todos os cidadãos.
3. Princípio de solidariedade: solidariedade entre as pessoas e entre as instituições, onde quem tem mais dá aos que têm menos, e todos cooperam para o bem comum.
4. Princípio de responsabilidade: a ajuda maior que se pode dar a um ente administrativo ou grupo social é entregar a eles a solução dos seu próprios problemas, deixar que eles assumam as suas responsabilidades. A coisa pior seria considerá-los incapazes de resolver os seus problemas. Apesar de algumas caídas, eles aprenderão, finalmente, a caminhar.
A Republica deve indicar os standards obrigatórios de prestação de serviço profissional que as escolas e docentes devem garantir, e não standard mínimos (ou médios) de aprendizagem que os estudantes devem alcançar em todas as escolas das nações. Estes últimos objectivos devem ser decididos pelas escolas autónomas e pelos docentes, a fim de desenvolver ao máximo as capacidades de cada estudante. Escolas e docentes deverão prestar conta das decisões tomadas.
O sistema de avaliação nacional não tem a tarefa de avaliar os estudantes individuais, mas recolher dados objectivos para estatísticas nacionais, a fim de orientar as políticas educativas e as escolas.
Aos docentes cabe avaliar a existências de competências extra-escolares ou informais, definir os standards que depois serão controlados e garantidos pelas instituições escolásticas.
Algumas preocupações: e se os objectivos indicados pelos docentes fossem de baixo nível? Não há demasiada confiança nos docentes e nas escolas? Estes não deveriam simplesmente inventar modos criativos para alcançar standards fixados pelo estado? O estado forneceria os “fins” e os docentes/escolas os “meios”? Mas se estes últimos são considerados incapazes de indicarem os fins, como serão capazes de fornecerem os meios?
O sucesso de uma instituição está na confiança recíproca: não é considerando os outros incapazes que eles se tornam capazes, mas o contrário (Pigmalião). Escolas e docentes não têm condições para fazer este trabalho? Então há necessidade de suportes, de maior formação dos docentes. Os docentes e escolas devem poder avaliar não com critérios elaborados por outros mas com critérios elaborados e pensados também por eles mesmos.
Mas aquilo que é personalizado não pode (ou é difícil) ser avaliado?
Cada estudante deve ter o seu Portfólio onde são avaliadas as aprendizagens (standard de conhecimentos alcançados); a avaliação dos comportamentos através da observação, colóquios, narrações...); a avaliação das competências (reconhecimento público por parte de peritos ou testemunhas, das competências adquiridas).
Este Portfólio não é um contentor desorganizado, mas pode ter uma versão maior (com toda a documentação sobre as competências e a história do aluno) a ser entregue cada ano à família; e uma menor, como síntese a ser guardada no arquivo da escola.
Devemos lembrar a combinação das duas lógicas. Da autonomia das instituições e da unidade do quadro nacional que impeça a fragmentação e permite uma mobilização dos estudantes. Trata-se de duas lógicas incompatíveis? È melhor privilegiar só uma das duas? Problemática aberta.
A avaliação das aprendizagens externa é quantificável, aquela interna não, é só qualificável. Os conhecimentos/habilidades podem ser avaliados objectivamente; as competências pessoais é mais difícil: é problemático mesmo só falar de standard e níveis de aprendizagem.
Umas críticas sobre os testes de avaliação: se limitam à compreensão de textos escritos; o tipo de compreensão é só lógica e abstracta: se transforma só em habilidades quantificáveis. Quem é hábil em compreender estes textos, não necessariamente é uma pessoa competente, pois as competências exigem respostas abertas e não fechadas (competente é quem sabe encontrar outras respostas aos problemas ou situações que aparecem). Este modelo metrológico é incapaz de considerar as competências; serão um espelho deformado pois monstra só as habilidades e não as competências. Este modelo leva as escolas a visar somente o alcance do standard das habilidades e não os fins da educação; assim como a pensar que importantes são somente algumas disciplinas cognitivas-lógicas (quantofrénicas) e não as expressivas, artes, comportamentos morais, etc.
Mas como avaliar as competências? Elas não são algo de místico e inefável mas algo de observável. As competências poderão serem certificadas com um instrumento narrativo como o “Portfólio das competências pessoais”.
Mas quem certifica? Os docentes, mas também as famílias, outros actores sociais e profissionalizantes.
Falar de competências é falar de problemas a serem resolvidos continuamente: partir de problemas e usar as disciplinas para resolvê-los e não o contrário e inventar depois problemas como meros exercícios aplicativos.
A certificação das competências deve ser algo de transferível e confrontável, por isso é necessário que haja uma matriz única de referência para as certificações das competências.
O problema é que quem indica os standards, quem certifica, quem fiscaliza e quem garantem estes conhecimentos e competências adquiridas é sempre o mesmo estado: a introdução das autonomias das escolas quebra este monopólio do estado.
(Concluir com a história do mito de Procuste)
METODOLOGIA E COMPETÊNCIA PEDAGÓGICA
Na continuação da nossa pesquisa teórico-pedagógica perguntamo-nos: o que significa para nós educar? Estamos a educar para que? Qual é o tipo de doutor que queremos preparar? Quais as competências que o nosso doutor deve adquirir? Etc.
Visar a formação integral significa visar uma “forma” particular, ou melhor “dar-se uma forma”, a própria “forma”. Fins educativos então não são metas a serem alcançadas, mas oferecimento dos elementos necessários para que a pessoa possa dar-se a sua “forma”. Não basta conhecer os fins, precisa que estes fins tomem uma “forma”. Para que isso aconteça precisa uma relação interpessoal (formador/formando)qualificada. Até podemos dizer que o alcance dos fins depende em boa parte de educadores capazes de relações interactivas.
Já dissemos na outra ocasião que os fins dependem de uma antropologia subjacente e da relação do homem com a sociedade, cultura, política e religião. Por isso existem diferentes modos de pensar a finalidade da educação. Entre eles:
- O Socialismo educativo vê o homem em forte relação funcional com a vida social, política e económica, assim que a educação identifica-se com os processos de socialização. O homem educado é aquele que opera para o bem da sociedade, da pátria, do trabalho, do desenvolvimento. Este socialismo gerou porém também os totalitarismos ideológicos, os nacionalismos (isso acontece quando se quer realizar o Absoluto aqui na terra, e si acaba por absolutizar o chefe, o partido, o mito), e os fundamentalismos (religiosos) que não dão espaços às iniciativas individuais.
- O Naturalismo vê o homem como fruto do caso (acaso) e partícula da evolução do universo, por isso poder ser estudado em todas as suas partes (trata-se de uma antropologia de tipo empirista). O que diferencia o homem dos outros seres é a complexidade da suas operações mentais. Homem educado é aquele que aprende a integrar-se no ambiente físico e na cultura em que se encontra a viver.
- O “Individualismo” (“fragmentismo” pós-moderno) vê o homem não mais “socializado” o “naturalizado”, mas o homem que “cuida de si” antes de todo o resto, através das “tecnologias do si”: meditação, memorização, exame de consciência, actividade física, regimes, amizades... O homem educado é aquele que tem uma boa relação consigo mesmo (estetismo, narcisismo, mundanismo...).
QUAL “FORMA” DAR-SE?
Entre estas corrente, qual rumo escolher? O fim social é muito redutivo (esquece todo o mundo interior do indivíduo). Também o fim natural, que exalta a capacidade racional do homem, é muito redutivo: de facto, o que sabe/pode dizer a racionalidade sozinha acerca das paixões, pulsões, instintos fortes como o amor, o ódio, etc.?
O fim do “Individualismo”, mesmo valorizando mais a subjectividade em relação aos dois precedentes, sofre de fortes limites tais como: elitismo narcisista; individualismo; desenraizamento da história e da sociedade; relativismo.
Como superar estes limites? Referendo-nos a algo que não seja somente sujeito aos particularismos, mas orientado ao sentido, aos valores (universais) do homem. Uma projecção pedagógica deve considerar seja o concreto particular que o valor universal. Além dos paradigmas vistos acima (insuficientes) urge a necessidade da elaboração de novos paradigmas mais abrangentes e capazes de sínteses.
Então, se o fim da educação é a “formação integral”, como se configura esta “forma”? 1. Antes de mais nada reconhecendo e afirmando a unicidade de cada homem: cada homem tem o seu rosto único (Lévinas) que deve ser reconhecido e que o abre ao absoluto e transcendente. 2. Um rosto como abertura ao outro respeitando-o na sua alteridade. A “forma” então se configura no agir responsável (consigo mesmo e com o outro). Neste caso quem é o homem educado? É o homem virtuoso, responsável, que reconhece aos outros a sua dignidade, conforme à grande tradição da filosofia ética (Agostinho; S.Tomás; Rosmini, Apel, Jonas, Lévinas, Ricoeur). Para não cair no moralismo: fim da educação não é o exercício das virtudes, mas a capacidade de viver segundo virtude. Este projecto dever se apresentado não como constrição mas como ocasião, possibilidade.
Mas que modelo seguir? Será que indicar um modelo é uma acção anti-pedagógica (pois limitaria a liberdade)? È uma preocupação não motivada, pois indicar um modelo não significa dar uma ideia fechada a ser colocada em pratica mas indicar um ideal, que possa orientar a trans-“formação” da identidade do sujeito humano. Este ideal é algo de sempre aberto, porque tomar “forma” é um processo contínuo: educar é um processo não feito uma vez para sempre, mas algo sempre a fazer.
Como o homem pode conseguir a sua “forma”? Realizando as tarefas da verdade, justiça, liberdade. O homem neste processo de “tomar a sua forma” torna-se um homem verdadeiro (com amor para a verdade), justo (empenhado pela justiça) e livre (autónomo e responsável): ou seja um homem integral.
Qual itinerário a seguir para alcançar esta forma? Interrogar o sujeito para que seja “capaz” de querer esta “forma” e de escolhe-la (educação do carácter). Para fazer isso é necessário um modelo: o exemplo de quem já fez esta opção (foi capaz de decidir-se para o bem verdadeiro-justo-livre) e a testemunha esta opção como sua própria “forma”.
PEDAGOGIA COMO PRÁTICA DO “DAR-SE FORMA”.
A pedagogia se assenta sobre uma dúplice verdade:
1. Direito à educação para as gerações jovens
2. Dever de educar por parte das gerações adultas
Não se trata de duas verdades pacíficas e realizadas: basta ver quantas crianças e jovens não têm a “cura” educativa de que eles têm direito.
Há quem pode achar que cuidar de alguém é condicionar a sua liberdade. Mas existe uma liberdade absoluta? As tradições e culturas são um limite ou uma possibilidade?
O que importa é que as intervenções educativas sejam propositivas e argumentados, nunca constritivos. Um modelo pode ser acolhido ou refutado: o “nada” educativo só fica um “nada” e com “nada” não se persegue nenhuma “forma” (se não mesmo a forma do “nada”).
Com a proposta deste modelo o educando pode construir o seu projecto (que é sempre um evento pessoal, uma conquista pessoal): isso não é algo de automático mas depende da “cura educativa” dos educadores, do encontro com outras pessoas e com experiências adultas significativas. A construção de um projecto então não é algo de planificado e programado mas fruto de uma relação/evento interpessoal sempre aberta, onde o educador ajuda o educando a dar-se a sua própria “forma”. (Cfr. Chiosso G. (ed.), Elementi di pedagogia, La Scuola, Brescia, 2002, pp. 83-120).
METODOLOGIA PEDAGÓGICA.
È necessário um projecto educativo para não expor-se sempre a numerosas tentativas, ou a soluções imediatas. Projectar é escolher (é bom rever de vez em quando as próprias opções, para não cair nos “habitualismos” e dogmatismos).
Como conciliar programação e liberdade?
Já existem vários modelos de programação/projecção. Entre eles: 1. o modelo Clássico: linear ou directivo; 2. Modelo Participativo.
Mas na nossa época de razão débil podemos somente traçar uma programação débil (ou “pós-programação”). Cada programação deve considerar que haverá sempre uma margem de incerteza e de risco. Mas é sempre coisa melhor programar ao em vez de deixar tudo à improvisação.
Não bastam as boas intenções: precisa explicitar o projecto. Para fazer isso podemos assentar-nos sobre duas rochas: Pesquisa-Acção, onde o momento teórico interage com o momento prático. Fazer pesquisa no entanto que se opera na realidade. (No campo pedagógico a Pesquisa-Acção se traduz na colaboração entre os educadores e os académicos da educação).
Mas partir de onde? Existem vários métodos.
Método clássico das três mediações (sócio-analítica, hermenêutica e prática, ou mais simplesmente: ver-julgar-agir): é sempre o mais válido. Outros usam métodos com “variantes”, por exemplo: Ideia Geral, Recognição, Plano Geral, Realização, Avaliação (mas todos estes elementos podem-se resumir sempre com a metodologia a “clássica” do “Look, Think and Act”).
Outro método é o do Cooperative Learning (aprendizagem cooperativa), ou seja uma modalidade de aprendizagem que se realiza através da cooperação com outros colegas da turma (utilizando pequenos grupos de 3/4 pessoas). Entre os alunos deve haver interdependência positiva (cada um deve ter a sua tarefa que depois será colocada em comum para um único resultado final); Responsabilidade individual e de grupo (para quem ninguém explore o trabalho do outro); Interacção construtiva (cada um pode/deve encontrar no colega quem o ajuda a superar as dificuldades); Habilidades sociais (não basta formar um grupo, mas adquirir capacidades comunicativase afectivas: onde há uma relação interpessoal mais significativa, há mais aprendizagem, pois as teorias não influenciam tanto como a qualidade das relações); Avaliação de grupo (o grupo deve saber avaliar o seu trabalho, para melhorar o seu desempenho futuro).
Outro método é o Autobiográfico: projectar a existência interpretando a experiência. Trata-se de conciliar a unicidade de cada um (com as suas exigência e necessidades), com a pesquisa de um percurso educativo comum (nb. Também a pesquisa pode ser uma relação entre as pessoas): come afirma Montaigne “chaque homme porte la forme entière de l’humaine condition”. Cada um deve produzir a sua autobiografia (por escrito, oralmente ou com a arte) e não mais refazer-se aos modelos alheios (democratização: cada vida é importante, a tua vida é importante). (Cfr. Chiosso G. (ed.), Elementi di pedagogia, La Scuola, Brescia, 2002, pp. 121-180).
COMPETÊNCIA PEDAGÓGICA (Profissionalidade educativa).
O evento educativo está estritamente ligado à dimensão da projecção. Sendo este um processo complexo, se exigem pessoas competentes, capazes de assumir a cura e as relações qualificadas (chega de improvisações e voluntarismo).
Por competência se entende geralmente a capacidade de orientar-se num determinado campo, dominá-lo e geri-lo. Competência é domínio adquirido na própria área que possibilita a avaliação e julgamento dentro do próprio campo. Esta capacidade é validada pelo reconhecimento de uma autoridade competente.
No campo do trabalho o termo competência substituiu o de “qualificação”: capacidade de adaptar-se a novas situações (flexibilidade, requalificação).
A ideia de competência é muito complexa, por isso existem várias interpretações (síntese entre saber, saber fazer e saber ser; entre know-that e know-how, know-why e know-where). Mas concordamos que preparar ao exercício da competência profissional não é somente fornecer knows, mas alimentar a vontade, o empenho a construir uma profissionalidade sempre mais competente, crítica e “propositiva” dentro no contexto em que se opera.
A este fim lançamos a proposta aos nossos docentes (na verdade, mais do que uma proposta) para cada um tornar-se competente numa determinada área, através da autoformação especialista numa determinada matéria para adquirir a profissionalidade e tornar-se ponto de referência neste sector.
O profissional é aquele que sabe renovar-se nos vários momentos da sua vida profissional, e não docente estático que só repete sempre aquilo que produziu no começo. Renovar-se continuamente para saber enfrentar sempre as novidades e os imprevistos.
Para definir o campo da própria competência elemento fundamental é a vocação: qualidade do ser, motivações a agir, ideais pessoais. A profissionalidade emerge da conjugação entre os saberes (knows), aptidões (disposição) e vocações (opção: para desenvolver as aptidões, aumentar o saber). A identidade profissional se identifica assim com a realização pessoal.
Enfim, a qualidade profissional reenvia à qualidade da pessoa: subjectividade e competência se encontram no terreno da deontologia profissional. (os pontos essenciais do código deontológico: p.216-218).
1. Formação contínua
2. Deveres com o educando
3. Responsabilidade com os colegas
4. Melhorar a qualidade da instituição
5. Relação com a família do educando
6. Relação com o território
7. Empenho político (em defesa dos mais fracos)
(Cfr. Chiosso G. (ed.), Elementi di pedagogia, La Scuola, Brescia, 2002, pp. 181-220).
A COMUNICAÇÃO
Nesta nossa breve colocação, gostaríamos de propor uma reflexão filosófica sobre os novos cenários e os desafios da comunicação e informação.
A nossa época é definida, erroneamente, como “época da comunicação”com o avanço das tecnologias de comunicação que permitiu aquilo que o filósofo Gianni Vattimo chama de “explosão dos mídia” e democratização da informação em quanto abriu a todos as possibilidades de intervir no cenário global da informação. Na realidade não podemos chamar a nossa época de “era da informação”, quando 5/6 da população mundial (mais de 5 biliões de pessoas) não tem acesso às novas tecnologias. De facto, se a maioria da população do mundo vive com mais de um dólar por dia, como será possível não somente ter um computador ou uma televisão (pensando também que não têm energia eléctrica em casa), mas também enfrentar os custos de acesso á internet, comprar um jornal, uma revista, etc. Usufruir da informação se torna um “luxo” dos ricos, não para a maioria da população.
Esta explosão dos mídia e das tecnologias da comunicação, ao em vez de igualar os homens, criou mais uma fronteira de divisão no mundo. Este novo fenómeno é chamado de digital divide. Este tema será o primeiro ponto da nossa reflexão. O outro problema que trataremos será da questão da verdade na comunicação, com o fenómeno que Chomsky chama de “alfandega da informação” e “excesso das informações”.
O primeiro fenómeno, que chamamos de digital divide, tem duas características: 1) digital divide geográfico e 2) digital divide interno.
Por digital divide geográfico se entende a divisão provocada pelas tecnologias mediáticas entre o norte e sul do mundo, com a exclusão dos países em via de desenvolvimento (especialmente os mais pobres). Isso é evidente especialmente para nós que vivemos no continente africano: onde há pobreza absoluta não há tecnologias. Pobreza absoluta é também falta de infra-estruturas que impedem a comunicação, como por exemplo as estradas. Mas acrescentamos que pobreza absoluta é também falta de meios de comunicação social: há pobreza absoluta quando um país tem somente um jornal diário, poucos semanais ou mensais, poucas rádios e somente duas redes televisivas. Isso se radicaliza ainda mais nas Províncias como a nossa, onde não há jornais locais, a excepção de um pequeno jornal mensal editado por um grupo de jovens desta cidade. Onde a circulação da informação é limitada, é limitada também a democracia.
Alguém pode pensar que antes destas tecnologias há outras prioridades mais dramáticas. Deste modo se esquece que entre tecnologia e desenvolvimento há estrita conexão: as tecnologias são uma ajuda ao desenvolvimento, e a consciencialização do povo através de uma informação e formação correcta, pode orientar a política e economia para a melhoria das condições de vida do mesmo (trabalhar para o welfare). Esta consciencialização deve acontecer não somente dentro do próprio país, mas deve visar também aquilo que Filomeno Lopes chama de comunicação inter-periférica, onde os países da África e do terceiro mundo, tornar-se-ão um interlocutor importante no cenário internacional (Lopes chama este fenómeno de “terceiro-mundialismo”).
A outra característica é aquela que chamamos de digital divide interno, ou seja a criação de uma divisão (gap) dentro dos mesmos países desenvolvidos, onde a propriedade dos meios de comunicação de massa e gestão da informação, está ligada a elites económicas e políticas. Paradoxalmente, quanto mais diminui o digital divide geográfico, tanto mais aumenta o digital divide interno, ou seja a divisão entre grupos sociais. De facto as tecnologias se tornam apanágio das elites, e quando estas tecnologias se difundem a todos, é porque as elites já possuem outras tecnologias mais avançadas. Mais uma vez, as tecnologias contribuem a divisão social, mais do que a sua coesão.
O segundo problema de que falamos acima, é a questão da verdade da comunicação. Este é um tema já amplamente tratado pela filosofia contemporânea (aliás, a viragem contemporânea da filosofia é em direcção da linguagem). Para Habermas, autor da “teoria do agir comunicativo”, a verdade da comunicação reside no consenso alcançado dentro da comunidade dos interlocutores. Continuando, mas ultrapassando Habermas, Apel apela para o alcance de uma verdade não contextual (fruto de um “acordo” ou “consenso” entre os interlocutores), mas uma verdade transcendental, ou seja, objectiva.
Contrariamente a estes dois filósofos, os filósofos pós-modernos não colocam mais a questãoda verdade mas das verdades: cada etnia ou grupo tem a sua verdade.
Como acontece com a questão do saber, também a questão da comunicação está ligada não à preocupação da verdade mas da performatividade, o que é mais útil, o que pode aumentar mais o poderio (económico ou político). Aquilo que Lyotard aplica ao saber, Chomsky aplica à comunicação: não é verdade que os mídia são o espelho da realidade, mas porta-vozes de uma visão da realidade das elites económicas e políticas, que operam uma alfândega das informações. Através desta “alfândegas” só passa um determinado tipo de informação (os meios de comunicação de massa custam muito dinheiro, e quem gasta o seu dinheiro por isso não quer nenhuma critica contra si). Além disso, continua Chomsky, há um bombardeamento de informações que sufoca o público, matando o espírito crítico distraindo-o das questões mais importantes. O excesso de informação, produz, paradoxalmente, a desinformação. Consequência disso é a perca da racionalidade e liberdade, que leva à diminuição da democracia. (Lembrar que a informação é definida como o IVº poder).
Face a este monopólio da informação (a maioria das informações são passadas por poucas agências internacionais), assistimos à explosão de difusão da informação via internet, onde cada um é editor de si mesmo. Isto coloca em crise o jornalismo clássico (paradigmático é quanto aconteceu com o Tsunami: um blog local forneceu informações de primeira mão a milhões de pessoas no mundo, superando os grande mídia, CNN etc.).
Se de um lado a multiplicação das informações redimensiona o monopólio da verdade, do outro lado torna ainda mais complexo o acesso à verdade. Entre as duas posições porém certamente é preferível a segunda, pois caberá ao cidadão avaliar as informações e aceder à verdade.
Por isso é necessário que o mundo da informação fique fiel á sua vocação original, cujos valores estão contidos no código deontológico da categoria dos jornalistas.
Os jornalistas, que sempre numerosos são mortos cada ano, nos indicam que eles são os profetas do nosso tempo: pessoas que não têm medo da verdade. Carlos Cardoso é com certeza um profeta moderno da história recente do Moçambique. Ninguém deveria ter medo da verdade: os mesmos governos ou grupos económicos que agem honestamente, nunca poderão temer os jornais, aliás incentivarão a sua objectividade.
São aqueles que têm medo da verdade que têm medo dos jornalistas. Os jornalistas honestos são dispostos até a dar a vida pela verdade, pois eles sabem que somente a verdade nos tornará livres.
(Supérfluo acrescentar que falamos do autêntico jornalismo)
UNIVERSIDADE DE QUALIDADE
Com este termo « Universidade de Qualidade » entende-se o alcance de um standard de qualidade internacional avaliado com critérios objectivos e comuns.
1. QUALIDADE DOS DOCENTES
O ponto de partida está na convicção de que uma Universidade de Qualidade depende principalmente da qualidade dos seus docentes.
As três tarefas principais em que se dividem os docentes numa universidade são :
1. Administração ; 2. Didáctica ; 3.Pesquisa.
Alguns docentes desenvolvem uma, ou duas, ou três destas tarefas, mas pode acontecer também que alguns não desenvolvem nenhuma das três (caso dos Administradores que não administram ; “ensinadores” que não ensinam ; pesquisadores que não pesquisam).
Supérfluo dizer que o ideal é que cada docente possa exercer somente uma destas actividades, ou, na pior das hipótese, duas, conforme Às suas capacidades e preferências.
A maioria dos docentes está empenhada na didáctica.
Mas se o principal objectivo de uma universidade é de produzir conhecimento, e não principalmente « transmitir » conhecimentos, significa que a tarefa principal da Universidade é fazer pesquisas científicas. A excelência de uma universidade depende essencialmente da sua pesquisa científica. Consequentemente, onde haverá uma boa pesquisa, haverá também uma boa didáctica.
Uma figura principal da Universidade deve ser o « professor de pesquisa », com tarefas didácticas muito limitadas ou de tipo especialista.
A pesquisa deve ser um direito e um dever dos docentes. O governo deve permitir aos docentes além das horas para a didáctica, horas para desenvolver actividades de pesquisa que se possam avaliar. Estes pesquisadores deverão receber mais estímulos do que os ensinadores, pois se estes últimos ganham mais do que os pesquisadores, seria um desincentivo à pesquisa.
O tempo do planeamento das aulas deveria ser em qualquer modo conferido e avaliado.
Enfim, uma Universidade deve saber/poder premiar os docentes que têm mais mérito.
2. « GOVERNANCE » : AUTONOMIA E AVALIAÇÃO
A estrutura do governo deve ser simples e eficiente, necessariamente de tipo hierárquico, mas fundado sobre a participação democrática, responsabilidade individual e competências nas funções. Cada organismo deve ter as suas responsabilidades e um único ponto de referência.
A Universidade deve gozar de uma autonomia que permita de fazer as suas opções estratégicas, sem depender de pressões políticas ou sociais. Precisa de autonomia para :
- preparar os programas e planos de estudos
- recrutar docentes qualificados a nível nacional e internacional
- distribuir os recursos premiando mais os pesquisadores do que os ensinadores.
Ao Governo da Universidade cabe como uma das tarefas principais, a avaliação geral e pontual da Universidade, especialmente verificar pontualmente a preparação dos professores. Isso pode efectuar-se (quando a dimensão da Universidade for maior) através de « observatórios da didáctica e observatórios da pesquisa ».
3.DIMENSÕES DA UNIVERSIDADE
Se para uma Universidade ter muitos cursos se torna um valore (pluri-disciplinariedade), isso não deve causar uma dimensão excessiva da mesma, porque tornaria o governo e a administração menos eficientes, não permite a criação da comunidade académica adequada.
Os índices qualitativos dizem respeito às relações :
Docentes/estudantes
Espaços/docentes
Espaços/estudantes
Financiamentos/estudantes
Financiamentos/docentes
Custos/benefícios
4.INTERNACIONALIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE
Uma Universidade de Qualidade deve adequar os seus planos de estudo ao standard internacional, para permitir uma mobilidade dos docentes e estudantes, (circulação ou mercado das inteligências) e uma inteligibilidade maior dos graus académicos alcançados.
Favorecer uma política de internacionalização, criando cursos de especialização (ou masters, ou doutoramento) abertos a estudantes estrangeiros (leccionados em inglês ?).
5. OS ESTUDANTES
Os estudantes, destinatários da Universidade, devem ingressar através de uma selecção séria : a possibilidade de ingressar deve ser oferecida a todos, mas depois quem entrará de facto, deve ser pelos seus méritos.
A Universidade (especialmente a privada) não deveria deixar-se condicionar das necessidades numéricas.
Os estudantes, especialmente os mais pobres, devem receber condições mais favoráveis para estudar (bolsas, empréstimos, lares, etc).
PROCESSO DE BOLONHA
O “Bolonha Process” é uma Declaração assinada em 1999 em Bolonha pelos ministros da Educação de 29 países Europeus, que visa a construção da Área Europeia de Ensino Superior. Este objectivo se concretiza nestes pontos:
· INTELLIGIBILIDAE E MOBILIDADE: perseguir uma maior uniformização possível a um standard internacional dos cursos universitários, que permita uma maior inteligibilidade e comparação no exterior dos graus acadêmicos aqui conferidos, favorecendo assim uma maior mobilidade para o trabalho, ou para a continuação dos estudos especializados, no exterior.
· Elaboração de novos ordenamentos e de uma nova “arquitectura” do percurso universitário.
· As principais novidades, explicadas em seguida em modo mais detalhado, são:
1. Articulação do percurso de estudo em vários níveis (3+2+3)
2. Créditos Formativos Universitários (CFU)
3. Classes de “Licenciaturas”
1) NOVA ARTICULAÇÃO DO PERCURSO DE ESTUDO
Nas Universidades moçambicanas, a duração dos cursos para a Licenciatura, é maior em relação ao standardinternacional. De facto, além da duração mínima de quatro anos para a licenciatura, o estudante universitário moçambicano deve redigir uma tese final empenhativa, que exige muito tempo, assim que para muitos, os quatro anos para a licenciatura se tornam cinco, ao passo que os seus colegas de outros países concluem no mesmo tempo não só a licenciatura (L1) mas também a Licenciatura de Especialização (L2) ou Mestrado. Neste modo os estudantes moçambicano são penalizados em relação aos colegas do resto do mundo, e a adopção dos 4 anos para a licenciatura irá travar a mobilidade dos estudantes estrangeiros para o Moçambique, pois isso implicaria mais tempo de estudo.
O Bolonha Process auspicia a nova estrutura do “3+2+3”, ou seja:
3 anos para a “Licenciatura” (L1 = Licenciatura de Primeiro nível),
+ 2 anos para a “Licenciatura de Especialização” (L2 = Licenciatura de Segundo nível, ou “Mestrado”)
+ 3 anos para o Doutoramento.
Licenciatura (L1 = Licenciatura de Primeiro nível):
Acede-se depois da 12 classe (ou equivalente) e é obrigatória para passar à Licenciatura de 2 nível (Licenciatura Especializada).
Requerimentos:
· três anos de estudo
· adquisição de 180 créditos (ver mais a frente o parágrafo dos CFU)
· o estudo de pelo menos uma língua estrangeira.
Conferimentos:
· Competências de base
· Figura profissional básica para inserção no mundo do trabalho
· Habilitação para o acesso ao Máster de 1 nível e à Licenciatura de Especialização
Licenciatura de Especialização (L2): Acede-se depois da Licenciatura (L1). É obrigatória para passar aos níveis seguintes.
Requerimentos:
· dois anos de estudo (mais os três anos da L1)
· aquisição de 120 créditos (mais os 180 créditos da L1). No caso a L2 não pertencer à mesma classe da L1, o estudante será devedor de mais créditos (“dívidas formativas”).
· o estudo de uma segunda língua estrangeira (?) (a escolha entre Inglês, Francês e Italiano)
Conferimentos:
· Competências especializadas
· Figura profissional especializada para inserção no mundo do trabalho
· Habilitação para o acesso ao Máster de 2 nível e ao Doutoramento
A Arquitectura internacional prevê também o conferimento de “Masters”, precisamente o Máster de 1 nível e o Máster de 2 nível:
Máster de 1 nível (M1): Acede-se depois da Licenciatura (L1).
Requerimentos:
· um ano de estudo (mais os três anos da L1)
· aquisição de 60 créditos (mais os 180 créditos da L1).
Conferimentos:
· Conhecimentos e habilidades profissionais de nível técnico-operativo
Máster de 2 nível (M2): Acede-se depois da Licenciatura de Especialização (L2).
Requerimentos:
· um ano de estudo (depois da L2)
· aquisição de 60 créditos (mais os 300 créditos da L1+L2).
Conferimentos:
· Aperfeiçoamento da formação e aquisição de ulteriores competências de nível de projectação úteis no mundo do trabalho
O último grau académico será o Doutoramento.
Comparação dos ordenamentos dos estudos:
Anos de estudo
Graus acadé-micos em Moçambique
Graus correspondentes no novo ordenamento da UP-SF
Graus académicos em Outros Países
3
Bacharelato
Licenciatura
de 1 nível (L1)
-Bachelor (mundo anglo-saxônico)
-Licence (França)
-Laurea (Itália)
+1
Licenciatura
Máster de 1 nível (M1)
-Máster de 1 nível (Itália)
+1
Diploma de Pós-graduação
Licenciatura de Especialização (L2)
-Máster (mundo anglo-saxônico)
-Mastere (França)
-Laurea Specialistica (Itália)
+1
Mestre (Nb. Dois anos depois da Licenciatura)
Máster de 2 nível (M2)
- Máster de 2 nível (Itália)
+3 ou 4
Doutoramento
Doutoramento
-Doctoral Reserch (mundo anglo-saxônico)
-Doctorat (França)
-Dottorato di ricerca (Itália)
2. CRÉDITOS FORMATIVOS UNIVERSITÁRIOS (CFU)
Todo grau acadêmico é medido através de um sistema de mesura internacional chamado “crédito formativo universitario” (CFU) ou ECTS (European Credit Transfer and Accumulation System).
Cada exame vale um determinado número de CFU (a não ser confundido com a nota do exame).
Cada CFU corresponde a 25 horas de trabalho por parte do estudante (O Moçambique parece querer atribuir 1 credito a cada 10 horas de trabalho). Metade deste tempo deverá ser reservado ao estudo pessoal ou a actividades formativas individuais; a outra metade deverá ser dedicada à frequência às aulas, seminários, laboratórios, etc.
Cada exame poderá ser a suma de vários ensinamentos chamados de módulos: neste caso a nota final do exame poderá ser atribuída só depois do alcance dos créditos requeridos para tal curso.
Os votos são expressos com valores em percentagem de 100% (Nb. As notas dadas aos estudantes africanos são penalizantes, pois ninguém aparece com nota máxima).
Cada ano o estudante deve alcançar no mínimo 60 créditos, correspondente a 1.500 horas anuais entre aulas, estudo individual actividades formativas etc.
As formas de avaliações possíveis:
· provas periódicas dos conteúdos durante o curso
· avaliar de novo, ao longo dos anos, matérias já avaliadas anteriormente
· exigir o alcance de determinados créditos em tempos determinados
· atribuir créditos às actividades culturais certificadas ou a serem testadas pela mesma Universidade: ex. Cursos de Informática, línguas estrangeiras, cursos no Conservatório de Música, etc.
3. CLASSES DE LICENCIATURA
Adopção de um sistema de catalogação dos vários cursos de Licenciatura (L1) e dos vários cursos de Licenciatura de Especialização (L2) em “Classes de Licenciatura” e em “Classes de Licenciatura de Especialização” respectivamente.
Cada Classe agrupa cursos de licenciatura do mesmo nível, que têm os mesmos objectivos formativos qualificantes e consequentes actividades formativas.
Cada Classe tem um determinado ordenamento didáctico com a indicação de objectivos formativos, das áreas disciplinares e dos relativos créditos.
A adopção deste sistema de Classes permite uma maior inteligibilidade no exterior, dos títulos conseguidos na UP-SF, favorecendo uma melhor integração nos níveis seguintes.
Por exemplo, no Diploma de Licenciatura (L1) de um estudante que concluiu o Curso de licenciatura em Ensino de Português, estará escrito: Licenciado em “Ensino de Português”. Licenciatura pertencente à Classe de “Letras”.
(Cada Curso de Licenciatura (L1 e L2) poderá compreender várias curricula: depois do primeiro ano comum, se poderá seguir em seguida outros programas segundo os próprios objectivos formativos. O total dos CFU dos diferentes curricula é sempre o mesmo.
PROBLEMAS ABERTOS:
- Adoptar o sistema de 4+2 é penalizantes para os estudantes moçambicanos:
Se alega a desculpa que na África não existem os mesmos meios que existem na Europa: na realidade, quando todos os estudantes têm acesso ao internet e aos serviços bibliográficos, têm as mesmas oportunidades. A diferênça será ditada do maior o menor desempenho por parte do estudante.
- Achar que o 4+2 dá mais preparação é errado, pois as frequências às aulas são inferiores em relação ao 3+2: no primeiro caso temos 3 + ½ ano , mais ½ ano + ½ ano, por um totoal de 4 e ½ anos, ao passo que no segundo caso teríamos 5 anos no total.
-Maior anos de estudo desistimula a vinda no país de estudantes estrangeiros.
-Atribuir 10 horas de trabalho (ao em vez de 25) exige uma “re-trascrição” dos créditos moçambicanos conforme a nova contagem.
-Adoptar este sistema favorece a mobilidade de estudantes não só para o exterior mas também no interior (como são difíceis as transferências de estudantes entre as universidades moçambicanas)
- Não está provado que a reducção dos anos do estudo corresponsa a uma menor qualidade dos estudos (verificaremos se os estudantes que mandaremos na europa depois do bacharel terão resultados melhores ou piores). Discurso a parte por algumas licenciaturas tipo: Medicina. Engenheria, etc...
-Este sistema permite uma maior flexibilidade e autonomia dos Institutos de Ensino Superior, em reconhecer títulos de outras Universidades, e cursos também não universitários, ou habilidades alcançada ao longo da vida (e certificadas pela universidade).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO DAS UNIVERSIDADES CATÓLICAS:“EX CORDE ECCLESIAE”
É notório que as Universidades no mundo nasceram dentro da Igreja Católica (“Ex corde Ecclesiae”) e por isso achamos importante ver quais são os princípios que norteiam a Filosofia da educação das Universidades Católicas.
Tais princípios estão contidos no documento “Ex corde Ecclesiae” de João Paulo II, que é indicado como “Magna Charta” para as Universidades Católicas no mundo.
Aqui em seguida o texto integral deste documento.
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CONSTITUIÇÃO APOSTÓLICA
EX CORDE ECCLESIAE
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
SOBRE AS UNIVERSIDADES CATÓLICAS
INTRODUÇÃO
1. NASCIDA DO CORAÇÃO DA IGREJA, a Universidade Católica insere-se no sulco da tradição que remonta à própria origem da Universidade como instituição, e revelou-se sempre um centro incomparável de criatividade e de irradiação do saber para o bem da humanidade. Pela sua vocação a Universitas magistrorum et scholarium consagra-se à investigação, ao ensino e à formação dos estudantes, livremente reunidos com os seus mestres no mesmo amor do saber. [1] Ela compartilha com todas as outras Universidades aquele gaudium de veritate, tão caro a St.o Agostinho, isto é, a alegria de procurar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la [2]em todos os campos do conhecimento. A sua tarefa privilegiada é « unificar existencialmente no trabalho intelectual duas ordens de realidade que muito frequentemente se tende a opor como se fossem antitéticas: a investigação da verdade e a certeza de conhecer já a fonte da verdade ». [3]
2. Durante longos anos eu mesmo fiz uma experiência benéfica, que me enriqueceu interiormente, do que é próprio da vida universitária: a ardente procura da verdade e a sua transmissão abnegada aos jovens e a todos aqueles que aprendem a raciocinar com rigor, para agir com rectidão e para servir melhor a sociedade humana.
Desejo, por isso, compartilhar com todos a minha profunda estima pela Universidade Católica, e exprimir o vivo apreço pelo esforço que nela se faz nos vários âmbitos do conhecimento. Dum modo particular, desejo manifestar a minha alegria pelos múltiplos encontros que o Senhor me concedeu ter, durante as viagens apostólicas, com as Comunidades universitárias católicas dos diversos continentes. Elas são para mim o sinal vivo e prometedor da fecundidade da inteligência cristã no coração de cada cultura. Elas dão-me a fundamentada esperança dum novo florescimento da cultura cristã no contexto múltiplo e rico do nosso tempo de mudança, o qual se encontra certamente perante graves desafios, mas é também portador de tantas promessas sob a acção do Espírito de verdade e de amor.
Desejo exprimir, depois, agrado, apreço e gratidão aos numerosíssimos professores católicos empenhados em Universidades não Católicas. A sua missão de académicos e de cientistas, vivida à luz da fé cristã, deve considerar-se preciosa para o bem das Universidades onde ensinam. Com efeito, a sua presença é um contínuo estímulo à procura abnegada da verdade e da sabedoria que vem do Alto.
3. Desde o início do pontificado, empenhei-me em comunicar esta ideia e sentimentos aos meus mais estreitos colaboradores, que são os Cardeais, com a Congregação para a Educação Católica, bem como as mulheres e os homens de cultura de todo o mundo. Com efeito, o diálogo da Igreja com as culturas do nosso tempo é o sector vital, no qual « se joga o destino da Igreja e do mundo neste final do século XX ». [4] Não existe senão uma cultura: a do homem, que provém do homem e é para o homem. [5] E a Igreja, perita em humanidade, segundo a expressão do meu predecessor Paulo VI na ONU, [6] investiga, graças às suas Universidades Católicas e ao seu património humanístico e científico, os mistérios do homem e do mundo, esclarecendo-os à luz que a Revelação lhe dá.
4. É uma honra e uma responsabilidade da Universidade Católica consagrar-se sem reservas à causa da verdade. Esta é a sua maneira de servir ao mesmo tempo a dignidade do homem e a causa da Igreja, a qual tem « a íntima convicção de que a verdade é a sua verdadeira aliada... e de que o conhecimento e a razão são ministros fiéis da fé ». [7] Sem de modo nenhum desprezar a aquisição de conhecimentos úteis, a Universidade Católica distingue-se pela sua livre investigação de toda a verdade acerca da natureza, do homem e de Deus. Com efeito, a nossa época tem necessidade urgente desta forma de serviço abnegado que é proclamar o sentido da verdade, valor fundamental sem o qual se extinguem a liberdade, a justiça e a dignidade do homem. Em prol duma espécie de humanismo universal, a Universidade Católica dedica-se completamente à investigação de todos os aspectos da verdade no seu nexo essencial com a Verdade suprema, que é Deus. Portanto, ela sem medo algum, empenha-se com entusiasmo em todos os caminhos do saber, consciente de ser precedida por Aquele que é « Caminho, Verdade e Vida », [8] o Logos, cujo Espírito de inteligência e de amor concede à pessoa humana encontrar, com a sua inteligência, a realidade última que é a sua fonte e termo, e o único capaz de dar em plenitude aquela Sabedoria, sem a qual o futuro do mundo estaria em perigo.
5. É no contexto da procura abnegada da verdade que recebe luz e significado a relação entre fé e razão. « Intellige ut credas; crede ut intellegas »: este convite de Sto. Agostinho [9] vale também para as Universidades Católicas, chamadas a explorar corajosamente as riquezas da Revelação e as da natureza, para que o esforço conjunto da inteligência e da fé consinta aos homens alcançar a medida plena da sua humanidade, criada à imagem e semelhança de Deus, renovada de maneira mais admirável, depois do pecado, em Cristo, e chamada a resplandecer na luz do Espírito.
6. A Universidade Católica, mediante o encontro que estabelece entre a riqueza insondável da mensagem salvífica do Evangelho e a pluralidade e imensidade dos campos do saber em que aquela encarna, permite à Igreja instituir um diálogo de fecundidade incomparável com todos os homens de qualquer cultura. Com efeito, o homem vive uma vida digna graças à cultura e, se encontra a sua plenitude em Cristo, não há dúvida que o Evangelho, atingindo-o e renovando-o em todas as suas dimensões, é também fecundo para a cultura, da qual o mesmo homem vive.
7. No mundo de hoje, caracterizado por um desenvolvimento tão rápido da ciência e da tecnologia, as tarefas da Universidade Católica assumem uma importância e uma urgência cada vez maiores. Com efeito, as descobertas científicas e tecnológicas, se por um lado comportam um enorme crescimento económico e industrial, por outro exigem evidentemente a necessária e correspondente procura do significado, a fim de garantir que as novas descobertas sejam usadas para o bem autêntico dos indivíduos e da sociedade humana no seu conjunto. Se é da responsabilidade de cada Universidade procurar um tal significado, a Universidade Católica é chamada dum modo especial a responder a esta exigência: a sua inspiração cristã consente-lhe incluir a dimensão moral, espiritual e religiosa na sua investigação e avaliar as conquistas da ciência e da técnica na perspectiva da totalidade da pessoa humana.
Neste contexto as Universidades Católicas são chamadas a uma contínua renovação, enquanto universidades e enquanto católicas. Com efeito, « está em causa o significado da investigação científica e da tecnologia, da convivência social, da cultura, mas, mais profundamente ainda, está em causa o próprio significado do homem ». [10] Tal renovação exige a clara consciência de que, em virtude do seu carácter católico, a Universidade é mais capaz de fazer a investigação desinteresseira da verdade - investigação, portanto, que não está subordinada nem condicionada por interesses de qualquer género.
8. Depois de ter dedicado às Universidades e Faculdades Eclesiásticas a Constituição Apostólica Sapientia Christiana, [11] pareceu-me justo propor às Universidades Católicas um texto análogo de referência que seja para elas como a « magna charta », enriquecida pela experiência tão antiga e fecunda daIgreja no sector universitário, e aberta às realizações promissoras do futuro, que requer uma corajosa imaginação e uma rigorosa fidelidade.
9. O presente Documento é dirigido especialmente aos Responsáveis das Universidades Católicas, às respectivas Comunidades académicas, a todos aqueles que por elas se interessam, particularmente aos Bispos, às Congregações Religiosas e às Instituições eclesiais, aos numerosos leigos empenhados na grande missão da instrução superior. A finalidade é fazer com que se realize « uma presença, por assim dizer, pública, constante e universal do pensamento cristão em todo o esforço dedicado a promover a cultura superior, e além disso a formar todos os estudantes, de modo a que se tornem homens e mulheres verdadeiramente insignes pelo saber, prontos a realizar tarefas responsáveis na sociedade e a testemunhar a sua fé perante o mundo ». [12]
10. Além das Universidades Católicas, dirijo-me também às numerosas Instituições católicas de estudos superiores. Segundo a sua natureza e as próprias finalidades, elas têm em comum algumas ou todas as características de uma Universidade e oferecem um contributo próprio à Igreja e à sociedade, quer mediante a investigação, quer através da educação ou preparação profissional. Mesmo se este Documento diz respeito especificamente à Universidade Católica, ele entende abraçar todas as Instituições Católicas de ensino superior, empenhadas a imprimir a mensagem do Evangelho de Cristo nos espíritos e nas culturas.
É, portanto, com grande confiança e esperança que convido todas as Universidades Católicas a continuar a sua missão insubstituível, que aparece cada vez mais necessária para o encontro da Igreja com o progresso das ciências e com as culturas do nosso tempo.
Juntamente com todos os irmãos Bispos que partilham comigo o encargo pastoral, desejo comunicar-vos a profunda convicção de que a Universidade católica é sem dúvida alguma um dos melhores instrumentos que a Igreja oferece à nossa época, que procura certeza e sabedoria. Tendo a missão de levar a Boa Nova a todos os homens, a Igreja nunca deve deixar de interessar-se por esta instituição. Com efeito, as Universidades Católicas, mediante a investigação e o ensino, ajudam-na a encontrar de maneira adequada aos tempos modernos os tesouros antigos e novos da cultura, « nova et vetera » segundo a palavra de Jesus. [13]
11. Dirijo-me, enfim, a toda a Igreja, convencido de que as Universidades Católicas são necessárias ao seu crescimento e ao desenvolvimento da cultura cristã e do progresso humano.
Por isso, toda a Comunidade eclesial é convidada a dar o seu apoio às Instituições Católicas de ensino superior, e a assisti-las no seu processo de desenvolvimento e de renovação. Ela é convidada dum modo especial a tutelar os direitos e a liberdade destas Instituições na sociedade civil, a oferecer-lhes um sustento económico, sobretudo nos países que mais urgente necessidade têm dele e a fornecer assistência na criação de novas Universidades Católicas, onde for necessário.
Faço votos por que estas disposições, fundamentadas no ensinamento do Concílio Vaticano II, nas directrizes do Código de Direito Canónico, ajudem as Universidades Católicas e os outros Institutos de Estudos Superiores a realizar a sua indispensável missão no novo Advento de graça que se abre para o novo Milénio.
I PARTE
IDENTIDADE E MISSÃO
A. A IDENTIDADE DA UNIVERSIDADE CATÓLICA
1. Natureza e objectivos
12. Toda a Universidade Católica, enquanto Universidade, é uma comunidade académica que, dum modo rigoroso e crítico, contribui para a defesa e desenvolvimento da dignidade humana e para a herança cultural mediante a investigação, o ensino e os diversos serviços prestados às comunidades locais, nacionais e internacionais. [14] Ela goza daquela autonomia institucional que é necessária para cumprir as suas funções com eficácia, e garante aos seus membros a liberdade académica na salvaguarda dos direitos do indivíduo e da comunidade no âmbito das exigências da verdade e do bem comum. [15]
13. Uma vez que o objectivo de uma Universidade católica é garantir em forma institucional uma presença cristã no mundo universitário perante os grandes problemas da sociedade e da cultura, [16] ela deve possuir, enquanto católica, as seguintes características essenciais:
1. uma inspiração cristã não só dos indivíduos, mas também da Comunidade universitária enquanto tal;
2. uma reflexão incessante, à luz da fé católica, sobre o tesouro crescente do conhecimento humano, ao qual procura dar um contributo mediante as próprias investigações;
3. a fidelidade à mensagem cristã tal como é apresentada pela Igreja;
4. o empenho institucional ao serviço do povo de Deus e da família humana no seu itinerário rumo àquele objectivo transcendente que dá significado à vida. [17]
14. « À luz destas quatro características, é evidente que para além do ensino, da investigação e dos serviços comuns a todas as Universidades, uma Universidade Católica, em virtude do empenho institucional, traz à sua missão a inspiração e a luz da mensagem cristã. Numa Universidade Católica, portanto, os ideais, as atitudes e os princípios católicos impregnam e modelam as actividades universitárias de acordo com a natureza e a autonomia próprias de tais actividades. Numa palavra, sendo ao mesmo tempo Universidade e Católica, ela deve ser juntamente uma comunidade de estudiosos, que representam diversos campos do conhecimento humano, e uma instituição académica, na qual o cristianismo está presente dum modo vital ». [18]
15. A Universidade Católica, portanto, é o lugar onde os estudiosos examinam a fundo a realidade com os métodos próprios de cada disciplina académica, e deste modo contribuem para o enriquecimento do tesouro dos conhecimentos humanos.
Cada disciplina vem estudada dum modo sistemático, as várias disciplinas são levadas depois ao diálogo entre elas com a finalidade dum enriquecimento recíproco.
Tal investigação, para além de ajudar homens e mulheres na perseguição constante da verdade, proporciona um testemunho eficaz, hoje tão necessário, da confiança que a Igreja tem no valor intrínseco da ciência e da investigação. Numa Universidade Católica, a investigação compreende necessariamente: a) perseguir uma integração do conhecimento; b) o diálogo entre a fé e a razão; c) uma preocupação ética; e d) uma perspectiva teológica.
16. A integração do conhecimento é um processo susceptível de ser sempre aperfeiçoado. Além disso, o incremento do saber no nosso tempo, ao qual se junta o fraccionamento crescente do conhecimento no seio de cada uma das disciplinas académicas, torna tal tarefa cada vez mais difícil. Mas uma Universidade, e especialmente uma Universidade Católica, « deve ser uma 'unidade viva' de organismos voltados para a investigação da verdade... É necessário, portanto, promover tal síntese superior do saber, a única que poderá apagar aquela sede de verdade profundamente inscrita no coração do homem ». [19] Guiados pelas contribuições específicas da filosofia e da teologia, os estudiosos universitários deverão empenhar-se num esforço constante no sentido de determinar a relativa colocação e o significado de cada uma das diversas disciplinas no quadro duma visão da pessoa humana e do mundo iluminada pelo Evangelho e, portanto, pela fé em Cristo, Logos, como centro da criação e da história humana.
17. Ao promover esta integração, a Universidade Católica deve empenhar-se, mais especificamente, no diálogo entre fé e razão, de modo a poder ver-se mais profundamente como fé e razão se encontram na única verdade. Conservando embora cada disciplina académica a sua integridade e os próprios métodos, este diálogo põe em evidência que a « investigação metódica em todo o campo do saber, se conduzida de modo verdadeiramente científico e segundo as leis morais, nunca pode encontrar-se em contraste objectivo com a fé. As coisas terrenas e as realidades da fé têm, com efeito, origem no mesmo Deus ». [20] A interação vital dos dois níveis distintos de conhecimentoda única verdade conduz a um amor maior pela mesma verdade e contribui para uma compreensão mais ampla do significado da vida humana e do fim da criação.
18. Dado que o saber deve servir a pessoa humana, numa Universidade Católica a investigação vem sempre efectuada com a preocupação das implicações éticas e morais, ínsitas tanto nos seus métodos como nas suas descobertas. Embora inerente a toda a investigação, esta preocupação é particularmente urgente no campo da investigação científica e tecnológica. « É essencial convencermo-nos da prioridade da ética sobre a técnica, do primado da pessoa sobre as coisas, da superioridade do espírito sobre a matéria. A causa do homem só será servida se o conhecimento estiver unido à consciência. Os homens da ciência só ajudarão realmente a humanidade se conservarem o sentido da transcendência do homem sobre o mundo e de Deus sobre o homem ». [21]
19. A teologia desempenha um papel particularmente importante na investigação duma síntese do saber, bem como no diálogo entre fé e razão. Além disso, ela dá um contributo a todas as outras disciplinas na sua investigação de significado, ajudando-as não só a examinar o modo como as suas descobertas influirão sobre as pessoas e sobre a sociedade, mas também fornecendo uma perspectiva e uma orientação que não estão contidas nas suas metodologias. Por seu lado, a interação com as outras disciplinas e as suas descobertas enriquece a teologia, oferecendo-lhe uma melhor compreensão do mundo de hoje e tornando a investigação teológica mais adaptada às exigências de hoje. Dada a importância específica da teologia entre as disciplinas académicas, cada Universidade deverá ter uma Faculdade ou, ao menos, uma cátedra de teologia. (22)
20. Dada a relação íntima entre investigação e ensino, convém que as exigências da investigação, acima indicadas, influam sobre todo o ensino.
Enquanto cada disciplina é ensinada de modo sistemático e de acordo com métodos próprios, a interdisciplinaridade, sustentada pelo contributo da filosofia e da teologia, ajuda os estudantes a adquirir uma visão orgânica da realidade e a desenvolver um desejo incessante de progresso intelectual. Depois, na comunicação do saber coloca-se em ressalto o facto de a razão humana na sua reflexão se abrir a interrogações cada vez mais vastas e de a resposta completa a elas provir do Alto através da fé. Além disso, as implicações morais, inerentes a cada disciplina, são examinadas como parte integrante do ensino da mesma disciplina; isto para que todo o processo educativo seja dirigido definitivamente para o progresso integral da pessoa. Enfim, a teologia católica, ensinada em plena fidelidade à Escritura, à Tradição e ao Magistério da Igreja, proporcionará um claro conhecimento dos princípios do Evangelho, o qual enriquecerá o significado da vida humana e lhe conferirá uma dignidade nova.
Mediante a investigação e o ensino os estudantes sejam formados nas várias disciplinas de maneira a tornarem-se verdadeiramente competentes no sector específico, a que se dedicarão ao serviço da sociedade e da Igreja, mas ao mesmo tempo sejam também preparados para testemunhar a sua fé perante o mundo.
2. A Comunidade universitária
21. A Universidade Católica persegue os seus objectivos também mediante o empenho em formar uma comunidade humana autêntica, animada pelo espírito de Cristo. A fonte da sua unidade brota da sua comum consagração à verdade, da mesma visão da dignidade humana e, em última análise, da pessoa e da mensagem de Cristo que dá à instituição o seu carácter distintivo. Como resultado desta óptica, a Comunidade universitária é animada por um espírito de liberdade e de caridade; é caracterizada pelo respeito recíproco, pelo diálogo sincero, pela defesa dos direitos de cada um. Assiste todos os seus membros a conseguir a plenitude como pessoas humanas. Cada membro da Comunidade, por sua vez, ajuda a promover a unidade e contribui, segundo a sua função e as suas capacidades, para as decisões que dizem respeito à mesma Comunidade, bem como para manter e reforçar o carácter católico da instituição.
22. Os professores universitários esforcem-se sempre por melhorar a própria competência e por enquadrar o conteúdo, os objectivos, os métodos e os resultados da investigação de cada disciplina no contexto de uma coerente visão do mundo. Os professores cristãos são chamados a ser testemunhas e educadores duma autêntica vida cristã, a qual manifeste a integração conseguida entre fé e cultura, entre competência profissional e sabedoria cristã. Todos os professores devem ser inspirados pelos ideais académicos e pelos princípios duma vida autenticamente humana.
23. Os estudantes são solicitados a perseguir uma educação que harmonize a excelência do desenvolvimento humanístico e cultural com a formação profissional especializada. O referido desenvolvimento deve ser tal que eles se sintam encorajados a continuar a investigação da verdade e do seu significado durante toda a vida, dado que « é necessário que o espírito seja cultivado de modo que se desenvolvam as faculdades da admiração, da intuição, da contemplação, e de se tornarem capazes de formar um juízo pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e social ». [23] Isto os tornará idóneos para adquirirem ou, se o têm já, para aprofundarem um estilo de vida autenticamente cristão. Eles devem ser conscientes da seriedade da sua profissão e sentir a alegria de serem amanhã « leaders » qualificados, testemunhas de Cristo nos lugares onde deverão desempenhar a sua missão.
24. Os dirigentes e o pessoal administrativo numa Universidade Católica promovam o crescimento constante da Universidade e da sua Comunidade mediante uma gestão de serviço. A dedicação e o testemunho do pessoal não académico são indispensáveis para a identidade e para a vida da Universidade.
25. Muitas Universidades Católicas foram fundadas por Congregações Religiosas e continuam a depender do seu apoio. As Congregações Religiosas, que se dedicam ao apostolado da instrução superior, são instadas a ajudar estas instituições na renovação do seu empenho, e a continuar a preparar religiosos e religiosas capazes de dar um contributo positivo à missão da Universidade Católica.
Além disso, as actividades universitárias foram por tradição um meio graças ao qual os leigos podem realizar um importante papel na Igreja. Hoje, na maior parte das Universidades Católicas, a Comunidade académica é composta na maioria por leigos, que assumem em número crescente altas funções e responsabilidade de direcção. Estes leigos católicos respondem à chamada da Igreja « a estar presentes, guiados pela coragem e pela criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da educação - Escola e Universidade ». [24] O futuro das Universidades Católicas depende, em grande parte, do empenho competente e generoso dos leigos católicos. A Igreja vê a sua presença crescente nestas instituições como um sinal de grande esperança e uma confirmação da vocação insubstituível do laicado na Igreja e no mundo, com a confiança em que ele, no exercício da própria função, « ilumine e ordene todas as realidades temporais, de maneira que sempre se realizem e se desenvolvam segundo Cristo, e sejam louvor ao Criador e ao Redentor ». [25]
26. A Comunidade universitária de muitas instituições católicas inclui colegas pertencentes a outras Igrejas, a outras Comunidades eclesiais e religiões, e bem assim colegas que não professam nenhum credo religioso. Estes homens e estas mulheres contribuem, com a sua formação e experiência, para o progresso das diversas disciplinas académicas ou para a realização de outras tarefas universitárias.
3. A Universidade Católica na Igreja
27. Afirmando-se como Universidade, cada Universidade Católica mantém com a Igreja uma relação que é essencial à sua identidade institucional. Como tal, ela participa mais directamente na vida da Igreja particular na qual tem sede, mas, ao mesmo tempo e sendo inserida como instituição académica, pertence à comunidadeinternacional do saber e da investigação, participa e contribui para a vida da Igreja universal, assumindo, portanto, uma ligação particular com a Santa Sé em virtude do serviço de unidade, que é chamada a realizar em favor de toda a Igreja. Desta sua relação essencial com a Igreja derivam consequentemente a fidelidade da Universidade, como Instituição, à mensagem cristã, o reconhecimento e a adesão à autoridade magisterial da Igreja em matéria de fé e moral. Os membros católicos da Comunidade universitária, por sua vez, são também chamados a uma fidelidade pessoal à Igreja, com tudo quanto isto comporta. Dos membros não católicos, enfim, espera-se o respeito do carácter católico da instituição na qual prestam serviço, enquanto a Universidade, por seu lado, respeitará a sua liberdade religiosa ». [26]
28. Os Bispos têm a responsabilidade particular de promover as Universidades Católicas e, especialmente, de segui-las e assisti-las na sustentação e na consolidação da sua identidade católica também no confronto com as autoridades civis. Isto será obtido mais adequadamente, criando e mantendo relações estreitas, pessoais e pastorais, entre a Universidade e as Autoridades eclesiásticas, relações caracterizadas por confiança recíproca, colaboração leal e diálogo contínuo. Embora não entrem directamente no governo interno da Universidade, os Bispos « não devem ser considerados agentes externos, mas sim participantes da vida da Universidade Católica ». [27]
29. A Igreja, aceitando « a legítima autonomia da cultura humana e especialmente das ciências », reconhece também a liberdade académica de cada um dos estudiosos na disciplina da sua competência, de acordo com os princípios e os métodos da ciência, a que ela se refere, [28] segundo as exigências da verdade e do bem comum.
Também a teologia, como ciência, tem um lugar legítimo na Universidade ao lado das outras disciplinas. Ela, como lhe compete, tem princípios e métodos que a definem precisamente como ciência. Desde que adiram a tais princípios e apliquem o seu método respectivo, os teólogos gozam também da mesma liberdade académica.
Os Bispos encoragem o trabalho criador dos teólogos. Eles servem a Igreja, mediante a investigação conduzida de maneira respeitadora do método próprio da teologia. Eles procuram compreender melhor, desenvolver ulteriormente e comunicar mais eficazmente o sentido da Revelação cristã como é transmitida pela Sagrada Escritura, pela Tradição e pelo Magistério da Igreja. Eles estudam também as vias, pelas quais a teologia pode levar luz às questões específicas, postas pela cultura de hoje. Ao mesmo tempo, uma vez que a teologia procura a compreensão da verdade revelada, cuja interpretação autêntica está confiada aos Bispos da Igreja, [29] é elemento intrínseco aos princípios e ao método, próprios da investigação e do ensino da sua disciplina académica, os teólogos deverem respeitar a autoridade dos Bispos e aderirem à doutrina católica segundo o grau de autoridade com que ela é ensinada. [30] O diálogo entre os Bispos e os teólogos é essencial, em razão das respectivas funções relacionadas entre si, particularmente hoje, quando os resultados da investigação são tão rápida e tão amplamente difundidos através dos meios de comunicação social. [31]
B. A MISSÃO DE SERVIÇO DA UNIVERSIDADE CATÓLICA
30. A missão fundamental de uma Universidade é a procura contínua da verdade, a conservação e a comunicação do saber para o bem da sociedade. A Universidade Católica participa nesta missão com o contributo das características e finalidades específicas.
1. Serviço à Igreja e à Sociedade
31. Mediante o ensino e a investigação a Universidade Católica oferece um contributo indispensável à Igreja. Ela, com efeito, prepara homens e mulheres, que, inspirados pelos princípios cristãos e ajudados a viver de maneira amadurecida e responsável a sua vocação cristã, serão também capazes de assumir lugares de responsabilidade na Igreja. Além disso, graças aos resultados das investigações científicas por ela colocados à disposição, a Universidade Católica poderá ajudar a Igreja a responder aos problemas e às exigências do tempo.
32. A Universidade Católica, a par de qualquer outra Universidade, está inserida na sociedade humana. Para a realização do seu serviço à Igreja, ela é solicitada - sempre no âmbito da competência que lhe é própria - a ser instrumento cada vez mais eficaz de progresso cultural quer para os indivíduos quer para a sociedade. As suas actividades de investigação, portanto, incluirão o estudo dos graves problemas contemporâneos, como a dignidade da vida humana, a promoção da justiça para todos, a qualidade da vida pessoal e familiar, a protecção da natureza, a procura da paz e da estabilidade política, a repartição mais equânime das riquezas do mundo e uma nova ordem económica e política, que sirva melhor a comunidade humana a nível nacional e internacional. A investigação universitária será dirigida a estudar em profundidade as raízes e as causas dos graves problemas do nosso tempo, reservando atenção especial às suas dimensões éticas e religiosas.
Quando for necessário, a Universidade Católica deverá ter a coragem de proclamar verdades incómodas, verdades que não lisonjeiam a opinião pública, mas que no entanto são necessárias para salvaguardar o autêntico bem da sociedade.
33. Uma prioridade específica será dada ao exame e à avaliação, do ponto de vista cristão, dos valores e das normas dominantes na sociedade e na cultura moderna, e à responsabilidade de comunicar à sociedade de hoje aqueles princípios éticos e religiosos que dão pleno significado à vida humana. É este um contributo ulterior que a Universidade pode dar ao desenvolvimento daquela autêntica antropologia cristã, que tem origem na pessoa de Cristo e que permite ao dinamismo da criação e da redenção influir sobre a realidade e sobre a recta solução dos problemas da vida.
34. O espírito cristão de serviço aos outros para a promoção da justiça social reveste particular importância para cada Universidade Católica, e deve ser compartilhado pelos professores e desenvolvido entre os estudantes. A Igreja empenha-se firmemente no crescimento integral de cada homem e de cada mulher. [32] O Evangelho, interpretado pela doutrina social da Igreja, convida urgentemente a promover « o desenvolvimento dos povos que lutam para libertar-se do jugo da fome, da miséria, das doenças endémicas, da ignorância; daqueles que procuram uma participação mais larga nos frutos da civilização e uma valorização mais activa das suas qualidades humanas; que se movam com decisão em direcção à meta da sua plena realização ». [33] Cada Universidade católica deve sentir a responsabilidade de contribuir concretamente para o progresso da sociedade, na qual trabalha: poderá procurar, por exemplo, a maneira de tornar a educação universitária acessível a todos aqueles que dela possam tirar proveito, especialmente os pobres ou os membros dos grupos minoritários, que dela foram tradicionalmente privados. Além disso, ela tem a responsabilidade — segundo os limites das suas possibilidades — de ajudar a promoção das Nações em vias de desenvolvimento.
35. Esforçando-se por dar uma resposta a estes complexos problemas, que tocam tantos aspectos da vida humana e da sociedade, a Universidade Católica insistirá na cooperação entre as várias disciplinas académicas, as quais apresentam já o seu contributo específico para a procura de soluções. Além disso, uma vez que os recursos económicos e pessoais de cada uma das instituições são limitados, é essencial a cooperação em projectos comuns de investigação programados entre as Universidades Católicas, bem como com outras instituições quer privadas quer do governo. A este respeito e também no que concerne a outros campos específicos de actividade de uma Universidade Católica, deve-se reconhecer o papel que têm as várias associações nacionais e internacionais das Universidades Católicas. Entre estas deve-se recordar em particular a missão da Federação Internacionaldas Universidades Católicas, constituída pela Santa Sé, [34] a qual dela espera uma colaboração frutuosa.
36. Mediante os programas de educação permanente dos adultos, tornando os professores disponíveis para serviços de consulta, recorrendo aos meios modernos de comunicação e aos outros diferentes modos, a Universidade Católica pode fazer com que o conjunto crescente do conhecimento humano e uma compreensão da fé cada vez melhor sejam colocados à disposição dum público mais vasto, estendendo deste modo os serviços da Universidade para além do âmbito propriamente académico.
37. No serviço à sociedade o interlocutor privilegiado será naturalmente o mundo académico, cultural e científico da região em que actua a Universidade católica. São de encorajar formas originais de diálogo e de colaboração entre as Universidades Católicas e as outras Universidades da Nação em favor do desenvolvimento, da compreensão entre as culturas, da defesa da natureza com uma consciência ecológica internacional.
Em união com as outras Instituições privadas e públicas, as Universidades Católicas servem, mediante a educação superior e a investigação, o interesse comum; representam um entre os vários tipos de instituições necessárias para a livre expressão da diversidade cultural, e empenham-se em promover o sentido da solidariedade na sociedade e no mundo. Portanto, elas têm todo o direito a esperar, da parte da sociedade civil e das Autoridades públicas, o reconhecimento e a defesa da sua autonomia institucional e da sua liberdade académica. Além disso, têm o mesmo direito no que diz respeito ao sustentamento económico, necessário para que sejam assegurados a existência e o desenvolvimento das mesmas.
2. Pastoral universitária
38. A pastoral universitária é aquela actividade da Universidade que oferece aos membros da própria Comunidade a ocasião de coordenar o estudo académico e as actividades para-académicas com os princípios religiosos e morais, integrando assim a vida com a fé. Ela concretiza a missão da Igreja na Universidade e faz parte integrante da sua actividade e da sua estrutura. Uma Comunidade Universitária, preocupada em promover o carácter católico da instituição, deverá estar consciente desta dimensão pastoral e ser sensível aos modos com os quais pode influir em todas as suas actividades.
39. Como expressão natural da sua identidade católica, a Comunidade universitária deve saber encarnar a fé nas suas actividades quotidianas, com importantes momentos de reflexão e de oração. Serão assim oferecidas aos membros católicos desta Comunidade as oportunidades de assimilar na sua vida a doutrina e a prática católica. Serão encorajados a participar na celebração dos sacramentos, especialmente no sacramento da Eucaristia, enquanto acto mais perfeito do culto comunitário.
Aquelas Comunidades académicas que têm no seu seio uma presença consistente de pessoas pertencentes a Igrejas, a Comunidades eclesiais ou a religiões diversas respeitarão as suas iniciativas de reflexão e oração salvaguardando o seu credo.
40. Todos os que se ocupam da pastoral universitária exortarão professores e alunos a ser mais conscientes da sua responsabilidade em relação aos que sofrem física e espiritualmente. Seguindo o exemplo de Cristo, devem estar particularmente atentos aos mais pobres e a quem sofre injustiça no campo económico, social, cultural e religioso. Esta responsabilidade exerce-se, antes de mais, no interior da Comunidade académica, mas encontra também aplicação fora dela.
41. A pastoral universitária é uma actividade indispensável, graças à qual os estudantes católicos, no cumprimento dos seus compromissos baptismais podem ser preparados a participar activamente na vida da Igreja. Ela pode contribuir para desenvolver e alimentar uma autêntica estima do matrimónio e da vida familiar, promover vocações para o sacerdócio e para a vida religiosa, estimular o empenho cristão dos leigos e penetrar todo o tipo de actividade com o espírito do Evangelho. O entendimento entre a pastoral universitária e as Instituições que actuam no âmbito da Igreja particular, sob a orientação ou com aprovação do Bispo, não poderá deixar de ser de vantagem comum. [35]
42. Diversas Associações ou Movimentos de vida espiritual e apostólica, sobretudo aqueles que foram criados especificamente para os estudantes, podem dar um grande contributo no desenvolvimento dos aspectos pastorais da vida universitária.
3. Diálogo Cultural
43. Por sua mesma natureza, a Universidade promove a cultura mediante a sua actividade de investigação, ajuda a transmitir a cultura local às gerações sucessivas, através do seu ensino, favorece as iniciativas culturais com os próprios serviços educativos. Ela está aberta a toda a experiência humana, disposta ao diálogo e à aprendizagem de qualquer cultura. A Universidade Católica participa neste processo oferecendo a rica experiência cultural da Igreja. Além disso, consciente de que a cultura humana está aberta à Revelação e à transcendência, a Universidade Católica é lugar primário e privilegiado para um frutuoso diálogo entre Evangelho e cultura.
44. Ela assiste a Igreja, precisamente mediante tal diálogo, ajudando-a a obter um melhor conhecimento das diversas culturas, a discernir os seus aspectos positivos e negativos, a acolher os seus contributos autenticamente humanos e a desenvolver os meios, com os quais possa tornar a fé mais compreensível aos homens duma determinada cultura. [36] Se é verdade que o Evangelho não pode ser identificado com a cultura, mas ao contrário ele transcende todas as culturas, é também verdade que « o Reino, anunciado pelo Evangelho, é vivido por homens que estão profundamente ligados a uma cultura, e a construção do Reino não pode deixar de recorrer aos elementos da cultura ou das culturas humanas ». [37] « Uma fé que se colocasse à margem daquilo que é humano, portanto do que é cultura, seria uma fé que não reflecte a plenitude daquilo que a Palavra de Deus manifesta e revela, uma fé decapitada, pior ainda, uma fé em processo de auto-anulamento». [38]
45. A Universidade Católica deve tornar-se cada vez mais atenta às culturas do mundo de hoje, bem como também às várias tradições culturais existentes dentro da Igreja, de maneira a promover um contínuo e proveitoso diálogo entre o Evangelho e a sociedade de hoje. Entre os critérios, que distinguem o valor duma cultura, vêm em primeiro lugar o sentido de pessoa humana, a sua liberdade, a sua dignidade, o seu sentido de responsabilidade e a sua abertura ao transcendente. Com o respeito da pessoa está ligado o valor eminente da família, célula primária de toda a cultura humana.
As Universidades Católicas devem esforçar-se por discernir e avaliar bem as aspirações como as tradições da cultura moderna, para torná-la mais apta ao desenvolvimento integral das pessoas e dos povos. Dum modo particular, recomenda-se aprofundar, com estudos apropriados, o impacto da tecnologia moderna e especialmente dos meios de comunicação social sobre as pessoas, as famílias, as instituições e sobre o conjunto da cultura moderna. As culturas tradicionais devem ser defendidas na sua identidade, ajudando-as a acolher os valores modernos sem sacrificar o próprio património, que é riqueza para toda a família humana. As Universidades, situadas em ambientes culturais tradicionais, devem procurar harmonizar atentamente as culturas locais com o contributo positivo das culturas modernas.
46. Um campo que interessa dum modo especial a Universidade Católica é o diálogo entre pensamento cristão e ciências modernas. Esta tarefa exige pessoas particularmente preparadas em cada uma das disciplinas, que sejam dotadas também duma adequada formação teológica e capazes de enfrentar as questões epistemológicas ao nível das relações entre fé e razão. Tal diálogo refere-se tanto às ciências naturais como às ciências humanas, as quais põem novos e complexos problemas filosóficos e éticos. O investigador cristão deve mostrar como a inteligência humana se enriquece da verdade superior,que deriva do Evangelho: « A inteligência não vem nunca diminuída, mas, pelo contrário, é estimulada e robustecida pela fonte interior de profunda compreensão que é a Palavra de Deus, e pela hierarquia de valores que dela provém... Dum modo único, a Universidade Católica contribui para manifestar a superioridade do espírito, que nunca pode, sem o risco de perder-se, consentir em colocar-se ao serviço de qualquer outra coisa que não seja a procura da verdade ». [39]
47. Para além do diálogo cultural, a Universidade Católica, no respeito das suas finalidades específicas, tendo em conta os vários contextos religioso-culturais e seguindo as directrizes propostas pela competente Autoridade eclesiástica, pode oferecer um contributo ao diálogo ecuménico, com o fim de promover a procura da unidade de todos os cristãos, e ao diálogo inter-religioso, ajudando a discernir os valores espirituais que estão presentes nas várias religiões.
4. Evangelização
48. A missão primária da Igreja é pregar o Evangelho de modo a garantir a relação entre a fé e a vida quer no indivíduo quer no contexto sócio-cultural, em que as pessoas vivem, agem e comunicam entre si. A evangelização significa « levar a Boa Nova a todos os estratos da humanidade e, com o seu influxo, transformar a partir de dentro, tornar nova a própria humanidade... Não se trata só de pregar o Evangelho em faixas geográficas cada vez mais vastas ou a populações cada vez mais numerosas, mas também de atingir e como que transformar mediante a força do Evangelho os critérios de juízo, os valores determinantes, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que estão em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação ». [40]
49. De acordo com a própria natureza, cada Universidade Católica oferece um importante contributo à Igreja na sua obra de evangelização. Trata-se dum testemunho vital de ordem institucional em favor de Cristo e da sua mensagem, tão importante e necessário nas culturas marcadas pelo secularismo ou onde Cristo e a sua mensagem não são ainda de facto conhecidos. Além disso, todas as actividades fundamentais duma Universidade Católica estão ligadas e harmonizadas com a missão evangelizadora da Igreja: a investigação conduzida à luz da mensagem cristã, que coloca as novas descobertas humanas ao serviço dos indivíduos e da sociedade; a formação actuada num contexto de fé, que prepare pessoas capazes dum juízo racional e crítico e conscientes da dignidade transcendente da pessoa humana; a formação profissional, que compreende os valores éticos e o sentido de serviço às pessoas e à sociedade; o diálogo com a cultura, que favorece uma compreensão melhor da fé; a investigação teológica que ajuda a fé a exprimir-se numa linguagem moderna. « A Igreja, precisamente porque está cada vez mais consciente da sua missão salvífica neste mundo, quer sentir-se próxima destes centros, quer tê-los presentes e operantes na difusão da mensagem autêntica de Cristo ». [41]
II PARTE
NORMAS GERAIS
Artigo 1. A natureza destas Normas Gerais
§ 1. As presentes Normas Gerais baseiam-se no Código de Direito Canónico, [42] do qual são um desenvolvimento ulterior, e na legislação complementar da Igreja, permanecendo válido o direito de a Santa Sé intervir, onde for necessário. Estas Normas valem para todas as Universidades Católicas e para os Institutos Católicos de Estudos Superiores em todo o mundo.
§ 2. As Normas Gerais devem ser aplicadas concretamente a nível local e a nível regional pelas Conferências Episcopais e pelas outras assembleias da Hierarquia Católica, [43] em conformidade com o Código de Direito Canónico e com a legislação eclesiástica complementar, tendo em conta os Estatutos de cada Universidade ou Instituto e — tanto quanto possível e oportuno — também do direito civil. Depois da revisão por parte da Santa Sé, [44] os referidos « Ordinamenti » locais ou regionais serão válidos para todas as Universidades Católicas e Institutos Católicos de Estudos Superiores da região, com excepção das Universidades e Faculdades Eclesiásticas. Estas últimas Instituições, bem como as Faculdades Eclesiásticas pertencentes a uma Universidade Católica, regem-se pelas normas da Constituição « Sapientia Christiana ». [45]
§ 3. Uma Universidade, constituída ou aprovada pela Santa Sé, por uma Conferência Episcopal ou por uma outra Assembleia da Hierarquia católica, ou por um Bispo diocesano, deve incorporar as presentes « Normas Gerais » e as suas aplicações, locais e regionais, nos documentos relativos ao seu governo, e conformar os seus Estatutos vigentes quer às Normas Gerais quer às suas aplicações e submetê-los à aprovação da Autoridade eclesiástica competente. Fica subentendido que também as outras Universidades Católicas, isto é, as não instituídas segundo uma das formas supra-mencionadas, farão próprias estas Normas Gerais e as suas aplicações locais ou regionais, integrando-as nos documentos relativos ao seu governo e — tanto quanto possível — conformarão os seus Estatutos vigentes quer a estas Normas Gerais quer às suas aplicações.
Artigo 2. A natureza duma Universidade Católica.
§ 1. Uma Universidade Católica, como qualquer Universidade, é uma comunidade de estudiosos, representada por vários campos do saber humano. Ela dedica-se à investigação, ao ensino e às várias formas de serviço, compatíveis com a sua missão cultural.
§ 2. Uma Universidade Católica, enquanto católica, inspira e realiza a sua investigação, o ensino e todas as outras actividades segundo os ideais, os princípios e os comportamentos católicos. Ela está ligada à Igreja ou através dum vínculo formal segundo a constituição e os estatutos, ou em virtude dum compromisso institucional assumido pelos seus responsáveis.
§ 3. Toda a Universidade Católica deve manifestar a sua identidade católica mediante uma declaração acerca da sua missão ou com outro documento público apropriado a não ser que doutra maneira seja autorizada pela Autoridade eclesiástica competente. Ela deve possuir, particularmente no que se refere à sua estrutura e aos seus regulamentos, meios para garantir a expressão e a conservação de tal identidade de acordo com o § 2.
§ 4. O ensino católico e a disciplina católica devem influir em todas as actividades da Universidade, respeitando plenamente a liberdade da consciência de cada pessoa. [46] Cada acto oficial da Universidade deve estar de acordo com a sua identidade católica.
§ 5. Uma Universidade Católica possui a autonomia necessária para realizar a sua identidade específica e cumprir a sua missão. A liberdade de investigação e de ensino é reconhecida e respeitada segundo os princípios e os métodos próprios de cada disciplina, sempre que sejam salvaguardados os direitos dos indivíduos e da comunidade, e dentro das exigências da verdade e do bem comum. [47]
Artigo 3. Instituição duma Universidade Católica
§ 1. Uma Universidade católica pode ser instituída ou aprovada pela Santa Sé, por uma Conferência Episcopal ou outra Assembleia da Hierarquia Católica, por um Bispo diocesano.
§ 2. Com o consentimento do Bispo diocesano uma Universidade Católica pode também ser criada por um Instituto Religioso ou por outra pessoa jurídica pública.
§ 3. Uma Universidade Católica pode ser fundada por outras pessoas eclesiásticas ou leigas. Tal Universidade só poderá considerar-se Universidade Católica com o consentimento da Autoridade eclesiástica competente, segundo as condições que forem concordadas pelas partes. [48]
§ 4. Nos casos mencionados nos §§ 1 e 2 os Estatutos deverão ser aprovados pela Autoridade eclesiástica competente.
Artigo 4. Comunidade universitária.
§ 1. A responsabilidade de manter e de reforçar a identidade católica da Universidade compete em primeiro lugar à própria Universidade. Tal responsabilidade, enquanto está confiada principalmente às Autoridades da Universidade ( compreendidos, onde existam, o Grão-Chanceler e/ou o Conselho de Administração, ou um Organismo equivalente) é partilhadatambém em diversa medida por todos os membros da Comunidade, e exige, portanto, o recrutamento do pessoal universitário adequado — especialmente dos professores e do pessoal administrativo — que esteja disposto e seja capaz de promover tal identidade. A identidade da Universidade Católica está ligada essencialmente à qualidade dos professores e ao respeito da doutrina católica. É da responsabilidade da Autoridade competente vigiar sobre estas duas exigências fundamentais, segundo as indicações do Direito Canónico. [49]
§ 2. No momento da nomeação, todos os professores e todo o pessoal administrativo devem ser informados da identidade católica da Instituição e das suas implicações, bem como da sua responsabilidade em promover ou, ao menos, respeitar tal identidade.
§ 3. Nos modos conformes às diversas disciplinas académicas, todos os professores católicos devem receber fielmente, e todos os outros professores devem respeitar, a doutrina e a moral católica na investigação e no ensino. Dum modo particular, os teólogos católicos, conscientes de cumprir um mandato recebido da Igreja, sejam fiéis ao Magistério da Igreja, que é o intérprete autêntico da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição. [50]
§ 4. Os professores e o pessoal administrativo que pertencem a outras Igrejas, Comunidades eclesiais ou religiosas, bem como aqueles que não professam nenhum credo religioso e todos os estudantes, têm a obrigação de reconhecer e respeitar o carácter católico da Universidade. Para não pôr em perigo tal identidade católica da Universidade ou do Instituto Superior, evite-se que os professores não católicos venham a constituir a maioria no interior da Instituição, a qual é e deve permanecer católica.
§ 5. A educação dos estudantes deve integrar o amadurecimento académico e profissional com a formação nos princípios morais e religiosos e com a aprendizagem da doutrina social da Igreja. O programa de estudos para cada uma das diversas profissões deve incluir uma formação ética apropriada na profissão, para a qual ele prepara. Além disso, a todos os estudantes deve ser oferecida a possibilidade de seguir cursos de doutrina católica. [51]
Artigo 5. A Universidade Católica na Igreja
§ 1. Cada Universidade Católica deve manter a comunhão com a Igreja universal e com a Santa Sé; deve estar em estreita comunhão com a Igreja particular e, especialmente, com os Bispos diocesanos da região ou das nações em que está situada. De acordo com a sua natureza de Universidade, a Universidade católica contribuirá para a evangelização da Igreja.
§ 2. Cada Bispo tem a responsabilidade de promover o bom andamento das Universidades Católicas na sua diocese e tem o direito e o dever de vigiar sobre a preservação e o incremento do seu carácter católico. No caso de surgirem problemas a respeito de tal requisito essencial, o Bispo local tomará as iniciativas necessárias para resolvê-los, de acordo com as Autoridades académicas competentes e de harmonia com os processos estabelecidos [52] e — se necessário — com a ajuda da Santa Sé.
§ 3. Todas as Universidades católicas, de que se trata no Art. 3 §§ 1 e 2, devem enviar periodicamente à Autoridade eclesiástica competente um relatório específico sobre a Universidade e as suas actividades. As outras Universidades católicas devem comunicar tais informações ao Bispo da Diocese, na qual está situada a sede central da Instituição.
Artigo 6. Pastoral universitária
§ 1. A Universidade Católica deve promover a cura pastoral dos membros da Comunidade universitária e, em particular, o desenvolvimento espiritual daqueles que professam a fé católica. Deve ser dada a preferência aos meios que facilitam a integração da formação humana e profissional com os valores religiosos à luz da doutrina católica, com o fim de unir aprendizagem intelectual com a dimensão religiosa da vida.
§ 2. Deverá ser nomeado um número suficiente de pessoas qualificadas — sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos — para prover à pastoral específica em favor da Comunidade universitária, a realizar em harmonia e em colaboração com a pastoral da Igreja particular e sob a guia do Bispo diocesano. Todos os membros da Comunidade universitária devem ser convidados a trabalhar nesta obra da pastoral e a colaborar nas suas iniciativas.
Artigo 7. Colaboração
§ 1. Com o fim de enfrentar melhor os complexos problemas da sociedade moderna e de reforçar a identidade católica das Instituições, deve ser promovida a colaboração a nível regional, nacional e internacional na investigação, no ensino e nas outras actividades universitárias entre todas as Universidades Católicas, incluídas as Universidades e as faculdades Eclesiásticas. [53] Tal colaboração deve ser obviamente promovida também entre as Universidades Católicas e as outras Universidades e Instituições de investigação e de instrução, quer privadas quer estatais.
§ 2. As Universidades Católicas, tanto quanto for possível e de acordo com os princípios e a doutrina católica, colaborem com os programas governamentais e com os projectos das Organizações nacionais e internacionais em favor da justiça, do desenvolvimento e do progresso.
NORMAS TRANSITÓRIAS
Art. 8 - A presente Constituição entrará em vigor no primeiro dia do ano académico de 1991.
Art. 9 - A aplicação da constituição é remetida à Congregação para a Educação Católica, à qual competirá tomar providências a fim de que sejam estabelecidas as directrizes necessárias para tal objectivo.
Art. 10 - Constituirá dever da Congregação para a Educação Católica, quando com o passar do tempo as circunstâncias o exigirem, propor as mudanças a introduzir nesta presente Constituição, para que esta permaneça continuamente adequada às novas exigências das Universidades Católicas.
Art. 11 - São ab-rogadas as leis particulares ou os costumes, presentemente em vigor, que sejam contrários a esta Constituição. Igualmente são ab-rogados os privilégios concedidos até hoje pela Santa Sé a pessoas físicas ou morais e que estejam em contraste com esta mesma Constituição.
CONCLUSÃO
A missão que com grande esperança a Igreja confia às Universidades Católicas reveste um significado cultural e religioso de importância vital, porque diz respeito ao futuro mesmo da humanidade. A renovação, pedida às Universidades Católicas, torná-las-á mais capazes de corresponder ao dever de levar a mensagem de Cristo ao homem, à sociedade, às culturas:
« Toda a realidade humana, individual e social, foi libertada por Cristo: as pessoas, bem como as actividades dos homens, cuja expressão mais alta e encarnada é a cultura. A acção salvífica da Igreja sobre as culturas realiza-se, antes de tudo, mediante as pessoas, as famílias e os educadores... Jesus Cristo, nosso Salvador, oferece a sua luz, a sua esperança a todos os que cultivam as ciências, as artes, as letras e os numerosos campos desenvolvidos pela cultura moderna. Todos os filhos e todas as filhas da Igreja, portanto, devem tomar consciência da sua missão e descobrir como a força do Evangelho pode penetrar e regenerar as mentalidades e os valores dominantes, que inspiram cada uma das culturas, bem como também as opiniões e os comportamentos mentais que delas derivam ». [54]
E com uma esperança muito viva que dirijo este Documento a todos os homens e a todas as mulheres que, de diferentes modos, se empenham na alta missão do ensino superior católico.
Caríssimos Irmãos, o meu encorajamento e a minha confiança acompanham-Vos no vosso difícil trabalho quotidiano, cada vez mais importante, urgente e necessário para a causa da evangelização, para o futuro da cultura e das culturas. A Igreja e o mundo têm grande necessidade do vosso testemunho e do vosso contributo, competente, livre e responsável.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 15 do mês de Agosto - Solenidade da Assunção de Maria Santíssima ao Céu - do ano de 1990, décimo segundo de pontificado.
PAPA JOÃO PAULO II
Notas
[1] Cf. Carta do Papa Alexandre IV à Universidade de Paris, 14 de Abril de 1255, Introdução: Bullarium Diplomatum..., t.III, Turim 1858, p. 602.
[2] S.TO AGOSTINHO, Confiss. X, XXXIII, 33: « Com efeito, a vida feliz é a alegria derivante da verdade, uma vez que esta alegria deriva de Ti que és a verdade, Deus minha luz, salvação da minha face, Deus meu »: PL 32, 793-794. Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, De Malo, IX, 1; «É, com efeito, natural ao homem aspirar ao conhecimento da verdade ».
[3] JOÃO PAULO II, Discurso ao « Instieut Catholique de Paris », 1· de Junho de 1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, vol. III/1 ( 1980), p. 1581.
[4] JOÃO PAULO II, Discurso aos Cardeais, 10 de Novembro de 1979: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, vol. I/2 ( 1979), p. 1096; cf. Discurso à UNESCO, Paris, 2 de Junho de 1980: AAS 72 (1980), pp. 735-752.
[5] Cf. JOÃO PAULO II, Discurso à Universidade de Coimbra, 15 de Maio de 1982: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, vol. V/2 (1982), p. 1692.
[6] PAULO VI, Alocução aos Representantes dos Estados, 4 de Outubro de 1965: Insegnamenti di Paolo VI, vol. III (1965), p. 508.
[7] JOHN HENRY CARDINAL NEWMAN, The Idea of a University, P. XI, London, Longmans, Green and Company, 1931.
[8] Jo. 14, 6.
[9] Cf. S.TO AGOSTINHO, Serm. 43, 9: PL 38; Cf. também S.TO ANSELMO, Proslogion, cap. I: PL 158, 227.
[10] Cf. JOÃO PAULO I I, Alocução ao Congresso Internacional sobre as Universidades Católicas, 25 de Abril de 1989, n. 3: AAS 18 (1989), p. 1218.
[11] JOÃO PAULO II, Constituição Apostólica Sapientia christiana acerca das Universidades e Faculdades Eclesiásticas, 15 de Abril de 1979: AAS 71 (1979), pp. 469-521.
[12] CONCÍLIO VATICANO II, Declaração sobre a Educação Católica Gravissimum educationis, n. 10: AAS 58 (1966), p. 737.
[13] Mat. 13, 52.
[14] Cf. La Magna Charta delle Università Europee, Bolonha, Itália, 18 de Setembro de 1988, « Princípios fundamentais ».
[15] Cf. CONCÍLlO VATICANO II, Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, n. 59: AAS 58 ( 1966), p. 1080. Gravissimum educationis, n. 10: AAS 58 (1966), p. 737. «Autonomia institucional» significa que o governo de uma instituição académica é e permanece interno à instituição. «Liberdade académica» é a garantia, dada a quantos se dedicam ao ensino e à investigação, de, no âmbito do seu campo específico de conhecimento e de acordo com os métodos próprios de tal área, poder procurar a verdade em toda a parte onde a análise e a evidência as conduzam, e de poder ensinar e publicar os resultados de tal investigação, tendo presente os critérios citados, isto é, de salvaguarda dos direitos do indivíduo e da comunidade, das exigências da verdade e do bem comum.
[16] A noção de cultura, usada neste documento, compreende uma dupla dimensão: a humanista e a sócio-histórica. « Com o termo genérico de 'cultura' indicam-se todos aqueles meios, mediante os quais o homem apura e desenvolve as suas múltiplas capacidades espirituais e físicas; procura sujeitar ao seu domínio o próprio cosmos através do conhecimento e do trabalho; torna mais humana a vida social quer na família quer em toda a sociedade civil, mediante o progresso dos costumes e das instituições; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações. Daqui se segue que a cultura humana implica necessariamente um aspecto histórico e social e que o termo 'cultura' assume frequentemente um sentido sociológico e etnológico é (Gaudium et spes, n. 53: AAS 58 [1966], p. 1075).
[17] L'Université Catholique dans le monde moderne. Document final du 2 Congrès des Délegués des Universités Catholiques, Roma, 20-29 de Novembro de 1972, § 1.
[18] Ibid.
[19] JOÃO PAULO II, Alocução: Congresso Internacional sobre as Universidades Católicas, 25 de Abril de 1989, n. 4: AAS 81 (1989), p. 1219. Cf. também Gaudiun, et spes, n. 61: AAS 58 (1966), pp. 1081-1082. O Cardeal Newman observa que uma Universidade « declara assinalar a cada estudo, que ela acolhe, o seu lugar próprio e as suas justas fronteiras; definir os direitos, estabelecer as relações recíprocas e realizar a intercomunhão de cada um e de todos » (Op. cit., p. 457).
[20] Gadium et spes, n. 36: AAS 58 ( 1966), p. 1054. A um grupo de cientistas observava que « embora razão e fé representem sem dúvida duas ordens distintas de conhecimento, cada uma autónoma relativamente aos seus métodos, ambas devem convergir finalmente para a descoberta duma só realidede total que tem a sua origem em Deus ». (JOÃO PAULO II, Mensagem ao encontro sobre Galileu, 9 de Maio de 1983, n. 3: AAS 75 [1983], p. 690).
[21] JOÃO PAULO 11, Discurso à UNESCO de 2 de Junho de 1980, n. 22: AAS 72 ( 1980), p. 750. A última parte da citação retoma as minhas palavras, dirigidas à Pontifícia Academia das Ciências, de 10 de Novembro de 1979: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, vol. II/2 ( 1979), p. 1109.
[22] Cf. Gravissimum educationis, n 10: AAS 58 (1966), p. 737.
[23] Gaudium et spes, n. 59: AAS 58 ( 1966), p. 1080. O Cardeal Newman descreve assim o ideal perseguido: « Vem formada uma mentalidade que dura toda a vida, e cujos atributos são a liberdade, a equidade, a tranquilidade, a moderação e a sabedoria é (Op. cit. pp. 101-102).
[24] JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles laici, 30 de Dezembro de 1988, n. 44: AAS 81 (1989), p. 479.
[25] CONCÍLIO VATICANO II: Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, n. 31: AAS 57 ( 1965), pp. 37-38. Cf. Decreto sobre o Apostolado dos Leigos Apostolicam actuositatem, passim: AAS 58 (1966), pp. 837 ss. Cf. também Gaudium et spes, n. 43: AAS 58 (1966), pp. 1061-1064.
[26] Cf. CONCÍLIO VATICANO I I, Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, n. 2: AAS 58 (1966), pp. 930-931.
[27] JOÃO PAULO II, Saudação aos leaders da Educação Superior Católica, Xavier University of Louisiana, E.U A., 12 de Setembro de 1987, n. 4: AAS 80 (1988), p. 764.
[28] Gaudium et spes, n. 59: AAS 58 ( 1966), p. 1080.
[29] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina Dei Verbum, nn. 8-10: AAS 58 (1966), pp. 820-822.
[30] Cf. Lumen Gentium, n. 25: AAS 57 (1965), pp. 29-31.
[31] Cf. a « Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo » da Congregação para a Doutrina da Fé de 24 de Maio de 1990.
[32] Cf. JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis, nn. 27-34: AAS 80 (1988), pp. 547-560.
[33] PAULO VI, Carta Encíclica Populorum progressio, n. 1: AAS 59 (1967), p. 257.
[34] «Tendo-se, por isso, propagado tanto tais sedes de estudos superiores, pareceu sumamente útil que os seus professores e alunos se reunissem numa associação comum, a qual, apoiada na autoridade do Sumo Pontífice, como pai e doutor universal, trabalhando em recíproco entendimento e em estreita colaboração pudesse mais eficazmente difundir e irradiar a luz de Cristo » (PIO XII, Carta Apostólica Catholicas studiorum universitates, que constituiu a Federação Internacional das Universidades Católicas: AAS 42 [1950], p. 386).
[35] O Código de Direito Canónico indica a responsabilidade geral do Bispo em relação aos estudantes universitários: «O Bispo diocesano tenha uma intensa cura pastoral dos estudantes, erigindo também uma paróquia, ou pelo menos através de sacerdotes para isso designados de modo estável, e providencie no sentido de que nas Universidades, mesmo nas não católicas, existam centros universitários católicos, que ajudem a juventude sobretudo espiritualmente (CIC, cân. 813).
[36] « A Igreja, vivendo no decurso dos tempos, em diversos condicionalismos, empregou os recursos das diversas culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo, para a explicar, investigar e peneirar mais profundamente e para lhe dar melhor expressão na celebração da liturgia e na vida da multiforme comunidade dos fiéis » (Gaudium et spes, n. 58: AAS 58 [1966], p. 1079).
[37] PAULO VI, Exortação Apostólica « Evangelii nuntiandi», n. 20: AAS 68 (1976), p. 18. Cf. Gaudium et spes, n. 58: AAS 58 (1966), p. 1079.
[38]JOÃO PAULO II, Saudação aos intelectuais, aos estudantes e ao pessoal universitário em Medellín, Colômbia, 5 de Julho de 1986, n. 3; AAS 79 (1987), p. 99. Cf. também Gaudium et spes, n. 58 (1966), p. 1079.
[39] PAULO VI, aos Delegados de Federação Internacional das Universidades Católicas, 27 de Novembro de 1972: AAS 64 (1972), p. 770.
[40] Evangelii nuntiandi, nn. 18 ss.: AAS 68 (1976), pp. 17-18.
[41] PAULO VI, Saudação aos Presidentes e sos Reitores das Universidades da Companhia de Jesus, 6 de Agosto de 1975, n. 2: AAS 67 (1975), p. 533. Falando aos participantes no Congresso Internacional sobre as Universidades católicas, no dia 25 de Abril de 1989, acrescentava (n. 5): « Numa Universidade Católica a missão evangelizadora da Igreja e a missão de investigação e de ensino acabam por encontrar-se ligadas e coordenadas ». Cf. AAS 81 (1989), p. 1220.
[42] Cf. em particular o capítulo do Código: « As Universidades Católicas e os outros Institutos de Estudos Superiores é (CIC, cân. 807-814).
[43] As Conferências Episcopais foram instituidas no Rito Latino. Outros Ritos têm outras Assembleias da Hierarquia Católica.
[44] Cf. CIC, cân. 455, § 2.
[45] Cf. Sapientia christiana: AAS 71 ( 1979), pp. 469-521. Universidades e Faculdades Eclesiásticas são aquelas que têm o direito de conferir graus académicos por autoridade da Santa Sé.
[46] Cf. Dignitatis humanae, n. 2: AAS 58 (1966), pp. 930-931.
[47] Cf. Gadium et spes, nn. 57 e 59: AAS 58 (1966), pp. 1077-1080; Gravissimum educationis, n. 10: AAS 58 (1966), p. 737.
[48] Quer a constituição de uma tal Universidade, quer as condições mediante as quais pode ser considerada Universidade Católica, deverão ser conformes às indicações precisas fornecidas pela Santa Sé, pela Conferência Episcopal ou por outra Assembleia da Hierarquia Católica.
[49] O Cânone 810 do CIC especifica a responsabilidade da Autoridade competente nesta matéria; « § 1. A Autoridade competente deve segundo os estatutos providenciar para que nas Universidades Católicas sejam nomeados professores, os quais, para além da idoneidade científica e pedagógica, devem primar pela integridade da doutrina e pela probidade de vida, e para que, faltando tais requisitos, observado o modo de proceder definido pelos estatutos, sejam removidos do cargo.
§ 2. As Conferências Episcopais e os bispos diocesanos interessados têm o dever e o direito de vigiar, para que nas mesmas Universidades sejam observados fielmente os princípios da doutrina católica ». Cfr. também abaixo o Artigo 5, 2.
[50] Lumen gentium, n. 25: AAS 57 (1965), p. 29: CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina Dei verbum, nn. 8-10: AAS 58 (1966), pp. 820-822; Cf. CIC, cân. 812: « Aqueles que em qualquer Instituto de estudos superiores ensinam disciplinas teológicas, devem ter o mandato da Autoridade eclesiástica competente ».
[51] Cf. CIC, cân. 811, § 2.
[52] Para as Universidades de que trata o artigo 3, §§ 1 e 2, estes modos de proceder devem estar estabelecidos pelos Estatutos aprovados pela Autoridade eclesiástica. Para as outras Universidades católicas, esses serão determinados pelas Conferências Episcopais ou por outras Assembleias da Hierarquia Católica.
[53] Cf. CIC, cân. 820. Cfr. também Sapientia christiana, Ordinationes, art. 49: AAS 71 (1979), p. 512.
[54] JOÃO PAULO II, ao Pontifício Conselho para a Cultura, 13 de Janeiro de 1989, n. 2: AAS 81 (1989), pp. 857-858.
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PARTE III: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO EM ÁFRICA
O PENSAMENTO AFRICANO SOBRE A EDUCAÇÃO.
Estas reflexões foram tiradas do curso de Filosofia da Educação de José Paulino Castiano na UP (a.a. 2003-2004)
Na África temos duas vertentes do pensamento sobre a educação:
1) Africanista: construi a educação na base dos valores tradicionais africanos (tradição): africanização da educação, educação afrocéntrica. Asante: A ideia afrocéntrica. Se rejeita tudo o que vem da Europa (Edward W. Blyden).
2) Universalista em relação à escola (modernizadores): não se questiona o paradigma moderno universal de educação, mas como melhor contextualizá-lo. (James Horton).
Em Moçambique, a filosofia educacional tem duas vertentes:
1) quantidade da educação (número de escolas, educação para todos, distribuição da rede escolar…). Aqui não se questiona se é boa ou não esta educação, mas “quando chega até nós?”
2) qualidade da educação oferecida por estas escolas: alguém liga qualidade à melhor formação dos professores, diminuição do número de alunos por turma…; outros querem que se parte com a aprendizagem da língua local. Qual é a instância que vai validar os conhecimentos? Quem legitimaria os curriculum?
Há vários que questionam as bases epistemológicas do ensino.
Na Libéria e Serra Leão, no início do séc. XX , nascem pensadores como Horton, Blyden… que influenciaram todo o debate sobre a modernização ou africanização da educação. Porque nestes países? Porque aí regressaram os negros americanos e abriu-se uma porta na expansão da civilização ocidental do ensino para a África. O segundo motivo é que estes dois países tornaram-se palco de 3 culturas diferentes: islâmica (Árabe), cristão-ocidental (Inglês e Francês), tradições africanas (línguas próprias). A cultura cristã e em parte a islâmica eram vistas como superiores às tradições. Há uma influência dos estudos antropológicos, literaturas, arte e viagens exploratórias das “sociedades geográficas” que alimentaram um sentido de inferioridade dos africanos (Mudimbe nas suas obras: A invenção da África e A ideia da África mostra como aconteceu este processo de inferiorização).
A educação vem concebida como:
1. desenvolvimento económico: aprender ofícios, etc…
2. instrumento de luta contra a discriminação racial
3. afirmação da identidade
A Libéria se torna centro de debate. O primeiro centro de formação de professores surgiu em Serra Leão em 1827, e no 1845 a primeira escola secundária. As escolas estavam filiadas às universidades europeias (particularmente Inglaterra).
JAMES HORTON (1835-1883)
Estudou numa escola missionária em Free Town e depois foi para a Inglaterra estudar medicina (para ser enviado na guerra, pois os médicos brancos não queriam ir para a guerra).
Horton sustenta que a educação deve ser estatal: o estado deve providenciar e financiar as actividades da educação. A educação deve ser também secular e não só missionária. As escolas missionárias tinham que seguir o curriculum da escola do estado.
Luta para uma escolaridade obrigatória para todas as crianças de 7 a 14 anos, e também a rapariga deve ser beneficiada. Administrativamente falava em “distritos educacionais”: proporcionar o número de escolas com o número da povoação.
A administração escolar deve ser centralizada num único sistema em que haja uniformidade em termos de disciplina, mesmos conteúdos, mesmo métodos e avaliações: isso para garantir a igualdade de oportunidades.
A formação dos professores devia ser estatal e central (para todo o país): deviam ser bem formados e ter bons salários.
A expansão quantitativa da escola deve ser numa forma pragmática: não fechar as escolas missionárias mas a pouco a pouco secularizá-las.
As línguas: divide o ensino das línguas em duas partes: as línguas africanas devem ser escritas e depois passar para as escolas. O inglês permanece como língua diplomática. Era favorável ao ensino do árabe.
Universidades de Horton.
A África deve fundar as suas próprias Universidades: o africano não deve deslocar-se para Europa para estudar. As matérias devem ser mais sobre as ciências naturais que podem desenvolver a África: aritmética, álgebra, geometria… disciplina gerais a serem ensinadas em toda as universidades africanas. Essas disciplinas podem eliminar problemas aos estudantes. Insistem também na geologia, botânica. Abriu espaço para a filosofia, bibliografia, literatura inglesa, filosofia política, direito, música e desenho. Não chegou aos aspectos metodológicos e didácticos.
Principais ideias de Horton:
· reformular todo o sistema de educaçãona Libéria
· o estado deve assumir a responsabilidade e controle de todo o sistema educativo
· A sua ideia de fundar universidades não foi concretizada, mas apenas conseguiu atrair jovens para o colégio e para depois terminarem fora do país
Edward Wilmot Blyden (1832-1912)
Opção africanista.
Nasceu em St. Thomas, Virgin Islands. Seus pais eram descendentes dos iberos. Horton era um mestiço, mas Blyden era negro e tinha muito orgulho disso.
Antonhy Appiah em In my father’s hose, diferenciava o racismo do “racialismo”.
Blyden tem ideias raciais. Emigrou para os EUA pago por um branco que quis patrocinar seus estudos teológicos. Foi rejeitado por 3 vezes de frequentar estudos nas escolas missionárias por ser de raça negra. Decidiu voltar para a África em 1847 na companhia de outros regressados.
Foi ordenado como pastor presbiteriano em 1851. Estudou grego, latim, geografia e matemática.
Desenvolve a ideia de revitalização cultural dos africanos inserida no artigo de 1857 A vendication of negro race.
Ideia base da revitalização: mobilizar o maior número possível de negros dos EUA para regressarem à Libéria para depois difundirem a mensagem pan-africana, ou integração dos negros para toda África. Queria devolver o lugar que os negros merecem na cultura universal.
A Educação tem um papel importante para a libertação do negro do sentimento de inferioridade implantado pelo colonialismo. Lutar contra a superioridade racial do branco. Fundou um jornal na Libéria The negro que estava virado para lutar contra a superioridade do branco.
Filosofia africanista de Blyden.
Como combater o mito da superioridade europeia perante o africano?
Como transformar os africanos num continente respeitado no mundo?
Como criar um futuro melhor para os africanos?
Para Blyden os europeus são diferentes dos africanos. Os europeus são duros, competitivos, materialistas, mais virados à ciência e à indústria e esqueceram Deus. Os africanos são amenos, carinhosos, servis, afectuosos. Cada raça tem características diferentes, como contraposição às teorias que mostravam a superioridade da raça banca. Estas diferenças são complementares umas das outras. Há uma tendência de universalidade cultural; cada raça contribui de forma diferente nesta cultura universal. Na raça africana, devido à sua inferioridade, os africanos são impedidos de desenvolver as suas capacidades de cultura universal.
Resumo das ideias filosóficas de Blyden.
1. Unidade de todas as culturas em que no centro há Deus
2. Igualdade e particularidade de cada cultura
3. Complementaridade entre as culturas
As ideias educacionais de Blyden.
Educação africanizada.
Critica a educação europeia. Deve-se educar as crianças a viver num mundo não dividido.
JULIUS K. NYERERE
1. Pensamento filosófico
Polémico considerar Nyerere como filósofo. O substrato do seu pensamento parte do colonialismo na Tanzania e África em geral. O colonialismo destruiu as bases culturais.
2. Socialismo africano.
Existe um socialismo africano: o homem social que convive. O colonialismo destruiu as bases do socialismo africano inicial, que tinha como base a família alargada: ujamaá em Swahili.
Características do socialismo africano: Trabalhar para todos. Fazer. Igualdade e dignidade humana. Todos nós temos necessidade do outro como busca de apoio.
3. Ideal educacional.
Educação para auto-segurança, auto-suficiência. Ensinar para melhorar o povo; deve servir para a comunidade. Nova estrutura escolar: estratégica prática (priorizar os adultos). Criou campanha educacional, de porta em porta, de casa em casa. Ensinar como fazer economia doméstica.
Muitas mudanças no curriculum: Ingresso na escola não com 8 anos mas com 5 (ligava teoria e prática); 14-15 anos: período secundário, intrínseco no trabalho manual; 17 anos deixava o secundário. O ensino superior não era obrigatório.
Organização nas escolas. As escolas deviam ser pequenas comunidades ujamaá. As aldeias deviam formar famílias alargadas com os bens. As machambas devem ser base nas escolas.
A escola deve ser auto-suficiente em duas vertentes:
1. económica: produzir o suficiente para que nenhum membro do ujamaá morra de fome.
2. moral: compreende princípios que a educação deve promover, que são os mesmos valores do socialismo africano: igualdade, humanismo, autoconfiança, solidariedade e cooperativismo.
Os valores morais devem estar ligados aos valores do saber fazer.
Sistema de exames: Os exames devem ser locais. Tem o mesmo peso como os relatórios da machamba. Os exames não serem só por escrito mas coordenados com exames práticos.
Foi o primeiro pensador a fundamentar o socialismo a partir da tradição africana.
Nyerere pela primeira vez fundamenta a democracia não como sistema mas como valores e predisposições sociais:
· o valor do humanismo
· a dignidade da hospitalidade
· espírito do trabalho colectivo
A EDUCAÇÃO BANTU NA ÁFRICA DO SUL.
1. Contexto e antecedentes.
O termo Bantu (gente) foi utilizado em South Africa numa forma ideológica-política por parte do apartheid para classificar o tipo de educação especial devia-se dar aos negros.
O apartheid foi estabelecido oficialmente em 1948 e a educação bantu cinco anos mais tarde com uma lei.
O Que antecede a promulgação desta lei?
O 90% das escola frequentadas por negros eram dos missionários que vinham de diferentes países como a Inglaterra, Suíça... e congregações diferentes como metodistas, católicos, anglicanos, etc.
Alguns interesses de educação eram mais compatíveis com os farmeiros (trabalho manual) e outros eram mais compatíveis com os interesses do governo (obediência, servilismo, etc).
Na maioria das missões a língua era a local: esta opção era mais para facilitar a evangelização.
Conflitos com o apartheid.
1. Nas missões se ensina a ler e escrever junto com a doutrina cristã (Bíblia): a educação era o instrumento usado para evangelizar. O apartheid sentia que não tinha controlo sobre os valores morais e éticos transmitidos aos negros.
2. As pessoas passavam mais tempo com o trabalhos práticos a educação era especialmente de artes e ofícios. Isso era também para sustentar as missões e outras actividades e para ensinar ao negro a autosustentar-se. O medo do apartheid era mesmo que o negro se tornasse autónomo.
3. As missões criam uma espécie de auto-alimentação: alguns negros recrutavam outros negros para serem acólitos, e outros para serem professores, catequistas... formaram elites.
Os curricula destas escolas missionárias eram diferentes: Nas escolas tradicionais: latim, grego, etc.; Nas escolas missionárias: curriculum “africanizados” com profissões locais, línguas locais, trabalhos manuais ou ofícios...
Crítica contra as escolas missionárias.
1. A educação era mais virada para o trabalho manual sem preocupar-se da formação académica dos negros. Os negros não podiam assim fazer carreira, mas só fazer trabalhos duros.
2. Racismo: nas escolas eram separados brancos e negros.
3. Papel da mulher na educação: elas aprendiam costura, culinária, lavagem de roupa, cuidar da casa...
II. A “Bantu Education Act” de 1953.
Em 1953 foi promulgada a Bantu Education com uma lei. Foram retiradas as escolas das missões para serem nacionalizadas. A administração destas escolas devia ser feita pelo departamento de educação do ministério dos “assuntos dos nativos”.
Colocam-se barreiras administrativas às escolas missionárias: separação do sistema de financiamento das escolas. O financiamento das escolas dos negros era ligado aos impostos que os negros pagavam.
Os professores deviam ser formados pelo estado e os programas os mesmos das escolas estatais.
O arquitecto desta lei foi Hendrik Vevwoerd (ministros dos assunto dos nativos e depois foi 1º ministro): é o pai do apartheid; ele estudou na Alemanha nazista (o nome do filho era ISAN: lendo ao contrário dá NASI).
III. O movimento de resistência à Bantu Education.
1. A primeira resistência foi da própria igreja que rejeita este tipo de educação que discriminava os negros: eles têm direitos iguais aos outros.
No mercado do trabalhohavia discriminação: a igreja era contra a separação. Umas igrejas fecharam as suas escolas (metodistas, presbiterianas e congregacionalistas): alugaram às comunidades. A igreja anglicana fechou completamente e recusou de entregar as escolas ao estado. A igreja católica manteve as escolas, recusou de entregar ao estado, mesmo sem apoio. Como reacção o estado cortou os subsídios à igreja católica e consequentemente abaixou muito a qualidade pois os professores recebiam a metade em relação aos professores estatais.
2. Outra resistência foi organizada pelos movimentos políticos: em 1955 a ANC organiza o boicote desta lei: queriam retirar as crianças das escolas oficiais e encontrar alternativas educacionais (isto também foi criticado pelas igrejas).
O ANC lutou pelo movimento de Open Schools. A partir de 1976 começaram a influenciar escolas que aceitavam brancos, para aceitar também negros com a justificação religiosa que todos aprendiam o mesmo tipo de fé. Estas escolas eram caras e localizadas nas casas ou farms dos brancos.
3. Terceiro grupo social foi dos sindicatos. As condições dos professores eram de baixo salário e trabalhavam dois turnos. Muitas escolas fecharam e muitos professores ficaram desempregados.
4. Outro grupo que resistiu foi dos estudantes. A nível de universidades em 1957 a University Act cria universidades separadas, proíbe que os negros frequentem as universidades dos brancos. Cria-se a universidade dos negros (Zulu-lândia), a Kuazulu-Natal, Fort Hara, Turtloop; universidades para indianos em Durban e outras para os mistos na Cidade do Cabo.
Nestas universidades criam-se os movimentos estudantis, tipo black consciousness. Um dos líderes é Steve Biko, preso pelo apartheid, torturado e desaparecido. Define o negro não pela pele mas pela condição de existência: todos os que são oprimidos, todos os povos marginalizados.
5. Outro movimento foi o que combina com o massacro de Soweto em 1976: o ministro da educação ordena que metade das disciplinas das escolas primárias e secundárias fossem ensinadas em afrikans (língua dos boers). Os estudantes e pais não estiveram de acordo e em Junho de 1976, 20.000 estudantes foram manifestar contra o afrikans como língua de ensino.
NB: em 1975 o Moçambique ficou livre e também os negros da África do Sul viram que é possível libertar-se do domínio dos brancos.
EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE
ADRIANO LANGA
(As ideias educacionais de A.Langa foram tiradas da palestra que deu na UniSaF no mês de Maio 2008 sobre a Educação tradicional e Educação Católica).
A.Langa delimita a sua reflexão sobre a educação negro-moçambicana (pois em Moçambique existem várias raças e culturas diferentes), que ele define como Educação Tradicional.
Esta Educação tradicional tem as seguintes características:
1. Uma educação unitária, pois não há divisão entre sagrado e profano; natural e sobrenatural: Há um só mundo”.
2. Uma educação teocrática: Para o moçambicano Deus é o ponto de partida e de chegada, é fonte da vida. Langa reconhece que este tipo de educação pode ser acusada de ser primitiva e obscurantista, e por isso convida a uma reflexão pacata. Salienta que quando se elimina a religião surgem muitas outras “religiões”.
3. Uma educação homocêntrica: a pessoa humana está no centro das preocupações, para que o homem tenha uma vida forte. Para alcançar a vida basta seguir o “código restrito”: respeitar a divindade; seguir a tradição dos antepassados; promover a vida; etc.
4. Uma educação faseada: se respeita a idade, mesmo que o educando parece mais maduro, pode conhecer só aquilo que é permitido na sua idade. Existem conteúdos diferentes por cada fase de crescimento, assim como cada assunto tem o seu ambiente próprio (no ar livre, no bosque, de madrugada, etc.). Isso para acertar o momento receptivo melhor do educando.
5. Uma educação participativa: “A educação na sociedade tradicional é tarefa de toda a família nuclear e alargada e de toda a sociedade”. Há assuntos reservado às tias paternas, tios paternos, etc., pois a educação dos filhos não é monopólio dos pais: os pais “zelosos” que educam sozinhos os seus filhos “intocáveis” somente encontraram graves problemas no futuro.
Entre pais e filhos não pode existir muita proximidade ou familiaridade, pois isso tiraria o respeito devido aos pais. Por isso os assuntos sobre a sexualidade não devem ser tratados pelos pais, mas somente pelos tios.
A.Langa trata em seguida do choque cultural acontecido com a chegada do colonialismo, “porque o colonizador se apresentou cheio de força e complexo de superioridade e de saber, a ponto de ele negar a existência da cultura do colonizado”.
O sistema educativo do colonizador baseava-se na escola, e do colonizado na família e sociedade.
O governo colonial se servia também da igreja para a educação: mas Langa lembra-nos que entre estado e igreja sempre houve uma tensão permanente. Houve conflitos, com consequente expulsão ou perseguição de padres, irmãs, seminaristas e bispos.
Langa sintetiza os valores da educação católica: promoção do homem moçambicano; da mulher (muitas meninas foram mandadas estudar por parte dos padres); da educação integral; da cultura local (particularmente as línguas); da libertação política, económica e cultural do moçambicano; da autonomia e da liberdade religiosa.
O nosso autor acusa a educação católica de ter exautorado a família, pois os filhos eram tirados do lar familiar para serem educados conforme aos valores ocidentais (“filhos do padre”). Mesmo assim os filhos depois voltavam para a família e continuava a educação tradicional deles. Daí o “drama” do africano que tem uma dúplice consciência: uma tradicional e outra cristã/ocidental.
O conflito foi consequência da tentativa de fazer “tábua rasa” à visão tradicional, como se ela não existisse. Deve ser perseguido o ideal da complementaridade pois cada sistema deve aprender também dos outros, pois “A verdadeira Sabedoria não conhece cor, não conhece terra, não conhece civilização e a Verdade não envelhece, ela é eterna e com ela está a VIDA”.
OBS. Depois de ter exaltado e defendido a particularidade da cultura, A.Langa parece concluir na defesa do universalismo da educação.
AMARAL BERNARDO AMARAL
Amaral B. no seu artigo “Matriz estruturante da cultura tradicional africana”, dedica um parágrafo ao tema “O método educativo da Cultura Tradicional Africana”. Ele sustenta que a educação tradicional é mais marcante de todas as outras educações que o africano recebe na sociedade. Esta educação tradicional africana é caracterizada pelo método iniciático.
O nosso autor escreve: “A iniciação tradicional é baseada na concepção da vida como uma longa viagem de crescimento em que o indivíduo, guiado pela mão dos mais velhos, vai passando, gradual e progressivamente de uma fase da vida a outra; de “menos ser para mais ser”, até atingir o pleno estatuto de “muthu”, isto é, de pessoa madura, consciente, autónoma, responsável, solidária e comunicadora da vida. Na visão bantu das coisas, a pessoa não nasce já feita, mas vai se fazendo gradualmente no processo iniciático através de instruções, ritos, símbolos e cerimónias.
O método iniciático africano imprime sempre uma mudança radical na pessoa que é iniciada. A pessoa deve passar por uma renovação interior profunda que lhe modifica, não somente os comportamentos, as atitudes, a mentalidade, a vida, mas também o próprio ser. Raul Altuna diz tratar-se de uma verdadeira “transformação ontológica”.
São três os momentos principais da iniciação tradicional:
1. A separação: há um corte com os mimos do passado e a criancice, através da ruptura da separação física do ambiente familiar para ser mandado na floresta por vários dias.
2. O isolamento: é o momento mais forte da iniciação, pois “É neste período de reclusão total que se faz a revelação dos mistérios e segredos da tribo; que se dá o ensinamento dos ideais e princípios fundamentais da sabedoria tradicional, através de provérbios e contos; que se narram as páginas mais gloriosas da históriada tribo, com a apresentação dos heróis e modelos de imitar; que se ensinam os princípios religiosos, éticos e morais e as normas que regulam a vida e a convivência na comunidade. Na floresta os iniciados recebem noções práticas de vida do dia-a-dia, sobre como resolver problemas concretos, como enfrentar com serenidade as dificuldades; como governar sabiamente o lar etc.”
3. A reintegração: na floresta morre a criança e nasce o homem adulto. O iniciado é apresentado a comunidade na qual entra a fazer parte a pleno título: recebe um acolhimento jubiloso, um nome novo e um vestido novo.
Na conclusão Amaral indica a “sete categorias” existenciais da cultura tradicional africana.
A nosso modo de ver estas categorias são fundamentais para a elaboração de uma FdE africana que se fundamenta sobre os valores mais autênticos da cultura africana.
SEVERINO ELIAS NGOENHA
No Prefácio à obra de Severino Ngoenha Estatuto e axiologia da educação,[footnoteRef:5] o Prof. Doutor José Paulino Castiano interroga o autor sobre “qual seria a preocupação fundamental de toda a sua reflexão filosófica”. O autor responde que o ponto de partida é que ele é moçambicano e africano, então trata-se de um pensamento nacionalista. E daí, vendo a situação de escravatura em que se encontra ainda o negro africano ele se pergunta se o Saber pode ser instrumento de libertação. Responde positivamente. [5: NOGOENHA S., Estatuto e axiologia da educação, Livraria Universitária UEM, Maputo. 2000]
O desafio é reflectir sobre a relação entre identidade e modernidade. È importante ficar firmes nas próprias tradições sem negar o direito da existência dos outros.
Ngoenha introduz a sua obra com a afirmação: Educar ou perecer. E se pergunta se a educação tem valor soteriológico (a educação significou mais igualdade e mais desenvolvimento para todos?); que tipo de educação precisamos? Para que sociedade educar? Quais os valores pressupostos? (Foram feitos muitas políticas pedagógicas mas não correspondentes às necessidades reais do Moçambique).
Educar é transmitir valores. A Educação tem duas bases: uma filosófica (teoria) e uma científica (prática). Não é possível educar ou fazer uma teoria da educação sem uma ideia de homem, sociedade, história, cultura, vida: precisa olhar não tanto à metodologia (ou didáctica) mas aos conteúdos axiológicos que se quer transmitir, definir os objectivos (a pedagogia as vezes confunde os métodos com os objectivos).
O debate actual no campo da educação (mas não só) é sobre a relação que deve existir entre a identidade étnica e a modernidade (Estado).
No Cap. I o autor trata do estatuto do saber e do sistema educativo em Moçambique. O Moçambique negou qualquer filosofia na formação e educação, negando assim de fazer da moçambicanidade o valor basilar da educação nacional (deixa os conteúdos axiológicos ao arbítrio de cada instituição de ensino).
Mas quais são os valores constitutivos da moçambicanidade?
O fim da educação portuguesa era para “aportuguesar” os indígenas, de facto o seu programa de ensino não tinha nada a ver com o Moçambique. Com a imposição da língua portuguesa houve a nacionalização mas também a desnaturalização de Moçambique. Objectivo era de manter a opressão e o domínio.
` O Moçambique quais valores transmitir? Aqui o autor cita as críticas dos mesmos intelectuais africanos a respeito das próprias tradições.[footnoteRef:6] [6: Id. p. 47]
O encontro entre ocidente (no se aspecto positivo e negativo) e África foi uma “aventura ambígua”: para alguns tratou-se do encontro de duas realidades distintas identificando o ocidente com o racionalismo, pragmatismo e materialismo e a África com a autenticidade, a fé, o amor aos irmãos, humanismo. Para outro este encontro produziu um híbrido cultural ou um “bastardo”cultural.
A educação missionária-colonial teve uma história controversa.
O Portugal em 1800 expulsou os jesuítas (Marquês de Pombal)e extinguiu congregações religiosas (Joaquim António de Aguiar 1834), com enorme dano à educação em Moçambique, pois o Portugal não aguentava a escolarização nem de todos os portugueses de Moçambique.
Na Conferência de Berlim (art. 6 do “Acto Geral”) a Itália propus a liberdade religiosa para a África e isso teve uma enorme e imediata repercussão política.[footnoteRef:7] O Governo português que era maçónico e anticlerical, foi assim obrigado a apoiar as missões católicas pois outros missionários estrangeiros e não portugueses poderiam ter “levado as terras deles”: “o dilema português era simples: ou continuava a sua guerra anti-eclesiástica e perdia as colónias ou então, para poder continuar a sua aventura colonizadora, fazia um matrimónio de razão com a Igreja e suscitava missões portuguesas”.[footnoteRef:8] [7: Id. p. 62] [8: Id. p. 63]
O Portugal saiu da Conferência de Berlim muito redimensionado: certos críticos dizem que se o Portugal não tivesse extinguido as Missões religiosas, a partilha de Berlim teria sido diferente. Foi assim que em 1887 surgiu a Junta Geral das Missões e o Governo começou a conceder subsídios a algumas missões. Outras congregações, porém (como congregações estrangeiras ou os jesuítas), não eram “maleáveis”. O Governo exigiu a entrega dos estatutos (em 1919) para conferir quais delas não trabalhassem para a portugalidade. O Vaticano, porém, interveio ordinando de não entregar tais estatutos. Aumentou ainda mais o anti-clericalismo.
A partir de 1922 as missões religiosas (e católicas em particular) foram equiparadas às laicais. Aos missionários se entrega a escolarização dos indígenas. A língua portuguesa se torna obrigatória (só a religião pode usar a língua local). Uniformiza-se o ensino em todo o Império (para facilitar as mudanças dos portugueses) que não tinha nada a ver com os problemas de Moçambique. Constroem-se algumas escolas técnico-profissionais e em 1962 a primeira Universidade (UEM).
Em 1975 houve a nacionalização das escolas: porque isso aconteceu mesmo sabendo que a nova república não teria aguentado? Porque finalidade da educação era o nacionalismo moçambicano com estes três objectivos: 1. estender a rede escolar a um maior número de alunos; 2. veicular o sentido de pertença à nação moçambicana (combate ao tribalismo); 3. educar para enfrentar os problemas reais do novo Moçambique. Mas se a qualidade da educação portuguesa já era fraca (última na Europa), piorou ainda mais com a nacionalização, (também porque foram destruídas as estruturas com a guerra civil).
Severino Ngoenha passa a reflectir sobre o paradigmático questionamento da missão suíça, que saindo do contexto romântico (Goethezeit) e em contrasto com a sua terra, viu os seus missionários chegarem em África e colocar-se inicialmente como alunos dos indígenas para a prenderem a sua língua. Aprender a língua era necessário para a evangelização. Para os protestantes todos os cristãos deviam ter a sua própria bíblia e por isso precisava escreve-la na língua local. Aprenderam a língua oral para recriá-la como novo língua escrita, transformando (“manipulando”) a cultura local e “criando” a etnia dos tsonga nome que significa “pequenos, servidores”e que para Junod eles tinham que aceitar querendo como não.
Dentro da mesma missão suíça havia quem propunha uma educação uniformizadora e assimilacionista e que defendia as particularidades culturais. Junod em particular não queria a assimilação dos tsonga aos brancos ateus e viciosos. Para os portugueses se tornava difícil aportuguesar estes nativos, por isso apoiou mais as missões católicas contra estes estrangeiros e protestantes. Nasceu o contraste entre a Igreja Católica e Protestante. A missão suíça foi redimensionada; o seu projecto de colonização era diferente a o dos portugueses. Ela passou a ser considerava subversiva e a formar uma oposição ao regime colonial (os mintlawa). A M.S. procurou manter a língua tsonga para segurar a sua elite (até a chegar ao ponto de não envia-los aos estudos superiores para não perde-los).[footnoteRef:9] Na África do Sul o governo apoiava este projectoda M.S. pois secundava a sua educação separatista indígena (Apartheid). A M.S. era assim fechada no seu gueto. Até Junod não queria que os negros fossem educados para serem integrados aos brancos. Para os bóeres e Junod os negros eram ontologicamente para os primeiros, histórico-culturalmente para o segundo, inferiores. [9: Id. p.186]
Os formados pela M.S. não responderam às expectativas pois se tornaram atei (marxismo-leninismo) e defensores da nacionalidade contra o tribalismo (adopção da língua portuguesa).
Em conclusão para Ngoenha, qual política educacional, quais pressupostos da educação? Ele propõe:
Uma educação baseada nas línguas nativas; educação para a responsabilidade, mais comprometida com o desenvolvimento da Nação (atenção ao Mundo e ao Moçambique). As Universidades devem tornar-se centros de investigação.
JOSÉ PAULINO CASTIANO
As ideias do Prof. Castiano sobre a educação foram tiradas da obra: CASTIANO J.P., BERTHOUD G. e NGOENHA S.E., A longa marcha duma “educação para todos” em Moçambique, Editor Imprensa Universitária, 2 edição, Maputo, 2005.
O texto em seguida, sobre a apresentação deste livro do J.P.Castiano, é de autoria da Mestre: Telma Luís Nhantumbo.
As Políticas de Educação e a sua Implementação em Moçambique (1498-2002)
Em 1505, iniciou a dependência da África Oriental do Estado Português, e em 1820 com a Revolução Liberal em Portugal iniciou a política da assimilação dos Moçambicanos. Uma nota importante do movimento foi a abertura de um espaço para o debate sobre a questão da assimilação e sobre as formas e o sistema de governação do império, centrando–se sobre a centralização e descentralização da administração portuguesa. António Enes proclama que “Missionários para África é na África que se educam”. Podem ir para lá padres, mas lá é que hão-de aprender a ser missionários. Compreende-se que a sua preocupação era de criar a Congregação das Missões Portuguesas da África Oriental, uma organização destinada a reunir e habilitar pessoal para os serviços eclesiásticos, para difundir a fé religiosa e moral, assim como para o professorado primário da Diocese de Moçambique.
No período anterior a 1845, a educação dos filhos dos portugueses é garantida por padres, alguns professores particulares, escolas regimentais, etc. Em Agosto do mesmo ano é estabelecido o regime das escolas públicas em Moçambique. Antes do estabelecimento deste regime havia escolas primárias na Ilha de Moçambique, fundadas em 1799 e em 1818 foram fundadas outras em Quelimane e Ibo. Sempre no mesmo ano, o ensino formal passa a ser dividido em dois níveis:
1. o primeiro grau ministrado nas escolas elementares que compreendia a Leitura, Caligrafia, Aritmética, Doutrina Cristã e História de Portugal;
2. o segundo grau destinado às escolas principais as quais compreendiam no seu programa Português, Desenho, Geometria, Escrituração, Economia e Física Aplicada. O número das escolas elementares expandiu-se para Inhambane (1856), Mopeia (1895) e Lourenço Marques (1907).
Culmina o surgimento em 1911, em Lourenço Marques da primeira escola secundária, escola comercial e industrial “ 05 de Outubro”, mais tarde (1918) transformada em Liceu.
A educação neste período começa a ter um cunho rácico e marginalizante: os chamados “povos primitivos” deviam ser civilizados sim, mas lentamente e a sua educação devia, sobretudo, estar virada para a formação em trabalhos manuais. Além disso, esta educação devia estar em harmonia com os usos e costumes e com o grau de desenvolvimento intelectual e moral do povo indígena.
Em 1929/30 surgem leis e regulamentos que tentam organizar o ensino indígena, os programas para o ensino primário rudimentar, para as escolas de artes e ofícios, as escolas de habilitação de professores indígenas. Existência de 3 tipos de ensino para os indígenas; ensino primário rudimentar; profissional e normal.
Em 1961 é abolido o Estatuto do Indígena devido à reacção dos povos Africanos com o início de movimentos de libertação em África. Esta abolição leva ao surgimento de reformas no ensino.
Em 1975 Proclama-se a Independência em Moçambique e dois anos depois surgem muitas transformações em todas as esferas da sociedade, como por exemplo a administração do Estado incluindo a Educação. Na Educação houve mudanças de currículos, nos procedimentos administrativos nas escolas.
Em 1976 foi fundado o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Os desafios que se colocaram foram a reestruturação da administração da educação, a construção de estabelecimentos para o Ensino Técnico Profissional, a formação e a contratação de professores, a extensão das oportunidades educativas para os adultos e trabalhadores que até então haviam sido excluídos do sistema, o desenvolvimento de novos programas de ensino, assim como de novos materiais educacionais. Mais tarde é introduzido o Sistema Nacional de Educação com objectivo central a formação do Homem Novo, um homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista.
De 1987 a 1992 é o período caracterizado por uma crise geral do sistema de educação em Moçambique que se caracterizou pela incapacidade do Estado de assegurar o acesso de todas as crianças à educação básica e um mínimo de qualidade àquelas crianças que estavam na escola. Ainda no mesmo período aumentam as desistências e reprovações; a qualidade de ensino torna-se péssima e a compra do material didáctico básico torna-se difícil para as camadas mais pobres. A crise atingiu as direcções (Ministério, Província e Distrito) onde os funcionários com alguma formação mais elevada abandonam a educação optando pelo sector privado. Nesse período houve escândalos de funcionários envolvidos em vendas de enunciados das provas e exames.
Esta crise descrita pelos autores do livro, deveu-se a três factores: a falta de meios financeiros suficientes para sustentar o sistema concebido, a forma visível da guerra na educação com a destruição de escolas e de internatos e as medidas estruturais incitadas pelas instituições da Bretton Wood. Com esta crise o governo viu-se obrigado a partir de 1987 a introduzir o Programa de Reabilitação Económica (PRE), que previa a privatização de empresas que não davam lucros ao estado e na educação foram privatizadas a produção e distribuição e comercialização do livro escolar.
Nos finais dos anos 80 surgem as primeiras escolas privadas divididas em dois grupos: existem escolas privadas no seu sentido restrito do termo e as chamadas escolas comunitárias, numa altura em as escolas públicas não ofereciam lugares em quantidade suficiente e nem qualidade desejável. Estas se tornaram legais a 01 de Junho de 1990 através do decreto n˚11/90 do conselho de Ministros.
A privatização e liberalização parcial do sistema de ensino abre caminho para novas tendências, portanto há uma necessidade de reestruturação do sector, é aprovada a lei 6/92 em Maio de 1992 que revoga a lei de 1983. Os objectivos fundamentais da educação são formulados de uma maneira mais precisa como sendo a erradicação do analfabetismo, uma introdução gradual da escolaridade obrigatória, a garantia na formação de professores, etc. Com o fim da guerra várias organizações internacionais e países engajaram-se imediatamente na ajuda ao sector de educação desde a reabilitação e construção de escolas até a formação de professores. A ajuda não se resumiu só à disponibilidade de fundos mas várias outras acções foram desenvolvidas.
Em 2002, o Ministério da Educação (MINED) em Moçambique inicia com a concepção e a consequente introdução de um novo currículo para o Ensino Básico, sob os auspícios da UNESCO. Tendo o INDE como instituição que orienta o processo de implementação do referido plano curricular.
Aporias da Educação em Moçambique
De acordo com os autores a análise do processo da educação desde o período colonial até ao presente período permitiu a identificação de quatro aporias a destacar:1) a primeira é de estar entre legitimar a identidade nacional (em construção) e as mini-nacionalidades e cultura-tradicionais que formam o país;
2) a segunda que deriva do facto de haver um imperativo político e de desenvolvimento para estender o ensino básico a todas as crianças, mas, por outro lado, a custa da expansão e a deterioração da qualidade das ofertas educativas;
3) a terceira é o facto de o sistema exigir mais recursos financeiros e materiais do que aqueles que o Estado Moçambicano pode disponibilizar;
4) a quarta e última relaciona-se directamente com a qualidade externa do sistema de educação.
Em relação a identidade nacional a educação desempenha um papel importante, este papel de legitimação é feito de várias formas. Uma das mais evidentes decorre do facto de que os professores, para além de transmitir conhecimentos, transmitem também normas, valores e os padrões de comportamento e de interpretação da realidade aos estudantes. Estes aspectos tendem a concorrerem para estabilizar e dar uma certa continuidade às sociedades. Entre elas encontramos aquelas que visam reconhecer as instâncias políticas nacionais como sendo legítimas (bandeira, hino, presidente, Estado, território).
E no que se refere ao termo “Educação Para Todos”, foi usado no lugar de “massificação do ensino”, termo que exige mais do que proporcionar o acesso às crianças em idade escolar (incluindo os adultos). A educação é declarada como um direito e um dever para todo o cidadão, que se traduz na igualdade de oportunidades e de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todos. Hoje este objectivo de massificação foi substituído pelo objectivo “Educação Para Todos”.
A Escola em África: Entre a Universalização e a Africanização
Em relação a este aspecto os europeus vieram institucionalizar a escolarização. Escolas missionárias foram estabelecidas para ensinar às crianças africanas a mensagem cristã para salvar as suas almas. Os governos coloniais estabeleceram escolas ao estilo europeu com o propósito prático de fazer com que alguns africanos pudessem ajudá-los a administrar o sistema e as colónias. Para a sua integração no sistema de administração colonial, porém, eram-lhes reservados os níveis mais baixos locais, principalmente como tradutores, empregados de balcão, estafetas, ou serviços de primeira triagem em diversas repartições administrativas.
No período posterior, com as independências dos países africanos, os africanos se preocupavam com o tipo de educação apropriado para eles.
No início do Sec. XX, sobretudo na Libéria e na Serra Leoa, alguns pensadores como Horton, Johnston, Agbebi, Blyden, Carr, entre outros influenciaram o debate entre a modernização e a africanização da educação. No fundo a discussão estava em volta do papel da educação no contexto do desenvolvimento do continente.
Educação Para Todos: Re-Equacionando Contextos, Valores e Estratégias
Estender a Educação Básica para Todos até 2015 foi um desafio assumido em Dakar: é um desafio de que a África não se pode dar ao luxo de desistir mas deve pensar e repisar nos seus planos de desenvolvimento. É uma questão de direito e de vida. Os benefícios e às facilidades educativas devem ser compartilhados por todos. A cada um dos africanos deve se garantir uma perspectiva profissional ou de ocupação em pé de igualdade com os outros. Deve-se dar a oportunidade de ter acesso à informação, o direito de votar conscientemente, garantir a escolha da língua em que se quer expressar e educar-se, desenvolver e criticar atitudes, criar oportunidades iguais para o emprego, para política, para a participação na vida da sua comunidade, etc. Sendo assim, o desafio de Dakar não é só quantitativo mas também qualitativo.
O fracasso da primeira década na implementação da “Educação Para Todos”, mas sobretudo a falta de alternativas sérias de como se iria alcançar esta visão ampliada da educação, leva-nos a, num primeiro momento, reequacionar os contextos para tornar a “educação para todos” uma realidade; no segundo momento procura-se reequacionar o estatuto axiológico da educação em Moçambique e por fim reequacionar as estratégias até aqui usadas para a implementação.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO AFRICANA: “MUNTUISMO” PARA UM PERSONALISMO AFRICANO
Em conclusão do curso sobre a Filosofia da Educação, apresentamos a seguinte reflexão do Prof. Doutor P. Ezio Lorenzo Bono sobre a proposta de uma Filosofia da Educação Africana que se fundamente na ideia de um personalismo africano, definido com um neologismo: Muntuismo.
O texto em seguida é tirado da terceira parte da Tese de doutoramento do próprio, cujo título é: A ideia de pessoa na Filosofia Africana Contemporânea.
TERCEIRA PARTE: Revisão Sistemática e Perspectivas
“Muntuismo”: um “novo” modelo teórico de Pessoa?
Após ter reconstruído, na primeira parte, a história das ideias concernentes à noção de pessoa nas obras dos mais significativos filósofos africanos, e após a pesquisa de campo por via de estudos e palabres com muitos “sábios” do nosso território, interrogados indiscriminadamente sobre o mesmo tema, chegamos à parte final, a da revisão sistemática e da reflexão propositiva à luz da conclusão.
A principal dificuldade que enfrentamos nesta parte foi a de permanecer o mais possível ligados ao objecto material da nossa pesquisa, que é a ideia de pessoa na filosofia contemporânea africana, sem deixarmo-nos envolver por muitas outras reflexões e perspectivas que nos surgiam ao longo do percurso, de tal forma que, mais do que chegar a uma conclusão, o discurso alargava-se a numerosos outros temas relacionados.
Tentamos oferecer uma representação crítica de cada autor, de modo a fazer emergir o pensamento de cada um deles a respeito desta ideia, uma ideia que enucleamos também nos autores que não trataram directamente do tema, tendo o feito em modo transversal. A nossa preocupação não era de carácter linguístico nem simplesmente fenomenológico, mas reconstruir uma história das ideias, na qual também os filósofos mais significativos da área lusófona pudessem ter um espaço importante.
Dividimos a terceira parte em dois capítulos: no primeiro retomamos de modo sistemático a ideia de pessoa que emerge de todos os contributos intervenientes e, no segundo, certamente mais original[footnoteRef:10], tentamos focalizar o nó teórico do discurso e instruir um processo de elaboração correcta de um novo modelo, que possa delinear a realidade e a verdade do ser pessoa, válido para todas as pessoas. [10: Para além dos dois capítulos originais que foram o maior espaço dedicado aos filósofos lusófonos e o trabalho de campo desenvolvido nas duzentas entrevistas.]
Neste modelo serão integradas as ideias de pessoa que surgiram das duas primeiras partes da pesquisa: o nosso contributo será, então, apenas a nível formal, pois o objecto material foi proposto pelos filósofos africanos.
1) Retomada sistemática
Passamos agora a delinear uma síntese da ideia de pessoa, retomando sinteticamente os temas já tratados em modo analítico nas páginas anteriores. Será inevitável certa repetição e sobreposição de discursos, onde se interceptam as ideias encontradas e reelaboradas numa síntese que por vezes vai para além da intenção dos próprios autores. Desta retomada sistemática, ou balanço crítico, poderemos passar para o nosso contributo na elaboração do modelo apenas descrito acima, que possa dizer a verdade e não apenas a realidade da pessoa africana. A retomada sistemática será necessariamente sintética, pois damos por suficientemente clara a análise feita na primeira parte.
Por uma questão de ordem, agrupamos os filósofos analisados em duas correntes que podemos classificar nos seguintes termos: uma corrente cuja preocupação central é mais cultural/filosófica (Tempels, Kagame, Mulago, Mbiti, Menkiti, Gyekye Junod, Amaral, Lerma, Langa e os “sábios” entrevistados) e outra, mais histórica/política (Ela, Eboussi Boulaga, Lopes, Ngoenha, Castiano). Reconhecemos que toda a classificaçãoé arbitrária e limitada, porque existem autores que se colocam em modo transversal entre as duas correntes, como são os casos de Eboussi Boulaga e Castiano.
a) Corrente cultural/filosófica.
O nosso ponto de partida foi a análise de um texto muito controverso e contestado, da autoria de Tempels, o qual identificava no termo Muntu a ideia de pessoa como aquele que vive radicado na sua ontologia e teodicéia. Esta ontologia e teodicéia intrínseca à tradição africana, teria “feito viver” por milénios inteiras gerações Bantu até aos nossos dias. A questão subjacente e retomada continuamente também por outros autores foi a da verdade desta tradição, que atesta a presença de um pensamento filosófico de fundo e não de mero folclore. Sublinhamos, preliminarmente, que para realizar o seu projecto, Tempels recorre à conceitualização ocidental, enquanto Kagame e Oruka mostram outro tipo de abordagem, o primeiro recorrendo à análise linguística das línguas locais e o segundo, à “sageza” filosófica dos “sábios” africanos.
Para Tempels, Pessoa (Muntu) é o homem que tem como valor essencial a vida; a sua sageza consiste no conhecimento da sua ontologia, que se baseia na noção fundamental do conceito de ser como força vital. Esta intuição filosófica funda-se na evidência externa e interna. Os bantu têm uma clara consciência moral e sabem reconhecer o bem e o mal conforme as leis naturais: é bom tudo quanto promove a força vital e mau tudo quanto a deprime. Concluímos a análise desta concepção de pessoa em Tempels introduzindo as categorias de imanência e economia do ser – o que para os ocidentais é ser imanente (ideia abstracta), para os Bantu é ser económico (força vital).
O ganho mais importante que podemos obter da obra de Tempels é a hipótese de um “primado” cultural dos “negros” sobre os “brancos”, porque os negros teriam chegado primeiro à intuição da ideia de um Deus único. Consideramos esta antecedência dos negros em relação à concepção de Deus único não irrelevante, porque da “verdade” acerca de Deus, como analisaremos de seguida, deriva a verdade acerca do homem. Por fim, com Tempels começa-se a sublinhar quanto a superioridade de uma cultura sobre outra não diga respeito necessariamente ao campo económico, segundo as ideologias ocidentais, mas concerne, sobretudo ao da sageza/sapiência. O conceito do primado da vida, por fim, contestado e criticado largamente, retorna continuamente na obra de muitos filósofos africanos.[footnoteRef:11] [11: Cfr. L’idea di union vital di MULAGO V, Un Visage africain du christianisme – L’union vitale Bantu face à l’unité vitale ecclesiale, Présence Africaine, Paris, 1965; a ideia de vitalogia di NKEMNKIA M.N., Il pensare africano come vitalogia, Cittá nuova, Roma, 1995; e muitos outros vistos acima que colocam o valor da vida como o ou um dos principais valores da cultura africana.
]
A primeira reacção foi a de Kagame, que acusa Tempels de ter definido filosofia bantu aquela que na realidade era a visão do mundo de apenas uma tribo, e de não ter documentado as suas teses. Da análise linguística Kagame chega à definição de pessoa (muntu) como “ser de inteligência”, cujas faculdades incluem a do “coração”, que para o ocidente é a vontade, onde reside a liberdade e também a concupiscência. Inteligência/coração corresponde a conhecer/amar: se para a filosofia clássica a finalidade do homem era conhecer e amar a Deus para gozar da vida eterna, para os bantu a finalidade é ditada pela função progenitora do homem e da mulher, do primado antropológico da procriação, que garante o perpetuar-se da força vital na descendência. A morte não destrói o muntu, mas separa do corpo material o espírito vital da inteligência: a pessoa continua, não mais como um ser vivo, mas como um existente.
Mulago afirma que todos os seres participam da união vital, uma comunhão contínua com todas as coisas e pessoas, visíveis e invisíveis. O primeiro princípio vital é o prolongamento da vida do Muntu. As famílias são ligadas por um pacto de sangue. A religião é o laço vital que une entre si, vertical e horizontalmente, todos os seres, vivos e mortos. Existe vida depois da morte e relações entre vivos e mortos. Mulago defende uma filosofia da união vital entre os Bantu, concebida como conhecimento natural das coisas nas suas causas profundas e últimas. É a "sageza” dos Bantu. No cristianismo, esta união vital é expressa pela "Koinonia" que permite a comunhão com o mundo para além do sensível.
O homem africano, como emerge da reflexão de Mbiti, é um ser ontologicamente religioso: a pessoa africana insere-se numa ontologia religiosa antropocêntrica. A morte atinge apenas ao corpo e não ao espírito da inteligência, que é a essência do homem. A ideia de Deus é de um ser transcendente, que, todavia é também imanente, pois como criador, cuida das suas criaturas. Não existe idolatria. O mal não provém de Deus, por isso não se lhe oferecem sacrifícios, mas pode provir dos espíritos aos quais se oferecem sacrifícios.
A ética dinâmica africana define uma pessoa com base naquilo que faz e não naquilo que é. Um homem é bom ou mau não com base no que demonstra ser concretamente, por via das suas acções, e não com base em definições abstractas. Por isso Mbiti lamenta o deslocamento do “nós” ao “eu” na reflexão africana, como um reflexo negativo da influência do individualismo ocidental.
Devemos a Mbiti o axioma mais famoso na filosofia africana: "I am because we are; and since we are, therefore I am." Não menos importante é o aforismo zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu: “Uma pessoa é pessoa através de outra”. Em conclusão, na ética compartilhada pelos mais importantes autores da filosofia africana é essencial a centralidade do conceito segundo o qual cada homem é dotado da máxima dignidade de pessoa, conquanto seja plenamente inserido na comunidade e se reconheça parte de um todo.
Também para Menkiti a pessoa é definida pela comunidade e um Homem adquire plenamente a dignidade de pessoa apenas depois de um processo, um caminho para atingir a maturidade. Trata-se de uma progressão ontológica. A pessoa é tal porque em grau de respeitar completamente a moral: crianças e jovens não são ainda pessoas porque não tê ainda uma intencionalidade moral. Não estão ainda, de facto, totalmente inseridas na comunidade, com todas as responsabilidades que o papel de adulto comporta. Mesmo nesta ulterior especificação, ligada à idade, sublinha-se que é a comunidade a conferir ao indivíduo o estatuto de pessoa.
Uma reflexão original e contrária à quase totalidade dos filósofos africanos nos é dada por Gyekye, para quem a doutrina segundo a qual a comunidade torna o indivíduo pessoa, ressente-se de uma persistente influência do marxismo em muitos filósofos africanos. Não nos devemos esquecer, a propósito, da importância da história da sua nação, o Ghana, guiada por um regime de tipo socialista, instaurado por Kwame Nkrumah após a independência. Nkrumah, na sua obra de filosofia política, Consciencism Philosophy and Ideology for De-colonization and Development, with Particular Reference to the African Revolution (London 1964) reivindica para o pensamento tradicional africano, ideias materialistas e, sobretudo comunitaristas, originárias e inatas, afins ao marxismo ocidental, que por isso, embora mais compatíveis com as sociedades tradicionais das democracias modernas, comprometidas com o imperialismo e o colonialismo, não ofereceriam alguma novidade às novas nações africanas, em busca de um modelo de governo em grau de fazê-las prosperar nas independências. Gyekye tem presente outros protagonistas da filosofia política comunitarista africana, como Julius Nyerere, presidente da Tanzânia, que foram simpatizantes das ideias marxistas, em nome do resgate do sistema comunitário tradicional das populações locais, contra o modelo de estado à imagem das democracias europeias, às quais igualmente imputava a cumplicidade com o colonialismo e o imperialismo[footnoteRef:12]. [12: J. Nyerere Ujamaa. Essays on Socialism, London 1968. ]
ParaGyekye, ser pessoa não é um status por adquirir. É, antes pelo contrário, inato ao homem, porque todo o indivíduo é filho de Deus e, logo, pessoa: tem interesses particulares, vontade e desejos, capacidade de pensar e agir em modo autónomo.
Amaral apresenta um homem africano que deve superar o seu complexo de inferioridade e saber dialogar em par condição com o homem ocidental, que, por sua vez, deve superar o seu complexo de superioridade. O homem africano, com base na sua educação tradicional que opera nele uma transformação ontológica, permanece ancorado aos seus valores africanos sintetizados em sete categorias existenciais: a escuta, o encontro, a acolhida e hospitalidade, a relação, a simpatia/empatia, a alegria e festa, a esperança e o futuro.
Lerma define a pessoa (Munhu) como aquele que é profundamente radicado na mãe terra através dos antepassados, nos quais reside o princípio da vida. Os ritos de iniciação marcam a passagem da adolescência à idade adulta. A velhice é tempo de plenitude.
Langa vê o homem africano como parte de uma unidade cósmica e de um sistema dinâmico. Langa interroga-se acerca da liberdade da pessoa humana defronte à Religião Tradicional e sobre a ênfase que esta dá à comunidade em desvantagem do indivíduo. A própria personalidade mais profunda, na qual repousa o próprio ser, não poderá ser negada, mesmo no caso de uma conversão à religião cristã. A conversão deve ser consciente: saber dizer conscientemente adeus aos próprios ídolos, para não ter remorsos futuramente. Existirá uma teologia africana quando a reflexão será feita a partir de símbolos, imagens e conceitos religiosos africanos.[footnoteRef:13] [13: Achamos interessante o estudo e as considerações de Langa, não obstante alguns nós críticos apresentados no meu texto: Teologia africana contemporanea, pro-manoscritto, UniSaF, Maxixe, 2010.]
Das palabres com os sábios emergiram considerações interessantes que confirmaram quanto os filósofos tinham já exposto em modo sistemático. Em modo lapidário e sistemático focalizamos a ideia de pessoa como modalidade dinâmica e não como essência estática: um indivíduo é pessoa em base às suas acções, à sua relação com os membros da comunidade, é dotado de vontade própria, é um ser livre nos limites impostos pelas regras de convivência, que são as condições de possibilidade da liberdade. Para ser pessoa é necessário crer em algo de sobrenatural.
b) Corrente histórico/política
Depois destes autores que aprofundaram a ideia de homem de um ponto de vista cultural/filosófico, retomamos sinteticamente a ideia de pessoa emergente da análise dos filósofos da área histórico/política.
A figura de homem defendida por J. M. Ela é de um ser oprimido que tem necessidade de ser liberto: não só da opressão económica causada pelo colonialismo, mas também do imperialismo clerical que mantém as comunidades cristãs dependentes. Dependendo da sua praxis na sociedade, a religião é fonte de alienação e de opressão. J.M.Ela nega que o subdesenvolvimento da África seja causado pela sua tradição e religião, porque a causa é política e histórica. A religião, em muitos casos foi ocasião para reorganizar-se e rebelar-se. J.M.Ela conclui que infelizmente a independência não significou liberdade, posto que o novo opressor é personificado pelo próprio irmão.
Muntu, na ideia de Eboussi Boulaga, é o Homem na condição africana que luta por afirmar a sua humanidade. E frequentemente o faz negando a própria identidade para aceder à humanidade do dominador. O Muntu não é o homo africanus inventado pela etnofilosofia. O Muntu é atacado pela individualidade ocidental, que contrapõe o tradicional ao racional.[footnoteRef:14] Para o Muntu não existem dualismos, apenas a comunidade dos homens que buscam em conjunto a verdade. A tradição não é folclore, mas fonte da autenticidade africana. Cansado de sufocar a sua origem, o Muntu liberta-se da filosofia alienante ironizando com ela e redimensionando a sua abrangência. A filosofia será recuperada como filosofia emancipadora, prática, no horizonte ético. A ontologia é recuperada a partir da crise do ser. As qualidades necessárias ao Muntu são a lucidez no saber distinguir as máscaras dos rostos e a humildade de quem parece sucumbir diante do inimigo, mestre na arte de vencer sem ter razão. [14: Para Eboussi Boulaga, a superioridade do ocidente reside no seu mistério “sacro” que é o dinheiro.
]
O "muntu", segundo Lopes, é a pessoa humana que se encontra diante da dialéctica entre a conservação da tradição e o desafio da modernidade. A solução consiste numa nova perspectiva filosófica orientada para a comunicação a nível continental: comunicação interperiférica. Lopes propõe uma “espiritualidade comunicativa” que coloque todos os homens em comunicação entre si. Os seres humanos se realizam como tal apenas por via da comunicação. Muntu significa propriamente relação e comunicação. Superação do machismo e recolocação do Muntu no feminino. Denuncia a ideia de ser da pessoa num sentido único imposto pelo ocidente. O muntu é um sujeito de direitos e deveres que todos devem respeitar e defender, independentemente do lugar de nascimento da pessoa.
O homem que emerge da reflexão de Ngoenha é um homem que viveu à margem da história e pretende tornar-se sujeito da história. O primeiro passo foi a reivindicação da soberania dos próprios países, porque sem emancipação jamais se será sujeito da própria história.
Para Castiano, o homem foi sempre feito objecto, mesmo nas lutas abolicionistas. Embora sujeitos de conhecimento, os negros sempre foram usados como informadores anónimos. Os novos protagonistas da subjectivização são os jovens da cheetah generation, e os dois movimentos do afrocentrismo e do Ubuntuismo. Castiano reivindica uma racionalidade que vai para além da racionalidade. O homem africano de Castiano é o que cansado de ser objectivado, torna-se sujeito que se abre à intersubjectividade.
Retomaremos mais amplamente as ideias de Castiano e de Eboussi Boulaga, que consideramos “transversais” às duas correntes.
2. Perspectivas.
Neste ponto, pretendemos dar o nosso contributo que, repisamos, não diz respeito ao aspecto material do problema, mas ao formal.
O objecto material è produzido pelos próprios filósofos africanos e eu, na condição de não africano, não estou “autorizado” a dizer aos africanos quem é a pessoa africana.
O nosso contributo diz respeito ao objecto formal, ou seja, à questão do método, que instrui o estatuto epistemológico necessário para que o discurso sobre a pessoa seja filosófico. Este aspecto veritativo não se pode interromper, sob pena de o discurso sobre a pessoa permanecer prisioneiro de um pensamento inautêntico. E nós tentamos fazê-lo através de uma leitura transversal de filósofos africanos e ocidentais, metendo-os em diálogo (na paz do desejo de intersubjectividade de Castiano e outros).
a) A questão metodológica.
Pensamos poder afirmar que o discurso teórico acerca da ideia de pessoa africana possa ser bem instruído.
Propomo-nos delinear algumas reflexões teóricas, que possam servir de estímulo à reflexão e aprofundamento posteriores.
A ideia de pessoa afunda as raízes em tempos mais remotos, antes mesmo da filosofia grega, na civilização do oriente médio, na Bíblia em quanto texto por excelência de sabedoria, e na civilização africana do antigo Egipto, com as suas profundas relações com as antigas civilizações bantu. Esta ideia alcança por fim a sua máxima expressão filosófica e especulativa na reflexão metafísica que se desenvolve no contexto da tradição da teologia trinitária.
A ideia de pessoa em África impõe-se na sua originalidade porque traz consigo a ideia de abertura ao transcendente e à ideia de comunidade. Sem a comunidade a pessoa não existe. E, concomitantemente, quando se fala de pessoa, fala-se da sua relação com o transcendente. Em África um indivíduo não é pessoa senão em relação com os outros e com Deus (o sobrenatural).
Pessoa, no sentido africano, é um termo que exprime a originalidade do Muntucom um estatuto ontológico irreduzível ao dos outros entes.
O princípio “I’m because we are…” diferentemente do cogito ergo sum, contém já em si a sua verdade. O autoconhecimento do próprio ser (ergo sum) não coincide com a sua verdade. O princípio africano, muito mais do cartesiano, já diz a verdade da pessoa que encontra o seu sentido, a sua verdade, apenas na relação com os outros e com “Deus”. O simples facto de existir (segundo o princípio cartesiano) não é revelador da verdade acerca de si. A falta da verdade sobre si, que emerge do princípio cartesiano, não é devida à dúvida metafísica acerca da verdade do pensar (que Descartes pretende separar sugerindo que “mesmo se duvido, penso, logo sou”), mas da impossibilidade de poder deduzir a verdade do ser do próprio existir: a certeza de existir não é ainda verdade do próprio existir.[footnoteRef:15] Se a cultura ocidental teve de recorrer a mitos para explicar um sentido (verdade) que podia prescindir dos outros ou do Outro, a cultura africana já tinha em si a sua resposta: os mitos não podiam fazer mais do que confirmar uma verdade já evidente no próprio ser da Pessoa. A outra pessoa, limitada e finita como eu, não pode garantir a verdade do meu existir, porque ela também deve ser “garantida” na sua verdade. Eu também, em busca da “minha” verdade, sou o “outro” para a outra pessoa, que é igualmente em busca da “sua” verdade. Ambos percebemos que a “nossa” verdade não pode ser encontrada em nós, nem mesmo em outros como nós, limitados, finitos e também em busca da “sua” verdade. Apenas um Outro, infinito, pode dar o sentido, a verdade, ao meu existir. Este sentido, esta verdade, pode ser acessível apenas por meio de um “salto” qualitativo, uma escolha, um entregar-se, dito por outros termos, uma liberdade que encontra a si mesma graças a esta solução de continuidade. A verdade do homem, ou melhor, da pessoa, é verdade da pessoa em liberdade, por isso é transcendente e pode ser apenas “esperada” e jamais deduzida. [15: Cfr. MELCHIORRE V., Essere Persona. Natura e Struttura, Fondazione A. e G. Boroli, Novara, 2007, pp. 218-220. ]
A liberdade é efectivamente “livre” quando o homem escolhe sem dispor de uma certeza absoluta. Sem esta condição não se trataria de uma escolha, mas de uma constrição, de uma simples e pura consequência necessária, previsível, inevitável. Por isso a liberdade é livre quando a sua verdade está acima de si mesma e apenas pode ser esperada, pressagiada, antecipada num “acto de fé”.
Parafraseando Castiano, com a ideia de pessoa em África se entende a superação da subjectividade da auto consciência (cogito ergo sum) com a busca da verdade da própria subjectividade fora de si mesma, que conduz necessariamente à abertura ao outro/Outro, isto é, à intersubjectividade.
Trata-se de uma verdade não apenas metafísica, mas histórica, onde é mantida a dialéctica entre a instância teórica e o modelo prático (síntese entre teoria e praxis).
A cultura africana, dada a natureza metafísica da sua religiosidade, não operou a dicotomia na reflexão filosófica entre o religioso e o natural, porque, de facto, os dois coincidem, tratando-se de uma “verdade” conseguida humanamente, sem revelações ou teofanias. Esta dicotomia é já radicada na cultura ocidental, onde as religiões “reveladas” operaram necessariamente uma cisão entre a fé e a filosofia. Quando Castiano, ou Ngoenha (ou ainda outros) reivindicam a emancipação da filosofia africana da religião, o que querem, concretamente? Se por religião entendem a reflexão teológica cristã, hebraica ou muçulmana, têm razão, porque os pontos de partida são diversos, pelo que filosofia e teologia devem necessariamente permanecer separadas. Mas se se referem à religião tradicional africana, podemos interrogarmo-nos seriamente sobre o que resta do homem africano sem a religião tradicional africana. Ela é, para todos os efeitos, a cultura, a essência do ser africano.
Se o ponto de partida das teologias “reveladas” e das teologias “naturais” (melhor, filosofias ou metafísicas) é diferente, em algum momento ambas atingem um ponto comum, a verdade última do homem e do mundo, uma verdade que reside necessariamente fora da finitude do homem e do mundo. Deste ponto de encontro, os caminhos separam-se novamente, visto que a teologia “revelada” funda a sua reflexão nos dogmas que dão a “certeza” do saber da fé, enquanto as outras seguem a via da probabilidade da sua verdade, que continua apenas e sempre a nível de “hipótese” ou postulado, pois não é “valorizada” por nenhuma revelação nem pela metafísica, porque esta última não pode ir para além de sim mesma. Embora os caminhos sejam diversos, a teologia “revelada” reencontra a teologia “natural” ou “filosofia da religião” quando passa da dogmática (ou sistemática) à teologia fundamental.[footnoteRef:16] [16: Pontualmente, Bertuletti escreve: “Se si vuole evitare una proiezione in Dio delle stesse condizioni di appropriazione della sua parola, la ragione del carattere simbolico del linguaggio della fede non può essere vista unicamente nel carattere di evento della rivelazione, ma questo deve essere a sua volta correlato alle condizioni antropologiche, per le quali la rivelazione di Dio non può esibire la sua evidenza se non come compimento della libertà” (“Se se quer evitar uma projecção em Deus das mesmas condições de apropriação da sua palavra, a razão do carácter simbólico da linguagem da fé não pode ser vista unicamente no carácter de evento da revelação, mas este deve ser por sua vez relacionado às condições antropológicas, pelas quais a revelação de Deus não pode exibir a sua evidência se não como completamento da liberdade” TdA), em BERTULETTI A., Il concetto di Persona e il sapere teologico, em AA.VV., L’idea di persona, Vita e Pensiero, Milano, 1996, n.23 pp.10-11. ]
Conforme fizemos menção, a verdade da pessoa não se encontra na própria pessoa porque finita, nem pelo mesmo motivo nas outras pessoas, mas num Outro, que necessariamente não pode ser finito, condição sem a qual não poderia dizer a verdade da pessoa.
O Homem em si poderia viver uma vida “vivida” mesmo prescindindo do discurso da verdade, mas neste caso, uma vida vivida jamais seria uma vida “verdadeira”. A filosofia pós-moderna já colocou radicalmente em discussão a necessidade da verdade, substituindo o critério da verdade por outros critérios mais “utilitaristas”.[footnoteRef:17] [17: A este propósito é muito interessante o debate entre Pascal Engel e Richard Rorty sobre a verdade: diante das notas posições de Rorty e da filosofia pós-moderna em geral quanto à desnecessidade da verdade que deixa o lugar a outros critérios como o da utilidade, Engel responde “Supponiamo che si dica, come fa per lo più Rorty, che l’utilità è un criterio sovente più importante della verità per stabilire il valore di una concezione. Ma come si può dire che una concezione è utile se non si sa se è vera? Lo struzzo può trovare utile affondare la testa nella sabbia. Ma sarebbe utile in the long run? […] Quale significato possono avere gli sforzi, spesso meritori e degni di lode, che Rorty dispiega nel suo dialogo con i contemporanei del campo analitico, se neppure il vero con la minuscola ha senso?” ("Suponhamos que se diga, como faz o Rorty, que o utilitário é um critério muitas vezes mais importante da verdade para estabelecer o valor de um conceito. Mas como se pode dizer que um conceito é útil se não se sabe se é verdade? O avestruz pode achar que é útil para ele enterrar a cabeça na areia. No entanto, seria útil no longo prazo? [...] Que significado pode ter os seus esforços, muitas vezes meritórios e dignos de louvor, que Rorty implanta no seu diálogo com os contemporâneos do campo analítico, se nem mesmo o que o verdadeiro com o minúsculo tem sentido? " TdA), em ENGEL P. e RORTY R., A cosa serve la verità? Il Mulino, Bologna, 2007.]
A filosofia africana pretende, como exorta Eboussi Boulaga, tirar as máscaras para ver os rostos, sem confundir uns pelos outros. Não nos esqueçamos de que enquantoos gregos e os romanos estavam ainda vivendo uma religiosidade falsa, enquanto o politeísmo é a negação da verdade sobre Deus, da qual deriva a negação da verdade sobre o homem, os africanos haviam já alcançado a verdade do monoteísmo e, por consequência, a verdade sobre o próprio homem.
Uma antropologia fechada nos limites da finitude se fecha a possibilidade de acesso à verdade do homem: na finitude não existe alguma verdade, antes pelo contrário, no seu fechamento a finitude é a negação da verdade. De igual modo, uma abertura aos outros finitos não è capaz de dizer a verdade do homem. A verdade do homem ou é infinita ou não é, porque se dissolveria no breve espaço temporal em que se a pronuncia: seria aquilo a que definimos vida “vivida”, mas não verdadeira. Dito diversamente, uma pessoa é pessoa quando reconhece o seu fundamento, a sua verdade, fora de si, num Outro infinito.
A verdade do Homem que, como repisamos, é tal na condição de ser infinita, é o fim que dá sentido ao presente. Verdade que por sua natureza (infinita) não pode ser deduzida, mas apenas “acolhida” no presente da intencionalidade do sujeito, para antecipar a ocorrência da verdade que torna a vida verdadeira e que poderá ser confirmada apenas no fim.
“In questa ambivalenza consiste l’essenza del finito. L’anticipazione è nello stesso tempo una effettiva realizzazione anticipata del futuro e solo un’anticipazione ancora aperta. Poiché il futuro anticipato non dipende dalla coscienza, solo il suo realizzarsi potrà decidere della verità dell’anticipazione, benché questa sia già una presenza anticipata del futuro. La storia è costituita da questa mediazione fra la coscienza anticipante e la realtà del futuro che essa anticipa e che si anticipa in essa. Ciò vale in generale per la coscienza storica come tale”.[footnoteRef:18] [18: "Nesta ambivalência consiste a essência do finito. A antecipação é, ao mesmo tempo, uma efectiva realização antecipada do futuro e uma antecipação ainda aberta. Pelo facto de que o futuro antecipado não depende da consciência, somente o seu realizar-se poderá decidir sobre a verdade da antecipação, embora esta seja já uma presença antecipada do futuro. A história é constituída por esta mediação entre a consciência antecipadora e a realidade do futuro que ela antecipa e que se antecipa nela. Isto vale em geral pela consciência histórica como tal”. (TdA), BERTULETTI A., Il concetto di persona..., o.c., p 12.]
Naturalmente, para a revelação cristã esta antecipação da verdade final se realiza em Jesus Cristo, enquanto para a religião africana é apenas prefigurada na relação com os antepassados.
A ideia de pessoa na cultura africana poderia ser reformulada no seguinte horizonte: Pessoa é aquele que antecipa no presente a sua verdade, na abertura aos outros e ao Outro, sob mediação dos antepassados. Sem esta abertura/antecipação não existe pessoa “verdadeira”, apenas um indivíduo (homem) que vive (vida “vivida”, mas não autêntica) sem verdade.
Penso que o famoso axioma de Mbiti: “I Am because We are; and since We are, therefore I Am” ("Eu sou porque nós somos e como somos, logo existo"), assim como o aforismo zulu “Umuntu ngumuntu ngabantu” (Uma pessoa é uma pessoa através de uma outra) não exprimem integralmente a ideia de pessoa africana, pois se limitam à dimensão horizontal de abertura aos outros, preterindo a dimensão vertical que pertence ontologicamente à pessoa africana. Gostaríamos de propor um aforismo mais completo: “I Am because I believe and I love” (“Eu sou porque acredito e amo”). Apenas estas duas aberturas (vertical e horizontal) podem dizer a verdade do homem e superar a finitude.
Se para o cristianismo a superação da finitude se resolve em Jesus Cristo como garantia da antecipação da própria verdade futura no presente, para o Muntu não existem garantias reveladas, apenas um estado de “suspensão” defronte à precariedade de si e da sua obra, onde a palavra é apenas e sempre mundana (mesmo se pronunciada em nome de Deus, dos Antepassados, da Pátria, etc.). É esta a conclusão de Eboussi Boulaga, quando fala de “crise do Muntu”, pensamento da crise, ou crise radical do pensamento. Mas é exactamente através da crise que se abre o acesso à verdade. Enquanto para o homem moderno (ocidental) não existe saída da crise defronte à finitude, visto não reconhecer uma verdade fora de si mesmo, para o Muntu a saída encontra-se no resgate das suas tradições mais autênticas, operando um discernimento entre as máscaras e os rostos. O Muntu não deverá limitar-se às respostas imediatas tentadas diante do drama da finitude (fantasmas, vozes misteriosas, visões obscuras, etc.), mas recriar e reinterpretar a resposta fundamental já intrínseca à tradição, que se concretiza quando se abre ao espírito infinito (mediado pelos antepassados).
Para o Muntu da religião tradicional, este espírito infinito não se identifica com Jesus Cristo, mas se identifica com um “quid” que permita definir e falar de verdade, sentido, fundamento, etc., e logo de verdade do homem, abrindo os espaços do infinito, o qual somente ele constitui a identidade da pessoa.
Desta nova “iniciação”, o Muntu encontra o motivo e o sentido da sua vida, numa verdade vislumbrada ou, como dissemos acima, prefigurada e que encontrará a sua confirmação apenas no fim. De facto, a verdade da pessoa não é deduzível do seu fundamento porque deve ser um acto de liberdade, que se concretiza na história: “libertà non è originariamente la decisione per questo o quell’oggetto, ma libertà in rapporto a se stessi, possibilità di autodeterminazione. L’oggetto della libertà è il soggetto stesso nella sua unità. Nella scelta l’uomo dispone liberamente di sé, decide della qualità del suo essere”.[footnoteRef:19] [19: "liberdade não é originariamente a decisão para este ou aquele objecto, mas liberdade em relação a si mesmo, possibilidade de autodeterminação. O objecto da liberdade é o mesmo sujeito na sua unidade. Na escolha o homem dispõe liberalmente de si, decide da qualidade do seu ser" (TdA), Ivi, p. 17]
É impossível justificar o fundamento último que é escolhido como antecipação através do acto de liberdade do homem, porque é irreduzível à experiência pessoal. Passa-se então da razão especulativa à razão prática: na acção concreta justifica-se a “verdade” da própria escolha e autodetermina-se a pessoa como tal: “l’etico si radica nella costituzione ontologica del sé, poiché l’agire media in modo originario l’accesso alla sua identità”.[footnoteRef:20] [20: "o ético se enraíza na constituição ontológica do si, pois o agir media em modo originário o acesso à sua identidade" (TdA), Ivi, p. 22. O problema, como demonstrará Bertuletti, será articular os dois níveis (ético e ontológico) sem resolver o primeiro no segundo, como fez Heidegger, nem o segundo no primeiro, como fez Lévinas, que absolutizando a alteridade deduz desta a auto-identidade do sujeito. Uma correcta articulação do ético e do ontológico é fundamental para a determinação do saber ontológico.]
A ideia de pessoa é fundamental para falar-se de verdade e vice-versa. A impossibilidade da fundação metafísica, consequente à crise dos fundamentos, vem substituída pela instância da subjectividade e da história. A verdade é acessível enquanto se dá na historicidade e esta sua antecipação na história concorre para determiná-la. Segundo Bertuletti, o nó teórico do conceito de pessoa é: “che la questione della verità si decida nell’unità singolare di assolutezza e storicità dell’autoattestazione della coscienza”.[footnoteRef:21] É precisamente neste acto de fé que se “costituisce la verità dell’esperienza storica come tale, la qualità originaria dell’autoattestazione della coscienza”[footnoteRef:22]. No conceito de pessoa se reúnem as duas pretensões da singularidade e da universalidade, porque a incondicionalidade da verdade (universal) actua-se inseparavelmente na sua concretização histórica. A verdade continua indedutível porque não pertence à ordem do necessário, mas à do mais que necessário, éum dom que se antecipa e actualiza na escolha do sujeito. [21: "que a questão da verdade se decide na unidade singular de incondicionalidade (assolutezza) e historicidade da auto-atestação da consciência" (TdA), Ivi, p. 25] [22: "constitui a verdade da experiência histórica como tal, a qualidade originária da auto-atestação da consciência" (TdA), Ibidem.]
Do ponto de vista epistemológico, é possível uma teoria da pessoa africana?
Tentamos agora elaborar uma teoria da pessoa africana, partindo das reflexões de Castiano, retomadas em forma crítica e sustentadas também pelas reflexões de Lévinas.[footnoteRef:23] [23: Giovanni Ferretti, na obra de co-autoria já citada AA.VV., L’idea di persona, Vita e Pensiero, Milano, 1996, intervém com um artigo interessante, sob o título: Variazioni del concetto di persona in Emmanuel Levinas, pp. 457-516. Fazemos referência especial às conclusões da nossa tese de Licenciatura em filosofia Ética ou retórica sobre o outro? As aporias da ética como filosofia primeira de Emmanuel Lévinas. Nas obras “Totalité e Infini” e “Autrement qu’être”, pro-manuscriptum, UP, Maputo, 2004.]
Castiano e Lévinas, embora partindo de realidades e contextos totalmente diferentes, partilham a ideia de superação da ideia de razão da filosofia ocidental, definida por Castiano como razão “colonizada” que não contempla a possibilidade de uma razão alargada às comunidades locais. Castiano reivindica uma fundação da filosofia africana não com base nos cânones da racionalidade, mas das racionalidades, ao ponto de afirmar que é uma obsessão racionalista apresentar a filosofia como uma reflexão sistemática e crítica. Na nossa nota crítica a esta ideia de Castiano, defendemos que é desviante pensar um espaço para além da racionalidade, porque fora da racionalidade existe apenas irracionalidade: mesmo para “combater” a racionalidade devemos recorrer a um discurso racional e logo, continuamos sempre no espaço da racionalidade. Castiano fala de racionalidade no plural e afirma que na tentativa de libertar-se da colonização a filosofia africana se auto-colonizou e por isso faz um apelo a uma “crítica radical” contra a máscara da “ideologia” universalista, da objectividade e das tradições clássicas da prática científica da tradição eurocêntrica.[footnoteRef:24] Trata-se da mesma tentativa de Lévinas de superar a tradição filosófica ocidental, sempre em busca de uma teoria geral do ser, marcada pelo princípio de totalidade, que sufoca toda a alteridade e transcendência e gera egoísmo, hegemonia, violência. À ideia de totalidade, Lévinas contrapõe a ideia de infinito[footnoteRef:25] (alteridade), que não pode ser delimitado pela razão, porque a razão sempre tende a identificar, dominar, negar as diferenças, de modo que da violência da ontologia a nível teórico passa-se à violência a nível prático, com a violência contra os “diferentes”.[footnoteRef:26] [24: Ver acima. É interessante confrontar as posições de Remi Brague sobre o eurocentrismo: BRAGUE R., Il futuro dell’occidente. Nel modello romano la salvezza dell’Europa, Bompiani, Milano, 2008.] [25: “Questo libro si presenta allora come una difesa della soggettività, ma non la coglierà al livello della sua protesta puramente egoistica contro la totalità, né nella sua angoscia di fronte alla morte, ma come fondata nell’idea di infinito. […] Questo libro presenterà la soggettività come ciò che accoglie Altri, come ospitalità. In essa si consuma l’idea dell’infinito.” (“Este livro se apresenta então como uma defesa da subjectividade, mas não a compreenderá ao nível do seu protesto puramente egoísta contra a totalidade, nem na sua angústia defronte à morte, mas como fundada na ideia de infinito. […] Este livro apresentará a subjectividade como aquilo que acolhe Outros, como hospitalidade. Nela se consome a ideia de infinito” (TdA), LÉVINAS E., Totalità e Infinito, Jaca Book, Milano, 2000.] [26: Lévinas afirma que a este perigo não escaparam os filósofos do ser, os quais não reconheciam outra realidade ou verdade fora de si mesmos. Entre eles, Lévinas cita Sócrates, Hegel, Heidegger. ]
É necessário romper esta ontologia da totalidade, que leva ao totalitarismo: uma ruptura que não pode ser conduzida pela razão, que deste modo manteria o seu primado e domínio, mas pela experiência prática existencial, que se manifesta no encontro concreto com o outro. Este princípio da autoridade manifesta-se originariamente apenas na relação ética, onde a alteridade do outro é radicalmente reconhecida e respeitada. Esta relação antecipa e funda o uso da razão e da linguagem. O outro se manifesta a mim no rosto: um rosto que é infinito, linguagem, ética.[footnoteRef:27] [27: Este texto, incluindo as devidas citações da obra Totalità e Infinito encontram-se no meu texto, já citado, Ética ou retórica sobre o outro?... o.c., pp.13-36.]
Por seu turno, Castiano vê a superação da ideia de totalidade retomando a ideia de descolagem e descolonização conceitual de Crahay e Wiredu, que ocorre operando uma ruptura radical entre a consciência reflexiva e a consciência dos mitos. Esta descolonização não comporta o abandono de todas as disciplinas ocidentais, mas a sua aplicação dentro dos sistemas do pensamento africano. Neste ponto, insere-se a questão da verdade das crenças comuns, em cujo interior é possível encontrar uma racionalidade subjacente, partindo do particular para chegar a demonstrar a universalidade de todas as culturas.[footnoteRef:28] Insere-se, mais precisamente, a ideia de intersubjectividade de Castiano: saída do eu para entrar em diálogo com os outros sujeitos reconhecidos como interlocutores válidos, dignos e sapientes. [28: Ver acima.]
Mas, do nosso ponto de vista, o ponto crucial é exactamente esse: a abertura ao outro não diz ainda a verdade acerca de mim mesmo, a verdade da pessoa.
Castiano traz o discurso sobre a liberdade: não basta uma descolagem (Crahay) ou uma descolonização (Wiredu), nem mesmo uma libertação histórica (Ngoenha), torna-se necessária uma libertação conceitual, epistémica, isto é, a liberdade do sujeito africano de falar de si, construir o próprio discurso e pensamento acerca de si mesmo, sujeito da própria história. Castiano continua sustentando a libertação da etnofilosofia, da filosofia africana, da religião. A este propósito, Castiano acusa Mbiti di confundir a filosofia e a religião. Quanto a nós, é Castiano quem confunde o que é a religião: de facto, a religião africana é uma religião natural, por isso metafísica, não se pode falar da cultura ou filosofia africana prescindindo da religião africana; uma religião revelada, ao invés, não é filosofia, mas teologia, o ponto de partida da sua reflexão é a verdade revelada, dogmática. No primeiro caso trata-se de teodicéia (filosofia da religião, ou ontologia racional), no segundo de teologia (sistemática e fundamental).
No caso de uma fundação teorética da ideia de pessoa africana, considerando as exigências de descolagem e descolonização e o recurso a outras racionalidades, conforme o diktat de Castiano, é necessário chegar a uma fundação recorrendo a uma nova linguagem para a filosofia africana.
Também Lévinas, na sua crítica à totalidade, pretendia abandonar a ontologia da filosofia ocidental, mas na verdade, Derrida acusa Lévinas de aderir ainda à linguagem ontológica (ao λόγος dos gregos): as suas críticas à fenomenologia de Husserl e à ontologia de Heidegger foram feitas fenomenologica e ontologicamente. De fronte à crítica de “finitudismo” dirigida por Lévinas contra Heidegger, devido à historicidade do ser, Derrida acusa Lévinas de “infinitismo”, pois parece querer substituir o pensamento grego-ocidental pelo hebraísmo, e denuncia uma cumplicidade equívoca entre filosofia e teologia. Lévinas responde que a relação com a alteridade não é algo de teológico, mas de humano (fonte de sentido).[footnoteRef:29] Será com base nestas críticas que trinta anos depois de Totalité et infini (1961), Lévinas escreverá Autrement qu’être (1974). [29: É este o problema crucial:é possível uma linguagem que diga a relação do homem com o outro, com o infinito, que não seja teológico-religiosa, mas filosófica? Sobre o debate entre Derrida e Lévinas Cfr. FERRETTI, La Filosofia di Lévinas, Rosenberg & Sellier, Torino, 1999, pp.311-316]
Procurar uma nova linguagem, que não deve ser confundida com uma língua, é também o desafio da filosofia africana.[footnoteRef:30] Lévinas passa a interpretar a subjectividade usando uma nova linguagem feita de termos “originais” como paciência, passividade, um pelo outro, exposição, expiação, responsabilidade, substituição, etc. O seu objectivo é colocar em questão a referência da subjectividade à essência e encontrar para o homem uma relação (parental) diferente da que o liga ao ser. Como em Totalité et infini, Lévinas critica o primado do ser e procura um sentido para a transcendência para além da ontologia (autrement qu’être), desta vez recorrendo a uma linguagem não mais ontológica, mas “metafísica”. Lévinas pretende libertar a subjectividade do sujeito a partir da reflexão acerca da verdade, a relação do sujeito com o outro, com o infinito, que deixa o seu traço no rosto do outro.[footnoteRef:31] [30: Como recorda Castiano. O problema linguístico – diz o autor, diferentemente de outros filósofos africanos – não é uma questão crucial. O importante é comunicar (intersubjectivação), independentemente da língua que se usa.] [31: Para mais aprofundamentos acerca dos temas de Autrement qu’être, veja-se o meu texto, citado acima: Ética ou retórica sobre o outro?... o.c., pp.39-49.
]
O recurso à noção de traço marca uma aproximação de Derriva às ideias levinasianas, mantendo, porém a diferença: para Derrida é inevitável uma contaminação entre a alteridade e o ser (ontologia), enquanto para Lévinas não existe nenhuma contaminação graças ao recurso à ética.
Mesmo para a filosofia africana a pessoa define-se em base à intencionalidade do sujeito: a sua abertura aos outros è uma necessidade que funda a própria ideia de pessoa (I’m because we are…). O discurso metodológico torna-se ainda mais pontual, porque para a filosofia africana trata-se de aceder a um novo método.
O novo método de Lévinas mira superar a fenomenologia de Husserl, que reconduzia tudo ao eu, pois recorre a uma racionalidade superior usando uma linguagem metafórica no limite da razão, e visa também superar a ontologia de Heidegger, pois o senso originário encontra-se não apenas para além da esfera dos entes, mas também do ser, com o limite de usar termos que se pretendia superados. Os novos métodos que Lévinas utilizará são o da análise fenomenológico-intencional, que consiste no partir dos traços, do Dito para retornar ao Dizer, e o método transcendental, que consiste em partir dos significados objectivados para retornar às suas condições de possibilidade. A nova linguagem baseia-se em dizer e “desdizer”, ênfase, exagero, hipérbole, que transforma os termos ontológicos em éticos, mais adequados a dizer a transcendência. Mas o método de Lévinas não é sistematizado: ele próprio considera uma perda de tempo ocupar-se de questões metodológicas.
Seria interessante apresentar as críticas de Dussel ao pensamento do Lévinas, e como chega à elaboração de um método da filosofia da libertação para a América Latina, mas tal distanciar-nos-ia demais do nosso tema. Basta fazer menção ao facto de que o intento de Dussel, como o dos filósofos africanos para o homem africano, é encontrar o lugar do índio na história universal, de modo que se torne sujeito da história. Dussel elabora uma teoria do diálogo na qual os povos latino-americanos, junto com as outras periferias do mundo, tornam-se interlocutores de igual dignidade com os outros povos.
Também a “teologia da libertação” é devedora da filosofia levinasiana.[footnoteRef:32] [32: Cfr. REJÓN F.M., La morale fondamentale della teologia della liberazione, in ELLACURIA I., SOBRINO J. (a cura): Mysterium Liberationis. I concetti fondamentali della teologia della liberazione, Ed. Borla/Cittadella, Roma, 1992, p.251, n.17.]
Segundo nos parece, a filosofia africana poderá obter importantes ideias desta reflexão. Lévinas reivindica uma “outra” linguagem que possa dizer a verdade do sujeito aberto ao infinito.[footnoteRef:33] [33: Para quanto concerne a uma possível releitura de Lévinas por parte da filosofia africana, cfr. Por exemplo o livro de Elias Kifon Bongmba, African Witchcraft and Otherness. A Philosophical and Theological Critique of Intersubjective Relations, 2001. Trata-se de um trabalho de filosofia e teologia africana, publicado nos EUA, que se serve do pensamento de Lévinas - em particular modo da ideia do Outro - para analisar o conceito de tfu (bruxaria) junto do povo Wimbum, dos Camarões, e propõe uma crítica radical às interpretações comuns de bruxaria, a partir da ideia de intersubjectividade, com uma hermenêutica levinasiana. Apresentamos a respeito o juízo de Robert Bernasconi, filósofo norte-americano, autor de estudos sobre Lévinas muito citados pelos filósofos africanos, que actualmente, como estudioso do racismo, está empenhado com sucesso na filosofia africana: “For all those who believe that the future of philosophy is pluralistic and cross-cultural, Elias Kifon Bongmba's African Witchcraft and Otherness offers a unique view of that future. Bongmba uses Levinas to critique tfu--the result being a rich and controversial study of the application of Western philosophy to African society. The book is a wonderful mixture of personal anecdote and philosophical analysis that leaves far behind the pseudo-problems that too often preoccupy philosophers". ("Para todos aqueles que acreditam que o futuro da filosofia é pluralista e multi-cultural, a ‘Feitiçaria Africana e Alteridade’ de Elias Kifon Bongmba oferece uma vista única sobre esse futuro. Bongmba usa Levinas para criticar tfu –a bruxaria - sendo o resultado um estudo rico e controverso da aplicação da filosofia ocidental à sociedade Africana. O livro é uma mistura maravilhosa de anedota pessoal e análise filosófica, que deixa para trás os pseudo-problemas que muitas vezes preocupam os filósofos"). Na contracapa do livro citado. Para a sua leitura de Levinas cfr.: R. Bernasconi, S. Critchley, Re-Reading Levinas, 1991, R. Bernasconi, S. Critchley, The Cambridge Companion to Levinas, 2002. ]
Mas que tipo de linguagem? Quando temos a diferença (ou diffarance para Derrida, não identidade) a linguagem pode apenas ser parodística?[footnoteRef:34] [34: Para Lévinas, a gramatologia de Derrida não é um discurso sobre o ser mas sobre os simulacros (os traços) do ser.]
A linguagem que melhor especifica a abertura do sujeito ao outro ou ao Outro, é a simbólica, que negativamente indica a impossibilidade de uma conceitualização da verdade, e positivamente a possibilidade de dizer a verdade através de uma palavra que diga a intenção de um acto. Isto evita-nos o arbítrio de pensar por metáforas e permite-nos uma redefinição da verdade da pessoa humana num modo argumentado. A mesma razão exclui a possibilidade de deduzir o sentido ontológico da diferença, porque o acesso à verdade do ser não é conceitual, mas apenas intencional: a absoluta transcendência da verdade pode ser acessível apenas através da escolha livre do sujeito que deste modo a antecipa no presente. É esta a verdade da liberdade.(Cfr. Bertuletti, o.c.).
Numa primeira conclusão, poderemos dizer que a ideia de pessoa africana, que se funda na abertura aos outros (I’m because we are…) e ao Outro (“ser ontologicamente religioso”) realiza o ideal de pessoa muito mais que a ideia de pessoa ocidental que se funda no indivíduo (cogito ergo sum) e é fechada ao transcendente (ateísmo e agnosticismo). O axioma africano "I am because we are; and since we are, therefore I am", que é a quintessência da tradição africana, leva-nos ao conhecimento de um Deus “comunitário” através da religião natural (metafísica africana): não se trata de uma religião revelada, onde Deus se manifesta e revela a sua verdade acerca de Si mesmo (trinitário)e a verdade acerca do homem (feito à imagem de Deus), mas pelo contrário, uma religião que parte do homem (comunitário), o qual, graças ao conhecimento da própria natureza (pessoa) descobre como é “feito” o seu criador. Deus pode dizer do mesmo modo “"I Am because We are; and since We are, therefore I Am" porque é um Deus que é comunidade, como defende também a teologia trinitária cristã. Não esqueçamos que uma das maiores obras escritas acerca do mistério da Trindade, e logo acerca da pessoa, é da autoria de um africano, Santo Agostinho de Hipona.[footnoteRef:35] [35: Borden Parcher Browne, já no início de 1900, na América afirmava que o fundamento metafísico da identidade pessoal do homem deve ser uma mente infinita e dotada de personalidade: Deus como Pessoa. Cfr. MELCHIORRE V., Essere Persona. Natura e Struttura, Fondazione Boroli, Novara, 2007, p.27]
b) Por um personalismo africano (“Bela nyumbani”)
Nesta última parte pretendemos tentar um contributo para o esboço de um personalismo africano. Ousamos fazer este passo confortados não apenas pelo estudo teórico sobre a pessoa africana realizado nestes anos, mas também por anos de convivência com estas pessoas africanas e com a sua cultura. A vida prática vivida com estes africanos permitiu-me conhecer muito mais sobre quem é a pessoa africana.
Os filósofos e teólogos da libertação latino-americanos sustentam que ninguém pode fazer seriamente Filosofia ou Teologia da libertação sem viver na América Latina e sem assumir a causa dos pobres. De facto, experimentei a enorme diferença entre a Teologia da Libertação que estudei na Facoltà Teologica dell’Italia Settentrionale em Milano e a Teologia da Libertação que conheci e vivi nos anos transcorridos na América Latina, no encontro com os vários teólogos e militantes e sobretudo em contacto com os pobres.
Não sei se os filósofos africanos defendem o mesmo diktat dos colegas latino-americanos, mas seguramente, os anos passados em África me permitiram compreender mais a fundo a filosofia e a cultura africana, abrindo-me a visões maravilhosas e inesperadas.
Também acedi ao convite “Bela nymbani” (“entre em casa”)[footnoteRef:36] e entrei na casa destes indígenas africanos que me acolheram como um irmão. [36: Os velhos da terra de Sewe (Inhambane, Moçambique), contam que a 10 de Janeiro de 1498, o famoso navegador português, Vasco da Gama, a caminhos das índias, entrou com as suas embarcações na baía de Inhambane. Era um dia muito chuvoso. Avizinhando-se dos indígenas, perguntou-lhes qual era o nome da localidade. Vendo a forte chuva, estes dirigiram-lhe a palavra com um sorriso nos lábios: “Bela nyumbani” (“entre em casa”) e o ofereceram-lhes hospitalidade e produtos locais. Impressionado por tanta hospitalidade, Vasco da Gama escreveu que naquele dia havia entrado na bela terra de “Inhambane”, terra de boa gente. De facto, havia interpretado as palavras dos indígenas como resposta à sua questão. Ainda hoje, a terra de Sewe é chamada “Inhambane”, “Terra da boa gente”. Esta história real, embora revestida de lenda, resume perfeitamente a natureza da pessoa africana: hospitaleira, aberta aos outros e generosa. Esta figura é um emblema não só da gente desta terra (de Inhambane e de Moçambique), mas da África inteira. Se quiséssemos perguntar idealmente aos africanos qual é a sua ideia de pessoa, com um sorriso nos lábios, responderiam-nos ainda hoje com estas duas palavras, que valem muito mais do que inteiros tratados filosóficos sobre a pessoa: “Bela nyumbani !”
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Vivi 12 anos em Inhambane, uma terra estupenda e estendida ao longo de uma baía ao largo do oceano Índico, em contacto com os membros das etnias Vatonga, Vathswa e Vacopi.
Nos primeiros tempos mergulhei-me literalmente na escola dos sábios indígenas, frequentando um curso de inculturação, que me introduziu à cultura e tradição locais. Segui um curso de língua Guitonga com professores que a têm com língua materna. Nos primeiros anos trabalhei na pastoral da formação da juventude, em contacto com milhares de jovens pertencentes às três etnias, com os quais tive numerosos intercâmbios culturais que me dotaram de um conhecimento profundo das suas tradições. Cinco anos depois da minha chegada à África, graduei-me em filosofia numa universidade estatal (Universidade Pedagógica de Moçambique), estudando em particular a filosofia africana, com os professores Severino Elias Ngoenha e José Paulino Castiano. Nos anos seguintes fui docente na Universidade Pedagógica Sagrada Família (uma delegação da Universidade Pedagógica) em Maxixe, ocupando-me de Filosofia e Teologia Africana e de Filosofia e Teologia contemporânea. O debate com os estudantes durante as aulas me ajudou a conhecer e aprofundar sempre mais os usos e costumes dos Vatonga, Vathswa e Vacopi.
Nos últimos três anos, em vista do doutorado de pesquisa, aprofundei especificamente o tema da ideia de pessoa na filosofia africana, cujos resultados apresentam-se neste texto.
O objectivo principal da minha pesquisa era demonstrar a originalidade do pensamento africano a respeito da ideia de pessoa. A filosofia africana, por si só, é uma surpresa para muitos europeus, que a ignoram completamente. Nos últimos anos, todos quanto me pediam informações acerca do meu tema de pesquisa, ouvindo-me responder que se debruçava acerca da filosofia africana, perguntavam-se invariavelmente: “Mas, existe uma filosofia africana?”. A maior surpresa será, não apenas descobrir que existe uma filosofia africana, mas também que existe igualmente um modelo teórico de pessoa africana muito mais autêntico em relação a outros modelos conhecidos.
O modelo que delineamos é o do “Muntuismo”, definido como modelo teórico do “Personalismo africano”.
Os princípios fundamentais do personalismo são: Deus, Pessoa, Comunidade. Ao longo do estudo procuramos fazer emergir estes princípios do personalismo presentes na filosofia e cultura africana, mais do que na ocidental, a tal ponto de podermos concluir que a filosofia africana é essencialmente personalista. Dito diversamente, podemos afirmar que o personalismo ocidental é apenas teórico, não corresponde à vida do homem ocidental, enquanto o africano é prático, vivido na vida concreta dos africanos.
Partamos da dimensão transcendental. A filosofia ocidental contemporânea, a partir de Nietzsche, perdeu a sua dimensão transcendental.[footnoteRef:37] À “morte de Deus” seguiu-se a morte da filosofia, a crise dos fundamentos. O critério da verdade como princípio fundamental para a filosofia foi substituído por outros critérios mais “utilitaristas”.[footnoteRef:38] As próprias filosofias da praxis mostram interesse em transformar o mundo mais do que em preocupar-se com a verdade absoluta. Uma filosofia que marginaliza ou exclui a ideia de Deus não pode ser considerada personalista. Os filósofos ocidentais, pelo menos os da área norte-atlântica, sofrem de uma “ignorância” teológica que barra, preconceituosamente, o acesso às razões da fé. Pensamos que assim como nenhum teólogo pode ignorar a filosofia – de facto, todos os teólogos a estudam ampla e aprofundadamente – os filósofos não podem ignorar a teologia. Um grande número de filósofos latino-americanos e africanos é feito por teólogos, facto que os abre o acesso ao discurso da verdade do sentido do homem e do mundo. [37: É verdade que já com a época moderna e com o iluminismo introduziu-se a contestação da ideia de Deus e da religião, mas manteve-se ainda a pesquisa da verdade e a metafísica.] [38: Basta citar os filósofos pós-modernos, entre os quais Rorty, Lyotard, Vattimo, para aperceber-se como o critério da utilidade substituiu o da verdade. Para Rorty, a filosofia terminou porque foi desmembrada em várias disciplinas autónomas e mais pertinentes, de modo que as novas ciências fazem melhor o que antes fazia a filosofia. Para Lyotard a filosofia terminou porque o mundo antigo, dominado da ideia tipicamente filosófica da totalidade, foi substituído pela fragmentação e particularidade do saber prático. Para Vattimo o fimda filosofia é marcado pela substituição do pensamento “forte” pelo pensamento “fraco”, o qual não se baseia mais na verdade absoluta mas sobre opiniões compartilhadas. Cfr. O meu Curso de Filosofia Contemporânea. A Filosofia Pós-moderna, pro-manuscriptum, UniSaF, Maxixe, 2008.]
Quanto à dimensão da Pessoa. Com o preconceituoso fechamento da filosofia ocidental às razões da fé, fecha-se igualmente o acesso à verdade da Pessoa. Como dito, afirmar o ser da pessoa não diz nada acerca da verdade do seu ser. A ideia de pessoa no ocidente è de um ser individual que busca o seu sentido em si mesmo, prescindindo de Deus e dos outros.
No que toca à dimensão da Comunidade, o ocidente concebe a comunidade como espaço de reivindicação dos direitos individuais (no sentido da filosofia marxista ou filosofias da praxis), mais do que como uma realidade comunal na qual a pessoa encontra o seu sentido.
A ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea contém em si os três princípios fundamentais do personalismo: Deus-Pessoa-Comunidade. A pessoa africana é um ser ontologicamente religioso: a sua fé em Deus, funda a verdade da pessoa. A comunidade é um elemento fundamental (I am because we are…) sem o qual o indivíduo seria desenraizado. O ponto fraco para a formulação de um “personalismo africano” parece ser precisamente a ideia de pessoa que desapareceria perante a supremacia da comunidade. De facto, o indivíduo parece desaparecer diante da comunidade. Vimos, porém a posição de Kwame Gyekye que reivindica uma identidade de pessoa como ser livre, capaz de escolhas autónomas e com valores intrínsecos. Redesenhamos o seu discurso fazendo alusão à história política do Gahna pós-independência.
Como Gyekye, pensamos que o “comunitarismo” africano, ao longo dos anos se tenha tornado um “lugar-comum”, que frequentemente é contradito pela realidade. Após muitos anos de convivência em terras africanas, apercebemo-nos que a comunidade é importante, mas não determinante na vida do sujeito. Conhecemos mulheres que se recusaram a submeter-se ao ritual da purificação imposto pela família; jovens que tomaram decisões sobre a sua vida em contraste com as decisões da família; numerosas pessoas que se destacaram em muitos campos, como o académico, artístico, político, etc. mostrando forte personalidade. Por todos estes factos podemos concluir que a cultura africana é essencialmente personalista. Não só, como também há uma precedência do personalismo africano sobre o europeu.
Os filósofos e intelectuais africanos, a partir dos ensinamentos do Cheikh Anta Diop, reivindicam o primado da antiga sapiência africana sobre a cultura grega através da civilização do “Egipto negro”, e também o primado da filosofia e teologia da libertação africana sobre a latino-americana. Podemos, com justiça, reivindicar igualmente o primado do personalismo. Esta tese é também defendida por Rufus Burrow Jr. no seu artigo Personalism and African Traditional Thought: “Afrikan theology and philosophy are essentially personalistic. Because Afrikan theology and philosophy are older, and it is known that some ancient Western thinkers whose ideas influenced personalism actually learned these in Egypt, it is not far-fetched to say that Afrikan traditional thought spawned personalism”.[footnoteRef:39] Burrow continua afirmando que “Personalism maintains that the God of Afrikan traditional religion, of the eighth century prophets and Jesus Christ, is the Originator and Sustainer of all persons. Personalists focus primarily on the centrality of persons-in-community”.[footnoteRef:40] [39: "A teologia e filosofia africanas são essencialmente personalistas. Porque a teologia e filosofia africanas são mais antigas, e é conhecido que alguns pensadores ocidentais antigos cujas ideias influenciaram o personalismo actual, aprenderam estas no Egipto, não é exagero dizer que o pensamento tradicional africano gerou o personalismo" (TdA), em BURROW R. Jr., Personalism and African Traditional Thought, in Encounter 61.3, 2000, p.323] [40: "O personalismo sustenta que o Deus da religião tradicional africana, dos profetas do século oitavo e Jesus Cristo, é o Criador e Sustentador de todas as pessoas. O personalismo centrar-se essencialmente na centralidade das pessoas-em-comunidade" (TdA), Ivi, p. 324]
Segundo nos parece, a “pessoa africana” mantém o seu valor único graças à abertura ao transcendente e à comunidade.
Nos debates sobre a África, geralmente os afro-pessimistas atribuem o subdesenvolvimento da África à sua cultura, às suas crenças e ao seu comunitarismo que contrasta com a lógica da acumulação de capital, impedindo assim o desenvolvimento. Não obstante o atraso da África em relação ao ocidente quanto ao aspecto económico, à luz de quanto analisado, certamente podemos afirmar que tal atraso não afecta de maneira alguma o mais amplo contexto humano, espiritual, moral, etc. A África é depositária de grandes valores, intrínsecos à sua cultura.
Trata-se então de conciliar o desenvolvimento com os valores africanos: por exemplo, como conciliar uma economia (a capitalista) que se baseia na acumulação de bens e o dever de dividir os bens com todos os membros da família alargada? Valores tradicionais e globalização?
A via proposta por Eboussi Boulaga nos parece justa: (re)partir da tradição liberta do folclore e do essencialismo;[footnoteRef:41] saber distinguir os rostos das máscaras; construir o discurso para si e para o outro com vista a construir uma universalidade concreta que não é já dada, mas em construção, para cuja construção o Muntu pode e deve contribuir. A conclusão de Eboussi Boulaga é particularmente iluminante: o Muntu não deve sonhar para além da sua época “Gli basta abitare la sua diversità e quella del mondo, con e nel progetto di essere per se stesso e in virtù di se stesso, con la mediazione dell’avere e del fare. […] Sono questi i lineamenti di una dialettica dell’autenticità, connessa a una storia particolare della libertà ragionevole e aperta ad un universale concreto da fare, un’autenticità che non è altro per il Muntu che costruire il tempo e lo spazio del suo impegno, il campo dell’esperienza che gli è possibile in un mondo che lo circonda e che è insieme al suo interno”.[footnoteRef:42] [41: Para Eboussi Boulaga, essencialismo é procurar a autenticidade africana nas origens perdidas. Veja acima.] [42: "Basta-lhe habitar a sua diversidade e a do mundo, com e no projecto de ser para si mesmo e em virtude de si mesmo, com a mediação do ter e do fazer. […] São esta as linhas de uma dialéctica da autenticidade, conectada a uma história particular da liberdade racional e aberta a um universal concreto a fazer, uma autenticidade que não é outra coisa para o Muntu de que construir o tempo e o espaço do seu empenho, o campo da experiência que lhe é possível num mundo que o circunda e que está ao mesmo tempo no seu interior" (TdA), em EBOUSSI BOULAGA F., La crise du Muntu. Authenticité africaine et philosophie, Essai, Présence Africaine, Paris, 1977, tr.it.: Autenticitá Africana e filosofia. La crisi del Muntu. Intelligenza, responsabilità, liberazione, ed. Mariotti, Milano, 2007, p. 241.]
Não se trata nem da exaltação do homem africano como portador de valores e produtos exóticos, nem da sua subvalorização por causa do atraso económico, mas simplesmente do reconhecimento do valor da pessoa africana, assim como de cada pessoa em qualquer parte do mundo. A pessoa africana é portadora de um valor acrescido, não indiferente: a abertura ao transcendente e aos outros a torna mais autêntica em relação às ideias de pessoa fechadas nos dolorosos espaços do individualismo e do agnosticismo.
Penso que esta seja a mensagem mais importante que a África pode dar ao mundo: o valor da pessoa humana, que encontra a sua verdade em Deus e no dom de si aos outros.
Esta ideia de pessoa africana é necessariamente indeduzível e apenas pode ser dita metaforicamente, dando o justo valor e reconhecimento ao carácter ulterior da sua verdade. A sua verdade não é conceitualmentedemonstrada, apenas confirmada historicamente no facto de ter guiado e sustentado por milénios inteiras gerações até aos nossos dias, superando os dramas da escravidão, do colonialismo e do genocídio.
Definimos esta verdade da pessoa africana com o neologismo: Muntuismo. O Muntuismo diferencia-se do Bantuismo e do Ubuntuismo, visto que os últimos indicam um conjunto de valores típicos da cultura africana que abraça diversos campos. Por Muntuismo entendemos o modelo de Pessoa africana que encontra a sua verdade e abertura transcendental e horizontal, que definimos no aforisma: “I Am because I Believe and I Love”.
Num mundo confuso quanto o nosso, a sageza africana poderá ajudar a reencontrar o sentido perdido de ser pessoa. Com a sua desarmante simplicidade e com o seu sorriso, a pessoa africana lança-nos mais uma vez o seu convite: Bela Nyumbani!
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