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1 15 ATUALIDADES Era Trump Alessandra de Fatima Alves C ATUALIDADES H 2 3 Era Trump Em 2019, Donald Trump completou dois anos de seu primeiro ano de mandato como presidente dos Estados Unidos da América. Foi tempo suficiente para mostrar que ele é, em muitos sentidos, um líder como os estaduniden- ses nunca viram antes. Defensor de projetos polêmicos, sempre pronto a dizer ou postar no Twitter suas verdades, Trump chegou ao cargo contrariando a maioria das previsões e pesquisas. Vencedor pelo sistema do colégio eleitoral, mesmo tendo recebido menos votos que a adversária Hillary Clinton, o empresário assumiu o comando de um país dividido. Sua taxa de aprovação na posse, de apenas 40%, foi a menor entre seus três antecessores mais recentes e estava 40 pontos abaixo da de Barack Obama. Atualmen- te, a taxa de Trump se mantém nesse mesmo patamar. De polêmica em polêmica, no entanto, Trump seguiu adiante e conseguiu implementar algumas de suas propostas, como a reforma fiscal e a restrição à entrada de estrangeiros de alguns países nos EUA, sob a alegação de defender a segurança da nação. Um breve histórico Donald John Trump nasceu e cresceu no bairro Jamaica, no distrito do Queens, na cidade de Nova Iorque. Se formou bacharel em Economia pela Wharton University Pensylvânia, em 1968. Seu pai, Frederick Christ Trump, foi um empresário estadunidense que fez fortuna no ramo da construção civil, por meio de subsídios públicos e benefícios fiscais. No ano de 1971, Donald recebeu de seu pai o controle da empresa de imóveis Elizabeth Trump & Son, renomeando-a para The Trump Organization. Ao longo de sua carreira, construiu torres de escritórios, hotéis, cassinos, campos de golfe e outros empreendimentos em todo o Planeta. Virou celebridade quando participou de programas de TV, sendo um deles o reality show exibido na NBC, The Apprentice. Entretanto, embora a fama e seus negócios estivessem em expansão, entrou em endividamento. Muitas das notícias sobre ele, na década de 1990, envolviam seus problemas financeiros, que tiveram como conse- quência seu divórcio com a primeira esposa, Ivana Trump. No final dos anos 1990, foi que se viu um ressurgimento em sua situação financeira e fama. Em 2001, completou a Trump World Tower e começou a construir o Trump Pala- 4 ce, um edifício moderno, ao longo do rio Hudson. Atu- almente, possui vários metros quadrados das melhores áreas imobiliárias de Manhattan e continua sendo uma figura importante no domínio do comércio imobiliário, nos Estados Unidos, e uma celebridade. Trump Tower, em Manhattan, NY Pode-se dizer que sua carreira política começou quando, no ano 2000, tentou receber a nomeação pre- sidencial do Partido Reformista. Entretanto, retirou-se antes mesmo do início das votações. No ano de 2015, anunciou sua candidatura para Presidência como um republicano e cresceu nas pesquisas como favorito para nomeação do seu partido. Em junho de 2016, foi formalmente nomeado como candidato à Presidência pela Convenção Nacional Republicana. Republicanos × democratas: o impasse de Washington Historicamente, os republicanos sempre foram a favor de redução nos impostos e nos gastos do gover- no – o setor privado seria o motor da economia. Os de- mocratas, que consideram importante um Estado ativo no processo econômico, defendem mais contribuições da população e também aumento dos investimentos governamentais. Para eles, o setor público, aliado ao privado, pode ser o responsável pelo crescimento. Esta divisão se reflete em toda a sociedade es- tadunidense. Por este motivo, o país costuma dividir-se ao meio em eleições. Outros fatores também diferen- ciam os republicanos, que tendem a ser mais conser- vadores em questões sociais, e os democratas, que são mais liberais. Há variações em política externa que in- fluenciam no voto, em épocas de insegurança, como no pós-11 de Setembro. Para entender melhor Para tornar-se presidente dos Estados Uni- dos da América, os candidatos precisam alcançar o número de 270 dos 538 delegados no colégio eleitoral. Significa dizer que a votação nos EUA é indireta. Além disso, o voto não é obrigatório. Deste modo, os eleitores de cada Estado depositam em urnas o voto no candidato escolhido. Quem fizer mais votos nas urnas em cada Estado vira o candi- dato daquela região no colégio eleitoral. Nem todos os Estados têm pesos iguais na eleição dos EUA. É o censo populacional que define o número de delegados de cada região. A Califórnia, por exemplo, tem população mais de dez vezes maior que a de Connecticut e, portanto, tem 55 delegados contra sete do outro Estado. As eleições dos EUA de 2016 Pesquisas mostraram que, na eleição à Presi- dência, os Estados Unidos estiveram tão divididos que metade do eleitorado mal conseguiu entender a outra metade. O fenômeno Donald Trump se tornou o tema dominante na cobertura da eleição, deixando de lado as usuais questões típicas de uma campanha presiden- cial envolvendo economia e política externa. Mas quem são as pessoas que votaram em Trump? São os chamados “Bloco”. Trata-se de um grupo que corresponde a cerca de 40% do eleitora- do. Não representa uma maioria, mas é o maior grupo unificado de eleitores dos EUA. Perdeu quatro das úl- timas seis eleições presidenciais, mas deu ao Partido Republicano o controle do congresso e do governo de vários Estados, tornando quase impossível para admi- nistrações democratas a missão de governar o país. O Bloco não foi criado pela grande recessão de 2008 ou pelo 11 de Setembro, mas sim por uma série de eventos que foi aumentando cada vez mais as filei- ras de eleitores republicanos. Segundo o professor e pesquisador Todd Gitlin, da Universidade de Columbia, esses eleitores republicanos vão crescendo à medida 5 que há algum tipo de deslocamento econômico. São majoritariamente brancos que previamente já vota- ram em candidatos democratas. As origens do Bloco remontam a crise da década de 1930, mais especifi- camente nos períodos de seca, que criaram um êxodo rural dos Estados de Oklahoma e Kansas. A Grande Depressão causou pobreza geral nos Estados Unidos e em di- versos países do mundo. Nesta foto, temos uma família desempregada vivendo em condições miseráveis, em Elm Grove, Oklahoma, EUA. Muitos desses fazendeiros e suas famílias foram para a Califórnia, transformando-se em partidários de políticos republicanos, como Barry Goldwater, o can- didato derrotado na eleição presidencial de 1964. No final da década de 1960, muitos brancos do sul junta- ram-se ao Bloco por conta da aprovação da legislação que deu à população negra igualdade de direitos, in- clusive o voto. Nos anos 1970 e 1980, recessões levaram ao fechamento de fábricas no norte dos EUA. Comuni- dades, em regiões como Johnstown, na Pensilvânia, foram devastadas pelo desemprego, e muitas pesso- as tiveram que deixar a região para procurar trabalho, normalmente em condições bem diferentes das que tinham sustentado gerações e permitido o crescimento de comunidades. Também se juntaram ao Bloco pes- soas que discordaram da decisão judicial que deu às mulheres estadunidenses o direito de aborto, em 1973 – o Partido Republicano tradicionalmente se opõe à interrupção da gravidez. Nos últimos 50 anos, os democratas também passaram por mudanças. Sua configuração é mais di- versa e dedicada a usar a legislação de direitos civis para reverter os efeitos de anos de discriminação con- tra minorias e mulheres, além de defender uma legisla- ção mais liberal em assuntos de sexualidade. Uma maioria esmagadora de negros e signifi- cante de hispânicos e asiáticos vota nos democratas, enquanto brancos com curso superior dominam o par- tido. O Bloco não está, porém, permanentemente atre- lado ao Partido Republicano, e os democratas teriam mais facilidade para governar se pudessem recuperar alguns desses eleitores;e a melhor maneira de fazer isso está diretamente relacionada ao emprego. Entre as razões para a vitória de Trump es- tão a chamada “onda branca”. Os democratas con- fiaram demais em sua força no centro-oeste. Esses Estados foram reduto do partido por décadas, em parte por causa do apoio dos eleitores negros e da classe trabalhadora branca. Mas os brancos da classe trabalhadora, especialmente aqueles sem for- mação universitária – homens e mulheres –, aban- donaram o partido democrata. Os eleitores rurais compareceram às urnas em peso e, assim como os estadunidenses que se sentiram negligenciados pelo sistema e deixados para trás pela elite, fizeram suas vozes serem ouvidas. Além disso, Trump insultou o veterano de guer- ra John McCain, senador republicano. Comprou uma briga com a jornalista Megyn Kelly, âncora da Fox News. Fez um pedido de desculpas protocolar após o vazamento de um vídeo em que fazia comentários obscenos sobre mulheres. No entanto, nada disso foi relevante para resultar em uma derrota nas urnas. Em- bora tenha caído nas pesquisas após algumas polêmi- cas, sua aprovação parecia blindada – voltando a subir logo depois. Ele disputou a eleição contra os democratas, mas também enfrentou forças dentro do próprio par- tido. O republicano desbancou seus adversários re- publicanos nas primárias. Alguns, como Marco Rubio, Ted Cruz, Chris Christie e Ben Carson, eventualmente se renderam e passaram a apoiá-lo. Outros, como o ex-governador da Flórida, Jeb Bush, e o governador de Ohio, John Kasich, disseram que não o apoiariam. Muitas vezes, mostrou-se disposto a fazer oposição a figurões do próprio partido. 6 Eleição dos Estados Unidos da América A estratégia vencedora: o ultraconservadorismo A perplexidade generalizada com o resultado das eleições resultou em uma reflexão mais apurada, em que o sucesso de Trump não ocorreu apesar de sua figura polêmica, mas exatamente por causa dela, ou seja, o machismo, a xenofobia e a intolerância do can- didato fizeram parte de uma bem-sucedida estratégia publicitária. Donald Trump é, portanto, sintoma de um fenô- meno que os progressistas ignoraram por muito tempo, em que a adesão à ética “antiética” ilustra o esgota- mento de uma cultura política de pretensões universais e civilizatórias, tida como inerente a nações desenvol- vidas e democracias consolidadas. É ingênuo acreditar que essa estratégia não havia produzido resultados positivos antes. Eles apareceram, apesar de esparsos e localizados, nas vitórias de candidatos municipais que apostaram no mesmo tipo de ética antipolítica adota- da por Trump e que tiveram, como ele, um público pre- disposto a aceitá-la. O sucesso das iniciativas regionais representou o primeiro passo para o fenômeno atingir dimensões nacionais. Isso mostrou que o republicano soube reprodu- zir a imagem de liderança que as pesquisas qualitativas demonstraram ser mais atraente para seu público-alvo. O risco de incorporar tal personagem nunca seria as- sumido, numa campanha bilionária com centenas de profissionais envolvidos, se houvesse qualquer possibi- lidade de fracasso. Ele poderia, é claro, ter optado por um equilíbrio e parcimônia em suas atitudes, atuando de forma comedida e adotando perfil ameno e hipócrita, como tantos candidatos. No entanto, perderia a disputa, pois ficaria associado à figura do político tradicional. A persuasão executada por Trump nas eleições se deu longe do campo da retórica, isto é, o esforço maior foi o de negar valores identificados com o cam- 7 po democrata, principalmente aqueles que compõem o repertório do “politicamente correto”, assimilado por seus opositores como elitista, hipócrita, burocrá- tico e injusto. O perigo do ultraconservadorismo não reside na aparição de representantes modestos ou identificados com alas radicais, mas sim encontra-se, principalmente, no fortalecimento desse imaginário, até ele ganhar re- alce nas estatísticas, envolvendo os partidos de modo que as contribuições financeiras e as lideranças presti- giadas tornem o projeto atraente e competitivo. Tendências na política externa Os Estados Unidos – país cuja história oscilou entre momentos de abertura ao mundo e momentos de reclusão – entrou em uma fase de recuo que saco- de alguns dos pilares que sustentaram sua hegemonia. Já em sua primeira semana na Casa Branca, Donald Trump decretou o fechamento das fronteiras a pessoas que estão fugindo da miséria econômica, da persegui- ção política ou de guerras civis, e abriu uma crise diplo- mática com o vizinho do sul, o México. Uma de suas primeiras decisões foi retirar seu país do Tratado Transpacífico (TTP), um tratado de livre comércio com países da bacia do Pacífico que repre- senta 40% da economia mundial. A saída dos EUA, como outros gestos de recuo internacional, pode dei- xar o caminho livre para uma China em ascensão, já que o TTP a excluía. Desmontar o legado do antecessor Sancionado em 2010, o Obamacare proporcio- nou planos de saúde a milhões de estadunidenses, mas os republicanos o atacam há tempos por vê-lo como uma intromissão do governo federal nos Estados e por se queixarem de que ele eleva os custos. Ao chegar à Presidência, a equipe de Trump e os republicanos idealizaram o American Health Care Act (Lei Ameri- cana de Saúde), que revoga a maioria dos impostos do Obamacare, incluindo uma penalidade para os que não adquirem planos de saúde. Ele também corta o financiamento do Medicaid, o programa que oferece cobertura aos pobres e anula a maior parte da expan- são do programa. Meninas participam do protesto a favor do Obamacare, em Los Angeles, Califórnia. Entretanto, apesar das diversas tentativas e de ter maioria na câmara e no senado, o Partido Republicano simplesmente não conseguiu “repelir e substituir” o Obamacare como Trump prometeu. É certo que algumas medidas foram tomadas para enfraquecer a política de saúde implementada pelo ex-presidente democrata, mas os fundamentos per- manecem em vigor. O presidente da câmara dos EUA, Paul Ryan, durante apresentação do plano de substituição ao Obamacare O congresso chegou a tentar um acordo bipar- tidário para resolver o assunto, com o qual Trump pare- ceu concordar a princípio, mas seu apoio durou menos de um dia até que mudasse de ideia. Trump falou tanto no assunto que muitos estadunidenses parecem crer que ele conseguiu mais do que de fato realizou. Uma pesquisa da The Economist revelou que 31% dos entrevistados acreditavam que o presiden- te manteve sua promessa de derrubar o Obamacare e 21% estavam incertos. Apenas 44% sabiam que ele não havia cumprido o prometido. 8 O ataque à Síria Embora Donald Trump tivesse baseado sua campanha presidencial criticando democratas quanto a polí- tica externa excessivamente intervencionista, no dia 6 de abril de 2017 a Marinha dos Estados Unidos lançou um bombardeio contra a base de Shayrat, em Homs, uma das principais da força aérea de Bashar al-Assad, no primeiro ataque de Washington, que teve como alvo a liderança do regime sírio. A ofensiva se deu em represália a um ataque químico realizado em Khan Sheikhun, província de Idlib, dominada por rebeldes, que a Casa Branca atribuiu a forças de Assad. Trata-se de um novo e importante agravamento na guerra civil síria, que, em seis anos, deixou centenas de milhares de mortos e cinco milhões de refugiados. Isso marca uma reviravolta dramática na sua postura e leva a uma revisão das expectativas sobre sua política externa. Medidas ambientais polêmicas Se Trump quer fazer um governo totalmente oposto ao de Obama, o meio ambiente é uma das áre- as em que ele mais se empenhou para isso. Em março, o novo presidente assinou um decreto revogando uma série de regulações contra as mudanças climáticas. Ele suspendeu medidas do Plano de Energia Limpa, o prin- cipal legado ambientalde Obama, e fortaleceu o uso de combustíveis fósseis. Trump também anunciou formalmente que os EUA deixariam o Acordo de Paris contra as mudanças climáticas, assinado em 2015 por 195 países e no qual foi assumido o compromisso de que os países devem trabalhar para que o aquecimento global fique muito abaixo de 2 ºC em relação aos níveis pré-industriais. A decisão deixou os Estados Unidos isolados na questão de combate às mudanças climáticas, pois todos os outros países aderiram ao tratado. Perto do final de seu primeiro ano de mandato, Trump anunciou mais duas medidas contestadas por ambientalistas. A primeira, em dezembro, foi a maior redução de reser- vas ambientais da história dos EUA. Vista do Monumento Nacional Bears Ears, em Utah, nos Estados Unidos O Monumento Nacional Bear Ears, criado em 2016 por Obama, teve sua área reduzida em 20%, e 9 o Monumento Nacional Grand Staircase-Escalante, de- signado por Bill Clinton, em 1996, perdeu quase meta- de de sua área atual. Já em 2018, Trump voltou a ser criticado por ambientalistas ao propor abrir quase todas as águas no mar dos Estados Unidos para perfuração de petró- leo e gás, revertendo proteções nos oceanos Ártico, Atlântico e Pacífico. Jerusalém como capital de Israel No final de 2017, Trump atraiu críticas e a ira de uma parcela considerável da comunidade internacional ao anunciar que os EUA reconhecem Jerusalém como capital de Israel e a transferência de sua embaixada de Tel Aviv para a cidade santa. Em resposta, o Hamas convocou “três dias de fúria”, e uma série de protestos violentos se espalha- ram por diversos países do Oriente Médio, com mortes, feridos e danos materiais. Na tentativa de manter a neutralidade e não influenciar diretamente o já complicado acordo de paz na região, a comunidade internacional nunca reconhe- ceu a soberania de Israel sobre a cidade. A maioria dos países, por exemplo, estabeleceu representações diplomáticas em Tel Aviv e arredores, mas não em Je- rusalém. Por isso, o anúncio do reconhecimento de Je- rusalém como capital de Israel por Donald Trump e a mudança da embaixada foram criticados também por aliados dos EUA, como o Reino Unido. Até mesmo o papa Francisco se manifestou pedindo que a decisão fosse revista. A decisão de Trump vai na mesma direção de uma medida aprovada em 1995 pelo congresso dos Estados Unidos, prevendo a transferência da embaixa- da para Jerusalém. No entanto, isso nunca havia sido posto em prática, porque era necessária aprovação da Presidência, o que nunca ocorreu – até agora. E quanto ao México? Nos primeiros dias de seu mandato, o presiden- te dos Estados Unidos anunciou uma série de medidas no âmbito da segurança nacional que mostraram sua determinação em cumprir as promessas feitas durante a campanha, inclusive as mais controversas. Veja onde Trump pretende construir o muro: presidente assinou ordem para construir barreira contra imigrantes na fronteira com o México. Além disso, Trump também assinou uma ordem executiva para bloquear fundos federais para as cha- madas “cidades-santuários”, que protegem da depor- tação os imigrantes sem documentos. Os fundos fe- derais seriam abolidos para cidades que se recusarem a fornecer informações às autoridades federais sobre status de imigração de pessoas detidas nessas locali- dades, entre as quais estão Chicago, Nova Iorque e Los Angeles. Entretanto, ainda não obteve êxito em cortar essas verbas. À construção do muro, soma-se o iminente de- sastre para as indústrias que puderam prosperar com o Nafta, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte. O primeiro tipo de indústria a ser atingido deve ser a automobilística. No mesmo dia em que Donald Trump ameaçou a General Motors com “um alto im- posto fronteiriço” caso abra uma planta no México, a Ford anunciou que desistiu de investir US$ 1,6 bilhão numa fábrica no país vizinho. Em vez disso, informou que vai ampliar a produção de veículos elétricos nos 10 EUA, injetando US$ 700 milhões numa instalação em Michigan. A montadora foi alvo de Trump por causa de seus planos de investimento no México. Quanto ao muro, a ordem executiva para iniciar sua construção foi assinada cinco dias após a posse, mas até então nem um metro foi erguido... Não por falta de tentativa. Trump continua afirmando que en- viará a conta da construção ao México, que, por sua vez, continuou respondendo que não pagaria. As manifestações maciças em diversas cidades do México contra a política de Donald Trump demons- tram a indignação que o novo presidente dos Estados Unidos vem despertando na população mexicana, em decorrência do caráter agressivo e xenófobo de suas declarações, propostas e medidas. O fato de a classe média do México – que, ao lado do Canadá e do Rei- no Unido, tem a mais estreita relação com os Estados Unidos – sair às ruas para responder aos ataques e demonstrações de intolerância de Trump é uma prova desse inconformismo. Manifestantes participam da marcha contra a política de Donald Trump. Além das polêmicas declarações, antes, durante e depois das eleições, Trump foi responsável, em apenas algumas semanas no cargo, por uma importante queda de investimentos na indústria automobilística no Méxi- co. Não precisou construir seu famoso muro para causar um prejuízo econômico e humano real ao vizinho. Em março de 2019, o Pentágono anunciou o desbloqueio de US$ 1 bilhão para o projeto e a cons- trução de um trecho do muro. O fundo financiará 91 km da barreira. O montante é o primeiro liberado sob estado de emergência, que foi declarado pelo presi- dente Donald Trump para contornar o congresso e cumprir sua promessa. Em um comunicado, o chefe interino do Pen- tágono, Patrick Shanahan, “autorizou o comandante do Corpo de Engenheiros do Exército a começar a projetar e executar até US$ 1 bilhão de apoio ao de- partamento de Segurança Interna, à Alfândega e à Patrulha de Fronteira“. A liberação da verba é uma resposta do Departamento de Segurança Interna para a construção de 91 km de uma cerca de 5,5 metros de altura, a reforma de uma estrada paralela e a ilu- minação da linha de fronteira. Shanahan destacou que o gasto se justifica pelo artigo que autoriza o Departamento de Defesa a construir estradas, barreiras e instalar iluminação para impedir o tráfico de drogas na fronteira. Senadores democratas reclamam porque o Pen- tágono não pediu permissão dos comitês apropriados, antes de notificar o congresso sobre a transferência de fundos. Os democratas se opõem à iniciativa e trava- ram uma disputa com Trump que resultou na parali- sação parcial do governo (também conhecida como shutdown) mais longa da história do país. Em 15 de fevereiro, Trump declarou “emergên- cia nacional“, manobra que lhe dá a permissão para usar fundos federais sem aprovação do congresso, já que os democratas vetaram os US$ 5,7 bilhões que Trump exigia para a construção do muro. Em maio deste ano, Trump deu um passo adian- te em sua tensa relação com o México e na luta contra a imigração irregular, ao anunciar uma taxação de 5% sobre todos os produtos importados do país vizinho, a partir de 10 de junho. Essa alíquota, segundo ele, po- derá subir gradualmente até 25%, enquanto Washing- ton não notar uma melhora no controle dos imigrantes sem documentos. Sobre este assunto, o presidente dos Estados Unidos já recriminou o anterior governo me- xicano, comandado por Enrique Peña Nieto, e, agora, pelo centro-esquerdista Andrés Manuel López Obra- dor. Se entrar em vigor, a medida representará um duro golpe para um comércio bilateral, que está entre os mais movimentados do mundo e, especialmente, para a economia mexicana. Trump tinha ameaçado anteriormente com ou- tra medida nociva para a economia estadunidense, que não se atreveu a aplicar: fechar a fronteira. Também chegou a usar como moedade troca os dreamers – forma como ficaram conhecidos os imigrantes que chegaram aos EUA, ainda menores de idade e cres- ceram como estadunidenses. E já havia ameaçado 11 usar a guerra tarifária para obrigar o México a ado- tar medidas mais radicais contra o fluxo de imigrantes sem documentos que fogem, sobretudo, da miséria na América Central. Em comunicado utilizando uma linguagem du- ríssima, Trump disse que, se a imigração ilegal for ali- viada por meio de medidas adotadas pelo México, algo que determinaremos segundo o nosso critério, as tari- fas serão eliminadas. Se a crise persistir, entretanto, su- birão para 10% a partir de 1º de julho. A ameaça surge no mesmo dia em que foi noticiado que a Casa Bran- ca busca acelerar a aprovação no congresso do novo tratado comercial com o México e Canadá, selado no ano passado. Esta é uma contradição só concebível no universo de Trump, onde não há outra estratégia senão a aparente ausência dela: a improvisação. Além disso, as declarações de Trump aparecem quando se acumulam os dados sobre o colapso do sis- tema de acolhida de imigrantes na fronteira sul, devido à chegada maciça de famílias com crianças. A patru- lha fronteiriça anunciou em nota que deteve o maior grupo já encontrado na fronteira dos Estados Unidos com o México. Foram 1.036 pessoas que cruzaram o rio Grande todas de uma vez, por volta das 4h00 da madrugada (1h00, em Brasília), na altura de El Paso, Texas. Todos os detidos no grupo eram da Guatemala, Honduras ou El Salvador; havia 39 adultos sozinhos e 934 membros de “unidades familiares”, o termo téc- nico usado para definir pelo menos um adulto acom- panhado de pelo menos uma criança; outros 63 eram menores desacompanhados. A diferença entre esses casos é que os adultos sozinhos podem ser detidos, até que seu caso passe por um juiz. Se forem cidadãos mexicanos, são deportados imediatamente em segui- da; se não, ficam detidos enquanto durar o processo. As crianças, por outro lado, só podem permanecer de- tidas por 72 horas e, depois, devem passar à custódia dos serviços sociais para serem alojadas em refúgios, com famílias de acolhida, ou com familiares que se encarreguem deles nos Estados Unidos. Essa situação complica enormemente a papelada e as transferências e torna impossível sua gestão eficiente, segundo o De- partamento de Alfândegas e Proteção de Fronteiras (CBP), o que paralisa os centros de internamento. A chegada de famílias com crianças aumentou fortemen- te no último ano, embora as cifras absolutas de deten- ções na fronteira sejam baixas em comparação com os máximos históricos. Usmca: o novo Nafta Iniciada há quase dois anos, a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Naf- ta, na sigla em inglês) resultou em um novo acordo comercial, o chamado United States-Mexico-Canada Agreement (Usmca). A revisão do Nafta era um dos principais pontos da campanha presidencial de Donald Trump, que prometia recompor postos de trabalho ex- portados para o México, além de buscar reverter o re- corrente e significativo deficit comercial com o parceiro do sul. Durante as várias rodadas de renegociação do livre comércio na região, diversos congressistas repu- blicanos e democratas se manifestaram contrários à re- tirada dos Estados Unidos do acordo trilateral de livre comércio, que remonta aos anos 1990. Do mesmo modo, governadores estaduais e as- sociações de classe se posicionaram em favor da mo- dernização do acordo trilateral de comércio. O Usmca, nesse sentido, parece acomodar essas reivindicações de grupos internos dos EUA, sem, no entanto, deixar de lado a promessa de campanha de Trump. Tal aco- modação de interesses significa condições mais favo- ráveis aos EUA nas relações comerciais, por meio da modernização de um acordo de livre comércio com um quarto de século de vigência, e que necessita atualizar questões que, hoje, são de fundamental importância na agenda do comércio internacional. O Usmca, desse modo, trata de questões como e-commerce e regras de origem mais bem detalhadas. Além disso, o novo acor- do tem-se configurado como capital político de Trump para pressionar o México em outras questões de políti- ca externa e, ao mesmo tempo, conseguir apoio para a aprovação do Usmca. Durante a renegociação do Nafta, congressis- tas, como o democrata Vicente Gonzalez (D-TX) e o republicano Dan Newhouse (R-WA), escreveram ao presidente Trump solicitando que os EUA permaneces- sem no acordo a partir da modernização de seus dis- positivos. A carta, que também foi assinada por outros congressistas, enfatizava que dependiam desse acordo milhões de empregos nos EUA e que pequenos e mé- 12 dios empresários só puderam expandir seus negócios por conta do livre comércio garantido pelo Nafta, visto que, cerca da metade de todos os bens importados por Canadá e México, são oriundos dos EUA. Coalizões internas e governadores estaduais também se manifestaram em favor da permanência dos Estados Unidos no Nafta. Em declaração à impren- sa, a governadora de Iowa, Kim Reynolds, considerou que a retirada dos EUA do Nafta teria consequências sem precedentes para produtores rurais e industriais do Estado. No que se refere à produção excedente para o mercado externo, seria “devastador”, afirmou Rey- nolds. O Missouri, por exemplo, tem mais de 60% de suas exportações destinadas a áreas de livre comércio, como os mercados do Canadá e do México. Os republicanos Roger Marshall (KS) e Kevin Brady (TX), este também presidente do Conselho de Lideranças dos Negócios do Texas, reconheceram a necessidade de atualização dos termos do Nafta – portanto, sem a saída dos EUA do acordo. Para eles, o acordo de livre comércio da região tem sido bené- fico não apenas para grupos específicos no país, de diferentes setores da economia, como também tem beneficiado a economia dos EUA como um todo. Para Marshall, a modernização do Nafta não é tarefa fácil, mas é perfeitamente possível. Ambos, partidários de Trump, acompanharam as rodadas de renegociação do Nafta até a criação do Usmca. Associações de classe e grupos de interesse, como o Americans for Farmers and Familiese American Farm Bureau Federation, além de empresas, como Heineken e Softwear Alliance, também se manifestaram publicamente em favor da continui- dade dos EUA no acordo de 1994. Desde as primeiras negociações para a efe- tivação do Nafta, não há regras bem determinadas sobre o comércio digital. Tradicionalmente, deman- das estadunidenses referentes a esse segmento, bem como com relação à propriedade intelectual, estão presentes, hoje, não apenas nas negociações de cunho regional, mas também nas tratativas no âmbito mul- tilateral, como no caso da Organização Internacional do Comércio (OMC). Do início da década de 1990 à renegociação do Nafta, não apenas tem havido um recrudescimento da complexidade das tecnologias, como também o volume de comércio nessas áreas tem se expandido crescentemente. Com o Usmca, os direitos autorais serão estendidos de 50 anos após o falecimento do autor para 70 anos, o que representa um ganho para os EUA, de onde provém boa parte da produção científica e tecnológica entre os parceiros do Nafta. A proteção a um novo medicamento também seria estendida – neste caso, de oito para dez anos, o que significa que, dentro desse período, não poderia haver genéricos. Além disso, o acordo prevê proteções a plataformas de comércio eletrônico para que essas empresas não sejam responsabilizadas por aquilo que seus usuários postam. Também poderá haver isenção de impostos a produtos comprados eletronicamente. O setor automobilístico sofreu, por sua vez, importante mudança com o novo acordo, no que se refere às regras de origem. Com o Usmca, 75% dos componentes de carros e caminhões devem ser oriundos de um dos países do acordopara não ser tarifado em nenhum nível. No Nafta, esse percentu- al é de 62,5. O intuito é fomentar a compra desses componentes na América do Norte e fazer frente a custos mais competitivos proveniente da Ásia. Outra mudança importante e que evidencia mais um ganho do governo dos EUA diz respeito aos dispositivos trabalhistas no novo acordo. O Usmca pretende es- tabelecer um piso de 16 dólares a hora de trabalho para empregados no setor automobilístico, o que é uma clara tentativa de o governo Trump recompor os empregos exportados. A lógica é que, se não houver salários menos valorizados no México, como ocorre atualmente, as empresas não terão razão para deixar o território estadunidense, em princípio. Durante as tratativas do acordo, o México tam- bém se comprometeu a fortalecer os sindicatos locais por meio da ampliação da legislação trabalhista in- terna. Outra mudança substancial do texto do Nafta 13 – mais especificamente de seu capítulo 11 – para o novo acordo é que investidores não poderão proces- sar os governos. No caso de EUA e Canadá, em ne- nhuma hipótese e, com relação ao México, a restrição ocorreu em termos relativos. A mudança é relevante porque pode relativizar questões ambientais, o que não é desejável por setores domésticos nos EUA e por parte considerável do congresso. No Usmca, algo que se manteve e que pode ser considerado um ganho da diplomacia canadense foi a manutenção dos termos do capítulo 19 do Nafta, cujo conteúdo permite que os Estados-membros adotem medidas contra decisões desfavoráveis provenientes de tribunais e agências dos EUA, em casos de disputas no âmbito do Nafta. Estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontam que os efeitos das possíveis mudanças com o Usmca no Canadá poderão concentrar-se no encolhimento de seu setor de veículos automotores, acompanhado por um declínio na produção de peças. No México, a contração na produção de veículos será superior a 5%, enquanto os setores de veículos, têxtil e de vestuário também reduzirão de tamanho. Ainda segundo o FMI, o México poderá compensar essas per- das no setor automobilístico com ganhos conjuntos em equipamentos elétricos e bens de capital. Nos EUA, os declínios mais notáveis podem concentrar-se nos setores têxteis e de peças de veículos, em face do efeito nega- tivo dos preços mais altos na demanda do consumidor. Nesse sentido, a aprovação e vida útil do Usmca são ainda incertas. O acordo possui a chamada sunset clause – ou “cláusula pôr do sol”, em uma tradução livre. Além disso, precisa passar pelo crivo dos con- gressos dos EUA, México e Canadá. Em decorrência dessa cláusula, o acordo estará sujeito à revisão pelos três países a cada seis anos, podendo expirar ao final desse prazo ou se renovar por igual período. Quanto à apreciação do Legislativo dos EUA, a análise dos im- pactos do Usmca na economia estadunidense deman- dará tempo. O Usmca tem 34 capítulos, 13 anexos e 13 contratos paralelos, enquanto seu antecessor possui 22 capítulos, nove anexos e nenhum contrato paralelo. Desse modo, ainda com relação ao congresso dos EUA, Nancy Pelosi (D-CA) e seu Partido Democra- ta, maioria na câmara, já se pronunciaram no senti- do da criação de dispositivos mais rígidos no acordo, tanto no que diz respeito à matéria trabalhista quan- to ambiental. Pelosi também salientou que o avanço do acordo depende da efetivação de novos dispositi- vos legais trabalhistas no México. A reação de Trump foi aumentar a pressão sobre o vizinho do sul em questões de fronteira e migração, o que demonstra que a práxis do America First é mais complexa do que um slogan de campanha e que, portanto, depende de outras variáveis e atores do campo doméstico e da arena internacional. ATUALIDADES Era Trump Alessandra de Fatima Alves 15 C ATUALIDADES H
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