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Formação Cultural e o Fenômeno da Violência Doméstica Contra a Criança

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CLAUDIA REGINA LEMES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FORMAÇÃO CULTURAL E O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA 
DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MOGI DAS CRUZES 
2009 
CLAUDIA REGINA LEMES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FORMAÇÃO CULTURAL E O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA 
DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em Semiótica, Tecnologias 
de Informação e Educação, da Universidade 
Braz Cubas, para obtenção do título de 
mestre em Semiótica, Tecnologias de 
Informação e Educação. 
 
Área de concentração: 
Formação do sujeito e linguagem 
 
Orientadora: 
Profa. Dra. Rosemary Roggero 
 
 
 
 
 
MOGI DAS CRUZES 
2009
AUTORIZO REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE 
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, 
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 
LEMES, Claudia Regina. 
Formação cultural e o fenômeno da violência doméstica contra a 
criança./ Claudia Regina Lemes; orientadora Profa. Dra. Rosemary 
Roggero; Mogi das Cruzes, 2009 
176 f. 
 
Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Semiótica, 
Tecnologias de Informação e Educação. Área de concentração: Formação 
do Sujeito e Linguagem – Universidade Braz Cubas 
 
1. Formação do Sujeito. 2. Cultura. 3. Violência Doméstica Contra a Criança. 
4. História de Vida. 
FORMAÇÃO CULTURAL E O FENÔMENDO DA VIOLÊNCIA 
DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA 
 
 
 
Claudia Regina Lemes 
 
 
BANCA EXAMINADORA: 
 
 
Profa. Dra. Rosemary Roggero (orientadora) 
Instituição: Universidade Braz Cubas Assinatura ____________________________________ 
 
 
Profa. Dra Ivanise Monfredini 
Instituição Universidade Nove de Julho- Uninove - Assinatura_________________________ 
 
 
Profa. Dra. Ana Zahira Bassit 
Instituição Universidade Braz Cubas - Assinatura ___________________________________ 
 
 
 
 
Trabalho apresentado e aprovado em ______ de _________________ de _______ 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este trabalho ao Marcelo, meu marido; aos meus filhos, 
Leandra, Gabriel, Vinícius e Mariana; aos meus pais, Neuza e 
Américo; aos meus irmãos, Denise, Luciana e Américo Wagner; 
e, especialmente, às duas preciosidades da minha vida, Felipe e 
Rafael, meus netos. 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
Agradeço às professoras que foram colaboradoras desta pesquisa, doando suas histórias de 
vida. 
 
Agradeço à Rosemary Roggero, minha querida professora e orientadora. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal... 
(Milton Nascimento e Fernando Brant) 
 
LEMES, Claudia R. Formação cultural e o fenômeno da violência doméstica contra a 
criança. 2009. 176 f. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Tecnologias da Informação e 
Educação) – Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes, SP, 2009. 
 
RESUMO 
 
 
Esta pesquisa teve como problema: Por que acontece a violência contra a criança na família? 
Alicerçou-se na hipótese da cultura como fator determinante da existência desse tipo de 
violência, no âmbito da sociedade. Com o objetivo de entender a lógica que está por trás da 
violência doméstica contra a criança, a pesquisa empírica foi realizada com a utilização da 
metodologia de história oral de vida temática de três professoras do ensino fundamental I, que 
narraram suas histórias destacando como foram tocadas pelo fenômeno em questão. Com base 
nos conceitos da teoria crítica da sociedade para análise das narrativas, teve-se acesso à 
cultura, aos preconceitos de classe, à crise da família e instituições, às adaptações ao mundo 
organizado e, por fim, à identidade do sujeito aprisionado nas malhas da cultura afirmativa. 
As narrativas das professoras trouxeram elementos que, apesar de possibilitarem outros tipos 
de análise, foram analisados em categorias e observados os elementos nas histórias que se 
completam, contradizem e se tocam. As combinações das narrativas remetem ao problema da 
violência doméstica contra a criança, pois trazem as circunstâncias da vida e as configurações 
que foram se formando; além de demonstrarem o sistema de forças que aprisiona e nega a 
subjetividade produz a pseudoformação e imprime o modelo ideológico da cultura afirmativa. 
O sujeito alienado é esquecido de si mesmo. A opressão que a criança sofre no lar tem o 
mesmo significado da violência que é impingida aos seus agressores nos diversos setores da 
sociedade. No mundo atual, em que os avanços culturais, científicos e tecnológicos não são 
suficientes para livrar a humanidade da barbárie, faz-se relevante entender por que ocorre a 
violência contra a criança e propor reflexões que visem à busca de soluções. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Formação do Sujeito, Cultura, Violência Doméstica Contra a Criança, 
História de Vida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
The subject of this research was: Why does violence against the child occur in the family 
context? The hypothesis that culture is a determining factor in the existence of this type of 
violence in the scope of society was supported. With the objective of understanding the logic 
behind domestic violence against children, the empiric research was carried out using the 
methodology of thematic oral history of three elementary school teachers who narrated their 
stories and explained how much they had been touched by the phenomenon in question. 
Based on the concepts of critical theory of society to analyze the narrations, access was 
gained into culture, class prejudice, family and institutional crises, adaptation to the organized 
world, as well as into the identity of an individual imprisoned in the meshes of an affirmative 
culture. Although the teachers’ narrations allowed for other types of analyses, the elements 
they originated were analyzed in categories. Elements in stories which complement, 
contradict and coincide with one another were observed. The combinations of the narrations 
refer to the problem of domestic violence against the child since they bring out life 
circumstances and configurations that have been developing; apart from demonstrating the 
system of powers that imprisons and abnegates subjectivity, produces pseudo-formation and 
imprints the ideological model of the affirmative culture. The alienated subject is completely 
forgotten, even to self. The oppression faced by children at home has the same significance of 
violence imposed on their aggressors in various society sectors. In the present world, where 
the cultural, scientific and technological advances are not sufficient to save humans from 
atrocity, it is necessary to understand why violence against children occurs and also to 
propose measures that aim to solve this problem. 
 
KEYWORDS: Subject formation, Culture, Domestic Violence against the Child, Life History. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE TABELAS 
 
 
TABELA 1 – Dados estatísticos do CRAMI 2009............................................................................ 14 
TABELA 2 – Dos agressores com vínculo familiar.......................................................................... 15 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................ 11 
1 A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA 
SOCIEDADE BRASILEIRA....................................................................................................... 25 
 1.1 A CRIANÇA NA FAMÍLIA...................................................................................................... 29 
 1.2 A FAMÍLIA E A INFÂNCIA BRASILEIRA.............................................................................36 
 1.3 AS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS................................................................................................ 48 
 1.4 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE............................................................ 57 
 1.5 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA REFLETINDO NA ESCOLA........... 60 
2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA 
CULTURA......................................................................................................................................... 66 
 2.1 A CULTURA E OS TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA............ 72 
 2.1.1 VIOLÊNCIA FÍSICA.................................................................................................... 72 
 2.1.2 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA....................................................................................... 73 
 2.1.3 NEGLIGÊNCIA............................................................................................................ 74 
 2.1.4 VIOLÊNCIA SEXUAL................................................................................................. 77 
 2.1.5 VIOLÊNCIA FATAL................................................................................................... 81 
 2.2 CULTURA E INFÂNCIA........................................................................................................... 82 
 2.3 CULTURA E FAMÍLIA............................................................................................................. 88 
 2.4 CULTURA E VIOLÊNCIA........................................................................................................ 93 
3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER 
DA CULTURA.................................................................................................................................. 99 
 3.1 O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA A COLETA DAS HISTÓRIAS..... 100 
 3.2 AS NARRATIVAS..................................................................................................................... 102 
 3.2.1 PROFESSORA PAULA............................................................................................... 102 
 3.2.2 PROFESSORA MARLI............................................................................................... 108 
 3.2.3 PROFESSORA CAROLINA........................................................................................ 119 
 3.3 A ANÁLISE DAS NARRATIVAS............................................................................................ 150 
 3.4 COM QUANTAS BIOGRAFIAS SE FAZ UMA HISTÓRIA?................................................. 151 
 3.5 A VIDA NEGADA.................................................................................................................... 155 
 3.6 FACES QUE SE TOCAM.......................................................................................................... 156 
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................ 159 
REFERÊNCIAS....................................................................................................................................... 169 
 11 
 
INTRODUÇÃO 
 
 
Fromm (1979), considerando o amor uma arte, demonstra que, quando as pessoas são 
capazes de superar as suas dependências e onipotências narcisísticas na relação humana, nascem 
relações de amor. Dessas relações, o amor é reproduzido. Por outro lado, onde falta a 
preocupação ativa, ou ocorre o desejo de explorar o outro, não há amor. A falta dos elementos 
básicos comuns a todas as formas de amor: o respeito, o cuidado, a responsabilidade e o 
conhecimento, gera o temor em doar-se no mesmo grau com que perece da falta desses. “[...] Se 
uma mulher nos diz que ama as flores e vemos que ela se esquece de regá-las, não acreditamos 
em seu ‘amor’ pelas flores. Amor é a preocupação ativa pela vida e crescimento daquilo que 
amamos.” (FROMM, 1979, p. 49). 
O amor não é o alvo desta pesquisa, mas em certa medida a falta dele, na forma como 
apresentado nos trechos acima, tem relação com as circunstâncias que permeiam o fenômeno 
estudado: a violência doméstica contra a criança. 
Situações de violência doméstica contra a criança, refletidas na escola, foram observadas 
na experiência profissional da pesquisadora, que é professora e trabalhou em escolas de 
algumas cidades de São Paulo. Algumas dessas situações são aqui apresentadas, para 
exemplificar o fenômeno. Os nomes das crianças foram substituídos para preservar as suas 
identidades. 
 
SITUAÇÃO 1: 
O aluno Anderson, 7 anos, matriculado na segunda série do ensino fundamental do ciclo 
I, chega à sala de aula com um grande ferimento em uma parte do braço, sem cuidados 
médicos e com aparência de infecção. A criança queixa-se de dor e relata à professora 
ter sofrido queimadura no dia anterior, quando estava em casa com um tio que tinha 
bebido muito. O tio resolveu esquentar o almoço para os dois e foram comer na cama. A 
panela virou e derramou o conteúdo quente no braço da criança. Segundo o aluno, após 
o acontecido, o tio foi dormir e falou para ele colocar pasta de dente na queimadura. Ao 
receber o aluno nessas condições, a professora levou essa situação ao conhecimento da 
diretora da escola, que mandou a criança para casa com um bilhete para que a mãe ou 
um responsável o levasse ao médico. 
 
INTRODUÇÃO 12 
 
SITUAÇÃO 2: 
A aluna Priscila, 6 anos, primeiro ano do ensino fundamental, apresentava-se muito 
agitada em sala de aula, não permanecia no lugar, dispersando-se das atividades 
propostas, e não atendia às solicitações da professora. 
A docente solicitou auxílio da coordenadora, que chamou a criança em sua sala para 
uma conversa, durante a qual ficaram sabendo que no dia anterior a criança tinha sido 
castigada pela madrasta, que a deixou sozinha trancada em um quarto escuro, sentada 
em uma cadeirinha da qual foi proibida de se levantar, caso contrário apanharia. A aluna 
informou que, após deixá-la no quarto, a madrasta saiu para rua, só retornando ao 
anoitecer. 
A coordenadora fez um acordo com a aluna para que esta se comportasse, caso contrário 
a madrasta seria chamada. Retornou para a sala de aula com a aluna e orientou a 
professora para avisá-la se a aluna não cumprisse o acordo. 
Mais tarde, na reunião pedagógica, a coordenadora e a professora comentaram que a 
aluna melhorava o comportamento sempre que era lembrada que a madrasta poderia ser 
chamada para uma conversa, e usavam desse recurso para garantia do “bom 
comportamento” em sala de aula: “Cuidado com a cadeirinha no escuro, hein!” 
 
SITUAÇÃO 3: 
A aluna Bianca, 6 anos, primeiro ano do ensino fundamental, muito distraída e com 
dificuldade de aprendizagem, não fazia as tarefas, não trazia materiais para as aulas, 
(nem aqueles cedidos pelo governo). Tinha a aparência triste, descuidada e sempre se 
queixava de dores na região do abdômen. Após ter faltado à aula por uma semana, ao 
retornar, a professora perguntou os motivos da falta. A aluna disse que havia faltado 
porque tinha se esquecido de “vestir a calcinha”. A professora achou engraçado e 
comentou na sala dos professores com as colegas, não levando em conta o quanto essa 
justificativa da criança poderia ser simbólica e representativa de que algum tipo de 
abuso sexual poderia estar ocorrendo com a criança. 
 
SITUAÇÃO 4: 
A aluna Ingrid, 7 anos, apresentou-se à aula após ter faltado alguns dias com ferimentos 
na face. Os coleguinhas da classe disseram à professora que ela apanhou de sua mãe 
porque havia desaparecido na rua e retornado muito tarde. A aluna confirmou que 
realmente apanhou, pois ficara na casa de uma colega sem que a mãe soubesse. Diante 
dos ferimentos: olho arroxeado, marcas de cintadas pelo corpo e comportamento agitado 
da criança, a professora procurou a direção da escola para pedir orientação quanto à 
atitude que deveriatomar. A diretora disse para a professora que fazia o possível para 
que dentro da escola as crianças fossem bem tratadas. Lá fora, portanto, não era 
INTRODUÇÃO 13 
 
problema dela. “Do portão pra fora eu não quero saber!” A professora insistiu em 
notificar o Conselho Tutelar. A diretora proibiu essa conduta com a justificativa de que 
não queria que a escola fosse um centro de denúncias de maus-tratos contra a criança, já 
que essa situação era corriqueira na comunidade onde a escola funcionava e isso seria 
um transtorno para o relacionamento da escola com os pais. 
 
SITUAÇÃO 5: 
A aluna Dayane, 8 anos, apresentava-se às aulas com as roupas sujas e muitos piolhos e 
lêndeas na cabeça. A coordenadora pediu autorização à criança para prender os seus 
cabelinhos com uma presilha, pois parecia estar atrapalhando a sua visão (os cabelos 
eram compridos e caiam sobre o rostinho da criança). Ao fazer isso, percebeu que a 
criança possuía muitas feridas com sangramento no couro cabeludo, provavelmente 
ocasionadas por causa da infestação de piolhos. Convocou a mãe para exigir uma 
providência para melhorar a situação da criança. A mãe compareceu com duas crianças 
nos braços, menores que a aluna, acompanhada de uma filha também aluna da mesma 
escola, mas das séries finais do ensino fundamental, que também carregava outro 
irmãozinho pela mão, um pouco mais velho do que os que estavam com a mãe. A 
senhora durante a conversa demonstrou não ter conhecimento necessário sobre higiene e 
saúde das crianças. Verbalizou ainda que não poderia perder os benefícios sociais que 
recebia, pois vivia apenas desse dinheiro, porque o pai das crianças era alcoolista e não 
trabalhava; além disso, já tinha sido chamada ao Conselho Tutelar por causa de 
denúncias dos vizinhos. A escola liberou a mãe solicitando-lhe que tentasse cuidar das 
crianças para sanar a infestação de piolhos. 
 
SITUAÇÃO 6: 
O aluno Matheus, com 8 anos e frequentando a segunda série do ensino fundamental I, 
tinha o rosto marcado por uma chinelada. A professora foi orientada pela coordenadora 
a chamar a família para uma conversa. O pai, que era policial, ao comparecer à escola, 
veio fardado. Ao ser questionado pela professora, disse que já cansara de avisar e 
ensinar à esposa a bater corretamente para não deixar marcas. 
 
No Brasil, a lei que protege a criança é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, 
apesar de já existir a aproximadamente duas décadas1, ainda assim os registros de violência 
doméstica contra a criança têm aumentado. Para demonstrar tal situação, na Tabela 1 são 
apresentados dados estatísticos referentes ao trabalho desenvolvido pelo Centro Regional de 
Atenção aos Maus-Tratos na Infância do ABCD (CRAMI) nos municípios de Santo André, 
                                                            
1 O Estatuto da Criança e do Adolescente completará duas décadas em 13 de julho de 2010 (BRASIL, 1990). 
INTRODUÇÃO 14 
 
Diadema e São Bernardo do Campo. O CRAMI é uma organização não-governamental fundada 
em 1988 e declarada de utilidade pública municipal, estadual e federal. Essa ONG tem por 
missão propiciar atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência 
doméstica e desenvolver ações preventivas que possibilitem a defesa e proteção incondicional. 
 
TABELA 1 – Dados estatísticos do CRAMI 2009. 
FAMÍLIAS EM ATENDIMENTO NO ANO DE 2009 
TIPO DE VIOLÊNCIA JANEIRO FEVEREIRO MARÇO ABRIL 
Abuso sexual 134 129 139 144 
Exploração sexual 003 004 004 004 
Física 250 240 241 245 
Psicológica 036 036 038 038 
Negligencia 025 024 023 
Outros 002 003 002 022 
Total 450 436 447 453 
Fonte: CRAMI ABCD (2009). 
 
Na cidade de Campinas, de 1985 a 2006, o CRAMI realizou o atendimento de 16.000 
casos de violência contra crianças e adolescentes. Atualmente, a entidade atende 515 casos, 
segundo informações obtidas no site oficial da organização não-governamental (CRAMI 
CAMPINAS, 2009). 
Dados sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes, no período de janeiro de 2000 a 
janeiro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro, em um universo de 418 denúncias feitas por 
telefone, revelam que 54,55% dos agressores possuíam vínculo familiar ou de parentesco com 
as vítimas, e 45,55% dos agressores não possuíam vínculos familiares com as vítimas 
(OBSERVATÓRIO..., 2003). Na Tabela 2, é apresentada a distribuição dos abusadores com 
vínculo familiar por grau de parentesco com a vítima. 
 
 
 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO 15 
 
TABELA 2 – Dos agressores com vínculo familiar. 
PORCENTAGEM GRAU DE PARENTESCO COM A VÍTIMA 
42,3% Eram pais biológicos das vítimas 
16,2% Eram padrastos 
2,31% Babás das vítimas 
7,69% Mãe 
4,23% Irmão 
2,31% Avô 
1,92% Avó 
3,85% Namorado da vítima 
0,77% Namorado da mãe 
2,31% Companheiro da vítima 
1,15% Madrasta da vítima 
10,00% Tio da vítima 
0,77% Tia da vítima 
3,46% Primo da vítima 
Fonte: Observatório da infância (2003). 
 
A sociedade convive cotidianamente com o trabalho infantil, a prostituição e outras 
formas de violência contra a criança que, apesar de não ser especificamente violência 
doméstica, têm estreita relação e, não raramente, ocorrem em concomitância, como é 
demonstrado na matéria publicada em 2008 em um jornal do litoral do estado de São Paulo: 
 
A violência contra a criança ocorre em 90% dos casos em ambientes 
domésticos. E está muito mais próxima e presente do que se tenta esconder. A 
conclusão é de uma investigação em andamento feita pela universidade 
Federal de São Paulo (UNIFESP) com 800 famílias na periferia da capital 
paulista. É a primeira pesquisa de que se tem notícia feita de casa em casa, e 
não apenas com base em registros oficiais. Os pesquisadores estão constatando 
que 20% de agressões graves contra as crianças, o que significa queimaduras, 
asfixias ou espancamento, resultando em fraturas e lesões que muitas vezes, 
acabam no hospital, mas não punem o agressor, protegido por um manto de 
silêncio familiar. E outras que deixam seqüelas psicológicas profundas como 
as do atentado violento ao pudor. Cabe a todos os responsáveis em seus papéis 
de pais e mães evitar a todo custo que a criança vire a depositária do estresse 
da pobreza, ou da tão ‘fadada falta de tempo’ combinada com o desequilíbrio 
INTRODUÇÃO 16 
 
emocional de inúmeros adultos. Isso porque os pesquisadores da UNIFESP 
ouvem que ‘bater educa’. Isso mesmo, essa é a desculpa das mães e pais que 
tiram sangue, deixam marcas na pele e provocam sofrimento. Esse é mais um 
aspecto de uma das maiores fragilidades sociais brasileiras: a pouca atenção a 
primeira infância, especialmente nas camadas menos favorecidas e também 
naquelas onde todos saem de casa para cuidar da própria vida e deixam as 
crianças sempre à mercê da sorte ou do azar. (CALDERARO, 2008, p. 11). 
 
A criação de uma lei para proteção da infância já é indício de que os direitos 
fundamentais não são respeitados, pois a norma legal é constituída em decorrência da 
necessidade social. 
Os casos que aparecem nas estatísticas representam uma parte do problema, porque 
muitas crianças sofrem violência doméstica e esses casos não são notificados. O sofrimento a 
que tantas crianças são submetidas é presenciado pela escola na figura de seus agentes: 
diretores, professores, merendeiras e inspetores, os quais vivenciam os reflexos da violência que 
muitas estatísticas não apontam. A escola testifica a parte da violência doméstica contra a 
criança que não é notificada. Segundo Azevedo e Guerra, a ponta do iceberg refere-se a uma 
figura piramidal cuja base representa os casos não notificados ou encobertos pelo complô do 
silêncio: “[...] de que acabam sendo cúmplices os profissionais, os vizinhos, os parentes e 
familiares e até a própria vítima.” (1995, p. 65); e o pico demonstra os casos de violência 
doméstica não denunciados. 
O conceito de violência doméstica contra criança, de acordo com essas mesmas autoras, 
surgiu na áreada medicina e o primeiro estudo científico sobre o tema foi feito em 1860 pelo 
professor Ambroise Tardieu, que em Paris, 
 
ao proceder ao estudo de 32 casos (com 18 mortos) de crianças submetidas a 
sevícias, ele constatou que elas haviam sofrido variadas lesões (hematomas, 
equimoses, fraturas diversas, queimaduras) e que as explicações fornecidas 
pelos pais discordavam das características destas mesmas lesões. (AZEVEDO; 
GUERRA, 1995, p. 39). 
 
Nesse estudo, questões socioculturais foram observadas por Tardieu como associadas ao 
fenômeno. 
Azevedo e Guerra (1995, p. 39) ressaltam que a contribuição científica desse médico, 
apesar de refletir uma realidade presente nos jornais da época, não causou grandes impactos na 
INTRODUÇÃO 17 
 
opinião pública, que estava com o olhar voltado à abordagem das agressões de filhos contra os 
pais; perspectiva inversa e “[...] preocupante, na medida em que um fato desta natureza revelava 
uma insubordinação à autoridade familiar, que repousava sobre os pais, mais especificamente 
na figura masculina.” Sobretudo na Europa, que a exemplo da “[...] França conhece, neste 
período ainda, uma manifestação a favor do reforço da autoridade paterna, emanada de 
Napoleão III e por ele manifestada no Conselho Privado, já em 1858.” (AZEVEDO; GUERRA, 
1995, p. 40). Demonstrações de que a família em certos momentos poderia ser perigosa para as 
crianças e levá-las à morte, não eram bem aceitas para as ideias de preservação da autoridade 
paterna da época. Em 1962, quase após um século, nos Estados Unidos da América, os doutores 
Kempe e Silverman denominaram de Síndrome da Criança Espancada um fenômeno que se 
referia a crianças de pouca idade e que tinham sofrido danos físicos, e que os pais davam 
explicações inadequadas. 
 
[...] Saliente-se que, nos EUA, poder-se-ia dizer que este fenômeno foi 
redescoberto pela Medicina no período acima citado, uma vez que a sua 
‘descoberta’ realmente se deu na década de 70 do século XIX. Evidentemente 
que esses dois movimentos tanto de ‘descoberta’ como de ‘redescoberta’ 
estiveram estreitamente entrelaçados com condições sócio-econômico-
culturais que permitiram estes duplos ‘caminhos’. (AZEVEDO; GUERRA, 
1995, p. 41). 
 
Para Azevedo e Guerra (2000), o pano de fundo socioeconômico e político, na década 
de 1960 do século XX, fomentou questões sobre a privacidade da família, a posição do homem 
como chefe e a importância da união de seus membros a qualquer preço, e determinou o 
interesse por estudos sobre esse fenômeno, o qual já existia há muito tempo. 
A definição conceitual de violência doméstica contra a criança foi sendo delineada com 
os estudos que iam acontecendo. A primeira definição batizada como a Síndrome da Criança 
Espancada era a seguinte: 
 
[...] se refere usualmente a crianças de baixa idade que sofreram ferimentos 
inusitados, fraturas ósseas, queimaduras etc., ocorridas em épocas diversas, 
bem como em diferentes etapas e sempre inadequada ou inconsistentemente 
explicadas pelos pais. O diagnóstico tem que se basear em evidências 
radiológicas dos repetidos ferimentos. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 40). 
 
INTRODUÇÃO 18 
 
Também a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), no pós-guerra, e o início 
da visão global do mundo contribuíram para os aspectos da violência contra a criança virem à 
tona, propiciando discussões que movimentaram o status sedimentado há anos. 
Azevedo e Guerra (1995) registram que, nos Estados Unidos, outra definição é proposta, 
ampliando a anterior e contemplando também a criança vítima de maus-tratos em família, 
evidenciada por privação emocional, nutricional, negligência e abuso, sendo considerada a 
criança espancada, como última fase da síndrome do maltrato. Essa nova definição data do ano 
de 1969 e tem o seguinte texto: “[...] o abuso físico [...] por parte de um parente ou outra pessoa 
incumbida dos cuidados das crianças, tendo como objetivo danificar, ferir, ou destruir aquela 
criança.” (GIL apud AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 41). 
Não sendo essa definição satisfatória, por não se diferenciar o comportamento proposital 
e acidental, foram surgindo novas definições: 
 
Violência física é considerada como um ato executado com intenção, ou 
intenção percebida de causar dano físico a outra pessoa. O dano físico pode ir 
desde a imposição de uma leve dor, passando por um tapa até o assassinato. A 
motivação para este ato pode ir desde uma preocupação com a segurança da 
criança (quando ela é espancada por ter ido para a rua, por exemplo) até uma 
hostilidade tão intensa que a morte da criança é desejada. (GELLES apud 
AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 42). 
 
No Brasil, na década de 1980 estudos relevantes desse fenômeno foram realizados por 
Azevedo e Guerra, as quais iniciaram um percurso de pesquisas e publicações para entenderem 
a realidade da violência doméstica contra a criança e suas particularidades na sociedade 
brasileira, tomando por base inicial os estudos mundiais. 
Azevedo e Guerra (1995, p. 32) observam que a terminologia usada nos discursos sobre 
a violência doméstica contra a criança revelou o uso indiscriminado de termos, sendo os mais 
usados: “abuso, castigo, disciplina, maus-tratos, violência, violência doméstica, vitimização, 
vitimização doméstica.” 
Com intenção de oferecer uma melhor compreensão, principalmente para nortear as 
questões judiciárias ligadas a esse assunto, os termos foram reorganizados em campos 
semânticos e refletidos quanto aos significados oficiais e aos sentidos ocultos de cada campo, 
como apontam essas autoras (1995, p. 32): 
 
INTRODUÇÃO 19 
 
 Abuso, vitimização e vitimização doméstica; 
 Maus-tratos, agressão; 
 Disciplina, castigo; 
 Violência e violência doméstica. 
 
Dos quatro campos semânticos, o conjunto ‘disciplina e castigo’ é o mais antigo e de 
maior tradição na educação infantil. Azevedo e Guerra (1995) alertam que esse fenômeno conta 
apenas parte da verdade dos fatos, por deixar de fora as agressões sexuais e por não explicar a 
gravidade desses castigos e/ou disciplinamentos. 
O campo semântico que reúne os termos ‘maus-tratos’ e ‘agressão’ é também observado 
pelas autoras como inadequado; o primeiro, por colocar o problema na questão moral, “[...] 
como se fosse uma questão de bondade ou maldade individual”, já o outro, “[...] é um termo 
psicológico que padece da limitação de não ser especificamente humano.” (AZEVEDO; 
GUERRA, 1995, p. 33). Com isso, seria necessária uma delimitação jurídica do que seria um 
bom ou um mau trato, mas, na literatura internacional, essa terminologia é a mais usada. 
As autoras defendem os termos ‘abuso’ e ‘vitimização’ (com a qualificação doméstica) 
como termos que melhor conceituam o fenômeno, por designarem os dois polos de uma relação 
interpessoal de poder: o polo adulto, mais forte (abuso), e o polo infantil, mais fraco 
(vitimização). “Os dois termos indicam as duas faces da mesma moeda e podem ser aplicados 
para designar várias modalidades do fenômeno que nos preocupa.” E os termos ‘violência’ e 
‘violência-doméstica’ também fazem parte, de acordo com Azevedo e Guerra (1995, p. 33), do 
campo semântico que melhor define o fenômeno, “[...] porquanto por ‘violência’ se entende 
imediatamente uma relação assimétrica (hierárquica) de poder com fins de dominação, 
exploração e opressão.” (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 33). 
Preocupadas em não permitir enganos que possam ocorrer por estarem ancorados em 
termos que dependem de definições em diferentes culturas ou que podem ser mistificados 
ideologicamente, como, por exemplo, quando se omitem as agressões sexuais e a negligência, 
as autoras tecem a seguinte definição, que é usada ainda hoje: 
 
Violência doméstica contra a criança é todo ato ou omissão praticado por 
parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que sendo capaz de 
causar dor e/ou dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima implica de um 
lado,numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, 
numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que as crianças 
INTRODUÇÃO 20 
 
e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição 
peculiar de desenvolvimento. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 36). 
 
Nessa definição, a violência doméstica é tanto o ato como a omissão, isso “[...] significa 
que o fenômeno pode assumir forma ativa (atos) ou passiva (omissões).” (AZEVEDO; 
GUERRA, 1995, p. 36). 
No entanto, não é praticada apenas por pais, uma vez que também é considerada 
violência doméstica aquela violência praticada por parentes ou responsáveis, ou por pais 
biológicos ou de afinidades. Em outras palavras, a violência doméstica possui 
 
uma gama ampla de possíveis agressores. Circunscreve também a 
especificidade do fenômeno: violência doméstica, praticada no lar, um dos 
tipos de violência familiar (já que esta última expressão pode abranger 
também a violência contra mulheres e idosos) diferente, portanto, da violência 
extra-familiar. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 36-37). 
 
Esse tipo de violência também amplia as possíveis vítimas, prevendo crianças e 
adolescentes: 
 
[...] significa que, em nossa sociedade, são vítimas potenciais todos os 
menores de 18 anos (idade legal da maioridade), sejam eles crianças (até mais 
ou menos 12 anos) ou adolescente (de 12 até 18 anos). Rejeita-se, assim, a 
idéia da área da saúde – de que as vítimas seriam apenas crianças de baixa 
idade (graças à síndrome da criança espancada). (AZEVEDO; GUERRA, 
1995, p. 37). 
 
Diante dessas definições e das situações escolares relatadas anteriormente, é possível 
fazer o seguinte questionamento: Por que acontece a violência doméstica contra a criança em 
famílias brasileiras? Essa pergunta, que motivou a pesquisa, esteve presente durante todo o 
desenvolvimento deste trabalho como pano de fundo, e dessa pergunta principal outras foram 
surgindo: A escola é um local de proteção da criança contra a violência doméstica? E ainda: A 
formação cultural do povo brasileiro contribui para e existência do problema? 
Assim, serão discutidos, nesta pesquisa, a causa da violência doméstica contra a criança 
e por que esse fenômeno acontece apesar da existência da lei de proteção da infância2. 
                                                            
2 Lei 8069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). 
INTRODUÇÃO 21 
 
A hipótese desta pesquisa é a de que o fenômeno foi construído gradativamente no 
percurso da formação cultural, sobretudo a partir da impregnação na sociedade dos valores 
calcados na autoridade, no domínio, na força de uns e escravização de outros. A criança nessa 
relação é a representação e materialização do mais fraco. Essa hipótese norteou os caminhos 
percorridos neste estudo, principalmente quanto à escolha, para análise, de histórias de vida 
temáticas de professoras, que têm de forma garantida em sua trajetória profissional o contato 
com crianças em concomitância à determinação legal de notificar os casos de suspeitas ou 
confirmação de violência contra seus alunos. 
As convidadas foram escolhidas, sem que a pesquisadora soubesse, antes de narrarem, o 
que pensavam sobre o tema, ou que experiências tiveram com esse fenômeno, pois o objetivo 
com este método de pesquisa era extrair das narrativas o que se esconde por trás da cultura e o 
que se prende a ela para afirmá-la. 
Com base na hipótese de que a cultura determina o fenômeno da violência doméstica 
contra a criança, supõe-se que a dificuldade no enfrentamento desse tipo de violência deve ser 
desvelada no estudo da cultura, justificando as vezes que se está em territórios vizinhos3 da 
violência doméstica contra a criança. 
Em alguns momentos deste texto, são observadas e analisadas as violências produzidas 
na sociedade há tantas gerações, que afetam setores e camadas sociais e que se entrelaçam à 
violência no âmbito familiar, pois “a família também é afetada pela violência social e pela 
violência contra crianças e adolescentes, mesmo aquelas não diretamente envolvidas por estas 
violências.” (BARROS, 2005, p. 70). 
A lei brasileira de proteção da infância é referência mundial e, se fosse efetivada, 
elevaria a criança brasileira aos melhores patamares de proteção, participação, promoção e 
cidadania. Mas, em quase duas décadas de existência da norma legal, é notória a não garantia 
dos direitos nela contemplados; fato que continuará a ocorrer se não houver ações e estudos que 
apontem os valores culturais que alimentam os fenômenos sociais. 
Ainda que seja muito importante a existência da lei para o estabelecimento de 
programas de prevenção, nas instituições, nas escolas e, principalmente, com profissionais da 
                                                            
3 Refere-se às citações que são apresentadas ao longo de todo o texto e que aparecem de forma contínua 
acompanhando a violência doméstica contra a criança nos casos que são descritos ou que apareceram nas mídias. 
O uso da palavra ‘território’ teve o propósito de situar o contraste entre as questões humanas e instintivas do 
homem, que ora é parte da natureza e por ela dominado, e ora quer dominá-la: “[...] Quando o animal transcende 
a Natureza, quando transcendo o papel puramente passivo da criatura, quando ele se torna, biologicamente 
falando, o animal mais desamparado, nasce o homem.” (FROMM, 1979, p. 36). 
INTRODUÇÃO 22 
 
educação, é preciso nortear os resultados que se pretende alcançar no desenvolvimento dos 
direitos da criança no Brasil. 
Diante desse contexto, nesta dissertação é realizada uma descrição dos elementos 
histórico-culturais na formação do povo brasileiro, observando a condição do povo na 
construção familiar, os valores que vieram arraigados na cultura dos colonizadores e o lugar da 
infância na instituição das famílias e entidades educativas. 
São demonstradas ainda as representações do sujeito, na forma de compreender o 
mundo, de significar e conceber a vida, nas produções da arte e do trabalho, nas manifestações 
lúdicas e, sobretudo, na forma de se relacionar em família e em outros grupos, na formação 
individual e social. Essas demonstrações são feitas por meio de levantamentos bibliográficos e 
descrição das famílias, escola e infância. 
Para atingir esses objetivos, foi realizada uma análise de histórias de professoras do ciclo 
1, as quais narraram suas histórias de vida motivadas pela pergunta-provocação: Como a 
violência doméstica contra a criança lhe toca? Conte a sua história. 
Este trabalho traz, ao longo do texto, notícias veiculadas nas mídias e trechos da tradição 
oral, que auxiliaram na demonstração do estado de arte da violência doméstica contra a criança 
e do problema no âmbito da cultura. 
A análise foi efetivada com base na teoria crítica, como demonstrada por Marcuse (1981 
e 2001), Horkheimer e Adorno (1973 e 1985), também conhecida como Escola de Frankfurt. 
Essa teoria é de grande valia para os propósitos deste trabalho, por refletir sobre os processos de 
alienação do indivíduo na sociedade de troca ou sociedade capitalista, como também por 
dialogar com o marxismo e a psicanálise, para a crítica da realidade social contemporânea, a 
cultura afirmativa, a alienação, coisificação e a lógica do capital da qual a família é parte 
inexorável. Horkheimer e Adorno (1973) apontam que a família é a instituição que se incumbe 
de refugiar o indivíduo, por um lado, e, por outro, de socializá-lo nas relações da sociedade de 
troca do mundo organizado para a lógica capitalista. Nesse tipo de sociedade, os mais fracos são 
marginalizados, são motivo de chacotas, alvo de repressão etc., o que pode ser percebido no 
conto de Perrault sobre o Pequeno Polegar: 
 
[...] o que entristecia mais era que o caçula era muito fraquinho e não falava 
uma só palavra: eles interpretavam como estupidez o que era marca da 
bondadede sua alma. Pequenino, quando veio ao mundo era do tamanho do 
dedo polegar; por isso chamavam-no de Pequeno Polegar. Esse pobre menino 
INTRODUÇÃO 23 
 
era o saco de pancada da casa, e sempre o culpavam de tudo. (PERRAULT, 
2008, p. 9).4 
 
Os impulsos reprimidos na sociedade podem reagir de forma destrutiva no seio da 
família, que submete seus membros a duas forças simultâneas de ataque: a civilização e as 
tendências irracionais: 
 
A tendência de desenvolvimento que põe em dúvida a família parece dar ao 
indivíduo, pelo menos temporariamente, novo apoio. Mas ao mesmo tempo, a 
família também é atacada desde o seu interior. A socialização progressiva 
significa uma repressão e um controle cada vez mais absoluto dos instintos. 
(HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 133). 
 
Os ideais da sociedade, reafirmados no seio familiar, disciplinam seus indivíduos à 
adaptação e conformação: 
 
O filho pode pensar do pai o que muito bem quiser, mas, se pretende evitar 
graves conflitos e desastres, deve empenhar-se em obter, incansavelmente, a 
satisfação paterna. Em relação ao filho o pai tem razão; é nele que se 
concretizam o poder e o triunfo. (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 138). 
 
Por outro lado, Horkheimer e Adorno afirmam que apesar de carregar ainda muito 
fortemente as características de poder e triunfo na figura do pai, hoje, a instituição familiar, está 
em crise e passa a ser “tão pouco temida quanto amada; não é combatida mas é esquecida ou 
tolerada por parte dos que não têm motivos nem energia para opor-lhe resistência.” (1973, p. 
144). 
Mas ainda assim o filho carrega entranhada a ideia de poder e de força incondicional 
simbolizados na figura paterna “e procura um pai mais forte, mais poderoso que o verdadeiro, 
que já não satisfaz a antiga imagem, enfim, um super-homem e super-pai como os que foram 
produzidos pelas ideologias totalitárias.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 145). 
Acrescentam os autores que os jovens, principalmente, tendem a se submeter a outras 
autoridades desde que estas lhes ofereçam proteção, satisfação narcisista, vantagens materiais e 
                                                            
4 “Os contos e as histórias da nossa infância são os primeiros elementos de uma aprendizagem que sinalizam que 
ser humano é também criar as histórias que simbolizam a nossa compreensão das coisas da vida. As 
experiências, de que falam as recordações-referências constitutivas das narrativas de formação, contam não o 
que a vida lhes ensinou, mas o que se aprendeu experencialmente nas circunstâncias da vida.” (JOSSO, 2004, p. 
39). 
INTRODUÇÃO 24 
 
condições de descarregar sobre os outros o sadismo decorrente da desorientação e desespero. 
“O pai é, inclusive, substituído por poderes coletivos, como a classe escolar, o “team” esportivo, 
o clube e por último, o Estado.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 145). 
A função protetora da família não se mantém dissociada de seu papel de instituição 
disciplinar, pois o mundo do qual ela tem que proteger seus membros é regido pela pressão que, 
“necessariamente, terá de transmiti-la a todas as suas instituições.” (HORKHEIMER; 
ADORNO, 1973, p. 147). 
O locus deste estudo é a família e a escola, e três professoras são colaboradoras desta 
pesquisa. É preciso esclarecer que o termo ‘colaboradoras’ foi empregado em substituição ao 
termo ‘sujeito’, por este não ser adequado, considerando o método de história oral. Isso porque, 
como orienta Meihy (2002, p. 14), “os entrevistados são as pessoas ouvidas em um projeto e 
devem ser reconhecidos como colaboradores.” Em alguns trechos foi utilizado o termo 
‘narradoras’ para as colaboradoras, deixando claro que se trata de pessoas que 
profissionalmente ocupam o cargo de professoras e que doaram suas histórias para a pesquisa, 
análise e publicação. 
A presente investigação está estruturada em três capítulos. O primeiro, intitulado “A 
trajetória da violência doméstica contra a criança”, descreve o objeto: a violência doméstica 
contra a criança em sua construção histórico-cultural. Persegue os trajetos desse fenômeno, 
destacando os pontos mais significativos. As seções se completam e são divididas em temas: a 
criança na família; a família e infância brasileira; as instituições públicas; o Estatuto da Criança 
e do Adolescente; e o reflexo da violência doméstica contra a criança na escola. No segundo 
capítulo é trabalhado o conceito de cultura como foi estudado pelos autores da Escola de 
Frankfurt, trazendo elementos da cultura-afirmativa, pseudocultura e o duplo caráter da cultura 
para a análise das narrativas das professoras-colaboradoras. No terceiro capítulo, é explicado o 
método, a pesquisa de campo, apresentado as histórias de vida que são analisadas em três 
categorias: a primeira categoria analisada refere-se à experiência específica da narradora com o 
fenômeno estudado; a segunda categoria é formada pelas contradições presentes nas narrativas; 
e a terceira é a análise dos elementos que se repetem nas três histórias. 
Nas considerações finais são retomados o objeto de pesquisa, os conceitos apresentados 
e os caminhos que a pesquisa demonstrou serem viáveis para novos estudos, abordando o que 
foi extraído como experiência e o que ainda deve ser ampliado de acordo com o conhecimento 
que este estudo nos permitiu alcançar. 
 25 
 
1 A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA 
NA SOCIEDADE BRASILEIRA 
 
 
Tango-lo-mango 
 
Era uma velha que tinha dez filhos 
Todos dez dentro de um fole; 
Deu o tango-lo-mango num deles, 
Desses dez, ficaram nove! 
 
E esses nove, meu bem, que ficaram 
Foram logo fazer biscoito 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses nove, ficaram oito! 
 
E esses oito, meu bem, que ficaram 
Foram brincar com o canivete 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses oito, ficaram sete! 
 
E esses sete, meu bem, que ficaram 
Foram fazer um bolo inglês 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses sete, ficaram seis! 
 
E esses seis, meu bem, que ficaram 
Foram à porta bater no trinco 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses seis, ficaram cinco! 
 
E esses cinco, meu bem, que ficaram 
Com o diabo fizeram um trato 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses cinco, ficaram quatro! 
 
E esses quatro, meu bem, que ficaram 
Foram aprender o português 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses quatro, ficaram três! 
 
E esses três, meu bem, que ficaram 
Foram ao campo buscar cem bois 
Deu o tango-lo-mango num deles 
Desses três, ficaram dois! 
 
Esses dois, meu bem, que ficaram 
Foram ao mato caçar anum 
Deu o tango-lo-mango num deles 
E desses dois só restou um! 
 
E esse um, meu bem, que ficou 
Foi brincar com lampião 
Deu o tango-lo-mango no tal 
E acabou-se a geração 
 
(MANFREDINI, 2001, p. 117) 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 26 
 
O ponto de partida deste capítulo é a infância. A infância é considerada, neste estudo, no 
âmbito de uma categoria cultural ligada ao tipo de relação social em um determinado período na 
vida do indivíduo. Por conta dessas relações sociais, observa-se que ser criança e ter infância 
são coisas diferentes, ainda que devessem caminhar paralelamente. A criança que não tem 
acesso às conquistas sociais, à formação cultural e aos direitos peculiares de sua fase, não tem 
infância. 
As ações das instituições sociais, como a família e a escola, são importantes, pois podem 
garantir ou negar a infância às crianças nas sociedades em que estão inseridas. Essas ações são 
modeladas pela forma como compreendem o mundo, ou seja: pela formação cultural. O 
primeiro contato social da criança acontece na família. Nela, o indivíduo aprende a praticidade 
da vida, na relação com o outro, como afirmam Horkheimer e Adorno (1973). Essa instituição 
inicia o homem na sociedade; seja ela a família biológica ou apenas institucional, o ser humano 
é incluído no contato com outros para o seu desenvolvimento social.Esses autores ressaltam 
ainda que na família o indivíduo, para evitar problemas, precisa reconhecer a razão e autoridade 
incontestáveis do pai. 
A família, tendo sido construída à imagem e semelhança da relação burguesa de 
autoridade, transmite à criança esse mesmo ideal, mobilizando a sua consciência na absorção 
dessa relação. Horkheimer e Adorno (1973, p. 139) observam que “a família convertera-se em 
agente da sociedade: era o veículo pelo qual os filhos aprendiam a adaptação social; formava os 
homens tal como eles tinham de ser para cumprir as tarefas impostas pelo sistema social.” A 
relação fora da família na sociedade capitalista ocorre com o uso dos códigos formais, da 
ampliação dos contatos com outros indivíduos, da formação para a participação no mundo do 
trabalho e contribuição social. Da necessidade de produção e sistematização desses 
conhecimentos, a escola na forma que conhecemos hoje foi instituída de acordo com o modelo 
da sociedade burguesa. 
Sendo parte de uma construção social condicionada pelos diferentes momentos 
históricos da sociedade e da cultura, como afirmou Candau (2000), a escola, tal como ainda 
está, é uma construção histórica recente. “Na América Latina os sistemas escolares se 
constituíram praticamente neste século” (CANDAU, 2000, p. 13), e se consolidaram com o 
objetivo de promover a apropriação dos conhecimentos considerados relevantes na formação, 
cidadania e acesso aos conhecimentos, que hoje se encontram em crise, seja pela dificuldade 
decorrente principalmente de fatores ligados à cultura que entravam a sua realização, seja pelo 
anacronismo da escola nos tempos presentes. Candau (2000) problematiza o grande impacto 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 27 
 
dos meios de comunicação de massa, as tecnologias como forma de construir conhecimento, a 
impregnação da cultura escolar que considera os alunos iguais e a dificuldade dessa instituição 
em enfrentar a pluralidade cultural. Estes, entre outros fatores, acabaram fazendo com que a 
função de proporcionar acesso ao conhecimento deixasse de ser exclusividade da escola. A 
autora ainda alerta que “[...] a cultura escolar está impregnada pela perspectiva do comum do 
aluno padrão, do ‘aqui todos são iguais’” (CANDAU, 2000, p. 14), ao mesmo tempo em que 
está sendo cada vez mais desafiada a enfrentar os problemas decorrentes das diferenças e da 
pluralidade cultural, que estão fazendo com que a escola seja chamada a ser um local de análise 
crítica, reflexiva, visão plural e histórica do conhecimento, da ciência, da tecnologia e das 
diferentes linguagens. Nesse sentido, toda a rigidez de que se reveste em geral a organização e a 
dinâmica pedagógica escolares, assim como o caráter monocultural da cultura escolar, precisam 
ser fortemente questionados. Gabriel (2000, p. 18) alerta que a escola também carrega 
atualmente mudanças na forma como é vista: “não somente como local de instrução mas 
também como ‘arena cultural’ onde se confrontam as diferentes forças sociais, econômicas, 
políticas e culturais em disputa pelo poder.” 
A autora ainda acrescenta que a marca da contemporaneidade, no debate atual, exige 
que se desloque o olhar para a função da escola, tanto em termos do papel desempenhado pela 
mesma como da significação atribuída aos termos ‘cultura’ e ‘escola’. 
A escola, como afirma Candau (2000), é uma instituição que faz parte da história de 
vida de muitas pessoas, mas 
 
nem sempre a lembrança do cotidiano escolar vivenciado é positivo. Entre 
luzes e sombras, momentos inesquecíveis e estruturantes de uma perspectiva 
de vida e ocasiões em que o fracasso, a frustração e o medo foram os aspectos 
dominantes, a dinâmica escolar é por nós incorporada no nível pessoal e 
social. (CANDAU, 2000, p. 9). 
 
Tratando do fenômeno da violência no cotidiano escolar, a autora acima citada afirma 
que a relação entre a violência e a escola não deve ser concebida como um processo que ocorre 
de fora para dentro, apesar de entender que a violência presente na sociedade penetra na escola 
afetando-a; isso porque a escola também produz violência: 
 
A violência não pode ser reduzida ao plano físico, mas, abarca o psíquico e 
moral. Talvez se possa afirmar que o que se especifica a violência é o 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 28 
 
desrespeito, a coisificação, a negação do outro, a violação dos direitos 
humanos. (CANDAU, p. 141, 2000). 
 
Os caminhos percorridos por uma pessoa podem ser diversos e grande parte dos 
indivíduos na sociedade brasileira contemporânea tem o contato familiar e escolar. No entanto 
nem sempre esses contatos são fáceis. Muitas crianças têm na infância um percurso bastante 
sofrido e nem sempre a norma legal consegue garantir que todas as crianças tenham uma família 
e uma escola protetoras, a infância vivida em sua plenitude e a garantia de direitos básicos e 
universais. Nem todas as famílias são necessariamente a representação de um apoio e segurança 
para as crianças. Ao contrário disso, muitas vezes, o medo, o terror, o abandono, a omissão, o 
cárcere privado e, até mesmo, o risco de morte estão presentes na vida de muitas crianças em 
seu cotidiano familiar; como representado na notícia que traz a história de uma jovem japonesa, 
hoje com 22 anos, que esteve presa por oito anos em poder da mãe. 
 
A jovem foi liberada há dois anos, mas o crime só foi revelado esta semana 
pelo jornal ‘Mainichi’, antes de ser confirmado pelas autoridades da cidade de 
Sapporo. A mãe começou a deter a filha ao fim da escola primária. A mãe, 
esquizofrênica, estava convencida de que a filha sofria na escola e em contato 
com o pai, informa a agência Jiji. Presa em casa, a adolescente compareceu ao 
colégio por apenas dois dias nos três anos seguintes. A jovem foi liberada em 
2006, quando a polícia foi alertada por um vizinho que havia escutado gritos 
na casa. Quando a vítima foi encontrada, conseguia apenas caminhar e se 
comunicava com dificuldade com as demais pessoas. O pai, separado da 
mulher, entrara em contato com os serviços de saúde em 2005 para informar 
que a filha provavelmente estava presa na casa da mãe, mas as autoridades não 
fizeram nada. O governo municipal de Sapporo pretende revisar o sistema de 
saúde para a possibilidade de novos casos similares. A vítima, que agora tem 
21 anos, vive em um local com atendimento especializado e voltou a estudar. 
(FRANCE PRESS, 2008). 
 
Quando a família representa perigo para a criança o seu desenvolvimento é marcado por 
situações que a degradam, por isso é importante compreender um pouco como se estabeleceu a 
formação social da família e como a criança foi se situando nessa instituição. 
 
 
 
 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 29 
 
1.1 A CRIANÇA NA FAMÍLIA 
 
 
 Estudos de Bruschini (2000), sobre a literatura marxista da família, mostram que esse 
tema foi integrado na teoria mais geral da sociedade. A autora traz em seu trabalho descrições 
das formas como se definiram os seres humanos, de acordo com a relação com os sistemas de 
produção e reprodução da vida imediata, incluindo roupas, alimentos, instrumentos, como 
também os próprios seres humanos que eram os meios de propagação da espécie. O início da 
família monogâmica se deu quando decidiram proteger a propriedade para garanti-la como 
herança para os seus descendentes, com isso foi necessário garantir a paternidade sobre as novas 
gerações, o que foi possível por meio da limitação da sexualidade da mulher. 
 Apoiando-se em Engels, Bruschini (2000) afirma que, com a evolução da sociedade, a 
riqueza que excedia era acumulada e transformada em propriedade particular das famílias. 
Como era predominantemente uma atribuição masculina a busca de alimentos, aos homens 
cabia a posse dos instrumentos de trabalho, dos quais ele era proprietário.Aumentando a 
riqueza em decorrência do trabalho e sendo o homem o dono dos instrumentos que geravam 
essa riqueza, este foi ocupando uma posição de destaque e poder na família. Com base nas 
condições econômicas, que surgiram da escravização da mulher, proclamou-se um conflito 
entre os sexos, que até então não existia na história. 
 Sobre a família, Marcuse (1981, p. 133) comenta que essa se apresentou primeiramente 
de forma espontânea, de relação natural, e foi se transformando até chegar à moderna 
monogamia. “[...] E, em virtude desse processo de diferenciação, cria uma área distinta que é a 
das relações privadas.” 
 Nesse aspecto, Marcuse (1981) e Bruschini (2000) concordam que a família não é 
estática, modificou-se na trajetória histórica e continua em processo dinâmico, comportando 
rupturas, estagnações e elementos ligados aos aspectos econômicos e culturais de cada povo e 
época. Como local de acolhimento da criança não é um fenômeno natural, mas construído 
socialmente e que teve muitas variações. 
 Müller (2007) observa que em muitas épocas a prática de infanticídio por adultos era 
justificada pela regulação de alimentos, bastardia, questões biológicas ou de comportamentos 
inadequados por parte das vítimas. A autora alerta que essa prática ocorria já na época de Cristo, 
tendo sido documentada na Bíblia. Também na antiga Roma, ou em tribos bárbaras, existiu essa 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 30 
 
prática em decorrência da escassez de alimentos ou por quaisquer motivos que fizessem os 
governantes desejarem a diminuição da população. Guerra (1984) aponta que a Bíblia é um 
instrumento que possui valiosos registros sobre a perseguição de crianças e do quanto esse 
fenômeno é antigo. Cita os casos dos meninos judeus jogados no rio por ordem do faraó, 
quando nasceu Moisés; a matança dos primogênitos egípcios do Êxodo; e a matança ordenada 
por Herodes, em perseguição a Jesus. No Império Romano, meninos e meninas da nobreza eram 
separados de seus lares aos 12 anos para ingressarem na vida pública e para aprimoramento 
cultural, e as meninas casavam-se aos 14 anos aproximadamente. Em Roma, o pátrio poder 
durava até a morte do pai, quando o filho o sucedia, como afirmam Faleiros e Faleiros (2007). 
Os autores ainda constatam, regressando aos estudos do passado, muitos indícios de que 
as crianças eram aterrorizadas, violentadas, assassinadas e abusadas sexualmente. Alertam que 
na Grécia Antiga havia o contraste da criança filha do cidadão, educada no gineceu com 
músicas e fábulas, com a tristeza do filho do escravo; e que em Esparta a educação da criança 
era marcada pela rigidez dos exercícios físicos até a exaustão e preparo para a guerra. 
O primeiro código jurídico que se tem conhecimento demonstra a vulnerabilidade das 
crianças às condições de violência na família nos tempos mais remotos: 
 
Exemplos são colhidos ao longo da história, assinalando-se que, no Oriente 
Antigo, o Código de Hamurábi (1728/1686 a.C.), em seu art. 192, previa o 
corte da língua do filho que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram 
seus pais, assim como a extração dos olhos do filho adotivo que aspirasse 
voltar à casa dos pais biológicos, afastando-se dos pais adotantes (art. 193). 
Punição severa era aplicada ao filho que batesse no pai. Segundo o Código de 
Hamurábi, a mão do filho, considerada o órgão agressor, era decepada (art. 
195). Em contrapartida, se um homem livre tivesse relações sexuais com sua 
filha, a pena aplicada ao pai limitava-se à sua expulsão da cidade (art. 154). 
Em Roma, a Lei das XII Tábuas, entre os anos 303 e 304, permitia ao pai 
matar o filho que nascesse disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos 
(Tábua Quarta). (DAY et al., 2003 apud BARROS, 2005, p. 70-71). 
 
Um breve relato de Panúncio-Pinto (2006), que trata do assunto da violência contra a 
criança sob a perspectiva da análise do discurso, reforça o entendimento de que o infanticídio 
e/ou o abandono eram práticas cotidianas desde a pré-história: 
 
Na antiguidade, o assassinato de crianças pode ser considerado como 
ocorrência diária: jogadas em rios, mortas de fome; aquelas que não eram 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 31 
 
perfeitas em forma e tamanho, choravam muito ou pouco, ou eram 
reconhecidas como aquelas que não cresciam bem, eram mortas; bebês do 
sexo feminino também eram expostos ou mortos. (PANÚNCIO-PINTO, 2006, 
p. 29). 
 
Bruschini (2000, p. 53), ao descrever as famílias aristocráticas do antigo Regime Feudal, 
afirma que o valor da privacidade não era conhecido como é nas formas mais recentes de 
famílias. A vida das crianças, “[...] não gravitava em torno dos pais, mas estava difundida 
através da vasta gama de figuras adultas.” 
Por outro lado, Müller (2007, p. 25) demonstra que em toda Europa Medieval, com 
alguma distinção de número e grau entre um país e outro, nos grupos domésticos da aristocracia 
o homem dominava tanto as mulheres como os filhos. “[...] Se houvesse uma falta do filho em 
relação ao seu pai, como uma injúria, por exemplo, este seria castigado legitimamente ou pelo 
pai ou pela justiça pública.” Destaca ainda que essa característica não era geral e que, entre as 
pessoas mais simples, os filhos reconheciam a autoridade dos pais não só na figura do homem. 
“[...] Assim acontece com a autoridade em geral, que para os filhos está unida na entidade do 
casal.” 
A família camponesa aparentava-se com a aristocrática, no aspecto da vida de pouca 
privacidade, como relata Bruschini, (2000, p. 53): 
 
A unidade básica da vida camponesa não era a família conjugal, mas a aldeia. 
Casamento, relações entre marido e mulher e entre pais e filhos, tudo era 
compartilhado por todos os aldeões, pois a privacidade era desconhecida e sem 
valor. 
 
A família proletária, dos séculos XVIII e XIX, era caracterizada pela precariedade 
material, então se fazia necessário o trabalho de todos os seus membros, inclusive das crianças, 
para a garantia da sobrevivência. As crianças eram socializadas nas fábricas, afirmando desde 
muito cedo sua independência de cuidados e zelo dos pais, pois, ao contrário das mulheres 
burguesas, as mães proletárias conciliavam os afazeres domésticos com os serviços nas fábricas 
e não possuíam tempo para dedicar às crianças. Essa independência não deve ser entendida 
como uma forma de emancipação, mas sim uma estratégia precária de sobrevivência com os 
recursos disponíveis e possíveis da época. 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 32 
 
 Com a emergência das classes trabalhadoras, advindas também das primeiras conquistas 
trabalhistas, as burguesias filantrópicas esforçam-se para integrar a camada subalterna ao 
modelo de moralidade familiar burguês. 
O modelo familiar, como conhecido atualmente, consolidou-se por volta do século 
XVIII. Conforme dados históricos, esse modelo vigora desde o período pré-industrial, em que 
seus membros trabalhavam em casa e no campo, unidos em torno da produção, aos dias atuais, 
passando pela Revolução Industrial, marcada pela venda da força de trabalho e a família como 
unidade de consumo e privatização: “[...] a família extensa cede importância à nuclear e, dentro 
do casamento, os papéis sexuais se tornam menos segredados.” Aos poucos a casa passa a ser 
espaço de privacidade de seus membros, com a crescente interferência do Estado no espaço 
social, “[...] antes entregue às comunidades [...]” (BRUSCHINI, 2000, p. 51-52). 
Com isso, a vida cotidiana sofreu mudanças com as novas posturas em relação ao corpo, 
e o gosto pelo isolamento tornou a família e a casa, de unidade econômica, num lugar de 
refúgio, afetividade, atenção à infância, recolhimento e proteção do indivíduo, segregando-se do 
espaço público. O papel do pai passou a ser o de respeito e de inspiração moral na sociedade.Com relação a essas mudanças, Costa (2004) adverte que representaram, além de outras coisas, 
mais uma forma de repressão e controle do indivíduo, em que a filantropia era uma manobra 
dos laços de solidariedade familiar, pois quando preciso seriam usados na represália aos 
indivíduos insubordinados. 
Sobre a infância, os estudos de Ariès (1981) acerca da iconografia dos séculos passados 
demonstram que a infância foi descoberta. E esse fenômeno aconteceu gradativamente entre os 
nobres na Europa, na Idade Moderna, pois “nada no traje medieval separava a criança do 
adulto.” (ARIÈS, 1981, p. 70). O autor embasa seus argumentos nos signos dos trajes utilizados 
na época e das obras de artes que caracterizavam as crianças como homens adultos em 
miniatura. Esse autor, ao descrever a cena do Evangelho em que Jesus pede: vinde a mim as 
criancinhas, comenta que “[...] o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros 
homens, sem nenhuma das características da infância: eles foram simplesmente reduzidos numa 
escala menor.” (ARIÈS, 1981, p. 50). 
Ariès (1981) constata em seu estudo que neste mundo não havia lugar para a infância, 
pois era calcada nos valores dos adultos, produção cultural e na vida do trabalho, sendo assim 
não se reconhecia na criança o ser humano. Seria ela um “projeto de gente”. Esse estudo se 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 33 
 
refere à Idade Média5, época em que a sociedade brasileira estava em sua fase embrionária e o 
conceito de civilização era baseado na forma de vida da Europa. 
A infância como etapa do ser em desenvolvimento é noção recente. A criança, na Idade 
Média, só viria a ter uma identidade própria no momento em que fosse capaz de fazer as coisas 
semelhantes àquelas realizadas por adultos. Sobre esse assunto, Müller (2007) observa que a 
questão do sentimento de infância nos primeiros séculos não era falta de afeto, mas sim a falta 
de consciência da infância como a que se tem hoje, ou pelo menos como a que se espera que 
exista atualmente. 
Muitas crianças morriam não alcançando a vida adulta e o sentimento dos pais com 
relação a essas mortes era de indiferença: “[...] vemos uma vizinha, mulher de um relator, 
tranqüilizar assim uma mulher inquieta, mãe de cinco ‘pestes’, e que acabara de dar à luz: 
‘Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade, e quem sabe 
todos’.” (ARIÈS, 1981, p. 56-57). A perda de uma criança era um acontecimento corrente, 
portanto não se apegavam a elas da forma como ocorre atualmente, o que explica “algumas 
palavras que chocam nossa sensibilidade moderna, como estas de Montaigne: Perdi dois ou três 
filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero.” (ARIÈS, 1981, p. 56-57). 
Müller (2007) apresenta, em contrapartida, exemplos de iconografia da época de mães 
chorando a morte de seus filhos, colocando em dúvida a generalização da indiferença com a 
morte das crianças, e acrescenta que a característica mais forte na vida da criança, do século XII 
ao século XV, não era a reação com relação a sua morte, mas sim a forte possibilidade dessa 
morte: “Estando viva, havia mais perspectiva de morrer do que de viver.” (MÜLLER, 2007, p. 
31). Talvez tudo isso venha a justificar, de certo modo, a reação dos adultos que se 
acostumaram a não sobrevida da maior parte das crianças e assim reagiam banalizando a morte, 
que ocorria não só em decorrência das pestes, pobreza material, más condições de higiene, “[...] 
mas sim porque muitos adultos as matavam explicitamente, apesar da doutrina cristã estar 
fazendo certo movimento de preservação da vida infantil [...]” (MÜLLER, 2007, p. 31). 
Na Idade Média, os códigos de conduta da Igreja Católica prevaleciam, pois diante da 
lei o crime ainda não estava efetivamente estabelecido. Müller (2007, p. 33) registra que a 
valorização de Cristo criança, presente nas imagens da época, interferiu na valorização da 
criança e na defesa de sua vida, mas acrescenta que há divergências entre autores, uma vez que 
                                                            
5 O período da Idade Média foi tradicionalmente delimitado com ênfase em eventos políticos. Nesses termos, 
teria-se iniciado com a desintegração do Império Romano do Ocidente, no século V (em 476 d.C.), e terminado 
com o fim do Império Romano do Oriente, com a Queda de Constantinopla, no século XV (em 1453 d.C.). 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 34 
 
“[...] a Igreja cristã condena o infanticídio, mas se lhes atribui à origem de qualquer fenômeno 
sobrenatural e as denominam endemoninhadas, e como estavam possuídas pelo demônio e 
outros espíritos infernais, submetem-nas a práticas exorcistas.” 
A morte de crianças, a troca ou o seu abandono, a ausência de sentimento ou a 
necessidade de valorização do ser humano durante a infância, enfim, a violência no cotidiano é 
contada, ou cantada, por crianças e adultos. Em variadas culturas é possível encontrar trovas, 
cantigas, contos que apontam a violência contra a criança. Essas expressões atravessaram 
séculos, reproduzidas oralmente por meio de gerações, e até os dias atuais muitas vezes 
carregam despretensiosamente um registro que confirma a historiografia, como pode ser 
observado na cantiga, “De marre decê”, de uma brincadeira6: 
 
Eu sou pobre, pobre, pobre 
De marré, marré, marré 
Eu sou pobre, pobre, pobre 
De marré decê 
 
Eu sou rica, rica, rica 
De marré, marré, marré 
Eu sou rica, rica, rica 
De marré decê 
 
Eu queria uma de vossas filhas 
De marré, marré, marré 
Eu queria uma de vossas filhas 
De marré, decê 
 
Escolhei a qual quiser 
De marré, marré, marré 
Escolhei a qual quiser 
De marré decê 
 
Eu queria a (nome da menina) 
De marré, marré, marré 
Eu queria (nome da menina) 
De marré decê 
 
                                                            
6 “A brincadeira chama-se ‘Jogo de Rico e Pobre’ e procede da Europa Nórdica. Nela, originalmente, duas linhas 
de meninas eram postas frente a frente. As que estavam na dianteira representavam a ‘mãe pobre’ e a ‘mãe rica’. 
Esta cantava e movimentava-se para frente e para trás. Após, alternavam a função com a primeira. Ao fim, 
trocavam de posição e o jogo recomeçava. [...] Estes jogos e cantos eram praticados pelos campesinos, gente 
rural. Para eles, um ofício era o bastante, porque almejavam com o trabalho (e o casamento) uma vida natural, 
feliz e simples. O refrão é sempre derivado da palavra Maria. Refere-se à Virgem Maria, mãe de Jesus.” 
(MEDINA, 2009). 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 35 
 
Que ofício dás a ela? 
De marré, marré, marré 
Que ofício dás a ela? 
De marré decê 
 
Dou o ofício de (nome do ofício) 
De marré, marré, marré 
Dou o ofício de (nome do ofício) 
De marré decê 
 
Este ofício me agrada (ou não) 
De marré, marré, marré 
Este ofício me agrada (ou não) 
De marré decê 
 
Lá se foi a (nome da menina) 
De marré, marré, marré 
Lá se foi a (nome da menina) 
De marré decê 
 
Eu de pobre fiquei rica 
De marré, marré, marré 
Eu de rica fiquei pobre 
De marré decê 
(VALENTE, 1979) 
 
Sobre as relações sociais, Müller demonstra que a rua era muito significativa, pois era 
“[...] o lugar onde se vivia intensamente, brincava-se, faziam-se festas, trabalhava-se, 
conversava-se, descansava-se, faziam-se espetáculos e tantas outras atividades mais, que hoje 
são do âmbito privado.” (MÜLLER, 2007, p. 22). O cenário brasileiro é aqui pensado a partir 
dos anos da colonização e é observado principalmente sob o aspecto da formação cultural. 
A sociedade brasileira carrega em seu cerne as concepções trazidas da Europa pela 
colonização lusitana; as características dos homens que aqui viviam em diversas nações, antes 
da presença do português, e do homem que foi trazido na condição perversa de escravo; e as 
influências culturais das imigraçõesque ocorreram em épocas diversas, as quais foram e ainda 
irão se ressignificar na formação da própria cultura. 
 
 
 
 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 36 
 
1.2 A FAMÍLIA E A INFÂNCIA BRASILEIRA 
 
 
Ribeiro (1997) demonstra que o núcleo fundamental que assentou a estrutura econômica 
do Brasil foi marcado pela exploração das riquezas naturais, pela desvalorização dos povos 
nativos, pelo espírito aventureiro e desregrado dos colonos, e pela exploração da mão de obra 
escrava. A escravidão surgiu em anos que antecederam a Idade Contemporânea pelas potências 
cristãs, das quais fazia parte Portugal, que mantinham o monopólio do tráfico de forma tão 
brutal quanto à barbárie do período Antigo Medieval. 
 
Tal prática ocorria abertamente em contraste com a doutrina de liberdade, 
igualdade, natural de todos os homens da tradição cristã secularizada, trazendo 
o racismo como um novo ‘produto’ do etnocentrismo e do cientificismo 
europeu que a Antiguidade não conheceu. (MACEDO, 2007, p. 60). 
 
Nesse cenário e sob as influências que foram descritas na seção anterior, gradativamente 
foi se formando a família e a infância nos moldes brasileiros. É bem verdade que “a política de 
Portugal foi decisiva na organização da família colonial brasileira”, como aponta Costa (2004, 
p. 36), ao demonstrar como se formou o poder familiar latifundiário na Colônia, que “[...] em 
breve, competia com o próprio poder da metrópole.” A potência da família colonial não 
demorou muito tempo para subjugar todo o território: 
 
No Brasil Colônia a família passou a ser sinônimo de organização familiar 
latifundiária. Toda a formação social que pudesse fraturar o mito de sua 
universalidade era sistematicamente aniquilada. A família escrava foi 
destruída pela violência física e a dos homens livres pobres, pela corrupção, 
pelo favor, e pelo clientelismo. (COSTA, 2004, p. 37). 
 
Os elementos presentes no Brasil Colônia eram a família patriarcal preservando o 
latifúndio, em contrapartida a uma grande massa de escravos e despossuídos. Eram duas partes 
que se conflitavam em decorrência da tentativa de manter o poder. Esses conflitos se estendiam 
para outras categorias, não só entre os grupos dominantes. 
Para preservar o poder do latifúndio, a cultura da família patriarcal no Brasil era 
marcada pelo autoritarismo do senhor sobre os escravos, esposa e filhos, e baseada na 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 37 
 
propriedade privada. As uniões monogâmicas eram exclusivas às mulheres, pois estas geravam 
os herdeiros aos seus maridos. Assim, “[...] para os homens ela não passa, afinal de contas, da 
mãe de seus filhos legítimos, seus herdeiros.” (RIBEIRO, 1997, p. 47). 
Para Costa (2004, p. 37), as famílias tinham poucas chances de criarem raízes sólidas, 
diante das irregularidades dos costumes sexuais, escravidão e insegurança econômica: 
“oscilavam da posse física do meio urbano, até o controle biológico dos subordinados, pela 
assimilação dos bastardos ao exército da casa-grande.” As relações familiares eram 
contraditórias e desiguais entre classes e gêneros. Não condiziam exatamente com as famílias 
da Europa do mesmo século, mas utilizavam da estratégia mercantilista que interessava à 
metrópole pelo lucro fácil e sem investimentos. A economia brasileira dessa época dependia da 
exportação e dos escravos, portanto conclui-se que eram considerados mercadorias. 
Como em Portugal já vinha sendo utilizado o trabalho escravo, por meio da exploração 
do africano negro, desde o século XV, esses escravos passaram a ser trazidos ao Brasil como 
instrumento de mão de obra na produção agrícola de produtos que seriam comercializados na 
Europa. “[...] Do fator econômico decorreria o tipo de trabalho que estas duas outras raças 
teriam para se enquadrar na oposição da raça dominante.” (RIBEIRO, 1997, p. 20). 
Desses trechos, é possível extrair que o fenômeno da mestiçagem se deu pela imposição 
da raça e gênero dominantes às raças e gêneros dominados, com isso a base da pirâmide social 
no Brasil Colônia era formada por mulheres/meninas negras e índias. A mulher indígena, como 
analisa Ribeiro (1997), ainda possuía o status de ser nativa da terra e, assim, conservava em 
melhor condição a sua subjetividade, pois tinha menos degradadas a liberdade e a identidade, o 
que não acontecia com as mulheres negras. 
A autora destaca também que em grande parte do histórico colonial não existia no 
território brasileiro a mulher branca, na medida em que a imigração se fez, senão raramente, de 
homens isolados que tentavam uma aventura, deixando a família na metrópole à espera de uma 
definição do chefe que emigrou: 
 
[...] Espera que se prolonga e não raro se eterniza, porque nosso colono, 
mesmo estabilizado, acabará preferindo a facilidade de costumes que lhes 
proporciona mulheres submissas de raças dominadas que se encontram aqui, 
às restrições que a família lhe trará. E quando não, já estará tão habituado a tal 
vida, que o freio da mulher e dos filhos não atuará nele, senão muito pouco. 
(RIBEIRO, 1997, p. 22). 
 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 38 
 
Ribeiro (1997) demonstra que a vinda da mulher branca para o território brasileiro 
retardou-se devido às dificuldades aqui vividas pelos colonos. Esses obstáculos advinham 
principalmente de dois fatores: primeiro porque aqui era uma região de costumes, valores e 
crenças considerados selvagens, e, sendo assim, não era um atrativo às mulheres acostumadas à 
vida da metrópole; o segundo está relacionado ao fato de que os homens vindos ao Brasil 
obtinham vantagens da condição das mulheres que aqui encontravam, uma vez que, por serem 
das raças e condições sociais consideradas inferiores, eram mais submissas. 
Sendo assim, a miscigenação foi constituída principalmente de homens brancos com 
mulheres negras e índias, e, como a mulher sofria todos os tipos de discriminação de raças, 
gênero e classes, as crianças geradas dessas relações eram consideradas filhos ilegítimos, por 
não advirem de um relacionamento legalmente constituído, conforme exigências religiosas e 
políticas da Europa. 
Frequentemente essas crianças eram vítimas da discriminação e do abandono. Um 
documento histórico, citado por Ribeiro (1997), traz informações de que prevalecia na época a 
prática de padres doutrinadores, como Nóbrega, que convertiam homens a viver de acordo com 
os costumes cristãos, casarem-se e constituírem famílias. No entanto, o ambiente era 
contraditório. À raça branca, que era a dominadora do território brasileiro, pertenciam os 
indivíduos de sexos masculinos, enquanto as raças dominadas eram as indígenas e negras, às 
quais pertenciam também as mulheres da Colônia em sua maioria. 
Como os matrimônios só ocorriam entre pessoas da mesma raça e cultura, e dentro dos 
parâmetros europeus, a autora destaca que a vinda da mulher branca ao Brasil ocorreu no 
momento em que se percebeu a necessidade da formação da família nos moldes da cultura 
europeia, para administrar e preservar o poder do latifúndio, que fornecia ao comércio europeu 
gêneros tropicais e minerais, extremamente valorizados. 
 
Em virtude disso, era preciso mandar trazer as mulheres brancas de Portugal, 
mesmo que fossem enjeitadas ou ‘erradas’ lá. Aqui elas seriam responsáveis 
pela perpetuação do domínio europeu, através da procriação da raça branca. 
Não importava se na Metrópole fossem órfãs, ladras, prostitutas, ou de 
qualquer procedência social; bastava que fossem brancas e européias. 
(RIBEIRO, 1997, p. 20). 
 
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 39 
 
A família nos moldes dos povos nativos e dos povos africanos não era incentivada, 
quando não era proibida por seus senhores, pois quando essas pessoas chegavam da África eram 
separados do vínculo

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