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18Gadamer e a Filosofia da Educação

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Gadamer e a Filosofia da Educação 
	Pádraig Hogan 
	Universidade Nacional da Irlanda - Maynooth
	Trad. Silvia Moreira Leite Graça
	
 
"Não são tanto nossos julgamentos como nossos preconceitos que constituem nosso ser", escreve Hans-Georg Gadamer no prefácio de uma coleção de seus ensaios intitulada hermanêutica filosófica (1976). A reivindicação é provocante e anuncia um dos mais memoráveis temas dos escritos de Gadamer. Também procura, em direções novas, uma nota nova na filosofia ocidental do século vinte, originalmente introduzida por Heidegger, e abre alguns caminhos promissores para como o aprender e o ensinar devem ser pensados e levados a cabo. 
Para um filósofo cuja preocupação principal tem sido investigar as características inevitáveis da compreensão humana e os tipos de encontros com heranças de aprendizado pelas quais o aprender acontece, é surpreendente que Gadamer tenha escrito muito pouco especificamente sobre educação. Uma carreira filosófica ativa, por mais de sete décadas, viu (até 1996) a publicação de dezesseis livros e mais de 350 artigos, grande parte deles cada vez mais traduzidos em inglês, italiano, francês e outros idiomas. Cinco ensaios curtos seus sobre ensino superior - principalmente na Alemanha - foram ajuntados, em inglês, como a primeira parte da coleção intitulada "Hans-Georg Gadamer em Educação, Poesia, e História - Hermenêutica Aplicada" (1992). Além disso, Gadamer fez algumas referências à própria educação em várias academias na coleção autobiográfica de ensaios curtos "Aprendizados Filosóficos" (1985). Porém, aparte esses escritos ocasionais, educação não se caracteriza como um tópico no trabalho de Gadamer. Em temas como os propósitos defensávéis do ensino, o aparecimento da identidade da pessoa em experiências de educação, ou em assuntos de autoridade e justiça em educação, os escritos dele fazem poucas referências explícitas. Embora eles estejam cheios de implicações bastante radicais para preocupações como estas, nas quais a conduta prática da educação está interessada. 
Este radicalismo foi negligenciado por alguns críticos que vêem, nos recorrentes encontros de Gadamer com a tradição, as preocupações de um conservador (por exemplo Terry Eagleton, John D. Caputo). A dimensão radical do trabalho de Gadamer não é nada parecida com uma visão política ou social aberta, como por exemplo poderia ser dito dos trabalhos de Paulo Freire, ou mesmo John Dewey. Está mais na ênfase de Gadamer em investigar o que a maioria da filosofia Ocidental desde Platão negligenciou ou mal formulou, isto é: o que nos acontece, acima e abaixo de nossa vontade e ação, quando qualquer tipo de compreensão acontece (T&M p.xvi). As conseqüências das investigações de Gadamer sobre o que invariavelmente acontece além de nosso suporte epistemólogico, como ele seja, são fatais tanto para a mais metódica epistemologia como para a mais compreensiva metafísica. As pretensões ao conhecimento abrangente da última e da anterior em estabelecer fundamentos seguros para certeza são, no curso das pesquisas de Gadamer, feitas para destacar algo mais primordial na experiência da compreensão humana: a interpretação, as pré-concepções, até mesmo os preconceitos. No argumento de Gadamer, reflexão filosófica pode nos ajudar a dar-mo-nos conta, em maior ou menor grau, destes componentes predispostos da compreensão humana. Tal reflexão pode disciplinar ou re-orientar estas predisposições. Mas, ele insiste, preconcepções interpretativas sempre permanecem em jogo e a reflexão não pode afastá-los em nome de razão autônoma, ou certeza, ou qualquer avaliação abrangente. Minando, então, reivindicações metafísicas e epistemológicas, a avaliação de Gadamer da compreensão humana – que ele chama de hermenêutica filosófica - leva à implicação forte de que ela, longe de ser, no final das contas, capaz de autonomia racional, permanece irrevogavelmente enviesada de alguma maneira. 
Uma conclusão como essa parece, à primeira vista, marcar uma vitória para o subjectivismo, ou mesmo para o relativismo. Estas seriam notícias negras para a reivindicação da educação como um empreendimento iluminando e racionalmente defensável. Mas isso somente na visão de quem a racionalidade esteja subjulgada à um ponto de vista - ainda comum em círculos de intelectual Ocidentais - que considera a firmeza dos fundamentos para a certeza como um objetivo próprio da investigação racional. 
Uma tal posição racionalista, incluindo suas variantes positivistas e fenomenológicas disto, é sujeitada à críticas diligentes em argumentos de Gadamer. Comprometidos com uma mesma gama extensiva de trabalhos filosóficos, estes argumentos buscam iluminar algumas limitações inerentes à compreensão humana. Gadamer é agudo em ilustrar como tais limitações não só levaram casos particulares do aprendizado humano à pegar um caminho errado, mas tradições inteiras à fazer o mesmo. Se essas pesquisas de Gadamer podem indicar caminhos mais promissores de ensino e aprendizado e suas buscas defensáveis, se também caminhos mais modesto que esses que buscam certeza, então, a acusação do relativismo é revelada como fora de lugar, como a fé no racionalismo de qualquer filosofia que poderia desejar apoiá-la. 
Este breve esboço deveria ajudar esclarecer, no resumo de alguns dos argumentos de Gadamer que se seguem aqui, os pontos principais em debate entre as direções novas marcadas pelos seus esforços filosóficos e as correntes mais tradicionais da filosofia Ocidental. Tendo em foco essas partes da filosofia de Gadamer que são mais pertinentes às preocupações educacionais, podem ser identificados seis temas inter-relacionados. Estes serão achados primeiramente no seu principal trabalho, Verdade e Método (alemão-1960 e em inglês-1976), mas eles foram refinados e se expandidos em seus escritos subseqüentes. Os seis temas - que não fazem nenhuma reivindicação quanto a ser uma pesquisa compreensível - são: a primazia do jogo (Spiel) na experiência do entendimento; o princípio de "história efetiva" (Wirkungsgeschichte); o predispondo do pensamento através da linguagem; a pluralidade da tradição; a "fusão de horizontes" (Horizontverschmelzung); o "diálogo que nós somos". 
Nos seus esforços para ilustrar a primazia do jogo na experiência humana, Gadamer contrasta esta primazia com aquela determinada pela epistemologia para a consciência crítica do indivíduo. O jogador - ou participante se a palavra "jogador" soa muito trivial - em um jogo, um debate, uma dança, é sempre envolvido em algo mais que aquilo de que ele está consciente. Enquanto está contribuindo, conscientemente, para jogo, até mesmo com iniciativas pessoais decisivas, o jogador também está sendo joguete do fluxo incessante das ações dos outros: pelos incontáveis movimentos, reversões, antecipações, restrições, surpresas, nuances de significados, etc. que animam o jogo e dão a ele seu caráter sempre emergente como uma interação. Essa interação pressupõe um contexto anterior - ou contextos - de suposições, atribuições, capacidades e assim por diante, que dá às ações dos participantes inteligibilidade e significação aos seus próprios olhos, se não coerência, aos olhos de todos. O centro do argumento de Gadamer é que, em nosso entendimento de todos os compromissos humanos propositais, o que podemos tentar alcançar , é a posição de um participante extremamente alerta, diferentemente de um observador extremamente desprendido, de um analista objetivo. (Por "nosso", ele quer dizer da humanidade). A posição de observador destacado, apesar de seu apelo metodológico, pode dar excessivas, até mesmo ilusórias, pretensões para o ato de criticar. 
Toda a crítica, argumenta Gadamer, pertence à uma interação social maior e a um fluxo histórico daquilo que está sendo criticado. Essa é uma das implicações mais importantes do segundo dos seis temas, o princípio de Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein, consciência dos efeitos da historicidade humana. A dupla importância desse princípio pode ser posta, grosseiramente, como se segue: primeiramente,a percepção dos efeitos da história nos contextos onde o entendimento humano tem lugar, depois, a percepção de nosso próprio entendimento sendo afetado por esses efeitos(W&M p.284ff., T&M p.267ff.). Isso tem consequências moderadoras para a filosofia como crítica racional. Não priva a crítica de suas percepções ou de sua finalidade, mas priva-a de qualquer reivindicação à uma palavra final autorizada. A filosofia crítica - especialmente como epistemologia – presumiu confiantemente que pode de alguma maneira suportar contextos que predispõem os esforços humanos para o entendimento, que pode expor os defeitos de tais contextos e pode ter sucesso em superá-los. Esta sugestão ainda se apresenta freqüentemente no discurso filosófico como algo digno das melhores tentativas de filosofia. 
O terceiro dos temas de Gadamer escolhido para este resumo, a predisposição do pensamento, ele mesmo, através da linguagem, localiza esta questão. É primariamente na linguagem que a experiência humana de um mundo é expressada e é entendida. Mas aprender um idioma por conta própria, mostra Gadamer, é se tornar um participante em um aprendizado informal onde uma fluência crescente em expressões e formas de dizer é inseparavelmente unida à internalização de certas opiniões e convicções em lugar de outras. Algumas analogias com a filosofia posterior de Wittgenstein ficam evidentes aqui, onde linguagem é compreendida não como um jogo de ferramentas ser dominado e então empregado à vontade, mas como algo que permanece sempre ativo formando nosso pensamento e ação, como também nosso discurso. Os efeitos da história, portanto, penetram a linguagem e seu uso da mesma maneira como, exaustivamente, influenciam a consciência, ou racionalidade, de indivíduos. 
Disso, alguém poderia concluir que apesar da aura de perspicácia dominante e do domínio conceitual associados à análise filosófica e crítica, o papel que a linguagem desempenha no condicionamento da experiência humana permanece crucial; molda heranças inteiras de aprendizado sendo, talvez, a coisa mais significante sobre a linguagem mesma. Um campeão da autonomia da razão pode contudo não conseguir escapar da mais suave das pressuposições que condicionam pensamento e articulação, mesmo até aprisionar suas melhores possibilidades. Os perigos de tal prisão cultural podem, às vezes, estar em parte diferente daquela onde a razão crítica é inclinada a procurar por eles. Por exemplo, da perspectiva do Iluminismo liberal tais perigos são vistos à espreitar o lugar em que aprendizagem e educação são marcadas por uma uniformidade investida da autoridade de longa tradição. Mas estes perigos são ligeiramente menos reais onde a uniformidade ancestral foi há muito tempo superada; onde uma diversidade de entendimento veio a ser diferenciada e caracterizada como uma discrepante pluralidade de jogos de linguagem. Neste exemplo posterior, tradições diferentes podem atuar como muitas uniformidades para seus próprios adeptos, cada uma tendo sua verdade para seus próprios partidários. Isto introduz o quarto dos seis temas: a pluralidade da tradição. 
Contra tanto as mais velhas, quanto as mais recentes uniformidades, Gadamer argumenta que a tradição é impropriamente compreendida por seus partidários como o que já possui sua própria verdade. Principalmente, ele continua, a real significação de qualquer tradição, ou mais precisamente, qualquer incorporação particular de uma tradição, vive na reivindicação à verdade de um tipo pouco conhecido que ela dirige ao estudante, o recém-chegado. Assim este não é principalmente um evento de transmissão e aquiescência. Antes é uma interação sempre significativa com possibilidades de novos entendimentos, confrontações, enganos, transformações, e assim por diante. ("Tradição" é só uma aproximação da palavra de Gadamer Überlieferung que significa tudo que jaz acima de nós vindo do passado). 
Passando agora ao quinto tema, um encontro genuíno com a tradição envolve o que Gadamer chama "uma fusão de horizontes" (Horizontverschmelzung); por um lado, o horizonte de entendimento que o estudante traz com ele para o encontro e, por outro, o horizonte daquele que dentro da tradição se dirige ao estudante neste encontro. "Fusão" (Verschmelzung) não é talvez a melhor palavra para transmitir o que é significado aqui. O que Gadamer tem em mente não é uma fusão na qual todas as tensões são postas para descansar, mas um atento ir e vir entre o estudante e o outro, que lhe é estranho e que dialoga com ele. É uma interação na qual tensões são descobertas e trazidas para o primeiro plano em vez de tratadas superficialmente ou despresadas(W&M, p.290, T&M, p.273). Nessa interação uma particular incorporação de uma tradição - científica, literária, religiosa etc. - é trazida para uma articulação ativa, mas esta articulação e suas próprias pressuposições também podem ser interrogadas e re-interrogadas pelo estudante. O estudante se torna, neste evento, um participante mais fluente e mais perspicaz, distinto de um "especialista" ou uma "autoridade" de em qualquer coisa. O fato de que a compreensão do estudante pode ser transformada em tais encontros não faz, desse, um evento de conformidade mais que o faz um evento de domínio de algo que foi trazido, agora, sob o controle manipulativo do estudante. Antes, permitir tradição em alguma de suas manifestações plenas também é reconhecer que aquela manifestação, como a compreensão própria de cada um, está sujeita a limitações e deformações. Como uma descrição do acontecimento do entendimento humano, a "fusão de horizontes" busca iluminar este acontecimento como algo que sempre é vulnerável a erros, certamente incluindo a institutionalização de tais erros. A "fusão" é, ela mesma, uma ativa busca de uma compreensão mais inclusiva e autocrítica, distinta de qualquer compreensão completa. 
O último dos seis temas, "o diálogo que nós somos" (Das Gespräch das wir sind), pode ser visto como um corolário natural dos outros cinco. Se racionalidade não for apropriadamente entendida como algo assegurado por uma razão autônoma, mas como um jogo continuado de influências que buscam uma coerência mais inclusiva; se estas influências, elas próprias, suportam as marcas de uma história efetiva que predispõem pensamento e linguagem mas além disso torna ambos fluidos; se tradição não é compreendida como a força opressiva do que já foi institucionalizada e que agora busca obediência, mas como a pluralidade abundante do que está além de nós, em nossas heranças novas e velhas; se o entendimento humano for apropriadamente concebido como uma atenta interação entre horizontes culturais que são ativamente, ainda que diferentemente, predispostos; então tudo isto sugestiona algo crucial sobre a capacidade de entendimento da raça humana, ou mais precisamente, sobre predisposições humanas para entendimento. A sugestão é capturada pela frase de Gadamer "o diálogo que nós somos"- algo que, ao mesmo tempo, empiria e aspiração.
Pode ser vista, agora apropriadamente, a educação das disposições humanas para o entender envolvendo várias ênfases que são comumente ignoradas ou sufocadas. A primeira delas é uma ênfase em que ensinar e aprender são muito mais um assunto de interação com claras e invisíveis conseqüências que um assunto de transmissão de conteúdo cognitivo e de "valores". A segunda é uma ênfase na atenção para com o desconhecido, naquele que transmite experiências quando de uma interação, com qualquer das vozes da tradição, está em operação. A terceira é uma ênfase em ganhar em cada caso a fluência que habilita a um informado e crítico questionamento da reivindicação à verdade, contido em tal diálogo. A quarta é uma ênfase em mudanças progressivas, ou até mesmo decisivas no auto entendimento, formadas tanto por uma atitude de autocrítica como por uma capacidade para crítica. Tomados juntos, estes pontos ilustram de um modo preliminar o que Gadamer quer dizer por "o diálogo que nós somos" e sugere algo do seu teor e significado educacional. (Também veja o prefáciode "Hermenêutica e Experiência Educacional). 
 Enciclopédia de Filosofia da Educação
05/03/2000

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