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MATERIAL DIDÁTICO HISTORIOGRAFIA I E II CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 2.861 DO DIA 13/09/2004 0800 283 8380 www.portalprominas .com.br 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 3 UNIDADE 1 – OS RECORTES DA HISTORIOGRAFIA ......... .................................... 6 UNIDADE 2 – A HISTORIOGRAFIA NA PRÉ-HISTÓRIA E IDAD E MÉDIA ............ 13 2.1 Métodos e fontes ............................................................................................. 19 UNIDADE 3 – HISTORIOGRAFIA NO RENASCIMENTO – UMA RE VIRAVOLTA NAS RELAÇÕES HOMEM-DEUS ........................... ................................................. 23 UNIDADE 4 – POSITIVISMO .................................................................................... 26 UNIDADE 5 – MATERIALISMO HISTÓRICO ................ ........................................... 33 UNIDADE 6 – ESCOLA DOS ANNALES .................... ............................................. 37 6.1 Primeira geração – Bloch e Febvre ................................................................. 38 6.2 Segunda geração – Braudel ............................................................................ 42 6.3 Terceira geração – Le Goff e outros ................................................................ 42 UNIDADE 7 – A HISTORIOGRAFIA NA CONTEMPORANEIDADE – A ERA DIGITAL ........................................... ......................................................................... 49 UNIDADE 8 – HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA ............. ........................................ 52 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 58 3 INTRODUÇÃO A história tem como objeto o homem no tempo, ou seja, estuda-se, analisa- se, reflete-se sobre os seus feitos ao longo de sua existência. Por ser uma ciência, a história se submete ao método científico. A História é o estudo do passado, portanto, esta ciência humana é de fundamental importância para entendermos o que fomos e o que somos. A História tem como objetivo principal analisar e interpretar as ações dos seres humanos no tempo e espaço. As assertivas acima nos levam a perceber que uma nação que conhece e valoriza sua história está mais preparada para enfrentar os desafios do futuro. 4 Por seu turno e de maneira mais ampla, podemos dizer que Historiografia se refere à metodologia e às práticas da escrita da história e numa perspectiva mais restrita, Historiografia seria a maneira pela qual a história foi escrita. A historiografia: � analisa e registra os fatos históricos ao longo do tempo; � conta como os seres humanos fizeram história com o passar do tempo; � estuda épocas e estados variados fazendo compreender os métodos, as formas e os objetos de estudo. Pois bem, veremos ao longo deste módulo, a importância da Historiografia para nos situarmos e nos entendermos ao longo de nossa própria história. Partiremos dos diversos recortes possíveis, dando ênfase ao Positivismo, ao materialismo histórico e à Escola dos Annales com suas várias gerações. Ao final teremos unidades dedicadas a textos/artigos que trabalham com recortes específicos da história que ajudam o professor em sua missão de levar além de conhecimento, oportunidade de reflexão crítica aos seus alunos para que sejam igualmente críticos e reflexivos ao longo de sua caminhada. 5 Antes de iniciarmos nossas reflexões, vamos a duas observações que se fazem necessárias: Em primeiro lugar, sabemos que a escrita acadêmica tem como premissa ser científica, ou seja, baseada em normas e padrões da academia. Pedimos licença para fugir um pouco às regras com o objetivo de nos aproximarmos de vocês e para que os temas abordados cheguem de maneira clara e objetiva, mas não menos científicos. Em segundo lugar, deixamos claro que este módulo é uma compilação das ideias de vários autores, incluindo aqueles que consideramos clássicos, não se tratando, portanto, de uma redação original. Ao final do módulo, além da lista de referências básicas, encontram-se muitas outras que foram ora utilizadas, ora somente consultadas e que podem servir para sanar lacunas que por ventura surgirem ao longo dos estudos. 6 UNIDADE 1 – OS RECORTES DA HISTORIOGRAFIA Quando falamos em “recorte” estamos querendo dizer exatamente uma parte de uma produção sobre um determinado assunto. Em palavras bem simples e até mesmo grosseiras, seria o mesmo que dizer “fatiar” um todo e dar o devido tratamento a uma fatia específica desse todo. Em Historiografia, isso significa trabalhar com um tema ou período histórico específico. Como exemplo, podemos citar a historiografia do período colonial mineiro e mais especificamente, a vida cotidiana dos escravos, tendo ainda outro recorte: os que viveram nas lavras de ouro e diamante das Minas Gerais. Ainda falando de “historiografia” de maneira geral, este vocábulo é usado para falar do conjunto de historiadores de uma nação, em dado período histórico e utilizando metodologias próprias. O modo como a história é contada e por quem é contada nos ajuda a refletir, analisar e ver de vários ângulos os acontecimentos que foram se sucedendo. Quanto aos recortes, estes podem ser temporais, espaciais, metodológicos, temáticos. Vejamos: a) Recorte temporal: Como o próprio nome já diz, seria o recorte pelo tempo, no tempo, do tempo. Aqui temos as periodizações clássicas (pré-história, história antiga, medieval, moderna e contemporânea). Ela se justifica utilizando o tempo histórico, mas é discutível, afinal de contas, os acontecimentos não foram os mesmos nas diversas regiões do mundo e, na verdade, não há um ponto objetivo de começo e fim. É aproximado, há transições entre um e outro período. Diríamos que essa divisão mostra a visão eurocentrista da história, ou seja, parece que tudo girava em torno da Europa e não é bem assim. Sabemos que o “oriente distante” teve seus acontecimentos tão importantes quanto a Europa. Igualmente a partir de 1500 ou pouco antes, as Américas também já tinham uma história importante a ser contada que também ajudou a modificar o mundo como um todo. 7 Como nos explica Silva (2013), não é fácil delimitar o recorte temporal. A delimitação exige muito conhecimento sobre o tema a ser pesquisado, pois apenas assim detectamos questões e períodos menos estudados e onde residem as principais dúvidas e “contradições” da historiografia. A disponibilidade de fontes também é um elemento que incide sobre a delimitação do recorte. Temas e períodos marcados por menor disponibilidade de fontes, geralmente resultam em recortes temporais mais amplos para que seja possível apreender as rupturas e permanências que nós historiadores sempre buscamos. Raramente encontramos, por exemplo, um estudo sobre a “Antiguidade” ou sobre a “Idade Média” restrito a dois ou três anos. Ou seja, a delimitação do recorte temporal depende da formulação de um problema a ser investigado e da existência de condições que viabilizem o desenvolvimento do trabalho. O recorte temporal tampouco é um elemento neutro na pesquisa. Ao analisarmos a historiografia, devemos estar atentos aos recortes temporais escolhidos pelos autores que usamos. Pesquisas podem ignorar determinados períodos para legitimar governos e movimentos políticos, evitar questões polêmicas e/ou isentar determinados sujeitos, grupos ou instituições de casos embaraçosos. De todo modo, o tratamento cronológico é o mais utilizado pela maioria dos historiadores, pois é o que corresponde à narrativa convencional, e o que permite ligar as causas passadas com os efeitos no presente ou no futuro. No entanto, ele é usado de várias maneiras: porexemplo, o historiador deve sempre optar por um tratamento síncrono ou diacrônico do seu estudo dos fatos, ainda que muitas vezes se façam os dois. O tratamento diacrônico estuda a evolução temporal de um fato, por exemplo, a formação da classe operária na Inglaterra ao longo dos séculos XVIII e XIX. O tratamento síncrono, por sua vez, concentra-se nas diferenças que o fato histórico estudado tem ao mesmo tempo, mas em diferentes níveis, por exemplo: compara a situação da classe trabalhadora na França e na Inglaterra, na conjuntura da revolução de 1848. Períodos ou momentos especialmente atraentes para os historiadores acabam convertendo-se, pela intensidade do debate e do volume de produção em 8 verdadeiras especialidades, tais como a história da Guerra Civil Espanhola, a história da Revolução Francesa a da Guerra da Independência dos Estados Unidos, ou a da Revolução Soviética, por exemplo. Também devem ser consideradas as diferentes concepções de tempo histórico, que, de acordo com Fernand Braudel (sobre o qual veremos detalhes adiante) vão da longa duração ao evento pontual, passando pela conjuntura. b) Recorte espacial: Quando falamos em recorte espacial, estamos nos reportando, por exemplo, à história continental, história nacional, regional ou mesmo história local. Em se tratando de história continental, exemplo dos mais comuns seria a história do Brasil, ou História dos Países Ibéricos. A historiografia que se define como regional quase sempre está comprometida com a elaboração e legitimação de uma dada identidade regional. Segundo Lima, Domingos e Selonk (2010), a concepção que se tem de região, na maioria das vezes está relacionada apenas a um recorte geográfico. No entanto, a própria geografia tem problematizado este conceito e apontado para diferentes formas de pensá-lo. O termo região pode ser entendido como um recurso didático na medida em que facilita o entendimento das diferenciações das diversas áreas que integram nosso planeta. Porém, a utilização do termo, em história, sem uma definição mais precisa sobre o que se pretende abordar, pode tornar a pesquisa obscura e insuficiente e, consequentemente, questionável. Dentro dessa problemática e na visão de Correa (2002, p. 25), não resta dúvida que a variação espacial dos tipos de clima é um dado importante para se compreender as diferenciações da ocupação humana sobre a superfície da Terra, porém, no ambientalismo, o clima passa a ser considerado, fator determinante sobre o homem e, em muitos casos de modo explícito, sobre sua história. Dessa forma, o conceito de região é muito mais complexo que a maneira com que ele se apresenta, ou melhor, é apresentado. Levando em consideração a ação humana, não como condicionada, mas imbricada numa reciprocidade com a 9 natureza, temos diferentes critérios na definição do que é uma região. No sentido físico, por exemplo, pode ser: • um espaço “menor”, em relação ao nacional; • um espaço “médio”, em relação ao continente; e, • um espaço maior, em relação ao planeta, ou seja, não deixando de ser “menor”. Essa confusão nos permite questionar sobre as definições tradicionais de região, pois o Sudoeste pode ser entendido como uma região, em relação ao Brasil, assim como o Brasil pode ser entendido como parte de uma região que constitui o continente americano, que também configura uma região que integra o globo. No sentido cultural, o pesquisador encontra outro leque de possibilidades. Porém, a delimitação regional, por mais cultural que seja, tende também a ser homogênea, uma vez que um espaço pode ser compartilhado por diferentes grupos de costumes distintos. É uma definição nesse sentido que o pesquisador deve atentar pelo menos na introdução ou considerações finais de sua pesquisa, caso contrário, sua metodologia fica redundante, pelo fato de que toda e qualquer pesquisa pode ser de cunho regional. Dessa forma, através da aproximação das pesquisas em história com a geografia, nas últimas décadas, o conceito de região tem ganhado novas possibilidades de abordagens. Os critérios utilizados para o recorte espacial têm sido pensados de acordo com as necessidades ou interesses da pesquisa que o historiador pretende. Sendo assim, podemos perceber recortes mais antropológicos, culturais, e a fronteira geográfica se põe agora como fronteiras, ou até mesmo sem fronteiras. Rompe-se aqui o determinismo naturalista, onde a atividade humana torna-se submissa ao aspecto geográfico de um determinado lugar. Tem-se uma reavaliação, e as abordagens apontam para uma relação mais complexa entre os seres humanos e a natureza, como aponta Amado (1990 apud LIMA; DOMINGOS; SELONK, 2010) ao referir-se a alguns geógrafos fundamentados no materialismo dialético e histórico: Para estes geógrafos, a organização espacial sempre se constitui em uma categoria social, fruto do trabalho humano e da forma dos homens se relacionarem entre si e com a natureza. Partindo desse quadro teórico, 10 definem “região” como a categoria espacial que expressa uma especificidade, uma singularidade, dentro de uma totalidade: assim, a região configura um espaço particular dentro de uma determinada organização social mais ampla, com a qual se articula. c) Recorte metodológico: Para falar do recorte metodológico, nada melhor do que usar o exemplo do período pré-histórico, onde encontramos uma diferença radical entre fontes e métodos. Essas diferenças entre fonte escrita e não escrita, no caso da pré-história, a falta de fontes escritas, faz com que seja uma ciência muito distante daquela feita pelos historiadores, sobretudo quando tais fontes e métodos se prolongam, dando primazia à utilização das fontes arqueológicas e ao estudo da cultura material em períodos para os quais já existam fontes escritas, falando-se então não da Pré- história, mas sim propriamente da Arqueologia com as suas próprias periodizações (Arqueologia clássica, Arqueologia Medieval e mesmo Arqueologia Industrial). Uma diferença menor pode ser encontrada com o uso de fontes orais, no que é chamado de História Oral. Enfim, o que queremos nos fazer entender é que a questão do método para estudar a pré-história torna-se um grande desafio, dentre outros motivos, pela falta de fontes escritas, escassez de documentos que acabam impelindo o homem a utilizar de outras ciências como a Arqueologia ou a Paleontologia para embasar seus estudos. d) Recorte temático: Quanto ao recorte temático, a historiografia parte dos acontecimentos, dando lugar a uma história setorial. Por exemplo: A História dos sistemas políticos visa reduzir a história à categorização de instituições, como história do Direito, História militar; a História econômica, algumas vezes germinada com a História social ou de movimentos operários; a História da Igreja, buscando conhecer detalhes do cristianismo, judaísmo, protestantismo e outras religiões. Podemos ainda falar em História da Arte; História das Ideias; História das Doutrinas Econômicas; História da Guerra Civil Espanhola; História da Revolução Francesa; enfim: uma gama de variantes. 11 Quanto às correntes historiográficas, de imediato, deixamos um quadro sinótico para ilustrar o que vem a seguir: Fases Acontecimentos Primeira fase: PRÉ-CIENTÍFICA Gregos : Heródoto, eliminando o aspecto mitológico. Romanos : Tito Lívio – História de Roma: algum método na investigação e espírito de exaltação nacional. Idade Média : a historiografia sofre um retrocesso, apresentando um carácter teocêntrico, apocalíptico e pessimista. O historiador passa a justificar a vinda do filho de Deus ao Mundo, e analisar as suas repercussões. Renascimento : a historiografia valoriza o Homem como objeto de estudo, ressurgindo a herança cultural da Antiguidade Clássica, o antropocentrismo. Fase de TRANSIÇÃO Historiografia Racionalista(Iluminista ): período que antecede e acompanha a Revolução Francesa. Voltaire, Montesquieu e Rousseau irão lançar as bases filosóficas do Mundo burguês. Isto reflete na historiografia, atribuindo-se mais importância ao estudo das sociedades. Historiografia Romântica: surge quando o movimento liberal invade a Europa no século XIX e irá debruçar-se sobre o Homem, os Heróis. Fase CIENTÍFICA Século XIX Positivismo: Comte institui um método utilizado a fim de contrariar a subjetividade romântica. O papel do historiador passa a traduzir-se na pesquisa dos fatos, na sua subsequente organização e exposição através de uma narrativa tão impessoal quanto possível. A história não deveria ser interpretada, mas reescrita, como algo como imutável. Valoriza os grandes personagens históricos, a factualidade e a verdade única. Materialismo Histórico : para Marx e Engels, a História constituía evolução dos modos-de-produção, que se processa através da luta de classes entre explorados e exploradores. A economia assume aspecto capital na evolução das sociedades. Marx introduz a noção de descontinuidade do processo histórico. O Homem passa a ter um papel mais modesto, passando o estudo das massas a ser mais atento. A contribuição do marxismo é fundamental pela nova orientação que é conferida ao processo histórico, orientação que irá culminar com a escola dos “Annales” e a História Nova. Século XX Escola dos “ANNALES” e a Nova História : o historiador Marc Bloch defende a existência de um passado mutável e problemático, que, por meio da investigação histórica, permite representar (pesquisar) o homem agindo dentro de seu tempo ou tempos. Apresenta novos métodos de abordar o passado, compondo a chamada “história 12 cultural”. “A história é a ciência que estuda o passado para melhor compreender o presente, talvez na tentativa de não cometer os mesmos erros do passado no futuro”. Para Marc Bloch, essa afirmação é pobre e incorreta. Limitar a história ao conhecimento e deslocamento ao passado não explica a complexidade contida na abordagem das mudanças proferidas pelo homem, ou pelos homens, no tempo ou nos períodos. Qualquer vestígio de alteração provocada por um ato social, por menor que este seja, compromete-se com a história. Para Eric Hobsbawm, “o passado é uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana”. Hobsbawm entende ainda que o historiador tem a responsabilidade de abordar a origem do “sentido do passado”. Esta responsabilidade empregada ao historiador revela a necessidade da utilização das considerações da história cultural. 13 UNIDADE 2 – A HISTORIOGRAFIA NA PRÉ-HISTÓRIA E IDADE MÉDIA Podemos dizer que os registros históricos que remontam à Idade Antiga surgiram com Heródoto, geógrafo e historiador grego (485-425 a.C.) que nasceu em Halicarnasso, cidade grega da Ásia Menor. Heródoto é conhecido como “Pai da História” por ter sido o primeiro homem a tentar um estudo ordenado e objetivo das inter-relações entre os eventos históricos. Heródoto viajou para o Egito e percorreu o Mediterrâneo, estudando as culturas dessas regiões e registrando os fatos do modo mais fiel possível para a época. Ao teorizar sobre a História, ele aplicou a tradicional ideia grega da moderação, ou meio termo, segundo a qual, o equilíbrio é desejável, e o excesso e o desequilíbrio são a receita para o desastre. Mais tarde, Heródoto ajudou a fundar o povoado grego de Turim, na Itália, onde ele provavelmente morreu. Foi o autor da história da invasão persa da Grécia nos princípios do século V a.C., conhecida simplesmente como ‘As histórias de Heródoto’. Esta obra foi reconhecida como uma nova forma de literatura pouco depois de ser publicada. Antes de Heródoto, tinham existido crônicas e épicos, e também estes haviam preservado o conhecimento do passado. Mas Heródoto foi o primeiro, não só a gravar o passado, como também a considerá-lo um problema filosófico ou um projeto de pesquisa que podia revelar conhecimento do comportamento humano. A sua criação deu-lhe o título de “pai da história” e a palavra que utilizou para o conseguir, historie, que previamente tinha significado simplesmente “pesquisa”, tomou a conotação atual de “história”. A obra Histórias foi frequentemente acusada no velho mundo de influenciável, imprecisa e plagiária. Ataques semelhantes foram preconizados por alguns pensadores modernos, que defendem que Heródoto exagerou na extensão das suas viagens e nas fontes criadas. Contudo, o respeito pelo seu rigor aumentou na última metade do século XX, sendo atualmente reconhecido não apenas como pioneiro na história, mas também na etnografia e antropologia. 14 Concordamos com Freitas (2013) ao ressaltar que é impraticável a análise de qualquer historiador e de sua obra se não levarmos em consideração o ambiente cultural, político, moral em que viveu. Da mesma forma, é preciso compreender que nosso intelecto encontra-se de certa forma independente do tempo e do espaço, de maneira que existe um processo histórico universal. Portanto, com esta correlação de valores, surge a historiografia de Heródoto, que pretende preservar os feitos e acontecimentos gregos para as futuras gerações, como o próprio deixa claro no primeiro parágrafo de sua obra. Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos bárbaros permanecessem ignoradas, desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros. Em outras palavras, Heródoto se propõe a compilar as informações históricas a respeito, não só do seu povo, mas de outros povos também, para dois motivos: que esta memória não se perca e que se possa, a partir dela, efetuar a reflexão a respeito de como os fatos se desenrolaram, através das suas motivações. Segundo Tétart (2000, p. 14), entre manutenção e celebração da memória grega e abertura ao mundo (os bárbaros), Heródoto assinala, portanto, a importância que atribui ao dever de memória. Além disso, recusando o helenocentrismo, destaca a necessidade do conhecimento do outro, elevando assim a história à posição de saber patrimonial e universalista. Portanto, com Heródoto, a história já faz alguns notáveis progressos. No entanto, é com Tucídides (460-396 a.C.) que, buscando estabelecer, além da simples compilação de fatos históricos, uma compreensão mais “científica” do passado, baseado no encontro entre conhecimento e razão, que ocorre um desejo de legitimação da história. Ainda de acordo com Tétart (2000, p. 16), Tucídides apresenta duas preocupações fundamentais no seu ato de registrar a história: 1) Proceder como pedagogo. 2) Fazer os gregos compreenderem a utilidade do conhecimento histórico – para a vida social, política, militar. Ele quer fazer da história um ‘monumento-tela 15 posto na frente da realidade, para a edificação das gerações vindouras’ (H. Martin): o que ele chama de 'capital imperecível’, ao mesmo tempo memória, exemplo e objeto de meditação. Tucídides procura manter certo distanciamento dos acontecimentos narrados, sem que suas impressões pessoais contaminem o relato, de forma que seu texto não sirva apenas para a leitura digestiva e de entretenimento, mas que sirva como material para consulta, não só na sua época, mas para a posteridade. É interessante observar como esse distanciamento que Tucídides busca encontra eco na forma positivista de se fazer história no século XIX, de acordo com a afirmação de Reis (1994): O desejo de constituir a história sobre bases científicas, positivas, se expressa, portanto, nesta ênfase ao dado, ao evento, no cultivo à dúvida, à observação, à erudição, e na recusados modelos literários e metafísicos. Este manual formará gerações de historiadores, ele exprime exatamente o ponto de vista da história metódica, que dominou a produção histórica francesa de 1880 a 1945. Este espírito positivo vai se concretizar na obra de grandes historiadores, como Fustel de Coulanges, Taine, Renan. Serão historiadores menos intuitivos do que os da escola romântica, mais seguros, mais especialistas do método crítico. Da mesma forma que esse entendimento típico do século XIX, em relação à historiografia, Tucídides também não deseja fazer literatura e nem fazer elucubrações demasiadamente pessoais a respeito dos fatos vistos, lidos ou que tenha testemunhado. Ele tinha a pretensão de relatar da maneira mais bruta possível os acontecimentos históricos (FREITAS, 2013). Já a historiografia romana se desenvolverá tardiamente. Apenas nos séculos III e II a.C., cinco séculos após a fundação da cidade que dominaria o mundo. A explicação comumente aceita para este fenômeno é de que a historiografia grega ainda permaneceu dominando o mundo romano. É uma historiografia que surge com o intuito de glorificar a grandeza da história romana. Desta forma, podemos afirmar que a historiografia romana produziu nomes de peso, que até hoje permanecem sendo objetos de estudo dos historiadores: Tito Lívio, Tácito e Suetônio são alguns desses grandes nomes. Tito Lívio foi preceptor do imperador Cláudio e dedicou sua vida inteira à literatura e à história: 16 Seu trabalho é didático e moral: postula que as qualidades morais de um povo forjam seu destino. Comemorando os altos feitos de Roma desde sua fundação, descrevendo os homens, seus costumes, sublinhando os períodos de grandeza, de decadência, elabora uma verdade histórica que deve, como em Salústio, tornar-se objeto de reflexão para o leitor (TÉTART, 2000, p. 26). Tácito é o “observador da decadência” e foi criticado por sua parcialidade e falta de exatidão de seus textos, por suas inclinações apologéticas (TÉTART, 2000, p. 27). Contudo, por ser um grande herdeiro das tradições romanas e helênicas, acaba por produzir uma obra-guia da historiografia que apresenta um novo elemento que é justamente o “pensar” o assunto. Suetônio é tido frequentemente como o pai da biografia. Com o seu ‘A Vida dos Doze Césares’, num contexto historiográfico pobre, brilha com talento seguro e estabelece as bases de um modelo biográfico que se tornará modelo na Idade Média (TÉTART, 2000, p. 30). Em se tratando da Idade Média e no contexto histórico da desagregação do Império Romano, pontilhado pelas crises do escravismo e das invasões bárbaras, o Cristianismo triunfante constituiu-se em referência obrigatória para a explicação do mundo. Convertido em religião oficial, o cristianismo passou a assumir um papel importante na estruturação do pensamento medieval. Lembremos que os elementos eclesiásticos acabaram tornando-se praticamente no único segmento letrado da Europa Ocidental (GOMES, 2005). Durante a Alta Idade Média, a Igreja converteu-se na guardiã do patrimônio cultural do Ocidente. Nesses termos, a História não escapou a sua influência. A história de Roma era evocada de maneira estereotipada: massacres, devastações, roubos, incêndios, entre outros. Tudo passava a servir de exemplo, cujo fracasso se explicava pela ausência da fé: era o castigo de Deus. A diferença entre a historiografia greco-romana e a cristã, pode ser explicada na medida em que a primeira buscava o entendimento dos fatos a partir da própria sociedade, enquanto que o cristianismo buscava uma explicação transcendental, por desígnio divino. Dentro da perspectiva cristã, a história era encarada como um caminho da humanidade para sua realização com Deus. A história humana iniciava- se com a Criação e esta orientada para um fim: Deus. 17 A partir de então, a distribuição das funções na arena social competem a Deus e a seus agentes na terra, o que reafirmava e justificava o papel da Igreja na nova ordem social. No entanto, é importante ressaltar que a perspectiva cristã não levou ao desaparecimento da razão. O mais expressivo exemplo dessa associação encontramos em São Tomás de Aquino, que coloca a razão a serviço da fé. Como se percebe, a História tornava-se providencialista e a reconstituição dos acontecimentos servia para provar e divulgar a fé. Em outras palavras, a História, assim como outras ciências, subordinava-se à Teologia. Por outro lado, isso não quer dizer que não foram formulados projetos diferentes. Afinal, a existência da Inquisição era a expressão cabal do combate eclesiástico contra os “inimigos da fé” (GOMES, 2005). Freitas (2013) ressalta que a historiografia cristã do período medieval foi criticada durante muito tempo justamente pelo seu aspecto pobre, onde não há grande curiosidade e tampouco independência intelectual. No entanto, alguns nomes podem ser destacados no período. O maior deles, sem dúvida foi Eusébio de Cesareia (265-341) que é considerado o pai da historiografia cristã, dentro de uma lógica provindencialista. De acordo com Tétart (2000), seus escritos celebram antes de tudo o triunfo da Igreja, limitando a lógica factual unicamente ao efeito da vontade divina. Outro nome de suma importância para a história cristã, é o de Santo Agostinho (354-430). Prolongando a obra de Eusébio, Agostinho que era bispo de Hipona, faz a história assumir forte conotação teológica. Para ele, “a história já não é senão a memória da viagem para a felicidade, coletânea de exemplos oferecidos à pregação” (TÉTART, 2000, p. 37). Vejamos este trecho que se encontra no livro ‘Cidade de Deus’ e comprova esta argumentação de Tétart: Diferentemente do nosso, o conhecimento que Deus tem dos três tempos, presente, passado, futuro, não está submetido à mudança, pois nele não há nem vicissitudes, nem mudança, nem sombra. [...] Tudo o que ele vê está presente ao mesmo tempo, pois ele conhece o tempo sem nenhuma representação temporal, assim como move o que está submetido ao tempo sem sofrer nenhum movimento temporal (XI, 21). 18 Pois então, o tempo já é conhecido por Deus, não exercendo influência sobre Ele. Desta forma, a história (Cidade dos Homens) é o trajeto de fé que o homem deve percorrer para atingir a Cidade de Deus (FREITAS, 2013). Em outras palavras, a intervenção de Deus na história é compreendida como uma verdade imutável para os historiadores medievais, de modo que a produção historiográfica medieval foi pautada por estes princípios. Tais pressupostos ajudam a perceber melhor as características essenciais que informaram a historiografia medieval, a saber: � a periodização do tempo histórico, feita segundo o modelo cristológico; � a sua função catequética; � o seu ternário hagiográfico e apocalíptico; � a sua ultrapassagem dos particularismos (...); � a sua escrita encarada como um trabalho anônimo e geralmente contínuo (...); � a inexistência de uma consciência autoral, característica que explica a índole coletiva de muitos textos historiográficos da época e que relativisa as posteriores acusações de plágio; e, por fim, � a ordenação das idades e acontecimentos de acordo com a justificação providencialista (CATROGA, 2003, p. 26). No entanto, com o avanço no tempo, há uma tendência cada vez maior ainda durante a Idade Média de um processo de secularização da historiografia. Segundo Tétart (2000, p. 43), a reforma gregoriana tem papel importante neste processo: No alvorecer do segundo milênio, a história, sempre um saber menor não ensinado, não é um lugar de memória libertado de sua incapacidade cultural de produzir sentido em si, sujeito a evocar o universo religioso. Entretanto, o espírito do tempo evolui. Aqui, a reforma gregoriana (séc. XI) é central. Suscita uma dinâmica que ajuda no renascimento historiográfico dos séculos XII - XIV. Um novopolo de desenvolvimento da história será a corte e os castelos, em oposição ao monastério, lugar privilegiado até então em termos intelectuais. Neste aspecto, é importante considerarmos as línguas vulgares que então emergem e 19 passam a identificar-se com os valores identitários nascentes. Neste momento, o papel da universidade adquire grande importância para os estudos históricos: A universidade não será o único lugar onde se desenvolve uma vida cultural, mas será o lugar por excelência de uma nova figura, a do intelectual, cujas curiosidades e descobertas terminarão por enriquecer também a história, de maneira indireta. Os seus fundamentos serão progressivamente laicos (CADIOU, 2005 apud FREITAS, 2013). Assim, passos decisivos em direção ao Renascimento estavam sendo dados e a história começava a deixar de ser exclusivamente a teologia da história. Foi possível, enquanto a Idade Média aproximava-se do seu final, perceber o novo papel que a história e os historiadores estavam para assumir. A história deu um salto. Os historiadores, seculares, desfizeram-se das viseiras da escatologia (mesmo que ela não poupe as suas reminiscências). Esta estimulação intelectual, na escala europeia, afirma um fato essencial: a história possui um poder que não tinha antes, quando o trabalho dos historiadores, visando a edificação moral, espiritual, religiosa de seus contemporâneos, não era visto primeiramente como um ponto de encontro de análise da sociedade, no cruzamento do passado, do presente e da preocupação de prospectiva de que o homem precisa (TETART, 2000, p. 53-4). 2.1 Métodos e fontes Segundo LeGoff e Schmitt (2006), uma das principais características da historiografia eclesiástica é a presença comum de metas e métodos no prólogo das obras. Por meio da análise dos prólogos dos livros de história medievais, é possível compreender como a obra foi produzida, com que fim ela foi desenvolvida, a quem era destinada e quais foram os métodos aplicados para a sua confecção. A principal meta dos religiosos era transmitir o conhecimento histórico para a posteridade, porém, naturalmente, apenas os acontecimentos dignos de lembrança deveriam constar nas obras produzidas e, geralmente, tratava-se de assuntos como biografias ou guerras. Assim como acontecia com a liturgia da Igreja Católica, a história passaria a ser considerada uma ferramenta da memória (LeGOFF; SCHMITT, 2006). 20 O principal método para transmitir a história era a narração dos acontecimentos, e muito comum era usar as obras de história para transmitir exemplos de homens reputados que deveriam ser seguidos pelos outros. A obra de Valério Máximo, o ‘Livro de Ações e Palavras Memoráveis’ é um retrato desta compilação de exemplos feita por várias vezes. Desta forma, caberia ao historiador criar a glória ou a infâmia de alguém e, por esta mesma razão, várias obras de história passaram a ser “encomendadas” por nobres (para que seus nomes não fossem esquecidos) no mesmo período (LeGOFF; SCHMITT, 2006; CLAIRE- JABINET, 2003). Quanto às fontes estas eram escritas, orais, auxiliares e até mesmo falsificações. As fontes escritas usadas pelos historiadores medievais provinham principalmente de bibliotecas e arquivos, e eram usadas especialmente para os estudos sobre os “tempos antigos” (BASCHET, 2006; LeGOFF; SCHMITT, 2006). Durante a Idade Média, as bibliotecas ainda não eram tão ricas quanto viriam a ser durante o Renascimento (especialmente depois da difusão da imprensa pela Europa no século XV) (CLAIRE-JABINET, 2003). Apenas poucos livros se faziam presentes e em pequenas quantidades, e pouquíssimos eram os livros de história. A principal fonte para muitos trabalhos era a Bíblia, que havia sido recomendada por Cassiodoro a todas as bibliotecas no século VI, além da História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia (LeGOFF; SCHMITT, 2006). O conteúdo que não era contemplado pela Bíblia Sagrada e pela obra de Eusébio era dificilmente encontrado nas bibliotecas comuns, e sua difusão era extremamente limitada. Os arquivos eram tão rústicos quanto às bibliotecas e existiam diversos problemas de conservação de manuscritos. Além do problema da conservação, também era grande o entrave imposto pela falta de classificação, bem como a falta de acesso (muitos historiadores poderiam recorrer apenas ao arquivo da instituição a qual pertenciam). Um dos arquivos mais conhecidos é o de Reims, que foi organizado ainda no século IX por Incmaro. Apenas a partir do século XI os arquivos episcopais começam a ser inventariados, e apenas com o avanço do poder real no 21 século XIV ficou realmente clara a necessidade de classificação (CLAIRE-JABINET, 2003). Fontes orais eram aquelas advindas do testemunho de pessoas que haviam presenciado os acontecimentos narrados nas obras. Isidoro de Sevilha é considerado um precursor no incentivo ao uso de fontes orais, em virtude da grande influência que teve sobre os historiadores posteriores. De acordo com os ensinamentos de Isidoro, seguia-se a tradição oral e procurava-se ao máximo usar as fontes orais mais seguras, que eram os testemunhos diretos. Além disso, é notória a busca pela crítica aos testemunhos, uma vez que se buscava a confirmação destes em outros (considerados então “secundários”). Quando não era possível usar os testemunhos diretos, os historiadores buscavam apoio para os seus livros em crendices populares, tradições antigas e canções que circulavam no mundo medieval (CLAIRE-JABINET, 2003). Temos ainda as fontes auxiliares que provinham de monumentos, ruínas, esculturas e prédios, por exemplo. Embora ainda não existissem instrumentos adequados para explorar o passado através das heranças de outros tempos que já haviam passado (a arqueologia ainda não havia sido desenvolvida, e apenas no século XIV a epigrafia (parte da paleografia que estuda as inscrições) seria considerada uma ciência auxiliar da história), a importância desse tipo de fonte já era considerada (CLAIRE-JABINET, 2003). Entre os prédios mais procurados pelos historiadores medievais estavam as tumbas de homens importantes, pois estas poderiam revelar informações dos mais diversos tipos, desde a sua genealogia à sua biografia propriamente dita. Um exemplo claro desta importância é o monastério de Saint-Denis que reunia os túmulos dos reis das dinastias Merovíngia e Capetíngia em ordem (CLAIRE- JABINET, 2003). Por fim, temos as falsificações de documentos que era uma atitude recorrente na história medieval e, por muito tempo, prejudicou os historiadores, especialmente aqueles que não tinham um senso crítico muito apurado. Entretanto, ao mesmo tempo em que existiam os historiadores sem este senso desenvolvido, outros já tratavam de avaliar e analisar as fontes e depois de confrontá-las com outras, procurando diferenças e semelhanças (LeGOFF; SCHMITT, 2006). 22 Muitas vezes isso acabava por gerar uma supervalorização da “autoridade da fonte”, que era basicamente a busca de um “fiador” para a valorização de um texto como fonte histórica. Isto aconteceu várias vezes durante a Era Medieval e exemplos disso são o livro que trata da história de Gênova entre os anos de 1100 e 1152, que foi elevado ao nível de fonte de grande reputação pelos cônsules da cidade, e a crônica de Rolandino de Pádua, que revestiu-se de autoridade apenas quando foi validada pelos estudiosos da Universidade de Pádua (LeGOFF; SCHMITT, 2006). Outro grande problema era a influência dos copistas que, em numerosas obras históricas, acabavam por sempre “acrescentar” alguma informação que não estava disponível no texto original que usavam. Em resumo, o critério para a qualidade da produção historiográfica não era a verdade, mas sim a autenticidade estabelecida por autoridades que obedeciam uma espécie de hierarquia (CLAIRE- JABINET, 2003). 23 UNIDADE3 – HISTORIOGRAFIA NO RENASCIMENTO – UMA REVIRAVOLTA NAS RELAÇÕES HOMEM-DEUS Ao término da Idade Média tivemos alguns eventos que vieram marcar e contribuir para a reviravolta que dá título à Unidade, contribuindo igualmente para que mudássemos a concepção das relações dos homens com Deus (FREITAS, 2013). Esses fatos que a princípio parecem não ter ligação alguma, estão muito associados ao desenvolvimento da Historiografia e, de uma forma ou de outra, contribuíram para uma nova maneira de se pensar e de se escrever a história. São eles: � a invenção da imprensa, por Gutemberg; � a falsidade reconhecida da Doação de Constantino; � a derrocada de Bizâncio; � a reforma protestante. Segundo Tetart (2000, p. 57), as reviravoltas políticas, religiosas, mentais e técnicas do século XVI favorecem o despertar, o enriquecimento, o amadurecimento intelectual da história. No Renascimento, os quadros físicos e mentais que até então estruturavam as relações dos homens com o mundo, dos homens com Deus, explodem. A Revolução celeste dos corpos de Copérnico (1543) simboliza esta revolução. A expansão geográfica impõe um espaço desmultiplicado, o confronto com os 'povos nus' que ignoram Deus. A terra torna-se estranhamente grande. O Renascimento, portanto, afeta profundamente o conceito de História, sobretudo em sua separação da Teologia. Ao surgirem novos costumes, novas instituições, a humanidade passa a ser o objeto de estudo em si, e como já ensinou Marc Bloch, a história passa a ser a “ciência dos homens no tempo”. As bases para a história científica estão sendo construídas. Uma história autônoma, como disciplina autônoma, desligada da religião e preocupada com conceitos de relatividade e subjetividade, assim como com o método. Ou seja, os historiadores agora pensam na história como uma ciência. 24 E a partir do século XVII que a história vai se transformar em uma disciplina erudita, com a sua submissão às regras de controle e verificação, de forma que assim seja possível ao historiador reconstituir o passado de forma independente, mesmo quando não existam fontes materiais ou escritas (FREITAS, 2013). Podemos falar em Renascimento, Renascença ou Renascentismo, mas geralmente fala-se em Renascimento Italiano, por ser seu berço ou Renascimento Carolíngeo. É um período que vai aproximadamente de fins do século XIV e início do século XVII. Recebe esse nome em virtude da redescoberta e revalorização das referências culturais da antiguidade clássica que nortearam as mudanças do período entre a idade média e o humanismo. Podemos dizer que é o período de redescoberta do mundo e do homem. Enfim, as preocupações do ser humano com a vida após a morte, esquecendo-se de vivê-la plenamente enquanto terrena, acreditando que a Terra era plana e que todos os acontecimentos e fenômenos eram determinados pela vontade de Deus ‘cai por terra’, passam a ser questionadas e assim veio surgindo um homem mais confiante em suas possibilidades que deixou de querer explicar e entender tudo pela fé e vontade divina. Os valores medievais foram sendo substituídos por basicamente três novos valores: o Humanismo, o Racionalismo e o Individualismo. O Ser humano passa a ser o centro do universo, adotando o famoso conceito de antropocentrismo. � Humanismo: em vez de um mundo teocêntrico, isto é, no qual Deus está no centro e tudo que acontece é relacionado às suas vontades, os 25 renascentistas defendiam o pensamento de que era preciso construir um mundo em que o homem estivesse no centro (antropocentrismo) e pudesse olhar para si mesmo como sendo responsável por sua própria vida. � Racionalismo: uma das principais marcas do Renascimento foi a valorização da razão. Ao invés da fé para explicar o mundo, os renascentistas afirmavam que o uso da razão seria a única alternativa para se alcançar a verdade. Para isso, pretendiam modificar o ensino dado pelas universidades medievais, no qual, até então, predominavam os valores da Igreja Católica. O Racionalismo foi empregado principalmente pelas ciências. Os métodos experimentais e a observação da natureza se tornaram critérios obrigatórios para os cientistas modernos. � Individualismo: para os renascentistas, o homem deveria passar por uma grande mudança de comportamento. As diferenças individuais dos homens deveriam ser reconhecidas e respeitadas. Esse valor está intimamente associado ao espírito de competição da burguesia. São características da historiografia nesse período: a) Gosto pelo estudo dos textos antigos, gregos ou latinos; pelas inscrições; moedas, cartas, diplomas e outros documentos. b) Adotou-se como critério para enriquecer os métodos dos historiadores, determinar a autenticidade de um registro, pela comparação de diferentes fontes. 26 UNIDADE 4 – POSITIVISMO Utilizamos o termo “historiografia na pré-história”, [...], “historiografia no Renascimento” [...], mas, de antemão, lembramos que o termo “Historiografia” foi cunhado somente no século XIX, em imitação aos historiadores poloneses e alemães, como bem nos explica Claire-Jabinet (2003), que seria a arte de escrever a história, a literatura histórica, ou ainda, a história literária dos livros de história. Sobre a história da historiografia, Birardi, Castelani e Belatto (2001), procedem a uma retrospectiva explicativa muito interessante. Vejamos: Segundo os autores, no século XIX, a Europa presenciou amplo desenvolvimento tecnológico e industrial, que permitiu sua evolução econômica e a afirmação como o continente mais poderoso do mundo até a Primeira Guerra Mundial. Ao mesmo tempo em que crescia internamente, o continente se expandia para fora de seus domínios, conquistando terras, pessoas e novas riquezas na África e Ásia, numa reedição do colonialismo do Antigo Regime. No entanto, não bastava conquistar tais territórios e impor uma dominação à força em suas populações: era preciso justificar a razão daquele domínio e gerar um argumento incontestável. Para tal fim, os pensadores e intelectuais europeus utilizaram-se do conceito de ciência, tido como um saber superior e acessível a poucas pessoas. A explicação ficava clara: os europeus, donos da ciência e do desenvolvimento, se dirigiam àquelas novas terras para “salvar” suas populações do estado de barbárie e abandono em que estavam. Justificava-se o Imperialismo por meio de argumentos científicos, baseados na superioridade técnica e racial do europeu branco sobre o negro africano e o asiático: cientificamente falando, o europeu tinha o direito de dominar os novos colonos porque era de uma civilização mais avançada, dado o desenvolvimento que mostrava e o poder de seu conhecimento. Esta forma de se compreender o mundo, isto é, baseada no cientificismo que transforma as realidades sociais, frutos de uma certa ordem histórica que nunca é absoluta, em verdades absolutas e incontestáveis porque comprovadas pela ciência, tornou-se em pouco tempo a tônica de todo o pensamento do Velho Continente, espalhando-se para diversos campos do saber. Renasceu a importância 27 da Física e da Química como disciplinas exatas, por exemplo. Mas o caso mais destacado desse processo de construção de conhecimento é a transformação que ocorre nas chamadas disciplinas humanistas, a História e a Sociologia. Elas também vão incorporar a tendência cientificista, auxiliando a explicar o domínio europeu nas novas colônias e impondo novos métodos de se estudar as relações sociais e o andamento da História dos povos. Duas correntes dominaram o pensamento europeu a essa respeito. Tratavam-se do Racionalismo surgido no final do século XVIII, com a Revolução Francesa, e o Conservadorismo, presente no pensamento do continente desde o final da Idade Média e durante a Idade Moderna. Essa corrente, segundo o historiador Robert Nisbet (s.d. citado por MARTINS,1986), e como não poderia ser diferente, implica em preservar o que está estabelecido, ser contrário à mudança ou inovação. As ideias conservadoras presentes em uma sociedade têm uma razão de ser e existir, possuem como “referencial um aspecto da sociedade plenamente interessado na manutenção ou conservação da ordem (...)”. Em uma ideia que irá defender em todo o texto, Nisbet afirma que o Conservadorismo é objeto de toda a sociedade, e não de indivíduos isolados. Portanto, ao existir em função de um conjunto social, esta corrente também pode ser estudada pela Sociologia. Nisbet não aprova a visão individualista presente na fase pós-Revolução Francesa, que pregava a autossuficiência e a individualidade de cada ser humano e que serve de base para a cientifização do conhecimento e do estudo social, como dito acima. Esta negava, pois, a própria existência da sociedade como organização e como meio de influência de comportamentos humanos. O homem seria um ser de livre-arbítrio sobre seus atos, sem a necessidade de estabelecer relações com seus semelhantes. Ele se bastaria por si mesmo. Com isso, surgem correntes de pensamento relacionadas a essa forma de pensar e que se opõem a seus princípios, como o próprio Positivismo, que veremos nesta unidade. Rodrigues (2011) também nos explica que a história pode ser concebida como uma narrativa de fatos passados, que conhecer o passado dos homens é, por princípio, uma definição de história, e aos historiadores cabe recolher, por intermédio de uma variedade de documentos, os fatos mais importantes, ordená-los cronologicamente e narrá-los. Essa tendência passou a ser dominada de 28 historicismo, cuja metodologia foi conhecida como positivista, por basear-se nos princípios da objetividade e da neutralidade no trabalho do historiador. Conhecer o passado da humanidade, tal como ocorreu, constitui uma definição de história, característica da ciência positivista do século XIX. Os historiadores dessa corrente de pensamento baseavam suas análises em perspectivas deterministas, isto é, ressaltavam, por intermédio de uma variedade de documentos oficiais escritos, os fatos mais importantes; ordenavam-nos seguindo uma ordem cronológica e linear de apreensão do tempo e descreviam-nos com a perspectiva de reviver o passado real da humanidade. Por isso, receberam o estigma de “metódicos” ou “historiadores narrativos”, pelos historiadores do século XX. A intenção dos historiadores positivistas era ressaltar a importância dos grandes heróis nacionais, assim como, evidenciar no Estado Nacional em consolidação, o verdadeiro sujeito das transformações em curso. Além disso, enaltecer o auge da civilização europeia em ritmo acelerado de desenvolvimento após as novas tecnologias advindas da Segunda Revolução Industrial (RODRIGUES, 2011). Nota-se uma preocupação com assuntos de ordem política e social, porém resgatando uma sociedade “abstrata”, pois se centralizava na figura dos grandes líderes nacionais, estes sim, responsáveis pelas transformações estruturais de sua Nação. Os diversos grupos sociais estavam esquecidos, ou “à margem” do desenrolar histórico. Segundo estudos de Rodrigues (2011) e de Fonseca (2013), Leopold Von Ranke (1795-1886), historiador alemão, pode ser considerado um dos fundadores da história científica na Alemanha e um dos fundadores do cientificismo. Ranke exerceu um papel importante na configuração dos aportes teóricos que possibilitaram fornecer um caráter científico à História. O historicismo ou História Narrativa é o nome dado à Teoria que pretende apresentar “os fatos históricos tal qual realmente se passaram” (wie es eigentlich gewesen) (RANKE apud LÖWY, 2007, p. 68). Sua metodologia (o positivismo) tem como princípio a objetividade e neutralidade por parte dos historiadores ao “reviver” a História. 29 Martin e Bourdé (s.d.) citados por Fonseca (2013), seguem os passos de Ranke, para caracterizar os pressupostos do positivismo na história. Vejamos uma síntese deles: a) Não há nenhuma interdependência entre o sujeito conhecedor (que é o historiador) e o objeto do conhecimento (que é o fato histórico); por hipótese, o historiador escapa a qualquer condicionamento social, o que lhe permite ser imparcial na percepção dos acontecimentos: Fica claro nesse pressuposto que, em primeiro lugar, há uma separação radical entre o sujeito e o objeto. O objeto, a matéria-prima, aquilo pelo qual se deve prestar atenção em relação ao conhecimento histórico são os fatos históricos. E por hipótese, o historiador escapa a qualquer condicionamento social, o que significa nada mais que o fato de que ele deve aplicar o princípio da neutralidade axiológica para atingir a “imparcialidade” requerida a todo historiador – e é claro que para isto deve este mesmo historiador aceitar a separação entre fatos e valores, devendo-se ater apenas aos fatos, deixando os (seus) valores de lado. Também fica claro, por outro lado, que além do débito que este pressuposto tem para com aquele da exterioridade do objeto com relação ao sujeito, é igualmente perceptível, na base dessa afirmação rankeana, a estrita separação (dualidade) entre fatos (os fatos históricos, aquilo que afinal deve ser “conhecido”) de um lado, e dos valores (aquela instância subjetiva que é axiologicamente carregada – isto é, o historiador), de outro. De fato, estas duas entidades que são concebidas como ontologicamente separadas, devem assim permanecer a fim de que o historiador (sujeito) atinja os fatos históricos (objeto) de modo “imparcial”. b)A História existe em si, objetivamente, tem mesmo uma dada forma, uma estrutura definida que é diretamente acessível ao conhecimento: Observamos aqui que, para o positivismo, a história existe em si e que a história como objeto de saber (como passado histórico a ser reconstruído) existe independentemente da percepção que o sujeito, o historiador, dá a este objeto. Ao vislumbrar até mesmo uma forma e uma estrutura no objeto (no caso, o passado histórico), leva-se o pressuposto da exterioridade do real até as últimas consequências. 30 A segunda parte deste pressuposto remete ao fato do conhecimento ser representação do real: de fato estas determinadas “formas e estruturas” do passado histórico são consideradas como sendo diretamente acessíveis ao conhecimento. Ou seja: já que existe – em modo perfeitamente delimitado, cristalino e definido – esta configuração histórica em si mesma, é consequente à conclusão no sentido de que toda esta estrutura histórica (real, identificável) pode ser toda ela captada pelo saber. Assim, se o saber ‘objetivo’ (aquele livre dos resquícios axiológicos do sujeito) tem a vocação de ser um espelho fiel do próprio objeto (lembremo-nos da paisagem e do espelho), o conhecimento histórico (ou ‘saber histórico’ ou ‘ciência da história’, pouco importa a terminologia), para a corrente positivista, tem a capacidade de espelhar o ‘passado histórico’ de modo fiel (desde que, é claro, forem seguidos corretamente os passos ‘cientificamente’ recomendados). c) A relação cognitiva é conforme a um modelo mecanicista. O historiador registra o fato histórico de maneira passiva, como o espelho reflete a imagem do objeto: Por esse pressuposto, entende-se que o historiador não deve pretender “recriar” a paisagem que lhe está adiante (o passado), mas, pelos passos metodológicos aconselhados, fazê-lo refletir fielmente, fazer com que a realidade se apresente e tudo isto sem a interferência subjetiva, sem a interferência dos valores deste historiador. Voltando ainda uma vez àquela metáfora já tantas vezes repetida, o historiador, ao invés de ser o “pintor” da paisagem que lhe afronta, deve ser tão somente aquele que segura um grande espelho (função mecânica, passiva, não criativa), devendo tão somente garantir que se opere esse reflexo de modo fiel,de modo a não evidenciar nenhuma “distorção” no objeto. d) Incumbe ao historiador não julgar o passado nem instruir seus contemporâneos, mas simplesmente dar conta do que realmente se passou: Quer dizer que, por esse pressuposto, o historiador deve ater-se tão somente aos fatos, deixando de lado seus valores. E atendo-se somente aos fatos, o historiador, para o positivismo, terá aberto as vias para descrever aquilo que “realmente se passou”. Percebe-se, portanto, que a verdade histórica (“aquilo que realmente se passou”) é a meta do conhecimento histórico positivista, é um objetivo que pode ser 31 atingido (ao menos idealmente) se a pesquisa, do ponto de vista metódico, não “ceder”, sobretudo às tentações subjetivistas (FONSECA, 2013). Ainda discutindo sobre o positivismo, voltamos a Birardi, Castelani e Belatto (2001) que empreendem o seguinte raciocínio: O Positivismo pregava a cientifização do pensamento e do estudo humano, visando a obtenção de resultados claros, objetivos e completamente corretos. Os seguidores desse movimento acreditavam num ideal de neutralidade, isto é, na separação entre o pesquisador/autor e sua obra: esta, em vez de mostrar as opiniões e julgamentos de seu criador, retrataria de forma neutra e clara uma dada realidade a partir de seus fatos, mas sem os analisar. Os positivistas creem que o conhecimento se explica por si mesmo, necessitando apenas seu estudioso recuperá-lo e colocá-lo à mostra. Não foram poucos os que seguiram a corrente positivista: Auguste Comte, na Filosofia; Émile Durkheim, na Sociologia; Fustel de Coulanges, na História, entre outros, contribuíram para fazer do Positivismo e da cientifização do saber um posicionamento poderoso no século XIX. Pode-se inclusive dizer que o Positivismo reduz o papel do homem enquanto ser pensante, crítico, para um mero coletor de informações e fatos presentes nos documentos, capazes de fazer-se entender por sua conta. “Os fatos históricos falam por si mesmos”, dizia Coulanges, historiador francês. Assim, para os positivistas que estudaram a História, esta assume o caráter de ciência pura: é formada pelos fatos cronológicos e o que realmente significam em si. São objetivos à medida que possuem uma verdade única em sua formação (que é o seu sentido e sua única possibilidade de compreensão) e não requerem a ação do historiador para serem entendidos: como já dito, o papel deste é coletá-los e ajeitá-los, constatando pela análise minuciosa e liberta de julgamentos pessoais sua validade ou não. O saber histórico, dessa forma, provém do que os fatos contêm, e assume um valor tal qual uma lei da Física ou da Química, ciência exatas. Tão objetiva é a História para os positivistas que um de seus maiores ensinamentos é a busca incessante de fatos históricos e sua comprovação empírica. Daí a necessidade, como pregavam, de se utilizar na pesquisa e análise o máximo de documentos possíveis: para se obter a totalidade sobre os fatos e não deixar nenhuma margem de dúvida no que se refere à sua compreensão. A busca desses fatos deve ser feita por mentes neutras, pois qualquer juízo de valor na pesquisa e análise altera o sentido e a verdade própria dos fatos, 32 modificando a própria História. Esta se tornaria uma ciência falha e totalmente fora de seu caráter científico, e, portanto, destituída de valor e validade. Coulanges chega a afirmar que a “História não é arte, mas uma ciência pura (...) a busca dos fatos é feita pela observação minuciosa dos textos, da mesma maneira que o químico encontra os seus em experiências minuciosamente conduzidas”. A objetividade, a minuciosidade, o detalhe e a dedicação impessoal, portanto, são as grandes lições da escola positivista para o estudo da História no século XIX e no início do XX. Os historiadores que, nessa época, tentaram provar outras formas de se estudar a disciplina foram desconsiderados e postos à margem. Numa sociedade europeia que buscava seu próprio desenvolvimento e avançava rumo a grandes descobertas na ciência e na tecnologia, a cientifização que marcou a época também se espalhou para o campo dos estudos humanos, reduzindo o papel do profissional desse campo para um mero coletor de informações. A implicação de opiniões externas aos sentidos dos fatos históricos alterava a História, na opinião positivista, e eliminava assim sua legitimidade como saber de importância social. Principais representantes do Positivismo 33 UNIDADE 5 – MATERIALISMO HISTÓRICO Não há como falar em materialismo histórico sem antes entendermos um pouco dos estudos de Karl Marx (para falar a verdade, bem pouco mesmo). Buscamos em Ferreira e Silva (2012) as explicações mais simples para entendermos o Materialismo Histórico. Vamos lá: Karl Marx (1818-1883) desenvolveu a teoria socialista partindo da análise crítica e científica do capitalismo. Ele não se preocupava em pensar como seria uma sociedade ideal, mas sim, preocupava-se em compreender a dinâmica do capitalismo, e para tal, estudou a fundo suas origens, a acumulação de capital, a consolidação da produção, e suas contradições (que inevitavelmente, esse sistema seria destruído por si só – em sua dinâmica evolutiva geraria elementos que acabaria por destruí-lo). Os princípios básicos que fundamentaram o socialismo marxista podem ser sintetizados em três teorias centrais: i) a teoria da mais-valia, onde se demonstrava a maneira pelo qual o trabalhador é explorado na produção capitalista; ii) a teoria da luta das classes, onde se afirma que a história da sociedade humana é a história da luta das classes ou do conflito permanente entre exploradores e explorados; e, iii) a teoria do materialismo histórico. Marx dedicou-se a um estudo intensivo da história, e criou uma teoria que veio a ser conhecida como a concepção materialista da história, que foi exposta num trabalho em que esboça a história dos vários modos de produção, prevendo o colapso do modo de produção vigente – o capitalismo. O materialismo histórico é uma teoria sobre toda e qualquer forma produtiva criada pelo homem de acordo com seu ambiente ao longo do tempo, onde se evidencia que os acontecimentos históricos são determinados pelas condições materiais (econômicas) da sociedade. Dentre as ideias do materialismo histórico, relevam-se as questões das forças produtivas e relações de produção. 34 Marx afirmou que a estrutura de uma sociedade depende da forma como os homens organizam a produção social de bens. A produção social, segundo ele, engloba dois fatores básicos: as forças produtivas e as relações de produção. � As forças produtivas constituem as condições materiais de toda a produção. Representam as matérias-primas, os instrumentos, as técnicas de trabalho e até os próprios homens. Reconhece-se o grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma nação a partir do aperfeiçoamento da divisão do trabalho. � As relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam para executar a atividade produtiva. Elas se referem às diversas maneiras pelas quais são apropriados e distribuídos os elementos envolvidos no processo de trabalho. Assim, as relações de produção podem ser cooperativistas (como um mutirão), escravistas (como na antiguidade), servis (como na Europa feudal) e capitalistas (como na indústria moderna). Forças produtivas e relações de produção são condições naturais e históricas de toda a atividade produtiva que ocorre em sociedade. A forma pela qual ambas existem e são reproduzidas numa determinada sociedade constitui o que Marx determinou de modo de produção. Para ele, o estudo deste é muito importante para a compreensão de como se organiza a sociedade (FERREIRA; SILVA, 2012). Pois bem, feitas essas explicações, eis que no contexto da Revolução Industrial, o pensamento socialista aparece como reação a ala conservadora(positivistas), tendo em Karl Marx e Friedrich Engels, sua expressão máxima. Eles procuram colocar em evidência os antagonismos e contradições da sociedade capitalista. São pontos importantes dessa fase: � interpreta a vida social conforme a dinâmica da luta de classes e prevê a transformação das sociedades de acordo com as leis do desenvolvimento histórico de seu sistema produtivo; � a historiografia marxista ressalta como perspectiva para a compreensão do passado, a importância das massas nos feitos históricos e percebe essas massas populares como integrantes ativos na construção da história (luta contra dominação ou alienação das classes oprimidas pelo sistema capitalista); 35 � Marx e Engels defendem a ideia de que a História constitui, no seu essencial, uma descrição da luta de classes que sempre tem lados oposto explorados e exploradores. As contradições são o motor da história; � a partir disso, os acontecimentos não são acabados e a História não é dada, mas sim construída socialmente pelos indivíduos que nela se inserem; � o pensamento marxista torna-se uma corrente política-teórica que influencia pensadores e “militantes” em todo mundo, nem sempre coincidentes com o que foi chamado Socialismo Científico. Ex: Stalinismo. Diga-se de passagem, que os rumos tomados pelo Stalinismo acabaram gerando um grande desconforto entre os marxistas da época. Como disse Hunt (1981), não podemos esperar que Marx ou qualquer outro pensador tenha sido um vidente infalível da sequência exata e da ocasião exata dos acontecimentos futuros. (...) Marx, porém, apresentou uma análise estruturada, bem como inúmeros esclarecimentos teóricos e históricos concretos, que continuam, comprovadamente, muito úteis até hoje, para que a estrutura e o funcionamento do capitalismo possam ser entendidos. Enfim, a Filosofia marxista configurou, de fato, um novo enfoque teórico de análise da História. Enquanto os historiadores positivistas baseavam seus estudos na “genealogia da Nação Moderna”, por intermédio dos documentos oficiais escritos, compondo uma história das elites políticas, “reacionária” do ponto de vista teórico, Marx afirmava ser a Luta de classes o verdadeiro fundamento de uma História em movimento. Para Marx, o “trabalho” (categoria fundante de sua filosofia), entendido como as múltiplas relações entre os homens e a natureza, relação esta que ocorre como condição material da vida em sociedade, representa o estágio ou modelo de produção de organização social e econômica de um determinado espaço e período histórico. O “acontecimento” e “as ações individuais” (fundamentais para os historiadores positivistas), provocadores de transformações e mudanças, são para os historiadores marxistas, consequências naturais do estágio do modo-de-produção em curso (RODRIGUES, 2011). 36 Principais representantes do materialismo dialético 37 UNIDADE 6 – ESCOLA DOS ANNALES A corrente do pensamento historiográfico conhecido como École des Annales surgiu com a inauguração da revista: “Annales de História Econômica e Social”, fundada, em 1929, pelos historiadores Marc Bloch (1886-1944) e Lucién Febvre (1878-1956) (ambos professores da Universidade de Estrasburgo - França). A intenção era promover estudos relativos às estruturas econômicas e sociais, favorecendo possíveis contatos interdisciplinares no seio das Ciências Sociais. Os horizontes de ação do historiador ampliavam-se e possibilitavam recuperar o passado por intermédio de questões colocadas pelo tempo presente, assim como a ampliação da noção de fonte. Para eles: a História deixa de ser “narrativa” para ser “problema”. Na história-problema, o historiador escolhe seus objetos no passado e os interroga a partir do presente. Ele explicita a sua elaboração conceitual, pois reconhece a sua presença na pesquisa: escolhe, seleciona, interroga, conceitua. Segundo Bitencourt (2004), a noção de tempo é encarada como a divisão entre tempo do acontecimento, da conjuntura e da longa duração ou estrutura que possibilitou uma ampliação da noção de tempo à História e definiu novos aportes metodológicos para apreensão da memória histórica. Guarde: A Escola dos Annales foi realmente um movimento de renovação da historiografia iniciado na França do final da década de 1920, com a fundação, por Marc Bloch e Lucien Febvre, da revista Anais de História Econômica e Social. Como o próprio título denuncia, os dois historiadores, inicialmente periféricos na academia francesa e que reuniram em torno de si pesquisadores de outras áreas das ciências humanas, propunham uma escrita da história que privilegiasse o econômico e o social em detrimento do político. Se opondo diretamente à produção historiográfica predominante no século XIX, a revista tornou-se um movimento de vanguarda na renovação do método de 38 investigação histórica, divulgando, entre outras coisas, a concepção de uma história total que fosse desenvolvida a partir de uma problemática (como já dito, história- problema) e que utilizasse interdisciplinaridade como estratégia importante para se chegar ao conhecimento histórico. A reflexão sobre o caráter das fontes históricas também é outra contribuição da escola, a partir dela, o conceito de documento histórico será relativizado, no que tange a ideia de verdade e neutralidade, e enriquecido a partir da incorporação de novas formas de fontes históricas, além da escrita. 6.1 Primeira geração – Bloch e Febvre A insatisfação que os jovens Lucien Febvre e Marc Bloch demonstravam nas Décadas de 1910 e 1920, em relação à História Política, sem dúvida estava vinculada à relativa pobreza de suas análises, em que situações históricas complexas se viam reduzidas a um simples jogo de poder entre grandes homens ou países. A necessidade de uma História mais abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem se sentia como um ser cuja complexidade em sua maneira de sentir, pensar e agir, não podia reduzir-se a um pálido reflexo de jogos de poder, ou maneiras de sentir, pensar e agir dos poderosos do momento. Fazer uma outra História, na expressão usada por Febvre, era, portanto menos redescobrir o homem do que, enfim descobri-lo na plenitude de sua virtualidade, que se inscreviam concretamente em sua realização histórica. Talvez resida nessa intenção de diversificar o fazer Historiográfico a maior contribuição de Bloch e Febvre, quando, além de produzirem uma obra pessoal significativa, fundaram a Revista dos Annales, com o explícito objetivo de fazer dela um instrumento de enriquecimento da História, por sua aproximação com as ciências vizinhas e pelo incentivo à inovação temática. Duas personalidades, dois temperamentos, duas maneiras de abordagem do homem harmonizando-se numa combinação que possibilitou o franqueamento de fronteiras da História. Lucien Febvre (especialista no século XVI) e Marc Bloch (medievalista) foram os líderes do que pode ser denominado Revolução Francesa da Historiografia. 39 Embora fossem muito parecidos na maneira de abordar os problemas da História, diferiam bastante em seu comportamento. Febvre, oito anos mais velho, era expansivo, veemente e combativo, com uma tendência a zangar-se quando contrariado por seus colegas; Bloch, ao contrário, era sereno, irônico e lacônico, demonstrando um amor quase inglês por qualificações e juízos reticentes. Apesar, ou por causa dessas diferenças, trabalharam juntos durante vinte anos entre as duas Guerras. Em 1897, Lucien Febvre foi admitido na Escola Normal Superior. Era uma pequena Escola Superior, mas altamente qualificada intelectualmente. Aceitava pouco menos de 40 alunos por ano. O ensino era ministrado através de seminários de aulas expositivas. Febvre aprendeu muito com Paul Vidal de La Blache, um Geógrafo interessado em colaborar com Historiadores e Sociólogos.Lucien Lévy- Bruhl, Filósofo e Antropólogo, criador do conceito de “Pensamento Pré-lógico” ou “Mentalidade Primitiva”, Emile Mâle, Historiador, um dos pioneiros a concentrar-se não na História das Formas, mas na das imagens, na iconografia, como dizemos hoje. Antoine Meillet, Linguista, interessado nos aspectos sociais da língua. Febvre reconheceu também seu débito para com inúmeros Historiadores anteriores. Durante toda a vida expressou sua admiração pela obra de Michelet. Reconheceu Burckhardt como um de seus “Mestres”, juntamente com o historiador da arte Louis Courajod. Confessa também uma surpreendente influência; a do político de esquerda Jean Jaurés, através de sua obra Histoire Socialiste de la Révolucion Française (1901-3), “Tão rica em intuições sociais e econômicas” (BURKE, 1991). Uma característica marcante e poderosa do estudo de Febvre era a introdução geográfica, que traçava um nítido perfil dos contornos a região. A introdução geográfica era quase obrigatória nas Monografias Provinciais da Escola dos Annales da década de 1960. Febvre também teve influência do Geógrafo alemão Ratzel, apesar de num debate apoiar Vidal de La Blache e atacar Ratzel, enfatizando a variedades de possíveis respostas ao desafio de um dado meio. Segundo ele, não havia necessidade, existiam possibilidades. Em última análise, não é o ambiente físico que determina a opção coletiva, mas o homem, sua maneira de viver, seu comportamento. A carreira de Bloch não foi muito diferente da de Febvre. Frequentou também a Ecole Normale, onde seu pai Gustavo ensinava História Antiga. 40 Aprendeu, igualmente, com Meillet e Lévy-Bruhl: contudo, como comprova a análise de suas últimas obras, sua maior influência foi a do Sociólogo Emile Durkheim, que iniciou sua carreira de professor na Ecole mais ou menos na época de seu ingresso. Apesar de seu interesse pela Política Contemporânea, Bloch optou por especializar-se em História Medieval. Como Febvre, interessava-se pela Geografia Histórica, tendo especialização a Ile-de-France, sobre a qual publicou um estudo em 1913. Esse estudo revela que, como Febvre, Bloch pensava no tema sob a perspectiva de uma História-Problema. O compromisso de Bloch com a Geografia era menor do que de Febvre, embora seu compromisso com a Sociologia fosse maior. Contudo, ambos estavam pensando de uma maneira interdisciplinar. Bloch, por exemplo, insistia na necessidade do Historiador Regional combinar as habilidades de um Arqueólogo, de um Paleógrafo, de um Historiador das Leis, e assim por diante (BURKE, 1991). A verdade é que, conforme já afirmava Burke (1997 apud REIS, 2004), desde o encontro entre Marc Bloch e Lucien Febvre, a historiografia nunca mais foi a mesma, no entanto, as variações de opinião acerca de como e o que mudou com o advento da Escola dos Annales são muitas. O “montante” de paradigmas, afirmações e direções permearam as três gerações desse movimento. Na verdade, a grande contribuição historiográfica dos Annales em sua primeira geração foi a possibilidade de um diálogo entre a história e as ciências sociais, rompendo uma barreira invisível e ao mesmo tempo sólida, legitimada por uma história tradicional, factual, excessivamente preocupada com os acontecimentos advinda do século XIX (REIS, 2004). A “história nova” empreendida por Febvre e Bloch com a Escola dos Annales, começa a tecer suas redes de conhecimento em contraposição a história tradicional “enraizada” nos grandes homens e fatos, e que dessa forma, marginalizava muitos aspectos das experiências humanas, entretanto, para a “história nova”, toda vivência humana é portadora de uma história. Partindo desta ideia que os Annales construíram, o sentido de “História total”. A primeira geração dos Annales foi o ponto de partida para as novas abordagens da história. Bloch em ‘Les Reis Thaumaturges’ (Os Reis de Taumaturgos) amplia o campo historiográfico sobre o estudo do mundo rural, 41 fazendo comparações entre a França e a Inglaterra, algo novo do ponto de vista tradicional “acostumado” a escrever sobre temas mais restritos. Febvre objetivava uma pesquisa interdisciplinar com uma história voltada para a problematização, entretanto, em algumas obras propunha uma homogeneidade de pensamento praticamente “impossível”. Era preciso levar em consideração os vários aspectos e diferenças humanas, seja ele homem, mulher, rico ou pobre. O fato é que as diferenças existem na forma de pensar dos indivíduos, e não levá-las em consideração, é negligenciar outros campos relevantes (MARTINS, 2008). Os pensamentos de Marc Bloch e Lucien Febvre se entrecruzaram na criação de uma revista. Assim, os Annales surgiram como nova proposta no meio científico, contrariando a história política tradicional e abrindo espaços para a história social e econômica. Nesse período, são muitas as publicações concernentes aos referidos temas. A revista dos Annales condensou os saberes e experiências de Bloch e Fevbre, assim como suas críticas a uma história tradicional, enraizada no modelo positivista. Relembremos que os positivistas acreditavam que, se adotassem uma atitude de distanciamento de seu objeto, sem manter relações de interdependência, obteriam um conhecimento histórico objetivo, um reflexo fiel dos fatos do passado, puro de toda distorção subjetiva. O historiador, para eles, narra fatos realmente acontecidos e tal como eles se passaram (REIS, 2004). Martins (2008) explica que nessas conexões de dizeres e saberes, os positivistas “amarram” o historiador a teias complexas e interrompem seu processo criador. Em termos historiográficos, o “cientista” positivista colhe provas de suas falas, fechando suas conclusões objetiva e comprovadamente. Contrários a essas ideias, Bloch e Fevbre se assemelhavam, delineando a primeira geração, aos seus modos. Com a morte dos maiores representantes da primeira geração, Bloch e em seguida Fevbre, Braudel é o sucessor e diretor efetivo dos Annales. Sua proposta inicial é de renovação, consequência de conflitos internos ocorridos no período pós- morte de Fevbre. Fato é que a Escola dos Annales tem na sua história o marco de uma “revolução” historiográfica francesa (BURKE, 1997). 42 O início do século XX tem suas particularidades, os Annales são, portanto frutos de seu tempo. Suas maiores contribuições consistem no implemento da história-problema, da ampliação das fontes, do enquadramento da história como “ciência humana e social”, através de uma relação interdisciplinar, porém tudo isso motivado ainda por um ideal de cientificidade (MARTINS, 2008). 6.2 Segunda geração – Braudel Fernand Braudel (1902-1985) é consensualmente considerado um dos maiores historiadores do século XX, além de ter dominado amplamente a segunda geração dos Annales – este movimento que tantas repercussões trouxe para a historiografia mundial e, particularmente, para a historiografia brasileira (WALLERSTEIN, 1989 apud BARROS, 2012). Ao assumir a direção da Annales, em 1959, Fernand Braudel imprimiu à revista a sua identidade. O apreço pela geografia e pela longa duração de tempo está revelado em sua tese “O Mediterrâneo e Felipe II”. Braudel considerava a “história dos eventos” superficial, ou seja, a história política/militar revelada pela narrativa seria limitada. O historiador deveria percorrer caminhos de tempo mais longo a fim de entrar em contato com a estrutura social e econômica da sociedade em questão. Havia, também, o privilégio da “História da Cultura Material” que deixava de lado importante esfera da manifestação humana, o mundo simbólico, tão observado pela Antropologia. Indo além, Braudel foi importante para a construção da geo- história. Em sua concepção, o estudo da relação entre o homem e o seu meio, seria de fundamental importância para o entendimento de uma sociedade. Concomitante à “Era Braudel”,
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