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Desobediencias-de-genero-Joao-Manuel-de-Oliveira (1)

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João	Manuel	de	Oliveira
	
	
	
	
Desobediências	de	Gênero
	
	
	
	
	
	
	
Editora	Devires
	
Conselho	Editorial
	
Carlos	Henrique	Lucas	Lima
Djalma	Thürler
Fran	Demétrio
Jaqueline	Gomes	de	Jesus
Joana	Azevedo	Lima
João	Manuel	de	Oliveira
Jussara	Carneiro	Costa
Leandro	Colling
Luma	Nogueira	de	Andrade
Guilherme	Silva	de	Almeida
Marcio	Caetano
Maria	de	Fatima	Lima	Santos
	
João	Manuel	de	Oliveira
	
	
	
	
Desobediências	de	Gênero
2017,	João	Manuel	de	Oliveira
Qualquer	parte	dessa	obra	pode	ser	reproduzida,	desde	que	citada	a	fonte.	Direitos	para	essa	edição	cedidos	à	Editora	Devires.
	
EDITOR/DIAGRAMAÇÃO	|	Gilmaro	Nogueira
	
CAPA	|	Caco
	
FOTOGRAFIA	|	Zazo	Guerra
	
OL48d Oliveira,
João	Manuel
de
	 Desobediências	de	gênero	/	João	Manuel	de
Oliveira.	–	Salvador,	BA:	Editora	Devires,
2017.
	 124p.
	 ISBN:	978-85-93646-03-4
	 1.	 Feminismo.	 2.	 Identidade	 de	 Gênero.	 3.
Teoria	queer.	4.	Feminismo	negro.	 I.	Oliveira,
João	Manuel	de.	II.	Título.
	 CDD	140.17
CDU	141.134.3(81)
	
	Índice	para	catálogo	sistemático:
1.	Feminismo:	140.17
1.	Tipos	de	pontos	de	vista	filosóficos	–	Feminismo:	141
	
Editora	Devires
Av.	Ruy	Barbosa,	239,	sala	104,	Centro	–	Simões	Filho	–	BA
www.editoradevires.com.br
	
SUMÁRIO
	
PREFÁCIO
MARIAS	COMO	PREÂMBULO
FEMINISMOS	NEGROS,	DAS	DIFERENÇAS	E	NAS	MARGENS
LÉSBICAS,	QUEER	E	TRANSFEMINISMOS:	ENCARNAÇÕES	FEMINISTAS
TRÂNSITOS	E	DEMOCRACIAS	DE	GÊNERO
REFERÊNCIAS
NOTA	BIOGRÁFICA
	
	
http://www.editoradevires.com.br
	
PREFÁCIO
	
Para	não	ser	obrigada	a	nada!
	
Leandro	Colling[1]
	
Conheci	João	Manuel	de	Oliveira	no	início	de	uma	noite	meio	fria	em	outubro
de	2013,	em	um	café	no	Bairro	Alto,	em	Lisboa.	Eu	estava	começando	a	realizar
as	entrevistas	para	minha	pesquisa	sobre	o	movimento	LGBT	e	o	ativismo	queer
em	Portugal,	Espanha,	Argentina	e	Chile.	João	foi	a	primeira	das	35	pessoas	que
eu	 entrevistei	 nesses	 quatro	 países.	 A	 entrevista	 durou	 umas	 duas	 horas	 e	 foi
fundamental	 não	 apenas	 para	 eu	 compreender	 um	 pouco	 das	 tensões
portuguesas,	mas	também	por	direcionar	boa	parte	da	pesquisa	que	culminou	no
livro	 Que	 os	 outros	 sejam	 o	 normal,	 lançado	 em	 2015	 pela	 Editora	 da
Universidade	Federal	da	Bahia.
	
Em	junho	de	2014,	quando	eu	fazia	a	pesquisa	de	campo	em	Madri,	novamente
nos	 encontramos	 e	 foi	 lá	 que	 consolidamos	 nossa	 amizade	 nas	 atividades	 do
Orgulho	 Crítico,	 que	 é	 realizado	 por	 vários	 coletivos	 dissidentes	 da	 Parada
LGBT	local.	Participamos	de	vários	debates,	 lançamentos	de	 livros,	da	própria
marcha	do	Orgulho	Crítico	e,	é	claro,	de	festas	e	muitas	conversas	em	bares	de
Lavapiés.	Depois	disso,	não	desgrudamos	mais.	Já	nos	encontramos	outras	vezes
em	Lisboa	e	em	Salvador,	cidade	onde	ele	veio	para	passar	o	Carnaval	e	ficou
meses	em	minha	casa...
	
E	por	que	estou	falando	disso	no	prefácio	do	livro	dele?	O	que	uma	coisa	tem	a
ver	com	a	outra?	Pois	saibam	que	tem	tudo	a	ver.	A	nossa	amizade	se	consolidou
porque	compreendemos	os	feminismos	de	uma	forma	muito	parecida.	E	é	isso	o
que	 João	 faz	 neste	 pequeno-grande	 texto:	 ele	 explica	 como	 compreende	 os
feminismos	desde	uma	mirada	pós-colonial	e	queer.
	
Logo	 em	 nossa	 primeira	 conversa	 percebemos	 como	 temos	 leituras	 muito
semelhantes	 e	 também	 trajetórias	 que	 se	 afastam	 de	 persectivas	 mais
disciplinares	 (ele	 da	 Psicologia	 e	 eu	 da	 Comunicação).	 E	 o	 mais	 importante:
essas	 leituras	 mudaram	 nossas	 vidas,	 nossas	 compreensões	 sobre	 ativismos,
militâncias,	 relações	 interpessoais,	 afetivas,	 sexuais...	 É	 por	 isso	 que	 sentimos
saudades	 um	 do	 outro,	 de	 nossas	 conversas,	 nem	 sempre	 amistosas	 ou	 em
concordâncias,	 regadas	a	vinho	na	brisa	quente	de	Salvador	ou	na	mais	amena
(para	ele	sempre	de	um	frio	insuportável)	de	Lisboa.	E	ao	ler	o	texto,	matei	um
pouco	da	saudade	que	sinto	do	João	porque	a	cada	frase	que	eu	lia	parecia	que
estava	 a	 escutar	 a	 sua	 voz,	 com	 seu	 sotaque,	 suas	 pausas,	 seu	 sorriso	 sempre
estampado	no	rosto,	olhos	bem	puxados,	quase	fechados,	sua	ironia,	às	vezes	seu
sarcasmo,	acompanhados	de	uma	longa	risada	e	a	exclamação:	“porque	eu	não
sou	obrigada	a	nada!”
	
É	isso:	o	feminismo	que	o	João	defende	e	adota	é	um	feminismo	que,	se	pudesse,
faria	 com	 que	 não	 fossemos	 obrigadxs	 a	 nada.	 Um	 mundo	 sem	 sexismo,
racismo,	 machismo,	 misoginia,	 heterossexismo,	 heteronorma.	 E	 como	 fazer
isso?	Não	há	 uma	 só	 resposta,	 pelo	 contrário,	 existem	mil.	Mas	 isso	 não	 quer
dizer	 que	 o	 livro	 não	 aponte	 direções:	 interseccionalidade	 com	 vários
marcadores	 sociais	 das	 diferenças,	 fuga	 dos	 binarimos	 e	 de	 qualquer
essencialismo,	 críticas	 e	 alertas	 aos	 perigos	 das	 rígidas	 políticas	 identitárias	 e
aspirações	 aos	 ideiais	 que	 nos	 subalternizam	 são	 apenas	 algumas	 dessas
direções.	E	assim	João	constroi	o	seu	texto	quase	que	como	uma	aula	capaz	de
ser	compreendida	por	iniciantes	sem	com	isso	simplificar	as	complexas	reflexões
produzidas,	em	sua	maioria,	por	extraordinárias	mulheres.
	
Se	jogue	nessa	leitura	que	é	rápida,	mas	não	sem	consequências.
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
A	Dandara	dos	Santos,	morta	por	 espancamento	 e	 filmada	por	desobediência
de	gênero,	em	Fortaleza.
A	ela,	que	mostrou	toda	a	vulnerabilidade	e	horror	do	humano.
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
“Digo:	Chega.
É	tempo	de	se	gritar:	chega.	E	formarmos	um	bloco	com	os	nossos	corpos”
(Novas	Cartas	Portuguesas)
Marias	como	preâmbulo
	
Este	livro	começa	com	as	Novas	Cartas	Portuguesas	em	epígrafe.	Trata-se
da	grande	obra	do	feminismo	português,	desafiando	tudo	e	todos,	evidenciando
uma	resistência	criativa	que	há	mais	de	40	anos	inspira	fugas	à	ordem	de	gênero,
como	esta,	escrita	por	 três	Marias,	partilhando	um	espaço	biográfico,	pessoal	e
político,	 mas	 num	 outro	 tempo.	 Três	 mulheres,	 Maria	 Isabel	 Barreno,	 Maria
Teresa	Horta	e	Maria	Velho	da	Costa,	que	desconstruíram	noções	de	autoria,	ao
abordarem	o	 continente	desconhecido	das	 sensações	 corporais	 das	mulheres,	 o
orgasmo,	o	prazer.	Desafiaram	a	literatura	e	desafiaram	o	país	cinzento,	beato	e
fascista	que	as	levou	ao	tribunal	sob	acusação	de	pornografia	e	atentado	à	moral
pública.	Um	momento	alto	do	feminismo	global	(Amaral	&	Freitas,	2014),	com
a	 organização	 de	 várias	 atividades	 em	 muitos	 países,	 desde	 boicotes,
manifestações,	até	abaixo-assinados	de	apoio	às	três	Marias.	Uma	das	primeiras
iniciativas	internacionais	do	feminismo	dos	anos	70	foi	precisamente	este	apoio,
para	além	da	importante	contribuição	teórica	da	obra	que	permaneceu	esquecida
(Oliveira,	 2014a).	 Este	 livro	 que	 tem	 nas	mãos,	 tem	 afinidades	 com	 as	Novas
Cartas,	uma	inspiração	constante.
Com	a	minha	amiga	Lynne	Segal,	aprendi	que	o	feminismo	vive	em	nós
como	 uma	 luta	 de	 várias	 gerações	 e	 de	 várias	 idades,	 tal	 como	 a	 nossa
autopercepção	ao	longo	de	uma	vida:	ser	várias	e	ao	mesmo	tempo	sermos	nós.
Cremos	ambas	profundamente	na	intergeneracionalidade	do	feminismo	e	assim
acredito	que	o	meu	 feminismo	 tem	mais	 relação	com	as	3	Marias	do	que	com
feminismos	liberais	de	má	consciência.
Tenho	 a	memória	 recente	 de	 assistir	 com	 a	minha	 sobrinha	 Inês,	 de	 2
anos	de	idade,	ao	clássico	de	animação	Cinderela.	A	conhecida	história	da	filha
do	primeiro	casamento	do	pai	que	vive	com	a	madrasta	e	as	suas	duas	filhas,	o
convite	 para	 o	 baile	 onde	 o	 Príncipe	 vai	 escolher	 a	 noiva.	 A	 animosidade	 da
madrasta	e	das	irmãs	ou	filhas	da	madrasta,	entre	outras	peripécias,	compõem	a
história	da	Gata	Borralheira,	como	também	é	conhecida	em	Portugal.	Nesse	dia,
enquanto	 aninhava	 a	minha	 sobrinha	 Inês,	 ao	 colo,	 desenrolava-se	 este	 drama
que	termina	com	um	final	feliz	(será	mesmo?).	As	lentes	das	teorias	do	gênero	e
do	feminismo	não	me	deixavam	ver	a	história	sem	equacioná-la	no	plano	mais
alargado	 das	 relações	 sociais	 de	 gênero	 e	 no	 modo	 como	 estas	 tocam	 outros
vetores	da	estruturação	social.	Senão,	vejamos:
	
1.	 Cinderela	 passa	 a	 vida	 a	 esfregar	 e	 a	 limpar	 a	 casa	 da	 família,	 quese
aproveita	da	sua	força	de	 trabalho	sem	o	consequente	pagamento	da	mão
de	obra.	Cinderela,	 sendo	mulher	 tal	como	a	Madrasta	e	as	suas	 filhas,	e
com	 elas	 partilhando	 residência,	 é,	 no	 entanto,	 tratada	 como	 empregada
doméstica,	assegurando	as	tarefas	de	que	as	outras	mulheres	não	querem	se
ocupar,	constituindo	uma	classe	à	parte	dentro	daquela	burguesia.	Portanto,
solidariedade	feminista,	nenhuma;	sororidade,	ainda	menos.	Não	fossem	a
Fada-Madrinha	 (fora	 dos	 laços	 familiares)	 e	 os	 animais	 cúmplices,	 ainda
hoje	a	Cinderela	estaria	a	esfregar	a	louça	suja	das	suas	parentes.	Comum	a
todas,	 corpos	 marcados	 pelo	 gênero	 que	 lhes	 foi	 atribuído,	 ninguém	 é
trans*	nesta	estória...
2.	 O	Príncipe	organiza	um	baile	para	escolher	uma	noiva.	Este	mercado	de
carne	sexista	onde	as	mulheres	são	trocadas	entre	homens,	do	pai	passando
para	o	marido,	que,	neste	caso,	implicava	uma	mobilidade	de	classe	para	a
eleita,	tem	como	pressuposto	a	concepção	de	que	mulheres	são	tidas	como
uma	 espécie	 de	 mercadoria,	 de	 bem	 de	 consumo,	 e	 que	 estão	 ali	 na
expectativa	 de	 agradar	 ao	 Príncipe	 e	 dispostas	 ao	 trabalho	 emocional,
sexual	e	afetivo.
Esta	 conjugação	 revela	 a	 dependência	 econômica	 que	 as
mulheres	 tinham	 em	 relação	 aos	 homens,	 nas	 classes	 burguesas	 e
brancas,	quando	dependiam	do	modelo	do	“homem	que	ganha	o	pão”	e
da	mulher	que	fica	em	casa	e	assegura	as	tarefas	do	privado.	Este	modelo
que	 a	 análise	 marxista	 consagra	 como	 fulcral	 para	 a	 emergência	 do
capitalismo	 (Oliveira	&	Amâncio,	 2002),	 assegura	 que	 há	 uma	 divisão
sexual	 do	 trabalho	 que	 coloca	 os	 homens	 como	 responsáveis	 pela
dimensão	da	produção,	vendendo	a	sua	força	de	trabalho	a	quem	dispõe
dos	 meios	 de	 produção,	 e,	 por	 sua	 vez,	 as	 mulheres	 asseguram	 a
reprodução	e	cuidado	com	a	mão	de	obra.
3.	 A	 história	 garante	 a	 impossibilidade	 de	 identificação	 e	 de	 construção	 de
alianças	 entre	 mulheres.	 Estas	 são	 representadas	 como	 uma	 espécie	 de
inimigas	perpétuas	que	competem	por	recursos	aqui	representados	também
pela	necessidade	de	atrair	o	Príncipe.	Ao	não	permitir	esta	possibilidade	de
proximidade	entre	mulheres,	para	além	de	 impossibilitar	uma	sublevação
de	 mulheres	 ou	 uma	 revolta	 feminista,	 torna	 impossível	 a	 experiência
lésbica,	 apagando	 essa	 possibilidade	 da	 história	 (Rich,	 1993).	 A
heterossexualidade	 política	 como	 forma	 única	 de	 conceber	 o	 desejo	 é
afiançada	em	Cinderela	pela	total	competição	entre	mulheres	para	obterem
a	atenção	de	um	homem.	Nesta	 competição,	nem	 todas	 acedem	sequer	 à
possibilidade	de	 serem	escolhidas	pelo	Príncipe.	A	mulher	mais	velha,	 a
Madrasta,	é	tida	como	um	corpo	que	não	poderá	aceder	a	esse	‘mercado’,
antes	 deve	 coordenar	 as	 estratégias	 para	 que	 os	 corpos,	 também	 eles
representados	como	menos	desejáveis,	das	irmãs	de	Cinderela	possam	ser
considerados	na	competição.
4.	 Na	história	de	Cinderela	do	filme	clássico	de	animação,	datado	de	1950	e
produzido	por	Walt	Disney,	não	há	personagens	negras,	asiáticas	ou	com
proveniência	indígena.	Esta	economia	racial,	típica	das	produções	culturais
da	 época,	 é	 reveladora	 da	 invisibilização	 de	 quem	 garantia	 a	 força	 de
trabalho,	 neste	 caso	 da	 esfera	 doméstica	 burguesa	 (nomeadamente	 as
mulheres	‘racializadas’)	e	das	comunidades	não	-brancas.
5.	 Este	filme	impõe	uma	estética	imperialista	ocidental	como	modo	de	vida,
viajando	 através	 da	 colonialidade	 com	 valores	 do	 ocidente,	 como	 o
progresso,	por	exemplo.
6.	 Este	cinema	 implica	uma	comunhão	com	uma	série	de	valores	da	época,
em	 que,	 após	 o	 esforço	 árduo	 da	 heroína	 ela	 seria	 premiada	 e
recompensada	 por	 ser	 a	 escolha	 do	 Príncipe;	 acederia	 ao	 seu	 lugar	 no
mundo	da	heterossexualidade	hegemônica	e	se	 transformaria	na	esposa	e
mãe	 de	 família	 que	 lhe	 permitiria	 libertar-se	 da	 servidão	 na	 casa	 da
madrasta,	 passando	 a	 ser,	 eventualmente,	 uma	 futura	 rainha,	 com	 todo	o
imaginário	 monárquico.	 Repare-se	 como	 a	 libertação	 é	 aqui	 entendida
como	o	alcance	de	uma	posição	no	seio	de	uma	unidade	familiar,	posição
esta	sempre	relativa	a	alguém:	a	mulher	do	Príncipe	e	mãe	que	assegurará
a	reprodução	dos	herdeiros	e	herdeiras.	É	este	o	 final	 feliz	que	espera	as
senhoras	 brancas,	 qualificadas	 e	 burguesas	 dos	 EUA	 dos	 anos	 1950.	 A
misteriosa	 glória	 de	 ser	 uma	 dona	 de	 casa,	 ou	 como	 diria	Betty	 Friedan
(1975:9):
“Se	 uma	 mulher	 tinha	 algum	 problema	 na	 década	 de	 1950	 e	 1960,
sabia	que	qualquer	coisa	não	estava	a	correr	bem	com	o	seu	casamento
ou	com	ela	própria.	Pensava	que	as	outras	mulheres	levavam	uma	vida
satisfeita.	Que	espécie	de	mulher	era	ela	que	não	sentia	essa	misteriosa
plenitude	ao	lavar	o	chão	da	cozinha?	”.
	
Este	livro	que	tens	nas	mãos	é	um	texto	que	visa	entender	o	que	significa
desobedecer	ao	gênero	nas	suas	múltiplas	acepções	e	encarnações.	É	um	trabalho
inspirado	 numa	 leitura	 feminista	 crítica,	 antirracista,	 anti-heteronormativa	 e	 de
esquerda,	 e	 deve	 muito	 a	 textos	 e	 ações	 que	 o	 antecederam.	 É	 também	 um
feminismo	que	viaja,	circula	e	se	detém	em	vários	pontos	e	espaços.
	
Gênero	-	Para	as	perspectivas	marcadas	pela	reflexão	de	Judith	Butler,	existem
normas	através	das	quais	determinados	corpos	e	expressões	de	gênero	são	lidos
e	reconhecidos	numa	sociedade.	Repetimos	expressões	de	gênero,	ao	longo	do
tempo,	 que	 citam	 e	 reiteram	 uma	maneira	 de	 ser	 de	 um	 determinado	 gênero.
Ora,	 o	 gênero	 é	 aqui	 entendido	 na	 sua	 acepção	 de	 performatividade	 (Butler,
1990),	ou	seja,	o	gênero	é	uma	construção	social	que	é	produzida	pela	repetição
de	determinadas	maneiras	de	fazer	o	gênero	que	criam	uma	série	de	efeitos	que
são	tomados	como	essências.	São,	contudo,	criados	por	essa	repetição	e	citados
por	 ela	 como	 se	 houvesse	 neles	 uma	 originalidade	 do	 qual	 todo	 gênero	 seria
cópia,	de	dois	modelos	distintos:	o	masculino	e	o	feminino.	Pelo	contrário,	são
as	citações,	as	cópias	que	criam	a	ideia	de	que	existe	um	original	a	ser	copiado.
Essa	repetição	ao	longo	do	tempo	produz	a	ilusão	de	que	existe	uma	essência	de
gênero	 e	 de	 que	 ele	 existe	 como	 matéria,	 expressa	 no	 sexo	 e	 no	 discurso
biológico	da	natureza.	Para	Butler	(1993),	o	sexo	é	uma	produção	do	gênero,	no
sentido	 em	 que	 o	 significado	 social	 atribuído	 ao	 sexo	 é	 todo	 ele	 gênero.	 Isto
quer	dizer	que	não	há	dimensão	biológica?	Não,	pelo	contrário.	É	afirmar	que
apesar	 das	 dimensões	 biológicas	 que	 possam	 eventualmente	 introduzir
diferenciação	sexual,	serão	os	sistemas	sociais	de	representação	e	produção	do
gênero	 que	 darão	 significado	 a	 essa	 potência	 da	 biologia.	 Tal	 como	mostra	 a
bióloga	Anne	Fausto-Sterling	(2013),	é	preciso	pensar	a	relação	com	o	gênero	e
a	sexualidade	como	sistemas	dinâmicos	complexos,	culturalmente	construídos,
mas	que	ocorrem	no	corpo	e	na	 incorporação.	 Igualmente	 ser	uma	construção
social	 não	 implica	 nem	 negar-lhe	 efeitos,	 nem	 o	 seu	 impacto	 na	 vida	 das
pessoas.	 Implica	 antes	 que	 as	 expressões	 de	 gênero,	 as	 masculinidades	 e
feminilidades	 e	 o	 desejo	 por	 outros	 corpos	 são	 lidos	 e	 reconhecidos	 através
destas	 normas.	 Assim,	 vamos	 falar	 neste	 livro	 de	 normas	 de	 gênero,	 quando
invocarmos	 as	 regulações	 que	 dão	 legibilidade	 ao	 gênero	 e	 que	 regem	 o
reconhecimento	 deste.	 Igualmente,	 falaremos	 de	 expressão	 de	 gênero,	 quando
nos	 referirmos	 ao	 modo	 como	 as	 pessoas	 exprimem	 o	 seu	 gênero	 e	 através
dessas	 performances	 reiteram	 identificações	 e	 desidentificações.	 Recusamos	 a
ideia	de	uma	identidade	de	gênero	estável,	essencial	e	que	precede	o	sujeito	fora
destas	 expressões	 ou	 por	 detrás	 destas	 expressões.	 Pelo	 contrário,	 não	 há
nenhuma	 identidade	de	gênero	que	organize	 as	 expressões	do	gênero.	Não	há
sequer	uma	distinção	entre	processos	internos	e	externos,	dado	que	não	há	um
processo	de	internalização	da	norma:	não	há	um	‘eu’	que	anteceda	a	norma;o
mesmo	poder	que	nos	faz	conformar	às	normas,	constitui	o	momento	formativo
desse	 “eu”.	 Somos	 sujeitos	 pelo	 poder	 e	 estamos	 sujeitos	 ao	 mesmo	 poder
(Butler,	 1997a).	 Assim,	 a	 separação	 entre	 individual	 e	 coletivo	 é	 puramente
ficção	de	uma	psicologia	marcada	pela	ideologia	neoliberal	(Oliveira,	2014a).	O
sujeito	é	sempre	o	 resultado	de	um	processo	de	subjetivação	e	não	existe	 fora
desse	exercício	de	poder.
O	 gênero,	 no	 caso	 deste	 livro,	 não	 implica	 (apenas)	 uma	 divisão	 do
mundo	 entre	 masculino	 e	 feminino.	 Antes,	 implica	 que	 a	 ordem	 do	 gênero
instala	 uma	 organização	 social	 marcada	 pela	 heteronormatividade	 e	 pela
normatividade	 de	 gênero.	 A	 heteronormatividade	 pode	 ser	 definida	 como	 a
norma	que	regula,	justifica	e	legitima	a	heterossexualidade	como	uma	forma	de
sexualidade	mais	natural,	mais	válida	e	mais	normal	em	detrimento	das	outras,
vistas	 como	 negativas	 e	 inferiores.	 Como	 é	 patente,	 uma	 análise	 de	 gênero
implica,	não	 só	a	atender	às	 relações	 sociais	de	gênero,	mas	 também	ao	modo
como	elas	se	expressam	quando	intersectadas	por	outras	matrizes	de	opressão	e
privilégio,	como	é	o	caso	da	‘raça’,	sexualidade,	posição	de	classe,	entre	outras.
E	 mesmo	 em	 contos	 de	 fada,	 mitos	 de	 legitimação	 das	 sociedades
contemporâneas,	é	possível,	com	uma	análise	mais	atenta,	encontrar	e	descobrir
estas	conexões	aparentemente	esquecidas	ou	confortavelmente	invisíveis.
Por	outro	lado,	as	normas	de	gênero	implicam	uma	visão	binária	dos	sexos
vistos	 apenas	 como	 masculino	 e	 feminino,	 sem	 qualquer	 outra	 possibilidade
considerada	saudável.	Estas	normas	garantem	um	consequente	privilégio	para	a
constância	do	gênero,	por	expressões	de	gênero	adequadas	a	essas	normas	e	que
lhe	 garantem	 uma	 aparente	 sensação	 de	 imutabilidade.	 As	 performances	 de
gênero	 partem	 dessas	 normas	 para	 se	 concretizarem	 ou	 para	 ressignificar,	 no
caso	 de	 performances	 subversivas	 tais	 como	 a	drag	 ou	 algumas	 performances
queer.	 Masculino	 e	 feminino,	 como	 lembra	 Lígia	 Amâncio	 (1998),	 são
assimétricos,	 implicam	 não	 só	 uma	 diferença	 hierárquica	 nas	 relações	 sociais,
mas	também	uma	diferença	funcional,	de	definição	e	representação.	Trata-se	de
duas	 espécies	 de	 seres,	 de	 acordo	 com	 o	 pensamento	 socialmente	 partilhado
sustentado	na	lógica	do	gênero.	Apesar	destas	regulações,	as	dissidências	sexuais
e	de	gênero,	bem	como	as	chamadas	novas	políticas	de	gênero	 (Butler,	2005),
começam	 a	 ser	 cada	 vez	 mais	 patentes	 e	 a	 reclamar	 um	 espaço	 de
reconhecimento	e	de	representação	(Colling,	2015).
Um	caso	 evidente	 sobre	 o	 funcionamento	 das	 normas	 de	 gênero	 é	 o	 das
mulheres	trans*.	De	acordo	com	o	Relatório	da	TransgenderEurope	(Balmer	&
Hutta,	 2011),	 a	 situação	do	Brasil	 é	 das	piores	dos	países	 com	esta	 contagem,
sendo	 o	 país	 do	 mundo	 com	 mais	 episódios	 noticiados	 de	 assassinato	 contra
pessoas	 trans*.	 Com	 dados	 atualizados	 em	 2017,	 em	 território	 brasileiro
ocorreram	cerca	de	50%	(938)	dos	homicídios	de	pessoas	trans*	na	América	do
Sul	e	Central	(1834)[2].	Em	2016,	o	Brasil	foi	o	país	do	mundo	onde	mais	pessoas
trans,	 sobretudo	 mulheres	 trans	 foram	 assassinadas,	 de	 acordo	 com	 a
Transgender	Europe.	Berenice	Bento	(2014;	2016)	descreve	a	situação	do	Brasil
como	 transfeminicídio,	 isto	 é,	 como	 uma	 política	 de	 eliminação	 intencional,
disseminada	 e	 sistemática	 desta	 população	 e	 que	 apresenta	 características
distintivas:	as	mortes	ritualizadas,	que	ocorrem	no	espaço	público,	em	situação
de	 impunidade	 por	 parte	 do	 Estado,	 constituindo	 uma	 espetacularização
exemplar	que	se	estabelece	como	preventiva	-	para	impedir	a	desobediência	de
gênero.	 No	 caso	 português,	 a	 morte	 de	 Gisberta	 Salce	 Júnior,	 mulher	 trans
brasileira	 imigrante,	 no	 Porto,	 às	 mãos	 de	 jovens	 rapazes	 institucionalizados
numa	 organização	 religiosa,	 configura	 um	 exemplo	 deste	 tipo	 de
transfeminicídio.	O	 caso	 de	Dandara,	 ainda	 tão	 recentemente,	morta	 no	Brasil
olhando	a	câmara	que	denunciou	o	crime	no	Youtube	é	outra	maneira	de	falar	do
preço	 que	 muitas	 pessoas	 trans	 pagam	 pela	 sua	 aparente	 desobediência	 de
gênero.
Os	 casos	 de	 feminicídio	 em	 Portugal	 e	 no	 mundo	 atingem	 números
elevados.	 Entre	 2004	 e	 2014,	 o	 Observatório	 das	 Mulheres	 Assassinadas	 da
UMAR	 revelou	 que	 ocorreram	 399	 homicídios	 de	mulheres,	 dos	 quais	 336	 se
deu	 no	 espaço	 de	 relações	 de	 intimidade	 (62,6%),	 e	 464	 tentativas	 de
homicídios,	 o	 que	 perfaz	 859	 crimes	 (UMAR,	 2014).	 No	 contexto	 europeu,	 a
Agência	 Europeia	 para	 os	Direitos	 Fundamentais	 (FRA,	 2014),	 estima	 que	 13
milhões	 de	mulheres	 foram	vítimas	 de	 violência	 doméstica	 em	2013	 e	 que	 no
mesmo	 período,	 3.7	 milhões	 experienciaram	 algum	 tipo	 de	 violência	 sexual,
sendo	 que	 uma	 em	 cada	 20	 já	 sofreu	 violação.	 22%	 das	 mulheres	 da	 União
Europeia	sofreram	agressões	perpetradas	por	parceirxs.
O	gênero	apresenta-se	como	uma	ordem	social,	uma	regulação	da	vida
das	pessoas	que	configura	o	modo	como	estas	vivem,	o	que	pode	expô-las	como
vulneráveis	 e	 precárias	 e	 que	 as	 deixa	 sujeitas	 a	 determinadas	 formas	 de
violência	 consoante	 às	 suas	 pertenças,	 (i)legibilidades/reconhecimento	 e
posicionamentos.	O	 caso	das	 pessoas	 trans*,	 sobretudo	manifesto	 no	 exercício
de	violência	contra	mulheres	 trans,	permite	verificar	o	preço	que	determinadas
posições	de	sujeitos	pagam	pelo	lugar	transgressor	face	às	normas.	Veja-se	como
os	 corpos	 das	 pessoas	 trans	 ainda	 sofrem	 de	 uma	 colonização	 por	 parte	 das
normas	de	gênero	e	do	modelo	biomédico	que	recorre	constantemente	às	normas
como	 forma	 de	 exercício	 de	 biopoder	 e	 da	 necropolítica	 sobre	 estes	 corpos
(Oliveira,	2014b),	um	transfeminicídio	(Bento,	2016)	sem	fim	à	vista.
O	gênero,	 enquanto	 construção	e	ordem	social,	 implica	uma	viagem	que
recorre	a	muitas	passagens	e	trânsitos	(Oliveira,	2016)	e	que	não	se	esgota	neles.
Não	há	nenhum	domínio	da	vida	social	onde	o	gênero	não	esteja	presente,	onde
este	não	se	articule	com	outros	setores.	Começaremos	por	entender	que	o	gênero
é	 simultaneamente	 mais	 vasto	 do	 que	 a	 identificação	 com	 masculinidade	 e
feminilidade	 e	 excede	 essas	 categorias,	 até	 porque	 vai	 se	 misturar	 e
interseccionar	 com	 outras.	 Iremos,	 primeiro,	 regressar	 ao	 século	 XIX,	 para
conhecer	 uma	 precursora,	 Sojourner	 Truth,	 e	 depois	 continuaremos.	 Procurei
fazer	uma	genealogia	não	branca	e	não	heterossexual	do	feminismo	e	do	queer,	a
fim	de	mostrar	o	 espaço	para	 a	dissidência	 e	desobediência	 face	 às	normas	de
gênero.	 Contar	 esta	 história	 a	 partir	 de	 outros	 referentes	 que	 não	 as	 eternas
protagonistas	 brancas,	 heterossexuais,	 é	 também	 um	 ato	 de	 procura,	 com	 a
finalidade	 de	 conferir	 uma	 inteligibilidade	 distinta	 aos	 feminismos,	 ir	 beber
noutras	 fontes	 e	 buscar	 viajar	 dentro	 dos	 sistemas	 de	 gênero,	 com	 atenção	 à
‘raça’,	classe,	sexualidades.
Feminismos	negros,	das	diferenças	e	nas	margens
	
Na	Convenção	sobre	Direitos	das	Mulheres	em	Akron,	nos	Estados	Unidos
da	 América,	 em	 1851,	 Sojourner	 Truth,	 uma	 ex-escrava,	 empenhada	 no
movimento	 pelo	 abolicionismo	 da	 escravatura,	 mas	 também	 nos	 direitos	 das
mulheres,	profere	um	discurso	que	entrará	para	a	história	dos	feminismos:
Ali	 aquele	 homem	 diz	 que	 as	 mulheres	 precisam	 de	 ajuda	 para	 subir	 às
carruagens,	para	passar	sarjetas	e	para	ter	sempre,	em	qualquer	lado	os	melhores	lugares.
Nunca	ninguém	me	ajuda	a	subir	às	carruagens,	ou	me	dá	o	melhor	lugar	e	não	sou	eu
uma	mulher?
Olhem	para	mim,	olhem	para	os	meus	braços.
Eu	lavrei,	eu	plantei,	eu	armazenei	e	nenhum	homem	me	passava	à	frente.	E
não	 sou	 eu	 uma	mulher?	 Eu	 poderia	 trabalhar	 tanto	 como	 um	 homem,	 e	 comer	 tanto
(sempre	 que	 arranjasse	 comida)	 como	um	homem.	E	 igualmente	 suportar	 o	 chicote!	E
não	sou	eu	mulher?	Dei	à	 luz	 trezecrianç a s	 e	vi	 a	maior	parte	delas	vendidas	para	 a
escravidão	 e	 quando	 chorei	 com	 tristeza	 de	 mae,	 so	 Jesus	 me	 ouviu!	 E	 nao	 sou	 eu
mulher?	(Sojourner	Truth,	1851,	apud	Carmo	&	Amâncio,	2004:	227).													
	
O	 discurso	 de	 Sojourner	 Truth	 (tantas	 vezes	 discutido)	 é	 uma	 fonte
importante	 para	 se	 pensar	 a	 construção	 social	 do	 gênero	 presente	 na	 ideia	 de
mulher	e	inicia	um	percurso	para	chegar	nos	anos	80	do	século	XX	e	implodir
esse	 edifício	 conceitual	 a	 que	 chamamos	 mulheres,	 desintegrador	 de	 todas	 as
diferenças.	É	 como	 se	 a	definição	do	que	 é	 ser	mulher	 excluísse	uma	 série	de
posições/representações	 que	 muitas	 mulheres	 ocupam,	 são	 e	 se	 sentem.
Pertinente	 citar	 os	 feminismos	 pós-coloniais,	 que	 mostram	 como	 na	 Índia
Colonial,	por	exemplo,	a	instituição	da	imolação	das	viúvas	na	pira	fúnebre	dos
maridos	 recém-falecidos	 (sati,	 literalmente,	 a	 boa	 esposa)	 suscitou	 da	 parte	 da
administração	 colonial	 uma	 reação	 legalista	 de	 proibição,	mas	 que,	 de	 acordo
com	 Gayatri	 Spivak	 (1993),	 não	 teria	 alterado	 as	 posições	 de	 sujeito.	 Os
nativistas,	exercendo	um	jogo	de	ventriloquismo	social,	explicavam	que	eram	as
mulheres	 que	 queriam	 ser	 imoladas	 junto	 ao	 cadáver	 do	 marido.	 E	 dessas
mulheres	não	temos	voz,	nem	eco.	Assim,	entre	a	representação	colonial	da	‘boa
sociedade’	 trazida	 pelos	 ingleses	 e	 expressa	 através	 dos	 direitos	 das	mulheres
(“os	homens	brancos	que	salvam	as	mulheres	pardas	dos	homens	pardos”)	e	pela
representação	 nativista	 do	 “são	 as	mulheres	 que	 querem”,	 não	 sobra	 qualquer
posição	que	as	subalternas	(como	mulheres)	possam	ocupar,	e	a	partir	daí,	falar.
Trata-se	antes	de	uma	determinada	representação	que	ocupa	todo	um	espaço	do
que	pode	ser	uma	mulher.
Feminismos	-	O	termo	feminismo	foi	usado	de	forma	pejorativa	por	Alexandre
Dumas	 Filho	 para	 se	 referir	 a	 homens	 emasculados	 e	 efeminados	 pela
tuberculose	(Cova,	1998)	e	utilizado	como	insulto	para	se	referir	ao	movimento
social	que	começa	com	o	princípio	do	Estado	Moderno,	Revolução	Industrial	e
Iluminismo	 (Carmo	&	Amâncio,	 2004).	O	 referido	movimento	 tentou	 atribuir
um	estatuto	político,	social,	cultural	e	econômico	que	não	fosse	discriminatório
para	 as	 mulheres	 (Nogueira,	 2001).	 Ao	 perseguir	 esse	 estatuto,	 os	 múltiplos
feminismos	que	foram	surgindo	alteraram	profundamente	a	forma	como	o	que	é
considerado	humano	foi	pensado	e	problematizado.	Desse	modo,	o	 feminismo
pode	ser	entendido	como	uma	ressignificação	do	humano,	abrindo	e	expandindo
os	horizontes	desse	termo	(Oliveira,	2014b),	pela	problematização	que	foi	feita
da	relação	das	mulheres	com	esse	humano,	que	sempre	foi	homem,	ocidental	e
branco,	e	que	foi	se	alargando	para	incluir	outrxs.
Teresa	 de	 Lauretis	 (1988)	 elabora	 um	 sujeito	 do	 feminismo	 que	 é	 o
movimento	entre	o	que	é	 socialmente	 representado	como	gênero	e	o	que	essa
representação	 deixa	 de	 fora	 e	 torna	 irrepresentável,	 não	 considerando	 as
mulheres	nem	a	Mulher	como	esse	sujeito.	Partilho	das	suas	dúvidas	e	penso	o
projeto	feminista	como	uma	concepção	que	vai	tratar	o	humano	como	um	termo
de	 exclusão	 (e	 daí	 não	 ser	 humanista)	 que	 carece	 de	 alargamento,
reposicionamento	 e	 ressignificação.	 Trata-se,	 necessariamente,	 de	 um	 projeto
marcado	 por	 uma	 tensão,	 uma	 contradição,	 “o	 produto	 precário	 de	 um
paradoxo”,	como	lhe	chama	Griselda	Pollock	(2001:	196-197):
“[...]	 parecendo	 falar	 em	 nome	 das	 mulheres,	 a	 análise	 feminista
desconstrói	 perpetuamente	 o	 próprio	 termo	 à	 volta	 do	 qual	 se	 encontra
politicamente	organizado”.
Ou,	nas	palavras	da	mesma	Teresa	de	Lauretis,	o	feminismo	caracteriza-
se	 pela	 “negatividade	 crítica	 da	 teoria	 e	 a	 positividade	 afirmativa	 das	 suas
políticas”.	Nesse	 sentido,	 a	 negatividade	 da	 teoria	 (Oliveira,	 2014b)	 tem	 uma
relação	com	esta	acepção	de	uma	definição	de	gênero	sempre	androcêntrica,	isto
é,	 centrada	 na	 experiência	 masculina	 como	 experiência	 universal	 e	 na
experiência	 feminina	 como	 outra,	 distinta	 e	 particular,	 como	 mostra	 também
Simone	de	Beauvoir	 (1949),	 em	O	Segundo	Sexo,	 um	 livro	 fundamental	 para
entender	 os	 feminismos.	 A	 negatividade	 crítica	 do	 feminismo	 vai	 encontrar
espaço	 na	 crítica	 a	 este	 androcentrismo	 nas	 relações	 sociais	 de	 gênero	 e	 sua
representação;	 igualmente,	 na	 tentativa	 de	 trazer	 para	 a	 luz	 esse	 outro
irrepresentável,	 que	 não	 cabe	 no	modo	 como	 o	 gênero	 é	 concebido.	A	 teoria
feminista	 é	 uma	 ferramenta	 essencial	 para	 se	 perceber	 estes	 processos,	 pois
iluminou	o	modo	de	percepção	de	como	o	poder	constrói	as	pessoas	como	entes
marcados	 por	 uma	 miríade	 de	 diferenças	 como	 gênero,	 ‘raça’,	 classe,
sexualidades,	idade	e	outras.
	
Uma	 tensão	 histórica	 e	 ideologicamente	 estruturante	 dos	 debates
feministas	foi	a	atenção	dada	às	questões	de	igualdade	entre	homens	e	mulheres
e	 de	 diferença	 das	 mulheres.	 O	 feminismo	 da	 igualdade,	 centrado	 numa
representação	igualitária,	constitui	o	projeto	político	do	feminismo	liberal.	Esta
corrente	propõe-se	a	reformar	uma	situação	de	discriminação	através	do	aumento
da	 representatividade	 das	 mulheres	 nas	 diversas	 esferas	 da	 sociedade.	 Assim,
acreditava-se	num	trabalho	em	parceria	com	o	Estado	para	fomentar	e	ampliar	a
participação	 das	 mulheres	 em	 todas	 as	 esferas.	 Optava-se,	 portanto,	 por	 uma
linha	 formal	 e	 legalista,	 que	 é	 responsável	 pela	 introdução	 de	 legislação	 e	 de
campanhas	 para	 a	 promoção	 da	 consciência	 da	 discriminação,	 e	 da	 adoção	 de
medidas	 resolutivas	 dessas	 situações	 consideradas	 pouco	 democráticas.	 Esta
linha	feminista	preocupou-se	bastante	com	a	introdução	de	leis	para	a	igualdade
formal	 entre	 homens	 e	mulheres	 e	 valorizou	 a	 importância	 desta	 igualdade	 na
esfera	pública.	Contudo,	como	mostra	Nickie	Charles	(2000),	essa	reivindicação
só	 cabe	 no	 quadro	 de	 um	 Estado	 liberal	 e	 democrático.	 O	 feminismo	 liberal,
pelas	suas	preocupações	legais,	pressionou	os	Estados	de	forma	a	obter	direitos
legais	básicos,	e	ainda	hoje	tem	impacto	junto	aos	governos,	assumindo	a	forma
de	 feminismo	de	Estado,	 corporizado	nas	 comissões	 pela	 igualdade,	 existentes
em	muitos	 países	 e	 nas	 organizações	 internacionais.	 Estas	 comissões	 têm	 um
papel	 importante	 na	 sensibilização	 da	 opinião	 pública	 e	 no	 fomento	 de
campanhas	 contra	 a	 discriminação.	 É,	 contudo,	 notória	 a	 ausência	 de	 teoria	 e
ação	 feminista	 enquanto	 quadro	 inspirador.	 São-lhe	 apontadas	 críticas	 pelo
elitismo	 das	 propostas,	 mais	 preocupado	 em	 permitir	 que	 as	mulheres	 entrem
num	 mundo	 de	 homens	 (e	 claro,	 as	 mais	 qualificadas,	 com	 maior	 acesso	 a
recursos),	 e	 também	 pela	 ausência	 de	 uma	 visão	 transformadora	 das	 relações
sociais	de	gênero	(Charles,	2000).
Diametralmente	 opostos	 a	 esta	 corrente	 feminista,	 posicionaram-se	 os
feminismos	 socialistas.	 As	 influências	 do	 marxismo	 no	 feminismo	 fizeram
sentir-se	 desde	 os	 seus	 primórdios.	 O	 espaço	 de	 intervenção	 das	mulheres	 no
marxismo	permitiu-lhes	a	produção	de	texto	e	a	participação	política.	A	análise
de	Engels	 da	 situação	 das	mulheres	 e	 da	 sua	 possível	 emancipação	 através	 da
proletarização	da	mulher	burguesa	e	do	seu	acesso	ao	mercado	de	trabalho,	foi
influente	em	termos	do	redirecionamento	das	preocupações	com	a	situação	das
mulheres	 para	 a	 luta	 revolucionária	 e	 para	 a	 defesa	 do	 proletariado.	 Esta
perspectiva,	 ao	 aliar	 a	 luta	 de	 classes	 e	 as	 lutas	 das	 mulheres	 (Collin,	 1991),
colocou	as	feministas	socialistas	na	luta	contra	o	capitalismo.	Para	o	feminismo
socialista,	 o	 capitalismo	 é	 a	 base	 da	 opressão,	 quer	 das	 mulheres,	 quer	 do
proletariado,	 e	 vai	 articular-se	 com	o	gênero,	 a	 ‘raça’	 e	 a	 classe	 para	 produzir
determinadas	 formas	 de	 opressão,	 como	 explica	 Angela	 Davis	 (1981).	 Esta
explicação	permite	reforçaro	papel	das	mulheres	na	luta	de	classes,	dado	que	o
capitalismo	 também	 usa	 o	 seu	 trabalho	 não-pago.	 Em	 termos	 de	 alianças
políticas,	 Ana	 Alvarez	 (2002)	 destaca	 o	 papel	 do	 feminismo	 socialista	 na
construção	 de	 alianças	 à	 esquerda.	 Aliás,	 para	muito	 do	 feminismo	 socialista,
como	mostra	 a	 autora,	 o	 feminismo	 é	 tido	 como	mais	 um	dos	movimentos	 de
esquerda.	 Esta	 instrumentalização	 do	 feminismo	 a	 serviço	 da	 esquerda	 é,
geralmente,	 tida	 por	 outras	 feministas	 (nomeadamente	 as	 radicais)	 como	 uma
subordinação,	que	deixava	o	 sexismo	de	esquerda	por	criticar	 (Alvarez,	2000).
Contudo,	 também	 pode	 ser	 vista	 de	 outra	 forma,	 como,	 já	 em	 1908,	 pensava
Alexandra	Kollontai:
As	feministas	declaram	estar	do	lado	da	reforma	social	e	até	algumas	dizem	ser	a
favor	do	socialismo	-	no	futuro	distante,	claro	-	mas	não	tencionam	participar	na	luta	do
lado	 da	 classe	 trabalhadora.	 O	 melhor	 em	 que	 podem	 acreditar,	 com	 uma	 sincera
ingenuidade,	 é	 que	 quando	 os	 lugares	 de	 deputados	 estiverem	 ao	 seu	 alcance	 poderão
curar	os	males	sociais	que	na	sua	visão	se	foram	desenvolvendo	porque	os	homens,	com
o	seu	egoísmo	inerente,	se	tornaram	os	senhores/amos	da	situação.	Contudo,	apesar	das
boas	intenções	dos	grupos	individuais	de	feministas	em	relação	ao	proletariado,	sempre
que	a	questão	da	luta	de	classes	se	colocou,	abandonaram	o	campo	de	batalha	apavoradas.
Elas	sentem	que	não	se	devem	envolver	em	causas	que	lhes	são	alheias	e	preferem	retirar-
se	para	o	seu	liberalismo	burguês	tão	confortavelmente	familiar”	(Kollontai,	1908,	s/p).
	
Se	pensarmos	em	feminismo	liberal,	não	podia	ser	mais	certeira	e	atual	a
crítica.	No	meu	caso,	não	acredito	em	feminismos	que	não	sejam	de	esquerda,
porque,	mesmo	que	sejam	feminismos,	não	sendo	de	esquerda,	não	têm	serventia
alguma	a	não	ser	manter	o	status	quo	e	intocada	a	ordem	do	gênero.
Para	 Colette	 Guillaumin	 (1992),	 o	 homem	 é	 considerado	 um	 ser
independente	 que	 mais	 tarde	 venderá	 a	 sua	 força	 de	 trabalho,	 mas	 encarado
como	um	ser	único	e	 irrepetível,	enquanto	a	mulher	é	apenas	uma	mulher,	um
membro	de	um	grupo,	um	objeto	intercambiável,	sem	outras	características	que
não	 a	 sua	 feminilidade,	 a	 base	 da	 sua	 identidade	 enquanto	 objeto	 social.	 A
apropriação	 da	 classe	 das	 mulheres	 pela	 classe	 dos	 homens	 –	 o	 processo	 de
sexage	 –	 é	 uma	 relação	 social	 em	 que	 os	 atores	 são	 reduzidos	 ao	 estado	 de
unidade	 material	 apropriada.	 A	 ideia	 de	 natureza,	 derivada	 de	 um	 universo
simbólico	de	valores	que	opõem	natureza	a	cultura,	 justifica	a	exclusão	desses
atores	 da	 história.	 A	 utilização	 que	 o	 capitalismo	 faz	 das	 mulheres	 enquanto
força	 de	 trabalho	 gratuita	 para	 a	 esfera	 doméstica	 e	 para	 a	 reprodução,
açambarca	a	mão	de	obra	destas	e	as	 impede	de	aceder	à	condição	de	cidadãs.
Conforme	 foi	 possível	 demonstrar,	 o	 feminismo	 socialista	 salienta	 o	 papel	 da
experiência	 de	 opressão	 vivida	 nas	 sociedades	 capitalistas,	 comparando-a	 com
outras	 relações	 de	 dominação,	 como	 as	 de	 classe.	 Esta	 analogia	 permite-lhes
salientar	 o	 papel	 da	 família	 burguesa	 e	 da	 apropriação	 do	 trabalho	 doméstico
como	fundamentais	na	manutenção	de	um	sistema	que	oprime	as	mulheres.
Já	 no	 caso	 do	 Feminismo	 Radical,	 este	 emerge	 após	 a	 eclosão	 da
Segunda	 onda	 do	 movimento	 feminista	 nos	 Estados	 Unidos	 e	 integra,
rapidamente,	um	número	de	pensadoras	que	irão	produzir	teoria	feminista,	para
além	 do	 ativismo	 feminista.	Assume-se	 que	 o	 sistema	 de	 gênero	 é	 a	 causa	 da
opressão	feminina	(Jaggar	&	Rothenberg,	1984)	e	que	esta	opressão	é	a	matriz
de	todas	as	opressões	humanas.	Como	diz	Angela	Davis,	ser	radical	quer	dizer	ir
à	raiz,	e	o	feminismo	radical	identifica	o	patriarcado	como	a	causa	primeira	do
sistema	 de	 gênero.	 Daí	 que	 a	 sua	 preocupação	 fundamental	 consista	 na
eliminação	do	patriarcado.
	
Patriarcado	-	O	 termo	patriarcado	 foi	 introduzido	na	 teoria	 feminista
por	Kate	Millett	(1970),	uma	das	autoras	mais	destacadas	do	feminismo	radical,
através	da	obra	“Sexual	Politics”,	e	refere-se,	essencialmente,	a	um	sistema	de
organização	 social	 através	 do	 qual	 a	 esfera	 pública	 e	 a	 esfera	 privada	 são
dominadas	pelos	homens.	Esta	dominação	exerce-se,	portanto,	nos	vários	planos
da	vida	social	e	na	família,	por	meio	da	norma	da	paternidade.	De	acordo	com
Millett	 (1970),	 o	 patriarcado	 é	 o	 sistema	 que	 perpetua	 a	 opressão	 e	 a
subordinação	femininas.	Esta	opressão	não	encontra	legitimação	na	biologia	ou
na	natureza,	mas	 faz	parte	de	um	sistema	cultural	que	coloniza	as	mulheres[3].
Ora,	trata-se	claramente	de	um	posicionamento	no	polo	social	que	recusa	a	ideia
de	diferenças	biológicas	para	explicar	o	modo	como	as	mulheres	são	oprimidas.
É	 Millett	 (1970)	 quem	 introduz	 o	 conceito	 de	 gênero	 na	 teoria	 feminista,
importado	dos	trabalhos	de	Robert	Stoller	(1968),	como	veremos	na	seção	sobre
o	conceito	de	gênero.	A	supremacia	masculina	é	construída	socialmente,	no	seio
de	 um	 regime	 patriarcal,	 que	 propõe	 papéis	 sociais	 específicos	 a	 homens	 e	 a
mulheres.
	
De	acordo	com	Rosemary	Tong	(2000),	o	feminismo	radical	subdivide-
se	em	duas	categorias:	o	feminismo	radical	libertário	(como	é	o	caso	de	Millett)
e	o	feminismo	radical	cultural	(que	Nogueira	(2001)	apresenta	como	feminismo
cultural),	 em	 função	 do	 modo	 como	 tencionavam	 erradicar	 o	 sexismo.	 O
feminismo	 radical	 libertário	 opta	 por	 uma	 proposta	 assente	 na	 rejeição	 do
essencialismo	 e	 pela	 transcendência	 do	 regime	 de	 sexo/	 gênero,	 que	 será
aproveitado	 mais	 tarde	 no	 feminismo	 lésbico	 e	 na	 Teoria	 Queer.	 Para	 o
feminismo	radical	 libertário,	a	diferença	sexual	é	pouco	 importante,	na	medida
em	que	essas	diferenças	ficam	circunscritas	à	sexualidade	e	à	reprodução.
Já	 para	 o	 feminismo	 radical	 cultural,	 a	 opção	 é	 essencialista.	 A
feminilidade	 é	 celebrada,	 bem	como	 a	 diferença	 sexual	 irredutível.	Vejamos	 o
caso	 da	 obra	 de	Mary	Daly	 (1978).	 Para	Mary	Daly,	 os	 homens,	 ao	 longo	 da
história,	 oprimiram	 as	 mulheres.	 O	 patriarcado	 constitui	 a	 instituição	 em	 que
essa	 opressão	 é	 perpetrada.	 Os	 homens	 são	 definidos	 pela	 autora	 como
destrutivos	 e	 genocidas,	 ou	 seja,	 tentam	 destruir	 o	 ecossistema	 feminino,	 quer
através	da	opressão,	quer	através	da	poluição;	ou	mesmo	através	do	genocídio	de
mulheres,	 como	 foi	 o	 caso	 da	 condenação	 à	morte	 pela	 fogueira	 das	 “bruxas”
pela	 Inquisição,	 lido	 como	 um	 fenômeno	 de	 genocídio	 perpetrado	 pelo
patriarcado.	 A	 gin/ecologia	 constitui	 a	 rede	 complexa	 de	 relações	 entre	 as
mulheres	e	a	natureza.	As	mulheres	são	definidas	em	termos	da	energia	biofílica
(a	energia	da	vida	e	do	amor	pela	vida)	e	numa	proximidade	com	a	natureza,	a
que	 os	 homens	 não	 conseguem	 almejar.	 A	 opção	 essencialista	 de	Mary	 Daly
implica,	pois,	a	naturalização	e	o	recurso	à	homologia	entre	natureza	e	mulheres,
mais	próximas	da	Terra	e	dos	animais.	O	patriarcado	e	os	homens	surgem	como
opostos	 a	 este	 equilíbrio	 gin/ecológico.	 Mary	 Daly	 preconiza	 uma	 ideologia
separatista	entre	homens	e	mulheres,	considerando	os	homens	como	uma	ameaça
a	este	equilíbrio	entre	as	mulheres	e	a	natureza.
Os	 trabalhos	 de	 Andrea	 Dworkin	 (1987)	 e	 de	 Catherine	 MacKinnon	 (1993)
ilustram	algumas	das	posições	do	feminismo	radical	cultural	face	à	sexualidade	e
pornografia.	 Para	 MacKinnon	 (1993),	 a	 pornografia	 corresponde	 não	 a	 uma
representação	de	um	ato	sexual,	mas	ao	ato	sexual	em	si.	Dado	que	é	punido	o
uso	 de	 palavras	 e	 expressões	 que	 constituem	 atos	 de	 assédio	 sexual,	 a
pornografia	deveria	ser	igualmente	punida.	A	sexualidade	é	um	dos	domínios	da
opressão	 numa	 cultura	 masculinizada.	 Para	 Dworkin	 (1987),	 a	 pornografia
corresponde	 ao	 cerne	 da	 dominação	masculina	 e	 incentiva	 o	 abuso	 sexual	 e	 a
violação.	 Estas	 propostas	 salientam	 e	 valorizam	 uma	 diferençapositiva	 das
mulheres	 em	 relação	 aos	homens.	Preconizam	a	diferença	 sexual	 de	um	modo
essencialista	 e	 que	 pressupõe	 a	 necessidade	 de	 construir	 alternativas	 positivas,
que	tomem	a	diferença	positiva	das	mulheres	como	referente.
O	feminismo	radical	assumiu	uma	grande	importância	no	seio	do	debate
e	 ativismo	 feminista.	A	 importância	 atribuída	 à	opressão	das	mulheres	 e	 a	um
pensamento	 teórico	 que	 pretende	 reconsiderar	 esta	 opressão,	 assumindo	 a	 sua
centralidade	 nas	 sociedades	 contemporâneas,	 deu	 ao	 feminismo	 radical	 as
vantagens	de	proliferação	de	discurso	teórico	e	de	prática	política.	E	incentivou
um	ativismo,	centrado	na	lógica	de	que	“o	pessoal	é	político”	(Hanisch,	1970).
Esta	 atividade	 permitiu	 a	 criação	 de	 grupos	 de	 consciencialização	 da	 opressão
feminina,	 que	 foram	vitais	para	 a	promoção	da	 consciência	 feminista	 e	que	 se
revelaram	 igualmente	 importantes	 para	 repensar	 uma	 série	 de	 questões,
nomeadamente	 as	 que	 se	 ligavam	 à	 experiência	 feminina	 e	 ao	 corpo	 (Boston
Women's	Health	Book	Collective,	1973).	É	importante	frisar	o	contributo	destes
coletivos	 no	 tocante	 à	 criação	 de	 espaços	 onde	 as	 ideias	 feministas	 são
discutidas,	 tais	 como	 editoras,	 cooperativas,	 livrarias	 e	 grupos.	 Algumas	 das
feministas	 radicais	preconizavam	a	necessidade	de	espaços	alternativos	para	as
mulheres	 até	 em	 termos	de	 sexualidade,	 como	 foi	o	 caso	de	grupos	 como	The
Furies	 Collective.	 Nestes	 coletivos,	 surgiu	 uma	 ideologia	 separatista,	 como
modo	 de	 criar	 uma	 distância	 dos	 homens,	 vistos	 como	 inimigos	 íntimos
(Nogueira,	2001).	Em	Portugal,	o	feminismo	radical	teve	expressão	na	sequência
do	apoio	de	mulheres	à	condenação	em	tribunal	por	ofensas	à	moral	pública	das
autoras	(Maria	Teresa	Horta,	Maria	Velho	da	Costa	e	Maria	Isabel	Barreno)	da
obra	Novas	Cartas	 Portuguesas,	 apoio	 este	 que	 deu	 origem	 à	 constituição	 do
Movimento	 de	 Libertação	 das	 Mulheres	 (MLM)	 em	 1974,	 na	 sequência	 da
Revolução	(Tavares,	2011).
Na	França,	surge	também	uma	tendência	diferencialista	(Alvarez,	2002),
centrada	 nos	 contributos	 da	 psicanálise	 lacaniana	 em	 articulação	 com	 as
propostas	pós-estruturalistas	e	desconstrucionistas.	Esta	tendência	do	feminismo
francês	 dos	 anos	 70	 poderia	 ser,	 igualmente,	 categorizada	 como	 um	 tipo	 de
feminismo	 pós-estruturalista,	 mas	 a	 centralidade	 da	 diferença	 sexual	 permite
uma	 aproximação	 às	 tendências	 do	 feminismo	 radical	 cultural,	 do	 qual	 é
contemporâneo.	 No	 seu	 trabalho	 teórico,	 Luce	 Irigaray	 preocupa-se	 com	 a
introdução	 da	 perspectiva	 da	 diferença	 para	 traçar	 uma	 arqueologia	 da
marginalidade	da	mulher,	enquanto	conceito	e	enquanto	corpo	(Cavallaro,	2003).
Partindo	da	proposta	de	que	a	mulher	é	um	Outro,	já	presente	no	pensamento	de
Simone	de	Beauvoir,	 Irigaray	analisa	o	modo	como	a	feminilidade	é	um	efeito
do	 desejo	 feminino	 organizado	 pela	 libido	 feminina	 (Cavallaro,	 2003).	 A
repressão	patriarcal	do	desejo	feminino	ocultou	a	multiplicidade	da	sexualidade
feminina.	Para	Irigaray	(1985),	 trata-se	de	uma	sexualidade	e	de	uma	categoria
sexual	 diversa	 e	 não	 unificada.	 Essa	 lacuna	 ou	 falha	 que	 o	 pensamento
psicanalítico	freudiano[4]	atribui	às	mulheres	é,	para	Irigaray	(1985),	um	reflexo
do	 falogocentrismo	 (associando	 o	 falocentrismo	 e	 o	 logocentrismo),	 da
linguagem	 significada	 a	 partir	 de	 uma	 perspectiva	 masculina	 que	 pensa	 as
categorias	 sexuais	 por	 meio	 do	 binarismo.	 Para	 Irigaray,	 as	 mulheres
representam	uma	multiplicidade	que	o	binarismo	 torna	 ininteligível.	Apesar	de
partir	da	diferença	sexual,	o	pensamento	de	Irigaray	não	assume	uma	perspectiva
essencialista,	dado	presumir	a	diversidade	dentro	da	diferença	sexual.
Tal	como	Irigaray,	também	Hélène	Cixous	(1976)	presume	a	fluidez	da
categoria	“mulher”,	argumentando	a	inexistência	da	mulher	em	geral,	da	mulher
típica,	 e	 assumindo	 a	 heterogeneidade	 categorial.	 Apesar	 desta	 diversidade,	 o
trabalho	de	Cixous	celebra	a	diferença	sexual	como	multitude,	apesar	de	não	a
considerar	 a	 partir	 de	 um	 substrato	 biológico.	 A	 associação	 entre	 a	 diferença
sexual	e	a	 libido	permite-lhe	considerar	o	modo	como	a	 libido	–	definida	pela
psicanálise	como	masculina	–	nega	a	existência	da	“jouissance”,	o	sentido	de	um
êxtase	 sem	 fronteira	 nem	 unidade	 intrínseca,	 negado	 pelo	 falocentrismo	 da
psicanálise	 clássica.	 É	 Cixous	 (1976)	 (e	 também	 Irigaray)	 que	 proclama
igualmente	 a	 existência	 de	 uma	 écriture	 féminine	 (escrita	 feminina),	 que
inscreve	 a	 sexualidade	 feminina	 e	 o	 corpo	 feminino	 no	 discurso.	 A	 escrita
feminina	 recusa	os	princípios	patriarcais	da	 racionalidade	 e	da	 lógica,	 optando
por	privilegiar	o	que	é	marginalizado	e	silenciado	pelo	falogocentrismo.
Esta	 atenção	 à	 linguagem	 que	 o	 feminismo	 francês	 começou	 a	 dar,
justamente	 pela	 sua	 proximidade	 com	 as	 propostas	 lacanianas	 e	 com	 a
importância	do	pensamento	de	Derrida,	na	sua	constituição,	foi	também	central
na	 obra	 de	 Julia	 Kristeva.	 A	 autora	 parte	 do	 pressuposto	 lacaniano	 de	 que	 o
sujeito	se	constitui	na	fase	da	aquisição	da	linguagem.	É	a	partir	deste	momento
que	 se	 dá	 a	 separação	 do/a	 filho/a	 em	 relação	 à	 mãe	 e	 que	 entra	 no	 real
(falogocêntrico).	Com	a	definição	consequente	das	fronteiras	do	corpo,	dá-se	o
fenômeno	de	rejeição	de	tudo	o	que	possa	pôr	em	causa	esta	autocontenção,	tudo
o	que	flui	e	tenta	ultrapassar	estas	fronteiras.	Como	mostra	Kristeva	(1985	:13):
“O	 abjecto	 confronta-nos	 […]	 com	 as	 nossas	 tentativas	 iniciais	 de	 nos
libertarmos	 do	 controle	 de	 uma	 entidade	maternal,	mesmo	 antes	 de	 existirmos
fora	 dela”.	Kristeva,	 para	 além	 das	 suas	 propostas	 em	The	 Powers	 of	Horror,
obra	de	culto	não	só	nos	Estudos	Feministas,	mas	também	nos	estudos	sobre	o
cinema	e	performance,	ilustra	a	ligação	entre	as	propostas	psicanalíticas,	o	que	é
recorrente	 neste	 feminismo	 francês,	 muito	 centrado	 no	 papel	 da	 diferença,	 na
corporalidade	e	na	linguagem.
Esta	pequena	amostra	das	propostas	do	 feminismo	 francês	centrado	na
ideia	de	diferença,	permite,	contudo,	concluir	uma	distinção	fundamental	no	que
toca	 ao	 feminismo	 radical	 cultural	 norte-americano.	 O	 feminismo	 francês	 da
diferença	 vai	 interrogar	 a	 diferença	 conceitualizando-a	 como	 um	 ponto	 de
questionamento	 e	de	 reflexão	 crítica.	Ao	considerar	 que	 a	diferença	 sexual	 foi
concebida,	seguindo	uma	lógica	falogocêntrica,	estas	propostas	reequacionam	o
projeto	feminista,	questionando	o	feminismo	da	igualdade.	Se	pensarmos	que	a
diferença	sexual	que	é	proposta	não	se	trata	de	uma	diferença	única,	mas	sim	de
uma	multiplicidade	de	diferenças,	o	essencialismo	teórico	da	proposta	parece	ser
menor	 do	 que	 o	 essencialismo	 das	 propostas	 do	 feminismo	 cultural	 norte-
americano.	Contudo,	os	valores	a	que	ambas	as	propostas	recorrem	–	como	o	da
criação	 de	 uma	 escrita	 que,	 ainda	 que	 metaforicamente,	 seja	 feminina,	 a
positividade	de	uma	cultura	alternativa	 feminina,	que	 revoluciona	aquilo	que	o
feminismo	da	 igualdade	apenas	quer	 reformar	–	configuram	um	claro	apelo	ao
feminino	como	alternativa	à	ordem	patriarcal	e	 também	um	projeto	político	de
afirmação	 dessa(s)	 diferença(s)	 primordial(is).	 A	 implicação	 desse	 projeto
consiste	 na	 preponderância	 explicativa	 do	 sexo	 sobre	 o	 gênero	 como	 conceito
que	permite	apreender	a	diferença.	Estas	proposições	feministas	consideram	que
a	valorização	da	diferença	permite	conquistas	políticas	e	sociais	que	não	podem
ser	 conseguidas	 num	 posicionamento	 do	 feminismo	 da	 igualdade.	 A
preponderância	do	corpo	sexuado	e	da	linguagem	como	forma	de	dar	sentido	a
essa	sexuação	permitem	um	reposicionamento	das	propostas	feministas,	a	partir
do	corpo.
Uma	das	principais	críticas	levantadas	às	feministas	liberais	tem	a	ver	com
a	identificação	de	um	sujeito	feminista	que	para	as	autoras	do	feminismo	negro
correspondia	àmulher	branca,	heterossexual,	burguesa	e	que,	portanto,	 falhava
no	plano	de	uma	representação	das	outras	mulheres.	Diz-nos	bell	hooks
	
As	 mulheres	 brancas	 que	 dominam	 o	 discurso	 feminista	 nos	 dias	 de	 hoje
raramente	questionam	se	a	 sua	perspectiva	 sobre	a	 realidade	das	mulheres	corresponde
verdadeiramente	às	experiências	vividas	pelas	mulheres	como	coletivo.	 Igualmente	não
estão	 conscientes	 do	 ponto	 a	 que	 suas	 experiências	 refletem	 enviesamentos	 de	 raça	 e
classe,	apesar	da	maior	consciência	sobre	isso	nos	últimos	anos.	O	racismo	abunda	nos
escritos	 das	 feministas	 brancas,	 reforçando	 a	 supremacia	 branca	 e	 negando	 a
possibilidade	de	articulação	política	de	mulheres	para	 lá	das	 fronteiras	étnicas	e	 raciais
(1984,	p.	3):
	
Esta	frase	de	hooks	ilustra	um	sentimento	de	frustração	com	as	políticas
de	representação	feministas	que	foi	partilhado	por	vários	grupos.
Esta	crítica	desferida	ao	feminismo	liberal	é	partilhada	por	várias	autoras
feministas	 negras	 e	 chicanas,	 que	 centram	 a	 sua	 atenção	 no	 modo	 como	 os
feminismos	 brancos	 vieram,	 na	 sua	 reflexão,	 a	 excluir	 possibilidades	 de
representação	 das	 outras	 mulheres	 não	 brancas,	 não	 heterossexuais	 e	 que	 não
fossem	 de	 classe	 média.	 Um	 bom	 exemplo	 destas	 perspectivas,	 para	 hooks
(1984),	é	o	caso	de	Betty	Friedan	(1975)	e	da	sua	preocupação	com	as	mulheres
que	não	trabalhavam	e	que	ficavam	em	casa	dedicadas	às	tarefas	domésticas	e	à
educação	dos	filhos.	hooks	(1984)	aponta	que	um	terço	das	mulheres	nos	EUA
eram	 trabalhadoras,	 precisamente	 aquelas	 que	 não	 tinham	 formação
universitária,	 muitas	 delas	 não	 brancas	 e	 seguramente	 sem	 serem	 de	 classe
média.	Assim,	a	crítica	que	o	feminismo	negro	vem	desferir	inexoravelmente	ao
feminismo	 liberal	 tem	 como	 conclusão	 a	 ideia	 de	 que	 a	maioria	 dos	 discursos
feministas	 se	 dirigem	 a	 algumas	 mulheres	 e	 não	 a	 todas.	 Ou	 seja,	 tomam-se
como	ponto	de	partida	os	 interesses	de	um	grupo	específico	dentro	do	coletivo
mulheres	 como	 preocupação	 de	 todas	 as	 mulheres,	 ignorando	 ‘raça’,	 classe
social	e	sexualidade.
De	acordo	com	Violet	Barriteau	 (2010),	 o	 feminismo	negro	 traz	 consigo
uma	série	de	instrumentos	analíticos	que	vêm	alterar	o	modo	como	os	saberes	e
práxis	 feministas	 são	produzidos	 e	vêm	 influenciar	 toda	uma	nova	maneira	de
olhar	 para	 as	 questões	 de	 gênero.	 Dessa	 forma,	 Barriteau	 menciona	 a
interseccionalidade,	 a	 problematização	 da	 ideia	 de	 ‘raça’,	 reformulações	 de
conceitos	 como	 patriarcado,	 binarismo	 do	 público-privado,	 o	 centramento	 na
economia	 política	 (também	 pela	 intersecção	 entre	 feminismo	 negro	 e
socialismo),	 as	 identidades	 múltiplas,	 mas	 sobretudo	 a	 desconstrução	 de	 uma
ideia	 de	 sororidade	 indiferenciada.	 É	 nesta	 ideia	 de	 sororidade	 diferenciada,	 a
que	prefiro	chamar	desconstrução	da	ideia	de	“mulher”,	que	irei	me	centrar.
	
	
Interseccionalidade	 -	 teoria	 criada	 a	 partir	 dos	 feminismos	 negros,
nomeadamente	introduzida	por	Kimberlé	Crenshaw	(1989),	que	visa	analisar	os
efeitos	 das	 posições	 de	 sujeito	 em	 diferentes	 matrizes	 de
privilégio/discriminação	 e	 as	 interseções	 entre	 estas	 posições	 relativas.
Crenshaw	 (1989)	 analisa	 o	 caso	 De	 Graffenreid	 Vs	 General	 Motors,	 num
despedimento	 coletivo	 onde	 todas	 as	 mulheres	 negras	 contratadas	 a	 partir	 de
1970	 foram	 demitidas.	 Cinco	 mulheres	 negras	 processaram	 a	 empresa	 por
discriminação.	O	tribunal	não	deu	razão	às	trabalhadoras.	A	sentença	considerou
que	 a	 empresa	 não	 despediu	 outras	mulheres	 (discriminação	 de	 gênero),	 nem
outros	 negros	 (discriminação	 racial).	 Assim	 o	 tribunal	 não	 reconheceu	 a
discriminação	 interseccional	 dirigida	 a	 mulheres	 negras.	 Esta	 invisibilidade
resultante	 da	 interseção	 demonstra	 o	 efeito	 combinado	 e	 de	 interação	 destas
matrizes	e	a	geração	de	efeitos	que	não	são	acionados	simplesmente	pelo	gênero
ou	pela	‘raça’	(Nogueira,	2017).
	
Uma	 das	 feministas	 que	 denunciou	 esta	 noção	 de	 mulher	 imune	 às
diferenças	 entre	 mulheres	 foi	 Audre	 Lorde.	 Darei	 dois	 exemplos	 da	 sua	 luta
contra	esta	imunidade	e	resistência	do	feminismo	às	mulheres	que	não	cabiam	no
sujeito	mulher.	O	primeiro	exemplo	é	a	sua	posição	na	conferência	dedicada	a
Simone	 de	 Beauvoir,	 organizada	 em	 Nova	 Iorque,	 em	 1979	 (Olson,	 2000),	 a
partir	 de	 onde	 vai	 escrever	 o	 famoso	 ensaio:	 	 “As	 ferramentas	 do	 amo	 nunca
desmantelarão	 a	 casa	 do	 amo”	 (Lorde,	 1984).	Nesse	 contexto,	 chocada	 com	 a
ausência	 de	 feministas	 negras	 na	 conferência,	 Lorde	 vai	 criticar	 a	 ausência	 de
uma	verdadeira	atenção	às	diferenças	entre	mulheres	dentro	do	feminismo,	ponto
fulcral	 da	 sua	 versão	 da	 teoria	 feminista	 em	 que	 as	 diferenças	 não	 devem	 ser
apenas	toleradas,	mas	vistas	como	polaridades	fundamentais	através	das	quais	a
teoria	 feminista	pode	ser	problematizada	 (Lorde,	1984).	Ou	seja,	o	 feminismo,
em	 vez	 de	 mascarar	 ou	 eliminar	 a	 produção	 de	 conhecimento	 sobre	 a
heterogeneidade	da	categoria	mulher,	deve,	pelo	contrário,	assentar	a	sua	prática
política	 e	 teórica	 sobre	 as	 diferenças	 entre	 mulheres.	 Para	 Lorde,	 esta
inexistência	de	um	pensamento	sobre	o	feminismo	que	também	contemplasse	as
diferenças	constitui	uma	fraqueza	do	feminismo	e	uma	verdadeira	capitulação	ao
patriarcado,	 dado	 que	 não	 possibilita	 um	 entendimento	 das	 diferenças	 entre
mulheres	como	uma	aprendizagem	para,	a	partir	daí,	gerar	conhecimento	e	ação
política	 que	 permitam	 uma	 outra	 forma	 de	 fazer	 feminismos	 por	 meio	 das
diferenças	entre	mulheres	–	como	afirma,	noutro	contexto:
	
Quando	digo	que	sou	uma	feminista	negra,	quero	dizer	que	reconheço	que	o	meu	poder
bem	 como	 as	 minhas	 opressões	 primárias	 resultam	 da	 minha	 negritude	 e	 da	 minha
feminilidade	 e	 que	 assim	 sendo,	 as	minhas	 lutas	 em	ambas	 as	 frentes	 são	 inseparáveis
(Lorde,	2009:58).
	
Ou	 seja,	 não	 se	 trata	 de	 valorizar	 apenas	 uma	 característica,	 mas	 sim
atender	 a	 todo	 um	 jogo	 de	 intersecções.	 A	 isso	 poderíamos	 chamar	 de
interseccionalidade,	como	lhe	chamou	mais	tarde	Kimberlé	Crenshaw.
A	 marca	 de	 Lorde	 e	 do	 pensamento	 feminista	 negro	 fica	 assim
indelevelmente	 ligada	a	uma	noção	dos	 feminismos	das	diferenças.	Diferenças
entre	mulheres	que	 são	usadas	como	uma	 fonte	para	outras	práticas	 feministas
que	 não	 as	 de	 um	 feminismo	 liberal	 que	 elege	 apenas	 como	 âmbito	 de
intervenção	a	“mulher”.	Para	este	efeito,	muito	contribuiu	também	os	trabalhos
das	 autoras	 dos	 feminismos	 chicanos	 com	 as	 suas	 noções	 de	 fronteira	 e	 de
identidades	 híbridas,	 como	Glória	Anzaldúa	 (2004).	A	destruição	deste	 sujeito
mulher,	único,	universal	e	pouco	representativo	das	diferenças	e	da	diversidade
intra-categorial,	 leva	ao	alargamento	do	horizonte	da	prática	feminista;	o	que	é
notório	numa	série	de	textos	deste	período	e	do	início	dos	anos	90.	Em	particular
os	 que	 se	 rebelam	 contra	 os	 feminismos	 culturais,	 essencialistas	 e	 mais
preocupados	com	a	valorização	da	diferença	sexual	e	do	feminino	como	grande
causa	 política,	 mantendo	 as	 suas	 crenças	 na	 unidade	 original	 da	 categoria
mulheres.	Aludindo	a	esta	emergência	de	uma	série	de	críticas,	é	notório	como
estas	 vão	 transbordar	 para	 os	 anos	 90	 e	 a	 partir	 daí	 redesenhar	 a	 complexa
paisagem	da	teoria	e	da	política	feminista.	A	ideia	de	um	feminismo	assente	nas
diferenças	e	já	não	apenas	na	diferença	essencial	entre	ser	homem	e	ser	mulher
permite	igualmente	reproblematizar	a	ideia	de	diferença.	Na	análise	que	Teresa
de	Lauretis	 (1987)	 realiza	sobre	o	gênero	enquanto	 tecnologia,	primordial	para
este	debate,	considera	que	o	gênero	evidenciado	como	um	feminismo	centrado
na	 diferença	 entre	 homens	 e	 mulheres	 serve	 de	 obstáculo	 ao	 questionamento
sobre	 as	 diferenças	 entre	 as	 mulheres	 e	 não	 permite	 sair	 de	 um	 esquema
heterossexual	 de	 pensamento	 em	 termosfeministas.	Desta	 forma	 a	 sua	 análise
demonstra	 a	 importância	 de	 contemplar	 outras	 diferenças,	 principalmente	 as
intra-categoriais.
Avtar	 Brah	 (1992)	 problematiza	 este	 tema	 da	 diferença	 equacionando
quatro	 modalidades	 possíveis	 de	 diferença:	 experiência,	 relação	 social,
subjetividade	 e	 identidade.	 A	 diferença	 como	 experiência	 implica	 a	 ideia	 da
existência	 de	 um	 espaço	 discursivo	 onde	 se	 inscrevem,	 reiteram	 e	 repudiam
diferentes	posições	de	 sujeitos.	As	experiências	 são	campos	de	constituição	da
subjetividade,	 e	 é	 através	 desses	 campos	que	 se	 procede	 à	 significação	não	 só
dos	objetos,	mas	à	nossa	própria	constituição.	A	diferença	concebida	desta	forma
implica	atender	à	constituição	de	biografias	e	histórias	pessoais	e	à	sua	relação
direta	 com	 histórias	 grupais	 e	 significações	 coletivas,	 apelando	 à
contingencialidade.
A	 diferença	 enquanto	 relação	 social	 implica	 pensar	 as	 relações	 entre
grupos	 e	 a	 sua	 estruturação	mais	 ampla	 em	 termos	 de	 assimetrias	 sociais,	 ou
seja,	 em	 termos	de	micro	 e	macro	 relações	de	poder.	Esta	 perspectiva	 implica
caracterizar	os	grupos	em	questão,	a	partir	das	estruturas	de	poder	das	relações
sociais,	olhando-os	de	forma	integrada,	histórica	e	sociologicamente,	sem	perder
de	 vista	 as	 relações	 sociais,	 políticas	 e	 econômicas	 que	 se	 estabelecem	 entre
estes	grupos.
Uma	 outra	 maneira	 de	 conceber	 a	 diferença	 é	 encarando-a	 a	 partir	 da
subjetividade.	Olhar	para	a	subjetividade	tem	como	consequência	pensar	que	os
sujeitos	são	sempre	construídos.	Esta	constituição	do	sujeito	deve	atender	não	só
à	 sua	 constituição	 discursiva,	mas	 também	 à	 sua	 fragmentação,	 ao	 seu	 caráter
tanto	social	como	subjetivo,	marcado	por	contradições.	Em	termos	de	diferença,
a	 subjetividade	 implica	 atender	 aos	 processos	 de	 constituição,	 interpelação	 e
estruturação	dos	sujeitos,	abdicando	da	ideia	de	um	sujeito	racional,	universal	e
autodeterminado.
Por	fim,	a	diferença	como	identidade	implica	atender	à	multiplicidade	de
posições	que	constituem	os	sujeitos,	através	das	suas	experiências	e	das	relações
sociais	onde	estão	envolvidos.	Isto	é,	a	diferença	como	identidade	elimina,	para
Brah	(1992),	as	restantes	concepções	de	diferença,	pois	as	integra	como	campos
fulcrais	 para	 pensar	 a	 identidade.	 Assim,	 as	 identidades	 não	 são	 fixas,	 são
instáveis	 e	 contraditórias.	 Esta	 concepção	 da	 identidade	 implica	 considerá-la
como	 contextualmente	 construída	 e	 não	 determinada	 antecipadamente.	 Esta
problematização	 das	 identidades	 permite	 igualmente	 observar	 o	 seu	 caráter
político	como	mobilização	coletiva	com	um	objetivo	político.
Estes	 múltiplos	 aspectos	 da	 diferença	 mostram	 como	 ela	 não	 pode	 ser
tomada	como	um	significado	único.	Pelo	 contrário,	 é	necessário,	 como	mostra
Brah	(1992),	repensar	a	diferença	a	partir	de	múltiplas	perspectivas	como	modo
de	 analisar	 quer	 o	 seu	 caráter	 opressivo,	 quer	 a	 sua	 potencialidade
emancipatória.	 Conforme	 nos	 foi	 possível	 observar	 nesta	 análise,	 a	 diferença
pode	 ser	 ressignificada	 por	meio	 de	 uma	 série	 de	 propostas	 que	 lhe	 retiram	 o
caráter	essencialista	e	a	colocam	como	uma	multiplicidade	de	processos.
Contudo,	 e	 tendo	 em	 conta,	 os	 usos	 dos	 feminismos	 das	 diferenças
ligando-os	 a	 formas	 de	 feminismos	 muito	 centrados	 no	 essencialismo	 e	 na
irredutibilidade	da	diferença	sexual,	prefiro	apresentar	estas	correntes	feministas,
elaboradas	 a	 partir	 das	 margens	 e	 com	 um	 forte	 enfoque	 na	 questão	 da
universalidade	 do	 conceito	 “mulher”,	 como	 feminismos	 das	 difrações.	 Donna
Haraway	 (2004)	 fala-nos	 da	 impossibilidade	 ontológica	 da	 reprodução	 dos
humanos,	recorrendo	ao	conceito	de	difração	e	ao	conceito	de	Trinh	Minh-ha	de
inappropriate/d	 others	 (outrxs	 inapropriáveis	 /inapropriadxs).	 Para	 Haraway,
este	posicionamento	implica	uma	relacionalidade	crítica,	uma	forma	de	estar	de
determinados	 grupos	 e	 objetos	 que	 não	 estão	 categorizados,	 que	 se	 encontram
em	 posições	 não	 fixadas	 pela	 diferença	 e	 pelas	 taxonomias	 (atores/as
multiculturais,	 étnicos,	 nacionais,	 sexuais,	 entre	 outros,	 num	mundo	 cada	 vez
mais	global	e	de	as	múltiplas	pertenças).	Esta	posição	não	admite	a	possibilidade
de	algo	autêntico	ou	original	e,	pelo	contrário,	implica	uma	outra	metáfora	que
não	a	reprodução	ou	a	cópia.	A	difração	(visível	no	arco-íris	que	se	vê	quando	a
luz	 incide	 sobre	 um	CD	ou	DVD)	 consiste,	 nesse	 sentido,	 na	 possibilidade	 de
padrões	 de	 interferência	 e	 não	 na	 reprodução	 ou	 reflexão	 do	 mesmo	 (para
mantermos	 a	metáfora	 ótica).	Assim,	 a	 difração	 parece-nos	 a	 figuração	 destes
feminismos,	não	já	preocupados	com	uma	pretensa	unidade	de	pensamento,	mas
sim	com	a	preocupação	de	produzir	efeitos	diferenciados	a	partir	da	 interseção
categorial.
A	 difração	 é	 a	 imagem	 da	 interseccionalidade,	 mostrando	 como	 o
cruzamento	de	matrizes	de	opressão	e	privilégio	conduz	a	diferentes	efeitos.	Já
estamos	fora	do	domínio	das	relações	de	gênero	no	seu	sentido	mais	tradicional
como	 relações	 entre	homens	 e	mulheres;	 estamos	no	domínio	dessa	 interseção
entre	gênero,	‘raça’,	classe,	sexualidade,	entre	outras	categorias,	e	a	forma	como
são	 produzidos	 efeitos	 difratários	 destas	 conjugações.	 Para	Haraway	 (2004),	 o
gênero	é	uma	 relação	social	atravessada	e	entrecruzada	com	outras.	Ou	seja,	o
potencial	 crítico	 desta	 abordagem	 implica	 não	 só	 questionar	 a	 teoria	 feminista
exclusivamente	 interessada	 no	 gênero	 ou	 nas	 relações	 entre	 os	 sexos,	 mas
repensá-la	à	luz	das	múltiplas	difrações	que	o	próprio	conceito	de	gênero	como
relação	social	invoca.
Lésbicas,	queer	e	transfeminismos:	encarnações	feministas
	
Uma	 outra	 linha	 onde	 é	 possível	 observar	 a	 emergência	 desta	 questão
refere-se	 aos	 feminismos	 que	 se	 ocuparão	 da	 sexualidade,	 como	 é	 o	 caso	 dos
feminismos	 lésbicos	 e	 queer,	 mormente	 pela	 atenção	 que	 vêm	 dar	 à
heterossexualidade	como	forma	de	instituição	política	e	que	também	introduz	a
questão	dos	modos	das	normas	da	sexualidade	de	uma	forma	crucial	nos	estudos
de	gênero.
Se	 atendermos	 ao	 trabalho	 fundador	 de	 Gayle	 Rubin	 (1975),	 esta
concepção	já	se	encontrava	presente	nomeadamente	na	definição	de	um	sistema
de	sexo/gênero,	que	consiste	num	processo	de	atribuição	social	a	uma	diferença
biológica,	organizada	política,	social	e	economicamente	por	forma	a	colocar	os
homens	numa	posição	de	superioridade	face	às	mulheres	atribuindo-lhes	certos
privilégios.	Nesses	 termos,	Rubin	vai	 caracterizar	 o	 sistema	 sexo/gênero	 como
uma	economia	política	em	que	a	divisão	sexual	e	social	do	 trabalho	constrói	o
sistema	 de	 gênero.	 Ou	 seja,	 refutando	 as	 correntes	 que	 até	 ao	 momento
determinavam	 que	 eram	 as	 diferenças	 entre	 homens	 e	 mulheres	 que	 iriam
construir	 uma	 divisão	 sexual	 do	 trabalho,	 para	 Rubin	 (1975)	 a	 causalidade
inverte-se,	construindo	um	sistema	teórico	que	visa	compreender	como	é	que	as
mulheres	são	comodificadas,	 transformadas	em	mercadoria	e	por	 isso	passíveis
de	troca	entre	homens,	reanalisando	as	posições	de	Lévi-Strauss	sobre	a	troca	de
mulheres.
	 Um	 outro	 contributo	 do	 pensamento	 de	 Rubin	 é	 a	 importância	 dada	 à
heterossexualidade	 obrigatória	 como	 outra	 das	 condições	 deste	 sistema.	 Esta
forma	de	organização	social	implica	que	a	unidade	econômica	mínima	e	viável
seja	 um	 casal	 homem-mulher,	 instituindo	 uma	 divisão	 sexual	 do	 trabalho	 que
implica	 uma	 dependência	 entre	 os	 sexos.	 Este	 sistema	 normativo	 da
heterossexualidade	obrigatória	determina	uma	supressão	da	homossexualidade	e
discriminação	 das	 pessoas	 homossexuais.	 Contudo,	 Rubin	 (1975)	 mostra	 que
estas	 categorias	 trans-históricas	 são	 organizadas	 culturalmente	 de	 forma
temporal	e	culturalmente	situada;	de	modo	que	fornecem	evidência	de	diferenças
culturais	 nesta	 expressão.	Assim,	para	Rubin	 (1975)	 é	 fundamentalo	papel	 da
divisão	 sexual	 do	 trabalho	 que	 configura	 maneiras	 específicas	 do	 sistema
sexo/gênero	 corporizado	 nas	 relações	 entre	 os	 sexos,	 na	 família	 e	 na
heterossexualidade	obrigatória.
A	importância	deste	ensaio	de	Rubin	(1975)	é	capital,	pois	vai	reelaborar
as	causalidades	de	outras	correntes	do	pensamento	sociológico	e	antropológico,
demonstrando	 o	 modo	 como	 o	 gênero	 é	 um	 produto	 de	 uma	 determinada
economia	 política	 e	 que	 resulta	 de	 processos	 sociais,	 criticando	 assim	 as
perspectivas	essencialistas	e	biologizantes	que	olham	para	os	sexos	como	fatos
irredutíveis	e	os	retiram	dos	processos	sociais.	Isto	é,	Rubin	estabelece	o	gênero
como	um	processo	de	construção	social,	marcado	por	uma	assimetria	de	poder
no	 quadro	 de	 uma	 economia	 política	 assinalada	 por	 uma	 divisão	 sexual	 do
trabalho	 que	 é	 constantemente	 legitimada	 pelas	 relações	 entre	 os	 sexos	 e	 pela
heterossexualidade	obrigatória.	Esta	figura	da	heterossexualidade	obrigatória	vai
ressurgir	 no	 trabalho	 de	 Adrienne	 Rich	 (1993)	 sob	 a	 forma	 de
heterossexualidade	 compulsória,	 um	 modo	 institucional	 de	 heterossexualidade
que	é	produzida	e	reproduzida	socialmente	como	maneira	de	construir	posições
de	 sujeito	 genderizadas	 e	 impedir	 o	 contínuo	 lésbico,	 ou	 seja,	 a	 cadeia	 de
identificações	entre	mulheres,	eliminando	progressivamente	a	existência	lésbica
da	história.
	 A	história	do	feminismo	lésbico	começa,	entretanto	antes	destes	trabalhos.
Marcado	pelas	tensões	com	o	feminismo	liberal,	designadamente	pelas	clivagens
em	 relação	 à	National	Organization	 for	Women	 (NOW)	 por	 parte	 de	 ativistas
feministas.	 O	 desconforto	 em	 relação	 à	 existência	 de	 lésbicas	 nas	 fileiras
feministas	 é	 expresso	 por	 feministas	 históricas	 como	 Betty	 Friedan,	 que
considerava	os	assuntos	lésbicos	como	uma	distração	no	tocante	à	libertação	das
mulheres,	 considerando-os	 uma	 “lavender	 menace”	 (ameaça	 lavanda).	 Susan
Brownmiller	 também	 acaba	 por	 se	 envolver	 nesta	 contenda	 e	 desvaloriza
igualmente	o	papel	das	lésbicas	na	luta	feminista	(Wilton,	1995).	A	resposta	das
feministas	 lésbicas	não	 se	 faz	esperar	e	 criam-se	grupos	de	 feministas	 lésbicas
como	 as	 Radicalesbians,	 Gutter	 Dyke	 Collective,	 Lesbian	 Menace	 e	 as
Redstockings,	 inclusivamente	 com	 publicações	 de	manifestos	 como	 o	Woman
Identified	Woman	 (Radicalesbians,	 1970),	 distribuído	 num	 encontro	 da	 NOW
para	o	qual	não	foram	convidadas	ativistas	lésbicas,	a	tal	ameaça	lavanda.
Com	a	emergência	destes	grupos	e	destas	reações	começa	a	surgir,	dentro
do	 feminismo	 radical,	 uma	 corrente	 de	 pensamento	 muito	 marcada	 com	 a
preocupação	 de	 uma	 identificação	 política	 lésbica,	 como	 uma	 forma	 de
expressão	 feminista,	 assente	 precisamente	 nas	 “mulheres	 identificadas	 com
mulheres”	 (women-identified	women).	 Esta	 linha	 de	 pensamento	 vai	 marcar	 a
intervenção	 feminista	 lésbica,	mostrando	 que	 lésbica	 é	 também	uma	 forma	 de
identificação	política	 (Oliveira	et	 al,	2009).	No	decurso	dos	anos	70	do	 século
XX,	 assiste-se	 a	 um	movimento	 dentro	 do	 feminismo	 que	 vai	 aprofundar	 este
caminho	de	afirmação	das	mulheres	identificadas	com	mulheres	e	que	encontra
várias	formas	de	expressão.	Com	efeito,	como	atesta	Tamsin	Wilton	(1995),	as
análises	destas	feministas	lésbicas	tomavam	a	homossexualidade	como	um	efeito
do	sistema	de	gênero.
	 Em	 Inglaterra,	 em	 1979,	 o	 Grupo	 Feminista	 Revolucionário	 de	 Leeds
(1979)	 publicou	 um	 manifesto	 em	 que	 criticava	 a	 aliança	 entre	 feministas
heterossexuais	e	homens,	em	termos	da	coabitação	com	homens	heterossexuais,
apresentando	 as	 lésbicas	 políticas	 como	 mulheres	 identificadas	 com	mulheres
que	não	tinham	sexo	com	homens.	Este	posicionamento	deu	origem	a	uma	série
de	 críticas	 de	 outros	 grupos	 feministas	 que	 recusaram	 uma	 definição	 centrada
nesta	dimensão	e	a	redução	da	sua	experiência	heterossexual	a	uma	espécie	de
colaboração	com	o	inimigo.	Este	tipo	de	movimento	encontrou	também	alguma
expressão	em	modos	mais	 separatistas	do	 feminismo,	com	grupos	de	mulheres
auto-organizadas	 que	 viviam	 em	 coletivo	 sem	 homens.	 Todavia,	 é	 necessário
entender	 que	 estas	 experiências	 não	 foram	 generalizadas	 e	 que	 se	 constituem
também	a	partir	da	ideia	de	que	espaços	só	de	mulheres	foram	muito	importantes
para	 a	 discussão	 de	 assuntos	 ligados	 à	 sexualidade,	 maternidade,	 experiência
feminina,	entre	outros.
É	por	meio	deste	percurso	no	feminismo	que	uma	autora,	Monique	Wittig,
vai	problematizar	o	conceito	de	pensamento	heterossexual	e	analisar	a	produção
do	gênero	a	partir	deste	pensamento.	O	conceito	de	pensamento	heterossexual,
para	Wittig	(1992),	implica	a	produção	de	uma	diferença	entre	os	sexos,	segundo
a	 qual,	 homens	 e	mulheres	 são	 categorias	 que	 visam	 enformar	 as	 relações	 de
dominação	e	a	reprodução	da	sociedade	heterossexual.	Esta	garantia	ontológica	é
vista	 pela	 autora	 como	um	modo	 de	 produzir	 posições	 de	 sujeito	 opressivas	a
priori,	 localizando	as	pessoas	dentro	do	sistema	de	gênero.	O	desaparecimento
destas	 posições	 corresponde	 a	 uma	 destruição	 das	 premissas	 que	 tornam	 este
sistema	possível	e	legitimado.	Assim,	Wittig	(1992)	afirma	que	gays	e	lésbicas
não	 se	 devem	 considerar	 nem	 homens	 nem	 mulheres,	 como	 forma	 de	 retirar
legitimidade	 ao	 sistema.	 A	 sua	 frase	 lapidar	 “As	 lésbicas	 não	 são	 mulheres”,
reafirma,	pois,	a	necessidade	de	deslegitimação	do	sistema.
Uma	dimensão	importante	destas	críticas	que	enumeramos	consiste	no	fato
de	 serem	 correntes	 de	 pensamento	 e	 práxis	 que	 surgem	 das	 margens.	 Estes
feminismos	das	margens	(como	algumas	autoras	os	denominam,	entre	as	quais
hooks,	 1984)	 apresentam-se,	 portanto,	 como	uma	 tentativa	 de	 pensar	 a	 prática
feminista	 a	 partir	 de	 outros	 lugares,	 que	 não	 apenas	 o	 espaço	 das	 mulheres
brancas,	ocidentais,	de	classe	média	e	heterossexuais.
Queer	-	Como	mostra	Butler	(1993,	1997b),	queer	começou	por	ser	tido	como
um	 insulto,	 “esquisito”,	 estranho,	 bizarro,	 efeminado,	 bicha,	 “viado”,	 uma
palavra	destinada	a	servir	de	injúria	e,	como	tal,	enquanto	modo	de	instauração
e	 reiteração	 de	 um	 regime	 heteronormativo.	 Quando	 grupos	 de	 ativistas
começam	a	usar	esse	insulto	como	modo	de	autodesignação	(como	por	exemplo,
os	 Queer	 Nation),	 a	 própria	 palavra	 passa	 a	 ser	 ressignificada,	 rompendo	 de
forma	resistente	(lembremos	Foucault	e	a	ideia	de	que	o	poder	implica	formas
de	resistência)	com	essas	normas.	É	assim	que	queer,	para	Butler	(1993),	passa
a	 ter	 um	 significado	 crítico	 e	 inesperado.	 Passa	 a	 ser	 um	 conceito
indeterminado,	 capaz	 de	 romper	 com	 a	 heteronormatividade,	 porque	 implica
ressignificar	 a	 injúria	 e	 o	 discurso	 de	 ódio	 (Butler,	 1997b),	 provocando	 a
reversibilidade	 dos	 efeitos	 da	 injúria.	 Este	 interesse	 pelas	 afirmações	 queer
traduz	 também	uma	 decorrência	 das	 suas	 teorias	 no	 âmbito	 da	 identidade.	 Se
estas	afirmações	são	identitárias,	elas	não	decorrem	de	uma	diferença	essencial.
O	 que	 une	 as	 propostas	 queer	 é	 o	 desafio	 e	 a	 recusa	 face	 à	 norma	 (Colling,
2015).	No	caso	das	afirmações	queer,	esta	apropriação	de	um	insulto	trata-se	de
um	projeto	político	cuja	finalidade	não	é	inteiramente	clara	à	partida,	que	recusa
o	fundacionalismo	e	a	própria	noção	de	identidade	e	não	antecipa	o	futuro	das
utilizações	 políticas	 do	 termo.	 A	 recuperação	 da	 figura	 do	 abjeto,
nomeadamente	via	Julia	Kristeva	(1982),	anuncia	uma	preocupação	que	Butler
(2005)	vai	teorizar	de	outra	forma,	mostrando	processos	de	exclusão	dxs	outrxs
para	 uma	 zona	 de	 abjeção,	 marcada	 pela	 ausência	 de	 inteligibilidade	 como
sujeitos	e	como	humanos.	Este	processo	pode	ser	extensível	a	 todxs	xs	outros
abjetxs	 (Butler,	 1993),	 com	 particular	 ênfase	 naqueles	 que	 estão	 para	 lá	 do
inteligível	pelas	normas	de	gênero	(Oliveira	et	al,	2009).
A	 inteligibilidade	 do	 humano	 é	 analisada,do	 ponto	 de	 vista	 feminista,
como	uma	questão	de	justiça,	de	possibilitar	uma	vida	“vivível”.	Esta	questão	é
analisada	 em	 relação	 a	 uma	 série	 de	 questões	 onde	 se	 implicam	 populações
trans*,	 intersexo	 e	 identificadas	 como	 queer	 na	 sua	 relação	 com	 direitos
políticos,	 sexuais	 e	 sociais	 (Butler,	 2005).	 Uso	 o	 termo	 pessoas	 trans*,	 como
Lucas	Platero	 (2014),	 sinalizando	 a	diversidade	de	 experiências,	 de	vidas	 e	 de
conhecimentos,	tendo	em	conta	que	o	termo	pode	e	deve	incluir	corpos	e	vidas
que	são	tidas	como	fora	da	norma,	que	não	querem	a	norma,	ou	que	querem	estar
noutro	 gênero	 sem	 relação	 com	 o	 gênero	 que	 lhes	 foi	 atribuído.	 Identidades,
porque	são	ao	mesmo	tempo	demasiado	vastas,	demasiado	estreitas,	demasiado
fixas.	Estes	 argumentos	 consideram	que	 este	 reconhecimento	 de	 alguém	como
humano	consiste	na	própria	produção	do	humano.	Ou	seja,	só	se	é	humano	se	as
normas	 que	 regulam	 a	 inteligibilidade	 da	 humanidade	 incluam	 esse	 “modo	 de
ser”	 (Amâncio,	 1998)	 nessa	 categoria	 de	 humano.	 Desta	 forma,	 mulheres,
homossexuais,	negrxs,	trans*,	intersexos,	e	outr@s,	viram,	durante	muito	tempo,
a	 sua	 humanidade	 negada.	Assim	 como	 não	 acederam	 a	 esse	 reconhecimento,
viram	negada	uma	vida	“vivível”,	reconhecida	e	justa.	Esta	atenção	que	vem	dar
às	questões	da	inteligibilidade	é	caracterizada	por	uma	preocupação	ética	que	vai
explorar	no	contexto	de	uma	reflexão	também	sobre	a	política.
Butler,	no	trabalho	que	dedica	ao	reconhecimento	da	humanidade,	também
numa	luta	política	pelo	reconhecimento	de	direitos	às	pessoas	trans*	e	intersexo,
usando	 como	 figuras	 que	 implicam	 repensar	 a	 categoria	 do	 humano,	 fora	 das
normas	 que	 excluem	 a	 possibilidade	 de	 variações	 de	 gênero.	 Este	 trabalho
implica-se	 mais	 na	 dimensão	 ética,	 no	 plano	 da	 filosofia	 moral,	 do	 que	 os
anteriores	 e	 apresenta	 uma	 faceta	 que	 é	 considerada	 como	 mais	 ligada	 a	 um
discurso	 de	 universalização	 e	 de	 humanismo.	 Contudo,	 é	 preciso	 atender	 às
especificidades	de	uma	filosofia	implicada	na	ideia	da	vulnerabilidade	da	vida	e
na	 precariedade	 desta	 ideia	 de	 humano.	 A	 ideia	 da	 humanidade	 como	 uma
condição	 precária	 (Butler,	 2015)	 permite	 uma	 crítica	 aos	 conceitos	 neoliberais
do	 humano	 e	 do	 indivíduo	 como	 autossuficiente,	 eficaz	 e	 autodeterminado.	A
partilha	de	uma	condição	de	precariedade	que	pressupõe	uma	interdependência	é
antagônica	com	esses	projetos	político-ideológicos	e	assenta	numa	consideração
da	 inteligibilidade	 do	 humano.	 Nesse	 contexto,	 esse	 projeto	 teórico	 que	 visa
esclarecer	o	que	conta	como	humano	é	um	projeto	ético-político	que	começa	a
ser	enunciado	em	relação	às	pessoas	detidas	na	prisão	de	Guantánamo	(Butler,
2004),	mas	que	foi	também	aplicado	às	comunidades	trans*,	queer	e	 intersexo.
A	 análise	 da	 constituição	 e	 produção	 das	 subjetividades	 permite	 analisar	 os
processos	de	reconhecimento	do	humano,	colocados	em	termos	da	possibilidade
de	 luto	por	aquelas	pessoas	que	desapareceram,	mas	cuja	vida	era	encarada	de
um	 modo	 não	 reconhecível	 pelas	 normas	 da	 inteligibilidade.	 Este	 processo
implicou	uma	análise	na	qual	Butler	(2005)	mostra	que	as	normas	de	gênero	são
constitutivas	das	subjetividades	e	que	desfazê-las	 implica,	muitas	vezes,	deixar
de	 ser	 inteligível.	 É	 precisamente	 aqui	 que	 entronca	 a	 discussão	 sobre	 as
posições	 de	 pessoas	 identificadas	 com	 posições	 queer	 e	 pessoas	 trans*.	 O
esforço	 de	 descolonização	 das	 experiências	 trans*	 e	 os	 desafios	 da	 ruptura
normativa	operada	pelas	perspectivas	queer	provocaram	alterações	nos	estudos
de	gênero	que	coincidiu	com	novos	projetos	teóricos	e	conceituais,	como	a	teoria
trans	 (Stryker,	 2006),	 que	 visa	 dessubjugar	 os	 saberes	 trans,	 rompendo	 com	 o
discurso	médico	do	corpo	errado	(Stone,	2006),	com	a	necessidade	de	promover
‘correções’	 de	 crianças	 intersexo	 (Chase,	 2006);	 trabalhos	 sobre
performatividade	de	gênero	na	escola	(Pereira,	2012);	os	projetos	de	análise	dos
ativismos	LGBT	como	o	de	Ana	Cristina	Santos	(2012);	ou	com	estudos	queer
não	 brancos/negros/decoloniais,	 como	 na	 proposta	 recente,	 de	 Tim	 Stuttgens
(2014),	 que	mistura	 a	 abordagem	multicategorial	 da	 interseccionalidade	 com	a
abordagem	anti-categorial	queer,	fala	do	Qu*A*re,	tirando	o	A	de	black	(negro)
e	 colocando-o	 no	 meio	 de	 queer.	 Um	 caminho	 de	 intersecção,	 de	 potentes
alianças	políticas,	condenando	racismos,	sexismos,	homo	e	transfobias.
Trânsitos	e	democracias	de	gênero
	
Um	gênero[5]	que	nunca	se	é,	mas	que	se	faz	por	ser.	Um	gênero	ou	mais
do	 que	 um	 (podemos	 ter	mais	 do	 que	 um),	 e	 daí	 esses	 termos	 identitários	me
parecerem	uma	linguagem	muito	gasta	para	falarmos	disso.	E	se	funcionarmos,
como	algumxs	de	nós,	por	desidentificação?	Por	não	me	adequar,	por	não	querer
estar,	ou	por	recusar.	Como	Bartleby,	personagem	de	Herman	Melville,	“prefiro
não	 fazer”,	 a	 usar	 uma	 sagaz	 expressão	 que	 diz	 muito	 menos	 do	 que	 a
personagem	sente,	mas	por	uma	espécie	de	 sarcasmo	encontra	no	“Eu	preferia
que	não”	uma	forma	de	resistência.	Uma	resistência	em	potência,	condicional.
A	opção	pelo	trans*,	termo	guarda-chuva	e	pouco	preciso,	parece-me	ter	a
possibilidade	 de	 abrir	 a	 porta	 à	 ideia	 de	 multitude.	 Uma	 multidão	 de	 gente,
desunida	 na	 identidade	 (porque	 ela	 é	 demasiado	 vasta	 ou	 demasiado	 estreita),
unida	no	seu	desfasamento	face	à	norma,	no	seu	rompimento	da	mesma,	na	sua
recusa	 em	 ser	 tão	 somente	 um	 corpo	 errado.	 Não	 há	 nenhum	 corpo	 errado.
Errados	 são	 os	 termos	 em	 que	 esta	 questão	 é	 posta.	 Há	 corpos	 que	 não
correspondem	ao	nosso	projeto	de	corpo,	ou	de	gênero,	ou	os	dois.	Para	isso,	se
inventou	 a	 tecnologia.	 Exija-se,	 altere-se,	 mostre-se	 como	 a	 tecnologia	 serve
também	 para	 deixar	 as	 pessoas	 a	 viverem	 melhores	 vidas,	 sem	 nenhuma
obrigação	de	se	chegar	a	ser	algo.	Corpo	também	projeto	do	que	queremos	ser.	O
único	 critério	 deve	 ser	 o	 de	 Espinosa	 (Oliveira,	 2016):	 perseverar	 na	 nossa
singularidade,	 naquilo	 que	 queremos	 ser	 e	 que	 sentimos	 que	 somos.	 Cabe	 ao
Estado	 garantir	 isso.	 E	 não	 necessariamente	 nenhuma	 forma	 de	 autoridade
externa	a	dizer-te	quem	és	e	como	podes	ser	mais	ou	menos	mulher	ou	homem,
sem	 nenhuma	 base	 científica,	 porque	 até	 agora	 nunca	 definiram	 mulheres	 ou
homens	 ideais,	 sequer	masculinidade	e	 feminilidade.	E	há	mais	gênero	do	que
isso.	Muitos	mais.	Numa	 estimativa	 conservadora,	 uns	mil.	 E	mais	 um:	 o	 teu.
Assim	o	gênero	passa	a	ser	não	só	critério	de	reconhecimento	social,	fundamento
para	expectativas	e	para	comportamentos.	Passa	a	ser	uma	potência,	aquilo	que
cada	pessoa	sonhou	para	si	e	que	deve	ser	acarinhado,	reconhecido	e	valorizado
como	diverso,	pois	que	numa	democracia	não	é	nem	pode	 ser	uma	decisão	de
médicxs,	psicólogxs,	psiquiatras,	assistentes	sociais	etc.,	sobre	quem	pode	ser	o
quê.	A	decisão	pertence	ao	domínio	da	autodeterminação,	que	é	 feita	não	num
quadro	 de	 individualismo,	mas	 no	 seio	 de	 uma	 comunidade	 que	 resiste	 e	 luta
contra	as	normas	de	gênero.
Dentro	 desse	 arco-íris	 que	 é	 o	 gênero,	 e	 a	 viagem	 que	 todxs	 fazemos
dentro	desse	arco-íris,	sejamos	nós	autodefinidos	como	trans*	ou	não,	há	muitas
possibilidades,	algumas	das	quais	mais	reconhecidas	que	outras	de	acordo	com
critérios	 estéticos,	 políticos	 e	 certas	 equivalências	 entre	 sexo	 e	 gênero.	 O
problema	é	que	essas	equivalências	só	existem	para	as	pessoas	que	acreditam	em
corpos	errados,	em	fronteiras	fixas	entre	homens	e	mulheres	e	na	necessidade	de
catalogar	 essas	 identidades,	 a	 que	 eu	 prefiro	 pensar	 como	 expressões.	 Como
explica	 Judith	Butler,	 (1993),	 a	 esse	 sexo	que	 é	 visto	 como	matéria	 é	 afinal	 o
gênero	que	lhe	dá	sentido	e	leitura.	Obviamente	a	sociedade	que	é	fundamentada
numa	ideologia	sexista,	genderizada,	anti-trans*,	conformista	do	ponto	de	vista
de	 gênero	 e	 politicamente	 heterossexual,

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