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João Manuel de Oliveira Desobediências de Gênero Editora Devires Conselho Editorial Carlos Henrique Lucas Lima Djalma Thürler Fran Demétrio Jaqueline Gomes de Jesus Joana Azevedo Lima João Manuel de Oliveira Jussara Carneiro Costa Leandro Colling Luma Nogueira de Andrade Guilherme Silva de Almeida Marcio Caetano Maria de Fatima Lima Santos João Manuel de Oliveira Desobediências de Gênero 2017, João Manuel de Oliveira Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires. EDITOR/DIAGRAMAÇÃO | Gilmaro Nogueira CAPA | Caco FOTOGRAFIA | Zazo Guerra OL48d Oliveira, João Manuel de Desobediências de gênero / João Manuel de Oliveira. – Salvador, BA: Editora Devires, 2017. 124p. ISBN: 978-85-93646-03-4 1. Feminismo. 2. Identidade de Gênero. 3. Teoria queer. 4. Feminismo negro. I. Oliveira, João Manuel de. II. Título. CDD 140.17 CDU 141.134.3(81) Índice para catálogo sistemático: 1. Feminismo: 140.17 1. Tipos de pontos de vista filosóficos – Feminismo: 141 Editora Devires Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA www.editoradevires.com.br SUMÁRIO PREFÁCIO MARIAS COMO PREÂMBULO FEMINISMOS NEGROS, DAS DIFERENÇAS E NAS MARGENS LÉSBICAS, QUEER E TRANSFEMINISMOS: ENCARNAÇÕES FEMINISTAS TRÂNSITOS E DEMOCRACIAS DE GÊNERO REFERÊNCIAS NOTA BIOGRÁFICA http://www.editoradevires.com.br PREFÁCIO Para não ser obrigada a nada! Leandro Colling[1] Conheci João Manuel de Oliveira no início de uma noite meio fria em outubro de 2013, em um café no Bairro Alto, em Lisboa. Eu estava começando a realizar as entrevistas para minha pesquisa sobre o movimento LGBT e o ativismo queer em Portugal, Espanha, Argentina e Chile. João foi a primeira das 35 pessoas que eu entrevistei nesses quatro países. A entrevista durou umas duas horas e foi fundamental não apenas para eu compreender um pouco das tensões portuguesas, mas também por direcionar boa parte da pesquisa que culminou no livro Que os outros sejam o normal, lançado em 2015 pela Editora da Universidade Federal da Bahia. Em junho de 2014, quando eu fazia a pesquisa de campo em Madri, novamente nos encontramos e foi lá que consolidamos nossa amizade nas atividades do Orgulho Crítico, que é realizado por vários coletivos dissidentes da Parada LGBT local. Participamos de vários debates, lançamentos de livros, da própria marcha do Orgulho Crítico e, é claro, de festas e muitas conversas em bares de Lavapiés. Depois disso, não desgrudamos mais. Já nos encontramos outras vezes em Lisboa e em Salvador, cidade onde ele veio para passar o Carnaval e ficou meses em minha casa... E por que estou falando disso no prefácio do livro dele? O que uma coisa tem a ver com a outra? Pois saibam que tem tudo a ver. A nossa amizade se consolidou porque compreendemos os feminismos de uma forma muito parecida. E é isso o que João faz neste pequeno-grande texto: ele explica como compreende os feminismos desde uma mirada pós-colonial e queer. Logo em nossa primeira conversa percebemos como temos leituras muito semelhantes e também trajetórias que se afastam de persectivas mais disciplinares (ele da Psicologia e eu da Comunicação). E o mais importante: essas leituras mudaram nossas vidas, nossas compreensões sobre ativismos, militâncias, relações interpessoais, afetivas, sexuais... É por isso que sentimos saudades um do outro, de nossas conversas, nem sempre amistosas ou em concordâncias, regadas a vinho na brisa quente de Salvador ou na mais amena (para ele sempre de um frio insuportável) de Lisboa. E ao ler o texto, matei um pouco da saudade que sinto do João porque a cada frase que eu lia parecia que estava a escutar a sua voz, com seu sotaque, suas pausas, seu sorriso sempre estampado no rosto, olhos bem puxados, quase fechados, sua ironia, às vezes seu sarcasmo, acompanhados de uma longa risada e a exclamação: “porque eu não sou obrigada a nada!” É isso: o feminismo que o João defende e adota é um feminismo que, se pudesse, faria com que não fossemos obrigadxs a nada. Um mundo sem sexismo, racismo, machismo, misoginia, heterossexismo, heteronorma. E como fazer isso? Não há uma só resposta, pelo contrário, existem mil. Mas isso não quer dizer que o livro não aponte direções: interseccionalidade com vários marcadores sociais das diferenças, fuga dos binarimos e de qualquer essencialismo, críticas e alertas aos perigos das rígidas políticas identitárias e aspirações aos ideiais que nos subalternizam são apenas algumas dessas direções. E assim João constroi o seu texto quase que como uma aula capaz de ser compreendida por iniciantes sem com isso simplificar as complexas reflexões produzidas, em sua maioria, por extraordinárias mulheres. Se jogue nessa leitura que é rápida, mas não sem consequências. A Dandara dos Santos, morta por espancamento e filmada por desobediência de gênero, em Fortaleza. A ela, que mostrou toda a vulnerabilidade e horror do humano. “Digo: Chega. É tempo de se gritar: chega. E formarmos um bloco com os nossos corpos” (Novas Cartas Portuguesas) Marias como preâmbulo Este livro começa com as Novas Cartas Portuguesas em epígrafe. Trata-se da grande obra do feminismo português, desafiando tudo e todos, evidenciando uma resistência criativa que há mais de 40 anos inspira fugas à ordem de gênero, como esta, escrita por três Marias, partilhando um espaço biográfico, pessoal e político, mas num outro tempo. Três mulheres, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, que desconstruíram noções de autoria, ao abordarem o continente desconhecido das sensações corporais das mulheres, o orgasmo, o prazer. Desafiaram a literatura e desafiaram o país cinzento, beato e fascista que as levou ao tribunal sob acusação de pornografia e atentado à moral pública. Um momento alto do feminismo global (Amaral & Freitas, 2014), com a organização de várias atividades em muitos países, desde boicotes, manifestações, até abaixo-assinados de apoio às três Marias. Uma das primeiras iniciativas internacionais do feminismo dos anos 70 foi precisamente este apoio, para além da importante contribuição teórica da obra que permaneceu esquecida (Oliveira, 2014a). Este livro que tem nas mãos, tem afinidades com as Novas Cartas, uma inspiração constante. Com a minha amiga Lynne Segal, aprendi que o feminismo vive em nós como uma luta de várias gerações e de várias idades, tal como a nossa autopercepção ao longo de uma vida: ser várias e ao mesmo tempo sermos nós. Cremos ambas profundamente na intergeneracionalidade do feminismo e assim acredito que o meu feminismo tem mais relação com as 3 Marias do que com feminismos liberais de má consciência. Tenho a memória recente de assistir com a minha sobrinha Inês, de 2 anos de idade, ao clássico de animação Cinderela. A conhecida história da filha do primeiro casamento do pai que vive com a madrasta e as suas duas filhas, o convite para o baile onde o Príncipe vai escolher a noiva. A animosidade da madrasta e das irmãs ou filhas da madrasta, entre outras peripécias, compõem a história da Gata Borralheira, como também é conhecida em Portugal. Nesse dia, enquanto aninhava a minha sobrinha Inês, ao colo, desenrolava-se este drama que termina com um final feliz (será mesmo?). As lentes das teorias do gênero e do feminismo não me deixavam ver a história sem equacioná-la no plano mais alargado das relações sociais de gênero e no modo como estas tocam outros vetores da estruturação social. Senão, vejamos: 1. Cinderela passa a vida a esfregar e a limpar a casa da família, quese aproveita da sua força de trabalho sem o consequente pagamento da mão de obra. Cinderela, sendo mulher tal como a Madrasta e as suas filhas, e com elas partilhando residência, é, no entanto, tratada como empregada doméstica, assegurando as tarefas de que as outras mulheres não querem se ocupar, constituindo uma classe à parte dentro daquela burguesia. Portanto, solidariedade feminista, nenhuma; sororidade, ainda menos. Não fossem a Fada-Madrinha (fora dos laços familiares) e os animais cúmplices, ainda hoje a Cinderela estaria a esfregar a louça suja das suas parentes. Comum a todas, corpos marcados pelo gênero que lhes foi atribuído, ninguém é trans* nesta estória... 2. O Príncipe organiza um baile para escolher uma noiva. Este mercado de carne sexista onde as mulheres são trocadas entre homens, do pai passando para o marido, que, neste caso, implicava uma mobilidade de classe para a eleita, tem como pressuposto a concepção de que mulheres são tidas como uma espécie de mercadoria, de bem de consumo, e que estão ali na expectativa de agradar ao Príncipe e dispostas ao trabalho emocional, sexual e afetivo. Esta conjugação revela a dependência econômica que as mulheres tinham em relação aos homens, nas classes burguesas e brancas, quando dependiam do modelo do “homem que ganha o pão” e da mulher que fica em casa e assegura as tarefas do privado. Este modelo que a análise marxista consagra como fulcral para a emergência do capitalismo (Oliveira & Amâncio, 2002), assegura que há uma divisão sexual do trabalho que coloca os homens como responsáveis pela dimensão da produção, vendendo a sua força de trabalho a quem dispõe dos meios de produção, e, por sua vez, as mulheres asseguram a reprodução e cuidado com a mão de obra. 3. A história garante a impossibilidade de identificação e de construção de alianças entre mulheres. Estas são representadas como uma espécie de inimigas perpétuas que competem por recursos aqui representados também pela necessidade de atrair o Príncipe. Ao não permitir esta possibilidade de proximidade entre mulheres, para além de impossibilitar uma sublevação de mulheres ou uma revolta feminista, torna impossível a experiência lésbica, apagando essa possibilidade da história (Rich, 1993). A heterossexualidade política como forma única de conceber o desejo é afiançada em Cinderela pela total competição entre mulheres para obterem a atenção de um homem. Nesta competição, nem todas acedem sequer à possibilidade de serem escolhidas pelo Príncipe. A mulher mais velha, a Madrasta, é tida como um corpo que não poderá aceder a esse ‘mercado’, antes deve coordenar as estratégias para que os corpos, também eles representados como menos desejáveis, das irmãs de Cinderela possam ser considerados na competição. 4. Na história de Cinderela do filme clássico de animação, datado de 1950 e produzido por Walt Disney, não há personagens negras, asiáticas ou com proveniência indígena. Esta economia racial, típica das produções culturais da época, é reveladora da invisibilização de quem garantia a força de trabalho, neste caso da esfera doméstica burguesa (nomeadamente as mulheres ‘racializadas’) e das comunidades não -brancas. 5. Este filme impõe uma estética imperialista ocidental como modo de vida, viajando através da colonialidade com valores do ocidente, como o progresso, por exemplo. 6. Este cinema implica uma comunhão com uma série de valores da época, em que, após o esforço árduo da heroína ela seria premiada e recompensada por ser a escolha do Príncipe; acederia ao seu lugar no mundo da heterossexualidade hegemônica e se transformaria na esposa e mãe de família que lhe permitiria libertar-se da servidão na casa da madrasta, passando a ser, eventualmente, uma futura rainha, com todo o imaginário monárquico. Repare-se como a libertação é aqui entendida como o alcance de uma posição no seio de uma unidade familiar, posição esta sempre relativa a alguém: a mulher do Príncipe e mãe que assegurará a reprodução dos herdeiros e herdeiras. É este o final feliz que espera as senhoras brancas, qualificadas e burguesas dos EUA dos anos 1950. A misteriosa glória de ser uma dona de casa, ou como diria Betty Friedan (1975:9): “Se uma mulher tinha algum problema na década de 1950 e 1960, sabia que qualquer coisa não estava a correr bem com o seu casamento ou com ela própria. Pensava que as outras mulheres levavam uma vida satisfeita. Que espécie de mulher era ela que não sentia essa misteriosa plenitude ao lavar o chão da cozinha? ”. Este livro que tens nas mãos é um texto que visa entender o que significa desobedecer ao gênero nas suas múltiplas acepções e encarnações. É um trabalho inspirado numa leitura feminista crítica, antirracista, anti-heteronormativa e de esquerda, e deve muito a textos e ações que o antecederam. É também um feminismo que viaja, circula e se detém em vários pontos e espaços. Gênero - Para as perspectivas marcadas pela reflexão de Judith Butler, existem normas através das quais determinados corpos e expressões de gênero são lidos e reconhecidos numa sociedade. Repetimos expressões de gênero, ao longo do tempo, que citam e reiteram uma maneira de ser de um determinado gênero. Ora, o gênero é aqui entendido na sua acepção de performatividade (Butler, 1990), ou seja, o gênero é uma construção social que é produzida pela repetição de determinadas maneiras de fazer o gênero que criam uma série de efeitos que são tomados como essências. São, contudo, criados por essa repetição e citados por ela como se houvesse neles uma originalidade do qual todo gênero seria cópia, de dois modelos distintos: o masculino e o feminino. Pelo contrário, são as citações, as cópias que criam a ideia de que existe um original a ser copiado. Essa repetição ao longo do tempo produz a ilusão de que existe uma essência de gênero e de que ele existe como matéria, expressa no sexo e no discurso biológico da natureza. Para Butler (1993), o sexo é uma produção do gênero, no sentido em que o significado social atribuído ao sexo é todo ele gênero. Isto quer dizer que não há dimensão biológica? Não, pelo contrário. É afirmar que apesar das dimensões biológicas que possam eventualmente introduzir diferenciação sexual, serão os sistemas sociais de representação e produção do gênero que darão significado a essa potência da biologia. Tal como mostra a bióloga Anne Fausto-Sterling (2013), é preciso pensar a relação com o gênero e a sexualidade como sistemas dinâmicos complexos, culturalmente construídos, mas que ocorrem no corpo e na incorporação. Igualmente ser uma construção social não implica nem negar-lhe efeitos, nem o seu impacto na vida das pessoas. Implica antes que as expressões de gênero, as masculinidades e feminilidades e o desejo por outros corpos são lidos e reconhecidos através destas normas. Assim, vamos falar neste livro de normas de gênero, quando invocarmos as regulações que dão legibilidade ao gênero e que regem o reconhecimento deste. Igualmente, falaremos de expressão de gênero, quando nos referirmos ao modo como as pessoas exprimem o seu gênero e através dessas performances reiteram identificações e desidentificações. Recusamos a ideia de uma identidade de gênero estável, essencial e que precede o sujeito fora destas expressões ou por detrás destas expressões. Pelo contrário, não há nenhuma identidade de gênero que organize as expressões do gênero. Não há sequer uma distinção entre processos internos e externos, dado que não há um processo de internalização da norma: não há um ‘eu’ que anteceda a norma;o mesmo poder que nos faz conformar às normas, constitui o momento formativo desse “eu”. Somos sujeitos pelo poder e estamos sujeitos ao mesmo poder (Butler, 1997a). Assim, a separação entre individual e coletivo é puramente ficção de uma psicologia marcada pela ideologia neoliberal (Oliveira, 2014a). O sujeito é sempre o resultado de um processo de subjetivação e não existe fora desse exercício de poder. O gênero, no caso deste livro, não implica (apenas) uma divisão do mundo entre masculino e feminino. Antes, implica que a ordem do gênero instala uma organização social marcada pela heteronormatividade e pela normatividade de gênero. A heteronormatividade pode ser definida como a norma que regula, justifica e legitima a heterossexualidade como uma forma de sexualidade mais natural, mais válida e mais normal em detrimento das outras, vistas como negativas e inferiores. Como é patente, uma análise de gênero implica, não só a atender às relações sociais de gênero, mas também ao modo como elas se expressam quando intersectadas por outras matrizes de opressão e privilégio, como é o caso da ‘raça’, sexualidade, posição de classe, entre outras. E mesmo em contos de fada, mitos de legitimação das sociedades contemporâneas, é possível, com uma análise mais atenta, encontrar e descobrir estas conexões aparentemente esquecidas ou confortavelmente invisíveis. Por outro lado, as normas de gênero implicam uma visão binária dos sexos vistos apenas como masculino e feminino, sem qualquer outra possibilidade considerada saudável. Estas normas garantem um consequente privilégio para a constância do gênero, por expressões de gênero adequadas a essas normas e que lhe garantem uma aparente sensação de imutabilidade. As performances de gênero partem dessas normas para se concretizarem ou para ressignificar, no caso de performances subversivas tais como a drag ou algumas performances queer. Masculino e feminino, como lembra Lígia Amâncio (1998), são assimétricos, implicam não só uma diferença hierárquica nas relações sociais, mas também uma diferença funcional, de definição e representação. Trata-se de duas espécies de seres, de acordo com o pensamento socialmente partilhado sustentado na lógica do gênero. Apesar destas regulações, as dissidências sexuais e de gênero, bem como as chamadas novas políticas de gênero (Butler, 2005), começam a ser cada vez mais patentes e a reclamar um espaço de reconhecimento e de representação (Colling, 2015). Um caso evidente sobre o funcionamento das normas de gênero é o das mulheres trans*. De acordo com o Relatório da TransgenderEurope (Balmer & Hutta, 2011), a situação do Brasil é das piores dos países com esta contagem, sendo o país do mundo com mais episódios noticiados de assassinato contra pessoas trans*. Com dados atualizados em 2017, em território brasileiro ocorreram cerca de 50% (938) dos homicídios de pessoas trans* na América do Sul e Central (1834)[2]. Em 2016, o Brasil foi o país do mundo onde mais pessoas trans, sobretudo mulheres trans foram assassinadas, de acordo com a Transgender Europe. Berenice Bento (2014; 2016) descreve a situação do Brasil como transfeminicídio, isto é, como uma política de eliminação intencional, disseminada e sistemática desta população e que apresenta características distintivas: as mortes ritualizadas, que ocorrem no espaço público, em situação de impunidade por parte do Estado, constituindo uma espetacularização exemplar que se estabelece como preventiva - para impedir a desobediência de gênero. No caso português, a morte de Gisberta Salce Júnior, mulher trans brasileira imigrante, no Porto, às mãos de jovens rapazes institucionalizados numa organização religiosa, configura um exemplo deste tipo de transfeminicídio. O caso de Dandara, ainda tão recentemente, morta no Brasil olhando a câmara que denunciou o crime no Youtube é outra maneira de falar do preço que muitas pessoas trans pagam pela sua aparente desobediência de gênero. Os casos de feminicídio em Portugal e no mundo atingem números elevados. Entre 2004 e 2014, o Observatório das Mulheres Assassinadas da UMAR revelou que ocorreram 399 homicídios de mulheres, dos quais 336 se deu no espaço de relações de intimidade (62,6%), e 464 tentativas de homicídios, o que perfaz 859 crimes (UMAR, 2014). No contexto europeu, a Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA, 2014), estima que 13 milhões de mulheres foram vítimas de violência doméstica em 2013 e que no mesmo período, 3.7 milhões experienciaram algum tipo de violência sexual, sendo que uma em cada 20 já sofreu violação. 22% das mulheres da União Europeia sofreram agressões perpetradas por parceirxs. O gênero apresenta-se como uma ordem social, uma regulação da vida das pessoas que configura o modo como estas vivem, o que pode expô-las como vulneráveis e precárias e que as deixa sujeitas a determinadas formas de violência consoante às suas pertenças, (i)legibilidades/reconhecimento e posicionamentos. O caso das pessoas trans*, sobretudo manifesto no exercício de violência contra mulheres trans, permite verificar o preço que determinadas posições de sujeitos pagam pelo lugar transgressor face às normas. Veja-se como os corpos das pessoas trans ainda sofrem de uma colonização por parte das normas de gênero e do modelo biomédico que recorre constantemente às normas como forma de exercício de biopoder e da necropolítica sobre estes corpos (Oliveira, 2014b), um transfeminicídio (Bento, 2016) sem fim à vista. O gênero, enquanto construção e ordem social, implica uma viagem que recorre a muitas passagens e trânsitos (Oliveira, 2016) e que não se esgota neles. Não há nenhum domínio da vida social onde o gênero não esteja presente, onde este não se articule com outros setores. Começaremos por entender que o gênero é simultaneamente mais vasto do que a identificação com masculinidade e feminilidade e excede essas categorias, até porque vai se misturar e interseccionar com outras. Iremos, primeiro, regressar ao século XIX, para conhecer uma precursora, Sojourner Truth, e depois continuaremos. Procurei fazer uma genealogia não branca e não heterossexual do feminismo e do queer, a fim de mostrar o espaço para a dissidência e desobediência face às normas de gênero. Contar esta história a partir de outros referentes que não as eternas protagonistas brancas, heterossexuais, é também um ato de procura, com a finalidade de conferir uma inteligibilidade distinta aos feminismos, ir beber noutras fontes e buscar viajar dentro dos sistemas de gênero, com atenção à ‘raça’, classe, sexualidades. Feminismos negros, das diferenças e nas margens Na Convenção sobre Direitos das Mulheres em Akron, nos Estados Unidos da América, em 1851, Sojourner Truth, uma ex-escrava, empenhada no movimento pelo abolicionismo da escravatura, mas também nos direitos das mulheres, profere um discurso que entrará para a história dos feminismos: Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às carruagens, para passar sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu uma mulher? Olhem para mim, olhem para os meus braços. Eu lavrei, eu plantei, eu armazenei e nenhum homem me passava à frente. E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto (sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu mulher? Dei à luz trezecrianç a s e vi a maior parte delas vendidas para a escravidão e quando chorei com tristeza de mae, so Jesus me ouviu! E nao sou eu mulher? (Sojourner Truth, 1851, apud Carmo & Amâncio, 2004: 227). O discurso de Sojourner Truth (tantas vezes discutido) é uma fonte importante para se pensar a construção social do gênero presente na ideia de mulher e inicia um percurso para chegar nos anos 80 do século XX e implodir esse edifício conceitual a que chamamos mulheres, desintegrador de todas as diferenças. É como se a definição do que é ser mulher excluísse uma série de posições/representações que muitas mulheres ocupam, são e se sentem. Pertinente citar os feminismos pós-coloniais, que mostram como na Índia Colonial, por exemplo, a instituição da imolação das viúvas na pira fúnebre dos maridos recém-falecidos (sati, literalmente, a boa esposa) suscitou da parte da administração colonial uma reação legalista de proibição, mas que, de acordo com Gayatri Spivak (1993), não teria alterado as posições de sujeito. Os nativistas, exercendo um jogo de ventriloquismo social, explicavam que eram as mulheres que queriam ser imoladas junto ao cadáver do marido. E dessas mulheres não temos voz, nem eco. Assim, entre a representação colonial da ‘boa sociedade’ trazida pelos ingleses e expressa através dos direitos das mulheres (“os homens brancos que salvam as mulheres pardas dos homens pardos”) e pela representação nativista do “são as mulheres que querem”, não sobra qualquer posição que as subalternas (como mulheres) possam ocupar, e a partir daí, falar. Trata-se antes de uma determinada representação que ocupa todo um espaço do que pode ser uma mulher. Feminismos - O termo feminismo foi usado de forma pejorativa por Alexandre Dumas Filho para se referir a homens emasculados e efeminados pela tuberculose (Cova, 1998) e utilizado como insulto para se referir ao movimento social que começa com o princípio do Estado Moderno, Revolução Industrial e Iluminismo (Carmo & Amâncio, 2004). O referido movimento tentou atribuir um estatuto político, social, cultural e econômico que não fosse discriminatório para as mulheres (Nogueira, 2001). Ao perseguir esse estatuto, os múltiplos feminismos que foram surgindo alteraram profundamente a forma como o que é considerado humano foi pensado e problematizado. Desse modo, o feminismo pode ser entendido como uma ressignificação do humano, abrindo e expandindo os horizontes desse termo (Oliveira, 2014b), pela problematização que foi feita da relação das mulheres com esse humano, que sempre foi homem, ocidental e branco, e que foi se alargando para incluir outrxs. Teresa de Lauretis (1988) elabora um sujeito do feminismo que é o movimento entre o que é socialmente representado como gênero e o que essa representação deixa de fora e torna irrepresentável, não considerando as mulheres nem a Mulher como esse sujeito. Partilho das suas dúvidas e penso o projeto feminista como uma concepção que vai tratar o humano como um termo de exclusão (e daí não ser humanista) que carece de alargamento, reposicionamento e ressignificação. Trata-se, necessariamente, de um projeto marcado por uma tensão, uma contradição, “o produto precário de um paradoxo”, como lhe chama Griselda Pollock (2001: 196-197): “[...] parecendo falar em nome das mulheres, a análise feminista desconstrói perpetuamente o próprio termo à volta do qual se encontra politicamente organizado”. Ou, nas palavras da mesma Teresa de Lauretis, o feminismo caracteriza- se pela “negatividade crítica da teoria e a positividade afirmativa das suas políticas”. Nesse sentido, a negatividade da teoria (Oliveira, 2014b) tem uma relação com esta acepção de uma definição de gênero sempre androcêntrica, isto é, centrada na experiência masculina como experiência universal e na experiência feminina como outra, distinta e particular, como mostra também Simone de Beauvoir (1949), em O Segundo Sexo, um livro fundamental para entender os feminismos. A negatividade crítica do feminismo vai encontrar espaço na crítica a este androcentrismo nas relações sociais de gênero e sua representação; igualmente, na tentativa de trazer para a luz esse outro irrepresentável, que não cabe no modo como o gênero é concebido. A teoria feminista é uma ferramenta essencial para se perceber estes processos, pois iluminou o modo de percepção de como o poder constrói as pessoas como entes marcados por uma miríade de diferenças como gênero, ‘raça’, classe, sexualidades, idade e outras. Uma tensão histórica e ideologicamente estruturante dos debates feministas foi a atenção dada às questões de igualdade entre homens e mulheres e de diferença das mulheres. O feminismo da igualdade, centrado numa representação igualitária, constitui o projeto político do feminismo liberal. Esta corrente propõe-se a reformar uma situação de discriminação através do aumento da representatividade das mulheres nas diversas esferas da sociedade. Assim, acreditava-se num trabalho em parceria com o Estado para fomentar e ampliar a participação das mulheres em todas as esferas. Optava-se, portanto, por uma linha formal e legalista, que é responsável pela introdução de legislação e de campanhas para a promoção da consciência da discriminação, e da adoção de medidas resolutivas dessas situações consideradas pouco democráticas. Esta linha feminista preocupou-se bastante com a introdução de leis para a igualdade formal entre homens e mulheres e valorizou a importância desta igualdade na esfera pública. Contudo, como mostra Nickie Charles (2000), essa reivindicação só cabe no quadro de um Estado liberal e democrático. O feminismo liberal, pelas suas preocupações legais, pressionou os Estados de forma a obter direitos legais básicos, e ainda hoje tem impacto junto aos governos, assumindo a forma de feminismo de Estado, corporizado nas comissões pela igualdade, existentes em muitos países e nas organizações internacionais. Estas comissões têm um papel importante na sensibilização da opinião pública e no fomento de campanhas contra a discriminação. É, contudo, notória a ausência de teoria e ação feminista enquanto quadro inspirador. São-lhe apontadas críticas pelo elitismo das propostas, mais preocupado em permitir que as mulheres entrem num mundo de homens (e claro, as mais qualificadas, com maior acesso a recursos), e também pela ausência de uma visão transformadora das relações sociais de gênero (Charles, 2000). Diametralmente opostos a esta corrente feminista, posicionaram-se os feminismos socialistas. As influências do marxismo no feminismo fizeram sentir-se desde os seus primórdios. O espaço de intervenção das mulheres no marxismo permitiu-lhes a produção de texto e a participação política. A análise de Engels da situação das mulheres e da sua possível emancipação através da proletarização da mulher burguesa e do seu acesso ao mercado de trabalho, foi influente em termos do redirecionamento das preocupações com a situação das mulheres para a luta revolucionária e para a defesa do proletariado. Esta perspectiva, ao aliar a luta de classes e as lutas das mulheres (Collin, 1991), colocou as feministas socialistas na luta contra o capitalismo. Para o feminismo socialista, o capitalismo é a base da opressão, quer das mulheres, quer do proletariado, e vai articular-se com o gênero, a ‘raça’ e a classe para produzir determinadas formas de opressão, como explica Angela Davis (1981). Esta explicação permite reforçaro papel das mulheres na luta de classes, dado que o capitalismo também usa o seu trabalho não-pago. Em termos de alianças políticas, Ana Alvarez (2002) destaca o papel do feminismo socialista na construção de alianças à esquerda. Aliás, para muito do feminismo socialista, como mostra a autora, o feminismo é tido como mais um dos movimentos de esquerda. Esta instrumentalização do feminismo a serviço da esquerda é, geralmente, tida por outras feministas (nomeadamente as radicais) como uma subordinação, que deixava o sexismo de esquerda por criticar (Alvarez, 2000). Contudo, também pode ser vista de outra forma, como, já em 1908, pensava Alexandra Kollontai: As feministas declaram estar do lado da reforma social e até algumas dizem ser a favor do socialismo - no futuro distante, claro - mas não tencionam participar na luta do lado da classe trabalhadora. O melhor em que podem acreditar, com uma sincera ingenuidade, é que quando os lugares de deputados estiverem ao seu alcance poderão curar os males sociais que na sua visão se foram desenvolvendo porque os homens, com o seu egoísmo inerente, se tornaram os senhores/amos da situação. Contudo, apesar das boas intenções dos grupos individuais de feministas em relação ao proletariado, sempre que a questão da luta de classes se colocou, abandonaram o campo de batalha apavoradas. Elas sentem que não se devem envolver em causas que lhes são alheias e preferem retirar- se para o seu liberalismo burguês tão confortavelmente familiar” (Kollontai, 1908, s/p). Se pensarmos em feminismo liberal, não podia ser mais certeira e atual a crítica. No meu caso, não acredito em feminismos que não sejam de esquerda, porque, mesmo que sejam feminismos, não sendo de esquerda, não têm serventia alguma a não ser manter o status quo e intocada a ordem do gênero. Para Colette Guillaumin (1992), o homem é considerado um ser independente que mais tarde venderá a sua força de trabalho, mas encarado como um ser único e irrepetível, enquanto a mulher é apenas uma mulher, um membro de um grupo, um objeto intercambiável, sem outras características que não a sua feminilidade, a base da sua identidade enquanto objeto social. A apropriação da classe das mulheres pela classe dos homens – o processo de sexage – é uma relação social em que os atores são reduzidos ao estado de unidade material apropriada. A ideia de natureza, derivada de um universo simbólico de valores que opõem natureza a cultura, justifica a exclusão desses atores da história. A utilização que o capitalismo faz das mulheres enquanto força de trabalho gratuita para a esfera doméstica e para a reprodução, açambarca a mão de obra destas e as impede de aceder à condição de cidadãs. Conforme foi possível demonstrar, o feminismo socialista salienta o papel da experiência de opressão vivida nas sociedades capitalistas, comparando-a com outras relações de dominação, como as de classe. Esta analogia permite-lhes salientar o papel da família burguesa e da apropriação do trabalho doméstico como fundamentais na manutenção de um sistema que oprime as mulheres. Já no caso do Feminismo Radical, este emerge após a eclosão da Segunda onda do movimento feminista nos Estados Unidos e integra, rapidamente, um número de pensadoras que irão produzir teoria feminista, para além do ativismo feminista. Assume-se que o sistema de gênero é a causa da opressão feminina (Jaggar & Rothenberg, 1984) e que esta opressão é a matriz de todas as opressões humanas. Como diz Angela Davis, ser radical quer dizer ir à raiz, e o feminismo radical identifica o patriarcado como a causa primeira do sistema de gênero. Daí que a sua preocupação fundamental consista na eliminação do patriarcado. Patriarcado - O termo patriarcado foi introduzido na teoria feminista por Kate Millett (1970), uma das autoras mais destacadas do feminismo radical, através da obra “Sexual Politics”, e refere-se, essencialmente, a um sistema de organização social através do qual a esfera pública e a esfera privada são dominadas pelos homens. Esta dominação exerce-se, portanto, nos vários planos da vida social e na família, por meio da norma da paternidade. De acordo com Millett (1970), o patriarcado é o sistema que perpetua a opressão e a subordinação femininas. Esta opressão não encontra legitimação na biologia ou na natureza, mas faz parte de um sistema cultural que coloniza as mulheres[3]. Ora, trata-se claramente de um posicionamento no polo social que recusa a ideia de diferenças biológicas para explicar o modo como as mulheres são oprimidas. É Millett (1970) quem introduz o conceito de gênero na teoria feminista, importado dos trabalhos de Robert Stoller (1968), como veremos na seção sobre o conceito de gênero. A supremacia masculina é construída socialmente, no seio de um regime patriarcal, que propõe papéis sociais específicos a homens e a mulheres. De acordo com Rosemary Tong (2000), o feminismo radical subdivide- se em duas categorias: o feminismo radical libertário (como é o caso de Millett) e o feminismo radical cultural (que Nogueira (2001) apresenta como feminismo cultural), em função do modo como tencionavam erradicar o sexismo. O feminismo radical libertário opta por uma proposta assente na rejeição do essencialismo e pela transcendência do regime de sexo/ gênero, que será aproveitado mais tarde no feminismo lésbico e na Teoria Queer. Para o feminismo radical libertário, a diferença sexual é pouco importante, na medida em que essas diferenças ficam circunscritas à sexualidade e à reprodução. Já para o feminismo radical cultural, a opção é essencialista. A feminilidade é celebrada, bem como a diferença sexual irredutível. Vejamos o caso da obra de Mary Daly (1978). Para Mary Daly, os homens, ao longo da história, oprimiram as mulheres. O patriarcado constitui a instituição em que essa opressão é perpetrada. Os homens são definidos pela autora como destrutivos e genocidas, ou seja, tentam destruir o ecossistema feminino, quer através da opressão, quer através da poluição; ou mesmo através do genocídio de mulheres, como foi o caso da condenação à morte pela fogueira das “bruxas” pela Inquisição, lido como um fenômeno de genocídio perpetrado pelo patriarcado. A gin/ecologia constitui a rede complexa de relações entre as mulheres e a natureza. As mulheres são definidas em termos da energia biofílica (a energia da vida e do amor pela vida) e numa proximidade com a natureza, a que os homens não conseguem almejar. A opção essencialista de Mary Daly implica, pois, a naturalização e o recurso à homologia entre natureza e mulheres, mais próximas da Terra e dos animais. O patriarcado e os homens surgem como opostos a este equilíbrio gin/ecológico. Mary Daly preconiza uma ideologia separatista entre homens e mulheres, considerando os homens como uma ameaça a este equilíbrio entre as mulheres e a natureza. Os trabalhos de Andrea Dworkin (1987) e de Catherine MacKinnon (1993) ilustram algumas das posições do feminismo radical cultural face à sexualidade e pornografia. Para MacKinnon (1993), a pornografia corresponde não a uma representação de um ato sexual, mas ao ato sexual em si. Dado que é punido o uso de palavras e expressões que constituem atos de assédio sexual, a pornografia deveria ser igualmente punida. A sexualidade é um dos domínios da opressão numa cultura masculinizada. Para Dworkin (1987), a pornografia corresponde ao cerne da dominação masculina e incentiva o abuso sexual e a violação. Estas propostas salientam e valorizam uma diferençapositiva das mulheres em relação aos homens. Preconizam a diferença sexual de um modo essencialista e que pressupõe a necessidade de construir alternativas positivas, que tomem a diferença positiva das mulheres como referente. O feminismo radical assumiu uma grande importância no seio do debate e ativismo feminista. A importância atribuída à opressão das mulheres e a um pensamento teórico que pretende reconsiderar esta opressão, assumindo a sua centralidade nas sociedades contemporâneas, deu ao feminismo radical as vantagens de proliferação de discurso teórico e de prática política. E incentivou um ativismo, centrado na lógica de que “o pessoal é político” (Hanisch, 1970). Esta atividade permitiu a criação de grupos de consciencialização da opressão feminina, que foram vitais para a promoção da consciência feminista e que se revelaram igualmente importantes para repensar uma série de questões, nomeadamente as que se ligavam à experiência feminina e ao corpo (Boston Women's Health Book Collective, 1973). É importante frisar o contributo destes coletivos no tocante à criação de espaços onde as ideias feministas são discutidas, tais como editoras, cooperativas, livrarias e grupos. Algumas das feministas radicais preconizavam a necessidade de espaços alternativos para as mulheres até em termos de sexualidade, como foi o caso de grupos como The Furies Collective. Nestes coletivos, surgiu uma ideologia separatista, como modo de criar uma distância dos homens, vistos como inimigos íntimos (Nogueira, 2001). Em Portugal, o feminismo radical teve expressão na sequência do apoio de mulheres à condenação em tribunal por ofensas à moral pública das autoras (Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno) da obra Novas Cartas Portuguesas, apoio este que deu origem à constituição do Movimento de Libertação das Mulheres (MLM) em 1974, na sequência da Revolução (Tavares, 2011). Na França, surge também uma tendência diferencialista (Alvarez, 2002), centrada nos contributos da psicanálise lacaniana em articulação com as propostas pós-estruturalistas e desconstrucionistas. Esta tendência do feminismo francês dos anos 70 poderia ser, igualmente, categorizada como um tipo de feminismo pós-estruturalista, mas a centralidade da diferença sexual permite uma aproximação às tendências do feminismo radical cultural, do qual é contemporâneo. No seu trabalho teórico, Luce Irigaray preocupa-se com a introdução da perspectiva da diferença para traçar uma arqueologia da marginalidade da mulher, enquanto conceito e enquanto corpo (Cavallaro, 2003). Partindo da proposta de que a mulher é um Outro, já presente no pensamento de Simone de Beauvoir, Irigaray analisa o modo como a feminilidade é um efeito do desejo feminino organizado pela libido feminina (Cavallaro, 2003). A repressão patriarcal do desejo feminino ocultou a multiplicidade da sexualidade feminina. Para Irigaray (1985), trata-se de uma sexualidade e de uma categoria sexual diversa e não unificada. Essa lacuna ou falha que o pensamento psicanalítico freudiano[4] atribui às mulheres é, para Irigaray (1985), um reflexo do falogocentrismo (associando o falocentrismo e o logocentrismo), da linguagem significada a partir de uma perspectiva masculina que pensa as categorias sexuais por meio do binarismo. Para Irigaray, as mulheres representam uma multiplicidade que o binarismo torna ininteligível. Apesar de partir da diferença sexual, o pensamento de Irigaray não assume uma perspectiva essencialista, dado presumir a diversidade dentro da diferença sexual. Tal como Irigaray, também Hélène Cixous (1976) presume a fluidez da categoria “mulher”, argumentando a inexistência da mulher em geral, da mulher típica, e assumindo a heterogeneidade categorial. Apesar desta diversidade, o trabalho de Cixous celebra a diferença sexual como multitude, apesar de não a considerar a partir de um substrato biológico. A associação entre a diferença sexual e a libido permite-lhe considerar o modo como a libido – definida pela psicanálise como masculina – nega a existência da “jouissance”, o sentido de um êxtase sem fronteira nem unidade intrínseca, negado pelo falocentrismo da psicanálise clássica. É Cixous (1976) (e também Irigaray) que proclama igualmente a existência de uma écriture féminine (escrita feminina), que inscreve a sexualidade feminina e o corpo feminino no discurso. A escrita feminina recusa os princípios patriarcais da racionalidade e da lógica, optando por privilegiar o que é marginalizado e silenciado pelo falogocentrismo. Esta atenção à linguagem que o feminismo francês começou a dar, justamente pela sua proximidade com as propostas lacanianas e com a importância do pensamento de Derrida, na sua constituição, foi também central na obra de Julia Kristeva. A autora parte do pressuposto lacaniano de que o sujeito se constitui na fase da aquisição da linguagem. É a partir deste momento que se dá a separação do/a filho/a em relação à mãe e que entra no real (falogocêntrico). Com a definição consequente das fronteiras do corpo, dá-se o fenômeno de rejeição de tudo o que possa pôr em causa esta autocontenção, tudo o que flui e tenta ultrapassar estas fronteiras. Como mostra Kristeva (1985 :13): “O abjecto confronta-nos […] com as nossas tentativas iniciais de nos libertarmos do controle de uma entidade maternal, mesmo antes de existirmos fora dela”. Kristeva, para além das suas propostas em The Powers of Horror, obra de culto não só nos Estudos Feministas, mas também nos estudos sobre o cinema e performance, ilustra a ligação entre as propostas psicanalíticas, o que é recorrente neste feminismo francês, muito centrado no papel da diferença, na corporalidade e na linguagem. Esta pequena amostra das propostas do feminismo francês centrado na ideia de diferença, permite, contudo, concluir uma distinção fundamental no que toca ao feminismo radical cultural norte-americano. O feminismo francês da diferença vai interrogar a diferença conceitualizando-a como um ponto de questionamento e de reflexão crítica. Ao considerar que a diferença sexual foi concebida, seguindo uma lógica falogocêntrica, estas propostas reequacionam o projeto feminista, questionando o feminismo da igualdade. Se pensarmos que a diferença sexual que é proposta não se trata de uma diferença única, mas sim de uma multiplicidade de diferenças, o essencialismo teórico da proposta parece ser menor do que o essencialismo das propostas do feminismo cultural norte- americano. Contudo, os valores a que ambas as propostas recorrem – como o da criação de uma escrita que, ainda que metaforicamente, seja feminina, a positividade de uma cultura alternativa feminina, que revoluciona aquilo que o feminismo da igualdade apenas quer reformar – configuram um claro apelo ao feminino como alternativa à ordem patriarcal e também um projeto político de afirmação dessa(s) diferença(s) primordial(is). A implicação desse projeto consiste na preponderância explicativa do sexo sobre o gênero como conceito que permite apreender a diferença. Estas proposições feministas consideram que a valorização da diferença permite conquistas políticas e sociais que não podem ser conseguidas num posicionamento do feminismo da igualdade. A preponderância do corpo sexuado e da linguagem como forma de dar sentido a essa sexuação permitem um reposicionamento das propostas feministas, a partir do corpo. Uma das principais críticas levantadas às feministas liberais tem a ver com a identificação de um sujeito feminista que para as autoras do feminismo negro correspondia àmulher branca, heterossexual, burguesa e que, portanto, falhava no plano de uma representação das outras mulheres. Diz-nos bell hooks As mulheres brancas que dominam o discurso feminista nos dias de hoje raramente questionam se a sua perspectiva sobre a realidade das mulheres corresponde verdadeiramente às experiências vividas pelas mulheres como coletivo. Igualmente não estão conscientes do ponto a que suas experiências refletem enviesamentos de raça e classe, apesar da maior consciência sobre isso nos últimos anos. O racismo abunda nos escritos das feministas brancas, reforçando a supremacia branca e negando a possibilidade de articulação política de mulheres para lá das fronteiras étnicas e raciais (1984, p. 3): Esta frase de hooks ilustra um sentimento de frustração com as políticas de representação feministas que foi partilhado por vários grupos. Esta crítica desferida ao feminismo liberal é partilhada por várias autoras feministas negras e chicanas, que centram a sua atenção no modo como os feminismos brancos vieram, na sua reflexão, a excluir possibilidades de representação das outras mulheres não brancas, não heterossexuais e que não fossem de classe média. Um bom exemplo destas perspectivas, para hooks (1984), é o caso de Betty Friedan (1975) e da sua preocupação com as mulheres que não trabalhavam e que ficavam em casa dedicadas às tarefas domésticas e à educação dos filhos. hooks (1984) aponta que um terço das mulheres nos EUA eram trabalhadoras, precisamente aquelas que não tinham formação universitária, muitas delas não brancas e seguramente sem serem de classe média. Assim, a crítica que o feminismo negro vem desferir inexoravelmente ao feminismo liberal tem como conclusão a ideia de que a maioria dos discursos feministas se dirigem a algumas mulheres e não a todas. Ou seja, tomam-se como ponto de partida os interesses de um grupo específico dentro do coletivo mulheres como preocupação de todas as mulheres, ignorando ‘raça’, classe social e sexualidade. De acordo com Violet Barriteau (2010), o feminismo negro traz consigo uma série de instrumentos analíticos que vêm alterar o modo como os saberes e práxis feministas são produzidos e vêm influenciar toda uma nova maneira de olhar para as questões de gênero. Dessa forma, Barriteau menciona a interseccionalidade, a problematização da ideia de ‘raça’, reformulações de conceitos como patriarcado, binarismo do público-privado, o centramento na economia política (também pela intersecção entre feminismo negro e socialismo), as identidades múltiplas, mas sobretudo a desconstrução de uma ideia de sororidade indiferenciada. É nesta ideia de sororidade diferenciada, a que prefiro chamar desconstrução da ideia de “mulher”, que irei me centrar. Interseccionalidade - teoria criada a partir dos feminismos negros, nomeadamente introduzida por Kimberlé Crenshaw (1989), que visa analisar os efeitos das posições de sujeito em diferentes matrizes de privilégio/discriminação e as interseções entre estas posições relativas. Crenshaw (1989) analisa o caso De Graffenreid Vs General Motors, num despedimento coletivo onde todas as mulheres negras contratadas a partir de 1970 foram demitidas. Cinco mulheres negras processaram a empresa por discriminação. O tribunal não deu razão às trabalhadoras. A sentença considerou que a empresa não despediu outras mulheres (discriminação de gênero), nem outros negros (discriminação racial). Assim o tribunal não reconheceu a discriminação interseccional dirigida a mulheres negras. Esta invisibilidade resultante da interseção demonstra o efeito combinado e de interação destas matrizes e a geração de efeitos que não são acionados simplesmente pelo gênero ou pela ‘raça’ (Nogueira, 2017). Uma das feministas que denunciou esta noção de mulher imune às diferenças entre mulheres foi Audre Lorde. Darei dois exemplos da sua luta contra esta imunidade e resistência do feminismo às mulheres que não cabiam no sujeito mulher. O primeiro exemplo é a sua posição na conferência dedicada a Simone de Beauvoir, organizada em Nova Iorque, em 1979 (Olson, 2000), a partir de onde vai escrever o famoso ensaio: “As ferramentas do amo nunca desmantelarão a casa do amo” (Lorde, 1984). Nesse contexto, chocada com a ausência de feministas negras na conferência, Lorde vai criticar a ausência de uma verdadeira atenção às diferenças entre mulheres dentro do feminismo, ponto fulcral da sua versão da teoria feminista em que as diferenças não devem ser apenas toleradas, mas vistas como polaridades fundamentais através das quais a teoria feminista pode ser problematizada (Lorde, 1984). Ou seja, o feminismo, em vez de mascarar ou eliminar a produção de conhecimento sobre a heterogeneidade da categoria mulher, deve, pelo contrário, assentar a sua prática política e teórica sobre as diferenças entre mulheres. Para Lorde, esta inexistência de um pensamento sobre o feminismo que também contemplasse as diferenças constitui uma fraqueza do feminismo e uma verdadeira capitulação ao patriarcado, dado que não possibilita um entendimento das diferenças entre mulheres como uma aprendizagem para, a partir daí, gerar conhecimento e ação política que permitam uma outra forma de fazer feminismos por meio das diferenças entre mulheres – como afirma, noutro contexto: Quando digo que sou uma feminista negra, quero dizer que reconheço que o meu poder bem como as minhas opressões primárias resultam da minha negritude e da minha feminilidade e que assim sendo, as minhas lutas em ambas as frentes são inseparáveis (Lorde, 2009:58). Ou seja, não se trata de valorizar apenas uma característica, mas sim atender a todo um jogo de intersecções. A isso poderíamos chamar de interseccionalidade, como lhe chamou mais tarde Kimberlé Crenshaw. A marca de Lorde e do pensamento feminista negro fica assim indelevelmente ligada a uma noção dos feminismos das diferenças. Diferenças entre mulheres que são usadas como uma fonte para outras práticas feministas que não as de um feminismo liberal que elege apenas como âmbito de intervenção a “mulher”. Para este efeito, muito contribuiu também os trabalhos das autoras dos feminismos chicanos com as suas noções de fronteira e de identidades híbridas, como Glória Anzaldúa (2004). A destruição deste sujeito mulher, único, universal e pouco representativo das diferenças e da diversidade intra-categorial, leva ao alargamento do horizonte da prática feminista; o que é notório numa série de textos deste período e do início dos anos 90. Em particular os que se rebelam contra os feminismos culturais, essencialistas e mais preocupados com a valorização da diferença sexual e do feminino como grande causa política, mantendo as suas crenças na unidade original da categoria mulheres. Aludindo a esta emergência de uma série de críticas, é notório como estas vão transbordar para os anos 90 e a partir daí redesenhar a complexa paisagem da teoria e da política feminista. A ideia de um feminismo assente nas diferenças e já não apenas na diferença essencial entre ser homem e ser mulher permite igualmente reproblematizar a ideia de diferença. Na análise que Teresa de Lauretis (1987) realiza sobre o gênero enquanto tecnologia, primordial para este debate, considera que o gênero evidenciado como um feminismo centrado na diferença entre homens e mulheres serve de obstáculo ao questionamento sobre as diferenças entre as mulheres e não permite sair de um esquema heterossexual de pensamento em termosfeministas. Desta forma a sua análise demonstra a importância de contemplar outras diferenças, principalmente as intra-categoriais. Avtar Brah (1992) problematiza este tema da diferença equacionando quatro modalidades possíveis de diferença: experiência, relação social, subjetividade e identidade. A diferença como experiência implica a ideia da existência de um espaço discursivo onde se inscrevem, reiteram e repudiam diferentes posições de sujeitos. As experiências são campos de constituição da subjetividade, e é através desses campos que se procede à significação não só dos objetos, mas à nossa própria constituição. A diferença concebida desta forma implica atender à constituição de biografias e histórias pessoais e à sua relação direta com histórias grupais e significações coletivas, apelando à contingencialidade. A diferença enquanto relação social implica pensar as relações entre grupos e a sua estruturação mais ampla em termos de assimetrias sociais, ou seja, em termos de micro e macro relações de poder. Esta perspectiva implica caracterizar os grupos em questão, a partir das estruturas de poder das relações sociais, olhando-os de forma integrada, histórica e sociologicamente, sem perder de vista as relações sociais, políticas e econômicas que se estabelecem entre estes grupos. Uma outra maneira de conceber a diferença é encarando-a a partir da subjetividade. Olhar para a subjetividade tem como consequência pensar que os sujeitos são sempre construídos. Esta constituição do sujeito deve atender não só à sua constituição discursiva, mas também à sua fragmentação, ao seu caráter tanto social como subjetivo, marcado por contradições. Em termos de diferença, a subjetividade implica atender aos processos de constituição, interpelação e estruturação dos sujeitos, abdicando da ideia de um sujeito racional, universal e autodeterminado. Por fim, a diferença como identidade implica atender à multiplicidade de posições que constituem os sujeitos, através das suas experiências e das relações sociais onde estão envolvidos. Isto é, a diferença como identidade elimina, para Brah (1992), as restantes concepções de diferença, pois as integra como campos fulcrais para pensar a identidade. Assim, as identidades não são fixas, são instáveis e contraditórias. Esta concepção da identidade implica considerá-la como contextualmente construída e não determinada antecipadamente. Esta problematização das identidades permite igualmente observar o seu caráter político como mobilização coletiva com um objetivo político. Estes múltiplos aspectos da diferença mostram como ela não pode ser tomada como um significado único. Pelo contrário, é necessário, como mostra Brah (1992), repensar a diferença a partir de múltiplas perspectivas como modo de analisar quer o seu caráter opressivo, quer a sua potencialidade emancipatória. Conforme nos foi possível observar nesta análise, a diferença pode ser ressignificada por meio de uma série de propostas que lhe retiram o caráter essencialista e a colocam como uma multiplicidade de processos. Contudo, e tendo em conta, os usos dos feminismos das diferenças ligando-os a formas de feminismos muito centrados no essencialismo e na irredutibilidade da diferença sexual, prefiro apresentar estas correntes feministas, elaboradas a partir das margens e com um forte enfoque na questão da universalidade do conceito “mulher”, como feminismos das difrações. Donna Haraway (2004) fala-nos da impossibilidade ontológica da reprodução dos humanos, recorrendo ao conceito de difração e ao conceito de Trinh Minh-ha de inappropriate/d others (outrxs inapropriáveis /inapropriadxs). Para Haraway, este posicionamento implica uma relacionalidade crítica, uma forma de estar de determinados grupos e objetos que não estão categorizados, que se encontram em posições não fixadas pela diferença e pelas taxonomias (atores/as multiculturais, étnicos, nacionais, sexuais, entre outros, num mundo cada vez mais global e de as múltiplas pertenças). Esta posição não admite a possibilidade de algo autêntico ou original e, pelo contrário, implica uma outra metáfora que não a reprodução ou a cópia. A difração (visível no arco-íris que se vê quando a luz incide sobre um CD ou DVD) consiste, nesse sentido, na possibilidade de padrões de interferência e não na reprodução ou reflexão do mesmo (para mantermos a metáfora ótica). Assim, a difração parece-nos a figuração destes feminismos, não já preocupados com uma pretensa unidade de pensamento, mas sim com a preocupação de produzir efeitos diferenciados a partir da interseção categorial. A difração é a imagem da interseccionalidade, mostrando como o cruzamento de matrizes de opressão e privilégio conduz a diferentes efeitos. Já estamos fora do domínio das relações de gênero no seu sentido mais tradicional como relações entre homens e mulheres; estamos no domínio dessa interseção entre gênero, ‘raça’, classe, sexualidade, entre outras categorias, e a forma como são produzidos efeitos difratários destas conjugações. Para Haraway (2004), o gênero é uma relação social atravessada e entrecruzada com outras. Ou seja, o potencial crítico desta abordagem implica não só questionar a teoria feminista exclusivamente interessada no gênero ou nas relações entre os sexos, mas repensá-la à luz das múltiplas difrações que o próprio conceito de gênero como relação social invoca. Lésbicas, queer e transfeminismos: encarnações feministas Uma outra linha onde é possível observar a emergência desta questão refere-se aos feminismos que se ocuparão da sexualidade, como é o caso dos feminismos lésbicos e queer, mormente pela atenção que vêm dar à heterossexualidade como forma de instituição política e que também introduz a questão dos modos das normas da sexualidade de uma forma crucial nos estudos de gênero. Se atendermos ao trabalho fundador de Gayle Rubin (1975), esta concepção já se encontrava presente nomeadamente na definição de um sistema de sexo/gênero, que consiste num processo de atribuição social a uma diferença biológica, organizada política, social e economicamente por forma a colocar os homens numa posição de superioridade face às mulheres atribuindo-lhes certos privilégios. Nesses termos, Rubin vai caracterizar o sistema sexo/gênero como uma economia política em que a divisão sexual e social do trabalho constrói o sistema de gênero. Ou seja, refutando as correntes que até ao momento determinavam que eram as diferenças entre homens e mulheres que iriam construir uma divisão sexual do trabalho, para Rubin (1975) a causalidade inverte-se, construindo um sistema teórico que visa compreender como é que as mulheres são comodificadas, transformadas em mercadoria e por isso passíveis de troca entre homens, reanalisando as posições de Lévi-Strauss sobre a troca de mulheres. Um outro contributo do pensamento de Rubin é a importância dada à heterossexualidade obrigatória como outra das condições deste sistema. Esta forma de organização social implica que a unidade econômica mínima e viável seja um casal homem-mulher, instituindo uma divisão sexual do trabalho que implica uma dependência entre os sexos. Este sistema normativo da heterossexualidade obrigatória determina uma supressão da homossexualidade e discriminação das pessoas homossexuais. Contudo, Rubin (1975) mostra que estas categorias trans-históricas são organizadas culturalmente de forma temporal e culturalmente situada; de modo que fornecem evidência de diferenças culturais nesta expressão. Assim, para Rubin (1975) é fundamentalo papel da divisão sexual do trabalho que configura maneiras específicas do sistema sexo/gênero corporizado nas relações entre os sexos, na família e na heterossexualidade obrigatória. A importância deste ensaio de Rubin (1975) é capital, pois vai reelaborar as causalidades de outras correntes do pensamento sociológico e antropológico, demonstrando o modo como o gênero é um produto de uma determinada economia política e que resulta de processos sociais, criticando assim as perspectivas essencialistas e biologizantes que olham para os sexos como fatos irredutíveis e os retiram dos processos sociais. Isto é, Rubin estabelece o gênero como um processo de construção social, marcado por uma assimetria de poder no quadro de uma economia política assinalada por uma divisão sexual do trabalho que é constantemente legitimada pelas relações entre os sexos e pela heterossexualidade obrigatória. Esta figura da heterossexualidade obrigatória vai ressurgir no trabalho de Adrienne Rich (1993) sob a forma de heterossexualidade compulsória, um modo institucional de heterossexualidade que é produzida e reproduzida socialmente como maneira de construir posições de sujeito genderizadas e impedir o contínuo lésbico, ou seja, a cadeia de identificações entre mulheres, eliminando progressivamente a existência lésbica da história. A história do feminismo lésbico começa, entretanto antes destes trabalhos. Marcado pelas tensões com o feminismo liberal, designadamente pelas clivagens em relação à National Organization for Women (NOW) por parte de ativistas feministas. O desconforto em relação à existência de lésbicas nas fileiras feministas é expresso por feministas históricas como Betty Friedan, que considerava os assuntos lésbicos como uma distração no tocante à libertação das mulheres, considerando-os uma “lavender menace” (ameaça lavanda). Susan Brownmiller também acaba por se envolver nesta contenda e desvaloriza igualmente o papel das lésbicas na luta feminista (Wilton, 1995). A resposta das feministas lésbicas não se faz esperar e criam-se grupos de feministas lésbicas como as Radicalesbians, Gutter Dyke Collective, Lesbian Menace e as Redstockings, inclusivamente com publicações de manifestos como o Woman Identified Woman (Radicalesbians, 1970), distribuído num encontro da NOW para o qual não foram convidadas ativistas lésbicas, a tal ameaça lavanda. Com a emergência destes grupos e destas reações começa a surgir, dentro do feminismo radical, uma corrente de pensamento muito marcada com a preocupação de uma identificação política lésbica, como uma forma de expressão feminista, assente precisamente nas “mulheres identificadas com mulheres” (women-identified women). Esta linha de pensamento vai marcar a intervenção feminista lésbica, mostrando que lésbica é também uma forma de identificação política (Oliveira et al, 2009). No decurso dos anos 70 do século XX, assiste-se a um movimento dentro do feminismo que vai aprofundar este caminho de afirmação das mulheres identificadas com mulheres e que encontra várias formas de expressão. Com efeito, como atesta Tamsin Wilton (1995), as análises destas feministas lésbicas tomavam a homossexualidade como um efeito do sistema de gênero. Em Inglaterra, em 1979, o Grupo Feminista Revolucionário de Leeds (1979) publicou um manifesto em que criticava a aliança entre feministas heterossexuais e homens, em termos da coabitação com homens heterossexuais, apresentando as lésbicas políticas como mulheres identificadas com mulheres que não tinham sexo com homens. Este posicionamento deu origem a uma série de críticas de outros grupos feministas que recusaram uma definição centrada nesta dimensão e a redução da sua experiência heterossexual a uma espécie de colaboração com o inimigo. Este tipo de movimento encontrou também alguma expressão em modos mais separatistas do feminismo, com grupos de mulheres auto-organizadas que viviam em coletivo sem homens. Todavia, é necessário entender que estas experiências não foram generalizadas e que se constituem também a partir da ideia de que espaços só de mulheres foram muito importantes para a discussão de assuntos ligados à sexualidade, maternidade, experiência feminina, entre outros. É por meio deste percurso no feminismo que uma autora, Monique Wittig, vai problematizar o conceito de pensamento heterossexual e analisar a produção do gênero a partir deste pensamento. O conceito de pensamento heterossexual, para Wittig (1992), implica a produção de uma diferença entre os sexos, segundo a qual, homens e mulheres são categorias que visam enformar as relações de dominação e a reprodução da sociedade heterossexual. Esta garantia ontológica é vista pela autora como um modo de produzir posições de sujeito opressivas a priori, localizando as pessoas dentro do sistema de gênero. O desaparecimento destas posições corresponde a uma destruição das premissas que tornam este sistema possível e legitimado. Assim, Wittig (1992) afirma que gays e lésbicas não se devem considerar nem homens nem mulheres, como forma de retirar legitimidade ao sistema. A sua frase lapidar “As lésbicas não são mulheres”, reafirma, pois, a necessidade de deslegitimação do sistema. Uma dimensão importante destas críticas que enumeramos consiste no fato de serem correntes de pensamento e práxis que surgem das margens. Estes feminismos das margens (como algumas autoras os denominam, entre as quais hooks, 1984) apresentam-se, portanto, como uma tentativa de pensar a prática feminista a partir de outros lugares, que não apenas o espaço das mulheres brancas, ocidentais, de classe média e heterossexuais. Queer - Como mostra Butler (1993, 1997b), queer começou por ser tido como um insulto, “esquisito”, estranho, bizarro, efeminado, bicha, “viado”, uma palavra destinada a servir de injúria e, como tal, enquanto modo de instauração e reiteração de um regime heteronormativo. Quando grupos de ativistas começam a usar esse insulto como modo de autodesignação (como por exemplo, os Queer Nation), a própria palavra passa a ser ressignificada, rompendo de forma resistente (lembremos Foucault e a ideia de que o poder implica formas de resistência) com essas normas. É assim que queer, para Butler (1993), passa a ter um significado crítico e inesperado. Passa a ser um conceito indeterminado, capaz de romper com a heteronormatividade, porque implica ressignificar a injúria e o discurso de ódio (Butler, 1997b), provocando a reversibilidade dos efeitos da injúria. Este interesse pelas afirmações queer traduz também uma decorrência das suas teorias no âmbito da identidade. Se estas afirmações são identitárias, elas não decorrem de uma diferença essencial. O que une as propostas queer é o desafio e a recusa face à norma (Colling, 2015). No caso das afirmações queer, esta apropriação de um insulto trata-se de um projeto político cuja finalidade não é inteiramente clara à partida, que recusa o fundacionalismo e a própria noção de identidade e não antecipa o futuro das utilizações políticas do termo. A recuperação da figura do abjeto, nomeadamente via Julia Kristeva (1982), anuncia uma preocupação que Butler (2005) vai teorizar de outra forma, mostrando processos de exclusão dxs outrxs para uma zona de abjeção, marcada pela ausência de inteligibilidade como sujeitos e como humanos. Este processo pode ser extensível a todxs xs outros abjetxs (Butler, 1993), com particular ênfase naqueles que estão para lá do inteligível pelas normas de gênero (Oliveira et al, 2009). A inteligibilidade do humano é analisada,do ponto de vista feminista, como uma questão de justiça, de possibilitar uma vida “vivível”. Esta questão é analisada em relação a uma série de questões onde se implicam populações trans*, intersexo e identificadas como queer na sua relação com direitos políticos, sexuais e sociais (Butler, 2005). Uso o termo pessoas trans*, como Lucas Platero (2014), sinalizando a diversidade de experiências, de vidas e de conhecimentos, tendo em conta que o termo pode e deve incluir corpos e vidas que são tidas como fora da norma, que não querem a norma, ou que querem estar noutro gênero sem relação com o gênero que lhes foi atribuído. Identidades, porque são ao mesmo tempo demasiado vastas, demasiado estreitas, demasiado fixas. Estes argumentos consideram que este reconhecimento de alguém como humano consiste na própria produção do humano. Ou seja, só se é humano se as normas que regulam a inteligibilidade da humanidade incluam esse “modo de ser” (Amâncio, 1998) nessa categoria de humano. Desta forma, mulheres, homossexuais, negrxs, trans*, intersexos, e outr@s, viram, durante muito tempo, a sua humanidade negada. Assim como não acederam a esse reconhecimento, viram negada uma vida “vivível”, reconhecida e justa. Esta atenção que vem dar às questões da inteligibilidade é caracterizada por uma preocupação ética que vai explorar no contexto de uma reflexão também sobre a política. Butler, no trabalho que dedica ao reconhecimento da humanidade, também numa luta política pelo reconhecimento de direitos às pessoas trans* e intersexo, usando como figuras que implicam repensar a categoria do humano, fora das normas que excluem a possibilidade de variações de gênero. Este trabalho implica-se mais na dimensão ética, no plano da filosofia moral, do que os anteriores e apresenta uma faceta que é considerada como mais ligada a um discurso de universalização e de humanismo. Contudo, é preciso atender às especificidades de uma filosofia implicada na ideia da vulnerabilidade da vida e na precariedade desta ideia de humano. A ideia da humanidade como uma condição precária (Butler, 2015) permite uma crítica aos conceitos neoliberais do humano e do indivíduo como autossuficiente, eficaz e autodeterminado. A partilha de uma condição de precariedade que pressupõe uma interdependência é antagônica com esses projetos político-ideológicos e assenta numa consideração da inteligibilidade do humano. Nesse contexto, esse projeto teórico que visa esclarecer o que conta como humano é um projeto ético-político que começa a ser enunciado em relação às pessoas detidas na prisão de Guantánamo (Butler, 2004), mas que foi também aplicado às comunidades trans*, queer e intersexo. A análise da constituição e produção das subjetividades permite analisar os processos de reconhecimento do humano, colocados em termos da possibilidade de luto por aquelas pessoas que desapareceram, mas cuja vida era encarada de um modo não reconhecível pelas normas da inteligibilidade. Este processo implicou uma análise na qual Butler (2005) mostra que as normas de gênero são constitutivas das subjetividades e que desfazê-las implica, muitas vezes, deixar de ser inteligível. É precisamente aqui que entronca a discussão sobre as posições de pessoas identificadas com posições queer e pessoas trans*. O esforço de descolonização das experiências trans* e os desafios da ruptura normativa operada pelas perspectivas queer provocaram alterações nos estudos de gênero que coincidiu com novos projetos teóricos e conceituais, como a teoria trans (Stryker, 2006), que visa dessubjugar os saberes trans, rompendo com o discurso médico do corpo errado (Stone, 2006), com a necessidade de promover ‘correções’ de crianças intersexo (Chase, 2006); trabalhos sobre performatividade de gênero na escola (Pereira, 2012); os projetos de análise dos ativismos LGBT como o de Ana Cristina Santos (2012); ou com estudos queer não brancos/negros/decoloniais, como na proposta recente, de Tim Stuttgens (2014), que mistura a abordagem multicategorial da interseccionalidade com a abordagem anti-categorial queer, fala do Qu*A*re, tirando o A de black (negro) e colocando-o no meio de queer. Um caminho de intersecção, de potentes alianças políticas, condenando racismos, sexismos, homo e transfobias. Trânsitos e democracias de gênero Um gênero[5] que nunca se é, mas que se faz por ser. Um gênero ou mais do que um (podemos ter mais do que um), e daí esses termos identitários me parecerem uma linguagem muito gasta para falarmos disso. E se funcionarmos, como algumxs de nós, por desidentificação? Por não me adequar, por não querer estar, ou por recusar. Como Bartleby, personagem de Herman Melville, “prefiro não fazer”, a usar uma sagaz expressão que diz muito menos do que a personagem sente, mas por uma espécie de sarcasmo encontra no “Eu preferia que não” uma forma de resistência. Uma resistência em potência, condicional. A opção pelo trans*, termo guarda-chuva e pouco preciso, parece-me ter a possibilidade de abrir a porta à ideia de multitude. Uma multidão de gente, desunida na identidade (porque ela é demasiado vasta ou demasiado estreita), unida no seu desfasamento face à norma, no seu rompimento da mesma, na sua recusa em ser tão somente um corpo errado. Não há nenhum corpo errado. Errados são os termos em que esta questão é posta. Há corpos que não correspondem ao nosso projeto de corpo, ou de gênero, ou os dois. Para isso, se inventou a tecnologia. Exija-se, altere-se, mostre-se como a tecnologia serve também para deixar as pessoas a viverem melhores vidas, sem nenhuma obrigação de se chegar a ser algo. Corpo também projeto do que queremos ser. O único critério deve ser o de Espinosa (Oliveira, 2016): perseverar na nossa singularidade, naquilo que queremos ser e que sentimos que somos. Cabe ao Estado garantir isso. E não necessariamente nenhuma forma de autoridade externa a dizer-te quem és e como podes ser mais ou menos mulher ou homem, sem nenhuma base científica, porque até agora nunca definiram mulheres ou homens ideais, sequer masculinidade e feminilidade. E há mais gênero do que isso. Muitos mais. Numa estimativa conservadora, uns mil. E mais um: o teu. Assim o gênero passa a ser não só critério de reconhecimento social, fundamento para expectativas e para comportamentos. Passa a ser uma potência, aquilo que cada pessoa sonhou para si e que deve ser acarinhado, reconhecido e valorizado como diverso, pois que numa democracia não é nem pode ser uma decisão de médicxs, psicólogxs, psiquiatras, assistentes sociais etc., sobre quem pode ser o quê. A decisão pertence ao domínio da autodeterminação, que é feita não num quadro de individualismo, mas no seio de uma comunidade que resiste e luta contra as normas de gênero. Dentro desse arco-íris que é o gênero, e a viagem que todxs fazemos dentro desse arco-íris, sejamos nós autodefinidos como trans* ou não, há muitas possibilidades, algumas das quais mais reconhecidas que outras de acordo com critérios estéticos, políticos e certas equivalências entre sexo e gênero. O problema é que essas equivalências só existem para as pessoas que acreditam em corpos errados, em fronteiras fixas entre homens e mulheres e na necessidade de catalogar essas identidades, a que eu prefiro pensar como expressões. Como explica Judith Butler, (1993), a esse sexo que é visto como matéria é afinal o gênero que lhe dá sentido e leitura. Obviamente a sociedade que é fundamentada numa ideologia sexista, genderizada, anti-trans*, conformista do ponto de vista de gênero e politicamente heterossexual,
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