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Quarto De Despejo: Ecos Da Violência No Contexto Da Favela Do Canindé (1958) José Carlos da Silva Ferreira1 A violência sempre caminhou junto ao homem desde os períodos mais primitivos e continua a caminhar. Para se entender sua natureza, é preciso, em primeiro lugar, entender seu contexto de criação e propagação. A partir disso, poderemos relacioná-la à situação atual da nossa sociedade. Além disso, esta resenha tentara relacionar, ainda, o conceito de violência e sua relação com a pobreza, bem como a presença da violência nas periferias. Estando além, o livro da Carolina Maria de Jesus intitulado como “Quarto de Despejo”, um escrito biográfico, nos ajudará a entender melhor esse fenômeno. Analisando a violência em sua origem, entenderemos que ela está ligada diretamente à noção de desejo, pois este carrega o caráter mimético, ou seja, repetitivo, segundo a origem grega, de fomentar a rivalidade entre os indivíduos. De forma sucinta, a violência surge como uma “derivação” de caráter mimético2 do desejo. Sendo assim, qualquer objeto que resulta do desejo pode gerar rivalidade entre pares, causando conflitos. Mais do que isso, em sua forma extrema “A violência do homem é revelada pelo que se passa hoje, e, uma vez que transcende as possibilidades humanas, coloca ao mesmo tempo a espécie em perigo” (GIRARD, 2008, p. 5). No livro da Carolina de Jesus são narrados vários momentos de violência que acontecem dentro da favela na qual ela mora. Com agressões físicas, verbais, espancamentos e até assassinatos, Carolina e seus três filhos convivem em meio a esses acontecimentos que habitam, corriqueiramente, a favela do Canindé, em São Paulo. Porém, com seu hobby3, ela descreve as várias situações de brigas e agressões, tudo isso de forma franca, citando os nomes dos envolvidos, os motivos aparentes e como se acabou aquele conflito. Por vezes, ela, ainda, intervém na medida do seu alcance, ligando para a Rádio Patrulha ou aconselhando àqueles indivíduos. Nesse sentido, é preciso analisar esses conflitos e suas causas a partir da perspectiva de um contexto espacial de aglomerados subnormais, onde residem pessoas com pouco grau de 1 Licenciando em História pela Universidade de Pernambuco; 2 Ver a Violência e o Sagrado, Renè Girard. Pela mesma ótica, a hipótese mimética; 3 Ela tinha o hábito corriqueiro de escrever ao amanhecer, durante o dia ou à noite. instrução e, de certo modo, desamparadas pelas autoridades governamentais das décadas de 1950/60, período em que o diário foi escrito e publicado. Um dos primeiros casos que ela relata é a briga de um casal, onde o esposo espanca a sua esposa. Tudo isso é presenciado pelos filhos da Carolina, e pela favela em geral, onde toda a trama é paramentada de palavrões. Porém, no decorrer do livro, são inúmeros os casos de brigas entre casais, sobretudo da violência com teor machista. Um dos inúmeros motivos que levam a emergência da violência naquela favela é o vício do álcool que está ligado também à falta de oportunidade de trabalho, já que o desalento social e moral levava os indivíduos a buscarem refúgio emocional e econômico em drogas, como relata a autora: “a bebida aqui é o paliativo. Nas épocas funestas e nas alegrias” (JESUS, 1963, p. 122). Mais do que isso, a falta de um serviço social fomentava famílias não planejadas nas quais os filhos que conseguiam sobreviver a precariedade das condições sub-humanas dos primeiros anos de vida, quando chegassem à fase adulta estariam mais propícios a encontrarem o mundo da criminalidade e da violência. As relações extraconjugais, os convívios familiares conflituosos e o machismo também podem ser vistos, no livro da Carolina Maria, como expoentes da violência, sobretudo no âmbito familiar e doméstico. No caso do machismo, o sentimento de superioridade dos homens em relação às mulheres é perceptível quando a violência contra elas acontece de forma gratuita pois: “Contra toda afronta, contra toda tentativa de reduzi-lo a objeto, tem o homem o recurso de bater, de se expor aos golpes [...]” (BEAUVOIR, 1967, p. 69). Nos escritos é possível, ainda, encontrar situações desse tipo de comportamento, quando, por exemplo, é narrado o caso de uma mulher que se encontrava em uma festa e se recusa a dançar com um pernambucano e ele tenta lhe matar à facada dizendo: “hoje eu mato, hoje corre sangue na favela” (JESUS, 1963, p. 68). Ainda assim, muitas das mulheres que hoje sofrem com a violência doméstica ou não têm para onde ir, ou não querem sair daquela situação. Seja por questão econômicas ou culturais. Muito embora, segundo dados do Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 40,9% das mulheres contribuam para a renda das famílias do país, os homens ainda se acham no direito de oprimi-las pela questão da subsistência ou pela questão cultural advinda da família, característico de uma sociedade ainda patriarcal, como a brasileira. Esse mesmo tipo de comportamento pode ser visto em um trecho do livro, quando acontece uma briga entre um casal e onde os populares, um soldado e a Carolina tentam apaziguar a situação, mas o marido responde: “Leve a minha mulher para você! Mulher depois que casa é para suportar o marido e eu não admito soldado dentro da minha casa [...]” (JESUS, 1963, p. 86). Fica evidente, portanto, que a violência contra a mulher e o machismo, visto na década de 50, ainda hoje é presente na sociedade e embora alguns homens não admitam, explicitamente, frases desse tipo, é assim que muitos deles pensam e agem, perpetuando a violência que a cada momento cria filhos sem mães e mães sem filhas. Por fim, as pessoas que moravam na favela sempre chamavam a Rádio Patrulha para a resolução de conflitos desse tipo. Mas nem sempre era de forma pacífica. Às vezes, os impasses eram resolvidos de forma mais violenta. A favela parecia o “Velho Oeste”, onde os mais fortes e violentes sobreviviam. Porém, quando a polícia ia à favela, podemos analisar que enfim o sistema judiciário4 agia como mediador de conflitos. Nesse sentido, é entendido hoje que a polícia deve agir como órgão intermediador para o fim dos conflitos, pois a violência, por uma noção mimética, vai se propagar cada vez mais forte como forma de vingança, o que vai gerar um ciclo sem fim e, consequentemente, a desmoralização das instituições pacificadoras, podendo ir mais longe, pois, o ato de: Vingar-se é devolver ao adversário a violência que ele já nos prodigalizou. É, portanto, o assassinato. A vingança transcende os indivíduos uma vez que os parentes, os familiares a retomam. De certo modo, a vingança transcende o tempo e o espaço o que já lhe dá, de alguma maneira, qualquer coisa de religioso. Se, nas sociedades, a vingança fosse tolerada, é bem evidente que a espécie humana se destruiria rapidamente. (GIRARD, 2008, p. 5). Desse modo, a violência, agora institucionalizada, seria algo sem fim e com objetivo de cada vez mais se propagar até o momento em que os envolvidos não saberiam nem mais qual teria sido o real motivo do início daquele conflito. Estariam, por noção cultural, apenas reproduzindo de forma acrítica a violência. E no livro, a autora narra ser contrária à violência exatamente por esse motivo cíclico da agressividade. Ainda no livro, ela narra o papel repressivo que o Estado, às vezes, toma. Ao escrever sobre o dia 11 de agosto, diz: “Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. ” (JESUS, 1963, p. 96). Nesse trecho, percebe-se a presença da força bruta do Estado com seus instrumentos repressivos e em algumas vezes até racista, algo visto até hoje, onde,4 No conceito de Renè Girard (2008), o sistema judiciário é o órgão que intervém nos conflitos da sociedade afim de cessá-los, por exemplo, a polícia. segundo o IBGE (2017), 67% dos moradores de favelas do Brasil são negros e 7 em cada 10 homicídios têm o negro como vítima. Nesse sentido, ainda, podemos estabelecer um paralelo entre a pobreza e a emergência da violência. Não que a violência está ligada diretamente à pobreza, mas que é na pobreza e na miséria que os instintos humanos de subsistência entram em ação e obriga, quase que biologicamente, o indivíduo a procurar meios de sobrevivência, nem que para isso ele tenha que roubar ou matar. Há, no entanto, aqueles que são exceções a essa regra da instintividade humana, mas estes servem tão somente para confirmar a regra de que a fome e a miséria são mais fortes do que o senso moral. Matar ou morrer de fome não parece ser uma escolha difícil para quem não tem outro caminho a não ser viver. No livro, são inúmeras as vezes em que a Carolina acorda indisposta e sem perspectiva, causas visíveis da fome e da falta de oportunidade. O pensamento de suicídio também é relatado no seu diário e nos dá a dimensão de extrema pobreza em que ela vivia com seus filhos. O desejo de sair da favela e ter, ao menos, uma casa de alvenaria faz parte do pensar e do falar da Carolina de Jesus. Não apenas dela, mas de todos aqueles que moravam ali. O desejo de ter a dignidade humana para viver é o objeto que pode suscitar a violência, pois, como supracitado, ele pode fomentar a violência na medida em que se faz de tudo para alcançar determinado objeto. Carolina Maria de Jesus não tinha o interesse em discutir política, pois suas “prioridades” e “preocupações” eram pela sua sobrevivência. Analisamos e ao fim dessa resenha é possível constatar que a violência está ligada à pobreza e à miséria. Sabendo disso, os indivíduos que mais sofrem são os mais pobres. É verdade, ainda, que não são todos os casos de pobreza nos quais a violência vai ser encontrada. Mas é fato que a favela hospeda esse “vírus mortífero” chamada violência que só no Brasil mata 175 pessoas por dia, ou 7 por hora, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A Carolina, como muitos brasileiros, acordava todos os dias cercada pelo medo de ser a próxima vítima. E como resolver esse impasse? Só a educação poderá nos responder! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: As Experiências Vividas. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. GIRARD, René. O Bode Expiatório e Deus. Trad. Márcio Meruje. Covilhã, LusoSofia. 2008. GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo, Editora UNESP, 1990. JESUS, C. M. Quarto de Despejo. São Paulo, Edição Popular, 1963. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/09/politica/1533834219_933937.amp.html [Acesso em 27/11/18]
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