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Cidadania e Ética Cidadania e Ética 1ª edição 2019 Autoria Parecerista Validador Francesco Napoli Homero Nunes Pereira *Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência. Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. 4 Sumário Sumário Unidade 1 1. Ética, Moral e Justiça ..................................................7 Unidade 2 2. A Condição Humana .................................................25 Unidade 3 3. Existencialismo .........................................................38 Unidade 4 4. Bioética ......................................................................49 Unidade 5 5. Sistemas Políticos .....................................................64 Unidade 6 6. Consciência Política e Ação Social .........................80 Unidade 7 7. Cidadania e Responsabilidade Social .....................96 Unidade 8 8. A Questão Brasileira .............................................. 109 5 Palavras do professor A principal proposta deste estudo é, de forma contextualizada, apresentar e problematizar, a partir da perspectiva filosófica, os aspectos filosóficos essenciais que permeiam nossa condição de seres humanos vivendo em uma sociedade. Serão vistos temas essenciais aos tempos atuais, em que se discute muito o que é ou não ético, bem como corrupção e valores de uma vida digna. Você terá, nesta unidade, uma apresentação sobre a ética e sua história, bem como uma discussão sobre o que torna um ser humano um cidadão, por quais motivos é preciso seguir normas e como não é possível escapar das relações políticas e das diferenças de opinião, tão importantes em uma democracia. Você também estará envolvido em situações do cotidiano, de modo a despertar o senso crítico, para que seja possível pensar em dilemas éticos por conta própria, sempre guiado pela constante dúvida filosófica, essencial para o aprofundamento do senso crítico e do exercício reflexivo. Seja bem-vindo ao universo da filosofia e das suas instigantes formas de leitura do mundo! 6 Objetivos da disciplina Espera-se que você seja capaz de reconhecer e reproduzir assuntos específicos dos temas, de modo a elucidar o assunto em questão diante de situações que busquem aferir seu conhecimento teórico. Posteriormente, você poderá obter uma maior compreensão dos elementos práticos ao associar seu conhecimento prévio com o teórico, buscando sempre alcançar uma inter-relação entre os conhecimentos e a capacidade de análise e abstração a fim de ampliar sua capacidade de lidar com determinadas situações-problema. 7 1Unidade 11. Ética, Moral e Justiça Para iniciar seus estudos Nesta unidade, você conseguirá compreender os diferentes contextos em que somos, enquanto seres humanos, questionados a agir diante do que é bom ou ruim, certo ou errado, e como tais ações se relacionam diretamente com o modo como nossa sociedade reconhece e valida o que está de acordo com as normas de justiça e cidadania. Preparados para essa grande viagem pelo saber prático? Vamos lá! Objetivos de Aprendizagem • Contextualizar as questões éticas enquanto elementos filosóficos e históricos, bem como as diversas consequências para a análise de assuntos relacionados à vida social e às normas legais. • Comparar os conceitos de ética e moral. • Diferenciar ética, moral e senso comum. • Explicar o caráter filosófico da ética. • Identificar o caráter universal da ética e o caráter cambiante da moral. • Descrever o conceito de imperativo para Kant. 8 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Introdução da unidade O que é agir de uma maneira boa? O que é bom para você pode ser bom para todos os outros brasileiros? Como devemos lidar, no Brasil contemporâneo, com o debate sobre corrupção, justiça e ética? Nesta unidade, você conferirá que, há mais de 26 séculos, o ser humano debate sobre o agir virtuosamente e a justiça, o que denota como o assunto sempre foi importante para as sociedades. Espera-se que você possa pensar sua realidade por meio do conhecimento que aqui é oferecido, de conceitos e da história por trás da busca do ser humano por um mundo no qual possamos viver bem. 1.1 Ética, moral e justiça O que é ética? O que é moral? O que é justiça? Esses termos estão muito presentes na mídia e no vocabulário de qualquer pessoa. A todo o momento, ouvimos que determinado político não teve ética ou que outro político disse defender a moral e os bons costumes. Normalmente, esses termos aparecem associados à política, mas, na vida cotidiana, também os encontramos em muitos outros lugares e com significados muito diferentes. Por exemplo, quando se diz, na gíria, que alguém “teve as moral”, estamos diante de uma constatação da habilidade de alguém para determinada tarefa, ou quando dizemos que o professor “não tem moral com a turma”, queremos dizer que ele não consegue exercer sua autoridade, ou ainda quando dizemos que alguém está com “a moral abalada”, queremos dizer que tal pessoa está com sua estima baixa. Esses significados permeiam o senso comum, mas, academicamente, existe um significado que engloba todos eles e ainda é mais profundo. O termo ética também apresenta diversas utilizações no senso comum que se afastam de seu sentido filosófico. Dizemos, utilizando o termo como um adjetivo, que algo não é ético; dizemos ainda que alguém não teve ética para conduzir determinada situação. Temos também, nas empresas, os códigos de ética e os conselhos de ética, por exemplo. São utilizações diversas, que habitam o nosso dia a dia e nos deixam, de certa forma, familiarizados com esses termos. Porém, na academia, temos definições próprias, que conferem a esses termos a condição de conceitos filosóficos. Ao ler um bom dicionário de filosofia – por exemplo, o Dicionário Oxford de Filosofia, organizado por Simon Blackburn, lançado no Brasil pela editora Zahar –, você encontrará os seguintes verbetes, aqui apresentados de forma adaptada, para os conceitos de ética, moral e justiça: • Ética: do grego ethos, caráter. Estudo dos conceitos envolvidos no raciocínio prático: o bem, a ação correta, o dever, a obrigação, a virtude, a liberdade, a racionalidade, a escolha. • Moral: embora a moral das pessoas e sua ética acabem por ser a mesma coisa, há um uso do termo que restringe a moral aos sistemas, como o de Kant (noção de dever) em oposição à noção de virtude, de Aristóteles. • Justiça: na justiça distributiva, almejamos alcançar os princípios que especificam a justa distribuição dos benefícios e obrigações; na justiça processual, almejamos compreender mais a aplicação do que o desenvolvimento das leis; finalmente, na justiça retributiva, procuramos compreender como compensar uma injustiça (BLACKBURN, 2017). 9 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Figura 1 – Justiça Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. Você perceberá que o dicionário nos coloca diante de nomes e termos que não refletem o nosso conhecimento cotidiano desses conceitos. Se, porventura, você, que corre os olhos sobre este texto, questionar seus parentes mais próximos ou seus amigos mais íntimos acerca do que eles sabem sobre esses três termos, é bem provável que a resposta envolva “fazer a coisa certa” ou que o “agir ético está de acordo com as leis da justiça”. Mas será que existe a coisa certa? Será que a justiça é algo perfeito sempre? A maioria também concordará que o conhecimento sobre tais conceitos é essencial para que possamos viver bem em nossa sociedade. Afinal de contas, como seriaviver em uma sociedade onde todos tivessem como principal regra mentir ou não cumprir com seus compromissos? Já imaginou o alto custo que seria oferecer empréstimos ou contratar algum tipo de prestação de serviço? Até mesmo as empresas, em suas atuações, estão sempre alertas para questões éticas envolvendo pesquisas, testes de produtos, etc. Se tais conceitos são importantes para a nossa vida em sociedade, como explicar que poucos estejam completamente de acordo com o seu significado mais geral? Ou seja, por qual motivo existe tanta variação na hora de responder o que é exatamente cada um deles? Seria importante supor, por exemplo, que, se existem diferenças, então é possível que nem todos compreendam bem como é agir de forma ética ou como agir com justiça. Talvez possamos supor também que exista um grande número de situações específicas, cada uma exigindo a sua própria forma de justiça ou de ética. Outro aspecto ainda fica em aberto: por que cabe à filosofia estudar tais conceitos? Se entre as pessoas existem certas variações a respeito do significado, por que devemos dar crédito aos filósofos, sempre envolvidos em inúmeras disputas, o que passa a imagem de nunca haver consenso sobre tais assuntos? Nesta unidade, esperamos problematizar essas questões, demonstrando como tais conceitos são complexos e fazem parte do pensamento da civilização há mais de 26 séculos. Veremos também como a cultura de cada região e o momento histórico são importantes para definirmos o que consideramos como certo e errado. Apesar 10 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça de o tema ter desdobramentos históricos e filosóficos, seja no ocidente, seja no oriente, desde a Antiguidade, teremos um foco maior na historia da filosofia ocidental. Isso não significa que o tema se limite por completo nesse recorte; afinal, muito se debateu sobre tais temas entre os pensadores africanos, indianos e chineses. É importante também lembrar a relevância do pensamento crítico. A filosofia fornece um aspecto muito importante para as nossas vidas, que é o de pensar a realidade com “ferramentas conceituais ou assuntos” que ampliam as nossas possibilidades de compreensão do mundo que nos cerca. Portanto, o que aqui é apresentado visa ampliar o seu pensamento, e não fornecer um guia estático ou definitivo sobre o assunto. Vamos então adentrar os conceitos em busca de compreender melhor cada um deles. Para saber mais sobre o pensamento com as “ferramentas conceituais” da filosofia, pesquise blogs da área. A internet está repleta de ótimos blogs, páginas e sites. Uma dica é a página Esclarecimento filosófico. Busque por ela na rede! Saiba mais 1.1.1 Concepções filosóficas de ética Todas as sociedades e culturas, ao longo da história do ser humano, possuem um conjunto de valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válido para todos os seus membros. Isso significa que sempre houve um conceito para o que era certo e, consequentemente, para o que fosse errado. Esse conceito não somente envolvia o ato do indivíduo, como também o seu caráter. Geralmente, pessoas com caráter eram dignas de confiança e estavam sempre agindo dentro da lei ou de uma maneira exemplar aos olhos dos demais membros da sociedade. Figura 2 – Tribo da Nova Guiné Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. 11 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Uma das filósofas mais importantes da contemporaneidade no Brasil, Marilena Chauí, que será utilizada como uma das principais referências nesta unidade, nos lembra, em seu livro Convite à filosofia, que a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Muitas vezes, o certo e o errado estavam internalizados nas pessoas por meio de costumes que pouco eram colocados em debate. Notamos, portanto, uma primeira e importante diferenciação entre a moral de uma comunidade ou cultura e a filosofia moral. Na primeira, o reconhecimento do certo ou errado não exige a razão como intermediadora, mas um conjunto de costumes refletidos no bem comum de todos os envolvidos. Já na segunda, existe uma preocupação em justificar, comprovar, problematizar, questionar e, portanto, fazer uso da razão para compreender melhor os dilemas envolvidos no que é considerado certo e no que é considerado errado. 1.1.1.1 Ética, filosofia e ciência Enquanto a ciência, de modo geral, procura descrever a realidade, compreender sua dinâmica e realizar previsões, o campo da ética, por sua vez, busca propor uma realidade na qual o agir esteja em sintonia com o que é ou não é válido por meio da razão. A natureza é o reino da necessidade, ou seja, de eventos regidos por sequências necessárias de causa e efeito – é o reino da física, da astronomia e da química. Além do reino da natureza, há o reino humano da práxis, no qual as ações são realizadas racionalmente, não por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade. A ciência em si não se preocupa com a ética pelo fato de suas ações não estarem relacionadas a uma realidade com fatos considerados como verdadeiros ou falsos. Não há, no mundo da moral, uma lei a ser descoberta e escrita. Pelo contrário, somos nós, como seres humanos responsáveis, que devemos conduzir a um mundo ético. Fique atento! 1.1.1.2 Costumes Nossos sentimentos, interesses, ações, condutas e, portanto, comportamentos, em geral, são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, etc.). Somos compostos pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Desse modo, valores e costumes são percebidos por nós como se existissem por si e em si mesmos, parecendo ser naturais e universais (como se valessem em qualquer época e lugar). Os costumes, as tradições, as crenças, porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o próprio tecido da sociedade em que vivemos, têm uma tendência a serem considerados inquestionáveis como se fossem “sagrados” (as religiões sempre mostram os costumes como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos, por meio da mitologia). Ora, a palavra costume se diz, em grego, ethos – de onde se derivou ética – e, no latim, mores – a qual, por sua vez, deu origem à moral. Observamos, então, que a ética e a moral se referem ao 12 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade, o que significa que são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Em termos filosóficos, porém, há uma distinção entre ética e moral, por meio da qual se compreende a moral como esse conjunto de costumes, crenças, hábitos, tradições, leis e todo elemento que, de alguma forma, regula a conduta humana. Já a ética é esse campo do conhecimento filosófico que tem a moral como objeto de estudo. Em alguns países do mundo, é permitido o casamento entre pessoas de diferentes idades, inclusive entre um indivíduo mais velho e outro ainda na fase de pré-adolescência ou infância. Já na maioria dos países ocidentais, tal ato é recriminado e pode, inclusive, incorrer no crime de pedofilia. Isso significa que certo e errado não são absolutos, alternando-se a cada cultura e época. Não existirá, portanto, uma definição universal do que é certo ou errado do ponto de vista do comportamento. 1.1.1.3 Sócrates e o início da ética Sócrates foi um dos filósofos ocidentais imortalizado por sua história de questionamento, busca da verdade e sacrifício em nome da filosofia. Ele não escreveu nenhum livro e o que sabemos dele tem origem, principalmente, nos diálogos de seu discípulo, Platão, e nos textosde Aristóteles, discípulo de Platão. Sócrates é considerado o pai da ética ou filosofia moral, pois foi o primeiro a direcionar os questionamentos filosóficos para questões humanas, ou seja, enquanto seus antecedentes, os filósofos, conhecidos como pré-socráticos, tinham a natureza como objeto de pesquisa, Sócrates herda o legado filosófico e o redireciona para o homem, inaugurando tanto a ética quanto o próprio racionalismo. Portanto, ética surge no século V a.C. como uma busca pela universalidade das questões morais. O que seria a bondade ela mesma, que vale em qualquer época e lugar, que transcende tempo e espaço? Esta busca percorreu os mais de 26 séculos de história do pensamento ocidental e nos chega com a mesma urgência da época de Sócrates. O início do pensamento ético se dá em um território socrático-platônico, portanto racionalista e idealista. Essa característica da ética é um fator muito importante para compreendermos como pensamos a ética no decorrer do pensamento ocidental. Assim sendo, a ética é um campo do conhecimento filosófico que tem a moral como objeto de estudo. Fique atento! 13 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Figura 3 – Sócrates Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. Contudo, o método socrático de perguntas, que buscavam realizar um parto das ideias, o coloca em destaque em relação aos demais pensadores de sua época e anteriores a ela. Marilena Chauí afirma que: (...) ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates realiza, na verdade, duas interrogações. Por um lado, interroga a própria sociedade, para saber se o que ela tem o hábito de considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os indivíduos particularmente, para saber se, ao agir, esses possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, ou seja, para saber se seu caráter ou sua índole são realmente virtuosos e bons. A indagação ética socrática dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo (CHAUÍ, 2000). 1.1.1.4 Aristóteles, eudaimonia e justo meio Já a distinção entre saber teorético e saber prático se deu com Aristóteles, discípulo de Platão, que foi aluno de Sócrates. Saber teorético é o conhecimento de objetos e fatos naturais que se apresentam e agem independentemente de nós e sem nossa interferência. Como dissemos, a filosofia nascente tem como objeto de estudo a natureza – isso seria um conhecimento teorético, por exemplo. Apesar de antes de Aristóteles essa distinção não ser muito nítida, dizemos que foi com Aristóteles que ela se deu. O saber prático seria o conhecimento daquilo que só existe por causa de nossa ação – a ação humana – e, portanto, dependeria de nós, o que significa que a ética é necessariamente um saber prático. Na práxis, é o indivíduo que age, e a ação e a 14 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça finalidade do agir são inseparáveis. Nas palavras de Chauí (2000): “Na práxis ética, somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa”. Aristóteles distingue ética e técnica como práticas que se diferem pelo modo de relação do indivíduo que age com a ação e com a finalidade da ação. Um escultor tem como finalidade uma estátua e, por isso, o produto é separado de quem o produz. Técnica é o meio para alcançar o resultado, que é o produto. Já a práxis com viés ético, a atividade e quem a executa possuem uma ligação íntima entre si e, também, com o produto: a vida virtuosa. Saiba mais Aristóteles deu grande importância à vontade racional, à deliberação e à escolha, o que o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática. São duas as suas principais obras, sendo a mais conhecida a Ética a Nicômaco. Nela, também é possível encontrar o conceito de eudaimonia ou vida feliz, segundo a virtude e por meio da sabedoria prática. A ética, portanto, era concebida como educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos, apetites e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade e para formá-lo como membro da coletividade sociopolítica. Sua finalidade era a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também deveriam ser virtuosos. Aristóteles também concebeu que as ações ideais, ou seja, as ações virtuosas estariam numa mediana, em um ponto médio entre o excesso e a falta. A virtude da coragem, por exemplo, teria como “vício do excesso” a temeridade e, como “vício da falta”, a covardia. Imagine a seguinte situação: você está visitando uma cachoeira a qual nunca havia ido antes. Há um grande poço no qual uma imensa queda d’água se dissipa. O excesso de coragem ou a temeridade seria alguém chegar e, sem nenhum conhecimento da profundidade do poço ou da altura da queda, saltar de ponta. Já a covardia seria alguém que não consegue sequer chegar à beira da queda para ver a água. O justo meio seria o ponto de equilíbrio entre o excesso e a falta, ou seja, alguém que analisasse a profundidade em uma primeira entrada na água, ainda sem nenhum salto, depois fizesse saltos menores e, por fim, fizesse o grande salto do alto da queda. A coragem, para Aristóteles, envolve prudência e razão, e o modo de encontrar essa justa medida seria a observação do modo como o homem se comporta. Figura 4 – Cachoeira na Chapada da Diamantina, Brasil Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. 15 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça 1.1.1.5 Ética na Idade Média Após a Antiguidade, dos gregos e dos romanos, acompanhamos o surgimento do cristianismo e uma nova proposta de ética. Chauí afirma que, diferentemente de outras culturas e religiões da antiguidade, que estavam sempre vinculadas a uma nacionalidade e, consequentemente, a questões políticas, “(...) o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um estado” (CHAUÍ, 2000), na medida em que a Idade Média é marcada pela fragmentação política e ausência de força dos Estados. O que diferencia o cristianismo nascente é justamente ser marcado pela fé num mesmo e único Deus. “O Deus cristão relaciona-se diretamente com os indivíduos que nele creem” (CHAUÍ, 2000). Chauí, sobre essa peculiaridade do cristianismo no que tange à ética, afirma que “isso significa, antes de qualquer coisa, que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade, mas por sua relação espiritual e interior com Deus” (CHAUÍ, 2000). Deus assume um papel importante na concepção do que deve ou não ser feito. A partir do cristianismo, a lei divina revelada, a qual devemos obedecer impreterivelmente e sem exceção, passa a considerar que o ser humano é incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção traz à tona nova ideia na moral até então inédita: a ideia do dever. Chauí (2000) afirma que: Mesmo quando, a partir do Renascimento, a filosofia moral distancia-se dos princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética, a ideia do dever permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental (CHAUÍ, 2000). Chauí prossegue sua argumentação questionando se a ética exige um sujeito autônomo; afinal, a ideia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós? O filósofo Jean Jacques Rousseau (1712-1778), no século XVIII, buscou confrontar essa questão; para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, ou seja, nascem com a pessoa, pois seriam como a própria “a voz da Natureza” e o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossabondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos (CHAUÍ, 2000). O dever seria uma espécie de força que nos faria recordar nossa natureza primitiva e originária. Segundo Rousseau, obedecendo incondicionalmente ao dever e, portanto, à lei divina inscrita em nosso coração, estaríamos seguindo nosso instinto mais primitivo, ou seja, obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções, e não à nossa razão, que seria responsável pela sociedade que corrompe o homem. 16 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Figura 5 – Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. 1.1.1.6 A ética de Kant Outra resposta, também do final do século XVIII, foi trazida pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) em oposição à “moral do coração”, de Rousseau. Kant volta a afirmar o papel da razão na ética, pois, segundo ele, não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais (CHAUÍ, 2000). A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa imposição a si mesma é o dever, é também a manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecê-la é obedecer a si mesmo ao mesmo tempo em que damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral – por isso, somos autônomos. Kant elaborou as bases da ética moderna. Em um pequeno texto intitulado O que é Esclarecimento?, Kant, em resposta pública a um pastor que havia criticado o Iluminismo, elabora um argumento que ainda é essencial para os dias de hoje: a necessidade da separação entre as esferas pública e privada em um contexto de Estado laico. Quando dizemos “esfera pública”, referimo-nos a essa esfera da vida, na qual atuamos na rua, a partir de um 17 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça papel social predeterminado publicamente, no qual há formalidade, como um cargo institucional, na nossa vida profissional etc. Quando dizemos “esfera privada”, referimo-nos a essa esfera da vida, na qual atuamos dentro de casa, em nossa vida pessoal e nos papéis sociais desempenhados a partir dela, como o papel de pai, filho etc., sempre de maneira mais informal e passional. Kant vai dizer da necessidade de “maioridade da razão” nesses modos de atuação e de como é imprescindível que, na esfera pública, prevaleça a razão, de modo que a política seja praticada em termos de Estado laico. Para tal, Kant afirma ser necessária uma atitude de ousadia contra a preguiça e a comodidade da menoridade da razão. Seria necessário ousar saber, libertar-se dos tutores e pensar por si mesmo! Veja este trecho do famoso texto de Kant: O Esclarecimento é a saída do homem da condição de menoridade auto-imposta. Menoridade é a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a orientação de um outro. Esta menoridade é auto-imposta quando a causa da mesma reside na carência não de entendimento, mas de decisão e coragem em fazer uso de seu próprio entendimento sem a orientação alheia. Sapere aude! (Ousai saber!) Tenha coragem em servir-te de teu próprio entendimento! Este é o mote do Esclarecimento (KANT, 2010). Para Kant, o esclarecimento ou iluminismo, seria o movimento de emancipação do homem de seus tutores em direção a uma autonomia, que caracterizaria a maioridade da razão. Dessa forma, segundo Kant, a religiosidade, os sentimentos, a subjetividade etc., poderiam se manifestar perfeitamente na esfera privada, mas, na esfera pública, deve prevalecer a razão: Para o esclarecimento, porém, nada é exigido além da liberdade; e mais especificamente a liberdade menos danosa de todas, a saber: utilizar publicamente sua razão em todas as dimensões. Mas agora escuto em todos os cantos: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, exercitai-vos! O Conselho de Finanças: não raciocineis, pagai! O líder espiritual: não raciocineis, crede! (um único senhor no mundo pode dizer: raciocinai o quanto quiser, e sobre o que quiser; mas obedecei!) Por todo canto há a restrição da liberdade. E qual restrição serve de obstáculo para o esclarecimento? Qual não o impede e até mesmo o sustenta? Respondo: o uso público do entendimento deve ser livre em qualquer momento, e só ele pode gerar o esclarecimento entre os seres humanos; o uso privado do mesmo pode freqüentemente ser bastante restrito, sem que, todavia, o progresso do esclarecimento seja, por isso, impedido (KANT, 2010). Observe que Kant, quando fala que existe um único senhor que diz para raciocinar o quanto quiser, mas obedecer, faz uma menção ao rei da Prússia (atual Alemanha) Frederico II, que era um déspota esclarecido, ou seja, um monarca que aderiu aos ideais iluministas, abrindo mão de seu poder político, mas se mantendo na condição de influência nacional. Vejam que situação interessante! Um filósofo iluminista que defende a separação entre igreja e Estado, a democracia e a república, encontra-se em uma monarquia e está publicando um texto sobre o que é o esclarecimento ou o Iluminismo. É curioso percebermos o modo como Kant elabora sua narrativa por conta desse paradoxal contexto, defendendo o Iluminismo, e, ao mesmo tempo, reconhecendo a postura esclarecida do rei Frederico II. Os ideais iluministas ainda estão em processo de efetivação, pois, como disse Marx, a infraestrutura ou a parte material, como a tecnologia, por exemplo, muda muito mais rapidamente do que a superestrutura, que é o pensamento e a própria cultura. Dessa forma, para que ideias como liberdade de crença, liberdade de expressão e representatividade se efetivem, o Estado laico se torna elemento básico e uma verdadeira bandeira a ser levantada por todos que defendem a democracia e o republicanismo. 18 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça O mais famoso exemplo de despotismo esclarecido é a família real britânica, que se mantém em um lugar de prestígio e privilégios, mas não tem mais o poder político de outrora, que atualmente é exercido pelo parlamento. Saiba mais Figura 6 – Família real britânica Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. Portanto, o dever, para Kant, não se apresenta por meio de premissas pré-estabelecidas, que definiriam uma suposta essência de cada virtude e diriam o que deveria ser feito em nossas vidas. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral. Sendo assim, o dever é um imperativo categórico, pois ordena incondicionalmente. O imperativo categórico exprime-se numa fórmula geral: age em conformidade apenas com a máxima que possa querer que se torne uma lei universal. Em outras palavras, ato moral é aquele que se realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma. Vejamos o exemplo também retirado da obra de Chauí (2000): Por que, por exemplo, mentir é imoral? Porque o mentiroso transgride as três máximas morais. Ao mentir, não respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciência, racionalidade e liberdade), pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma informação verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fé do outro. Também não respeita a segunda máxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o gênero humano deveria abdicar da razão e do conhecimento, da reflexão e da crítica, da capacidade para deliberar e escolher, vivendo na mais completa ignorância, no erro e na ilusão (CHAUÍ, 2000). 19 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Figura 7 – Immanuel Kant (1724-1804) Fonte:SHUTTERSTOCK, 2018. 1.2 Justiça e crise de valores Após a nossa breve passagem pelos principais pontos filosóficos da ética, chegamos a um elemento que é consequência do que foi apresentado: o conceito de justiça. Assim como a ética, associamos a justiça com leis e com o comportamento em consonância com estas leis. Trata-se, portanto, de considerar que as leis são ordenamentos que qualificam as ações dos indivíduos como válidas ou não. Contudo, as leis não possuem a prerrogativa de discutirem o que é o certo ou errado, mas de reunirem o consenso de uma sociedade visando a um tratamento que atue de modo igual ou justo em todos os membros da sociedade. Equidade é o conceito-chave neste exemplo, que faz par com a isonomia, ou seja, com o reconhecimento de que todos os indivíduos sejam iguais perante as leis. Historicamente sabemos que nem sempre as leis atuaram de forma igualitária ou isonômica. Mesmo nos dias atuais, se discute muito se o acesso a recursos financeiros permite que os indivíduos tenham tratamento diferenciado perante a lei. Neste sentido, as leis são elementos de regulamentação do comportamento, mas, por sua vez, não são exatas. A justiça se vincula à busca por uma igualdade perante a sociedade, mas ela parece mudar ao longo dos tempos, de maneira muito semelhante ao comportamento social e moral. Há décadas, no Brasil, havia pouco reconhecimento da condição da mulher desquitada, o que mudou muito nos últimos anos, principalmente em relação à questão da honra masculina. Logo, devemos considerar que a moral, os costumes e a justiça estão atrelados e em constante transformação. Se o conceito de certo ou errado não é fixo, devemos compreender que o que é ou não justo também muda. 20 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça 1.2.1 Ética profissional Se você é um pedagogo, administrador, psicólogo, engenheiro ou possui qualquer outra forma de atuar no mercado por meio de trabalho especializado – este que necessita de formação acadêmica –, sua profissão tem a ciência como chancela, ou seja, é a ciência que dá credibilidade, condições e comprovação de que sua atuação é eficiente. Por isso, toda atuação profissional no âmbito do trabalho especializado terá de seguir determinadas regras estabelecidas pelo método científico, que são a base de códigos de ética, conselhos federais etc. Aqui entra o conceito de deontologia. Na maioria das vezes, os códigos de ética estão mais ligados à deontologia do que à ética propriamente dita. A diferença entre essas duas áreas está no fato de a ética ter um caráter reflexivo e a deontologia estar mais ligada à prática profissional. A deontologia esta focada em regular a conduta profissional, pois sua atuação deve seguir aqueles procedimentos que já foram testados e comprovados cientificamente como os mais adequados e eficientes, tendo em vista que o que autoriza você a exercer tal profissão é justamente o diploma concedido por uma instituição que está subordinada a um governo (a ciência se desenvolve melhor no Estado laico). No Brasil, todas as instituições de ensino, tanto da rede pública quanto da rede privada, estão subordinadas às regras do Ministério da Educação, que determina quais conteúdos são necessários para tal formação, fiscaliza e avalia as instituições de ensino e garante que somente especialistas, mestres e doutores sejam professores. Ou seja, por trás de todo conhecimento, técnica e inovação, está a ciência. Deontologia, no âmbito da ética profissional, é um conjunto de princípios e regras de conduta, ou seja, os deveres de determinada profissão. Cada área de atuação profissional tem a sua própria deontologia, que tem a função de regular o exercício profissional a partir de um código de ética específico. As normas estabelecidas pela deontologia não proveem necessariamente da moral, mas, sim, de direitos e deveres, princípios e ações de determinada profissão considerando suas especificidades. O termo deontologia foi criado em 1834 pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, e o primeiro código de deontologia surgiu na área da medicina, nos Estados Unidos. Saiba mais Há todo um arcabouço regulatório que busca garantir que todo método, procedimento e conhecimento seja comprovadamente o mais exitoso até o momento, levando em conta que a própria ciência está em constante construção e mudança; por isso a necessidade, cada vez maior, de se manter atualizado por meio de pós- graduações, mestrados e doutorados. Portanto, sua atuação profissional tem um compromisso ético de seguir essas determinações, que são consenso entre os pesquisadores. E quando algo não é consenso? Ou quando alguém se utiliza do respaldo de sua profissão para fins eticamente questionáveis? Imagine um psicólogo que utiliza a autoridade de seu diploma para doutrinar religiosamente seus pacientes, dizendo praticar uma espécie de psicologia própria, que ele denomina de “psicologia cristã”; ou um professor que utiliza sua autoridade e credibilidade para doutrinar seus alunos, seja religiosamente ou por meio de alguma ideologia que não é aceita na academia; ou mesmo um gestor que comete algum tipo de discriminação. Essas práticas são condenáveis em termos éticos, pois partimos do pressuposto que quem aprendeu determinada ciência por meio da academia tem um compromisso social com esta e deve exercer esse papel social que lhe foi conferido pela sociedade a partir da laicidade e cientificidade. 21 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Um psicólogo que se utiliza de seu diploma para evangelizar, grosso modo, afirmando ser uma depressão a “falta de Deus no coração” ou um “encosto”, que se resolverá se houver a adesão à determinada religião, ou que a homossexualidade seria uma doença e ele ofereceria a cura, está sendo antiético, pois não há, cientificamente, uma corrente da psicologia chamada psicologia cristã e já está comprovado que relações homoafetivas são práticas comuns em várias culturas em diferentes épocas, e não uma patologia. Portanto, não há comprovação de que esse tipo de tratamento tem eficácia; logo, chamamos isso de charlatanismo. O Estado laico não proíbe essas práticas. Não há problema algum em oferecer ajuda às pessoas com sofrimento psíquico por meio da religião – vários pastores fazem isso. O problema está em utilizar a ciência “psicologia” como um respaldo para essa prática, exercendo-a em desconformidade com o código de ética do Conselho Federal de Psicologia. O mesmo se aplica para o exemplo do professor que abusa de seu poder e credibilidade ou do gestor que atenta contra os direitos humanos. Ambos devem exercer seus papéis em conformidade com a ciência, com a legislação e com a ética de seus ofícios e comprometidos com a sociedade como um todo. Figura 8 – Casal homoafetivo Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. 1.2.2 Religião e religiosidade O termo “igreja” refere-se à instituição religiosa – empresa que tem sede física, placa e logomarca –, uma instituição que formaliza a religiosidade, esta que é o sentimento espontâneo de espiritualidade, que muitas pessoas têm e que, na modernidade, se libertou da condição institucionalizada e se tornou individual, seguindo a tendência do individualismo contemporâneo, oriunda do capitalismo. Por exemplo: é comum ouvirmos que determinada pessoa diz não ter religião, mas tem uma espiritualidade própria, por meio da qual ela diz sentir as energias do cosmos, ou ainda pessoas que inventam seus próprios rituais, como casamentos, nos quais os próprios indivíduos inventam a cerimônia, sem vínculo com nenhuma igreja. Essa é a base do Estado laico, um 22 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça estado sem vínculo com nenhuma religião, que permite que todas as religiões possam coexistir, inclusive quem não tem religião ou até mesmo quem é ateu. A democracia depende do Estado laico para existir, assim comoa ciência também necessita de laicidade para sua prática. Figura 9 – O Papa Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. O Brasil tornou-se oficialmente um Estado laico em 15 de novembro de 1889, quando deixou de ser uma monarquia e passou a ser uma república. Até então, todos os rituais da vida social, como casamentos, registros de nascimentos e óbitos, festividades e acontecimentos sociais em geral eram determinados pela igreja católica. Com a proclamação da república, essas funções foram sendo gradualmente transferidas da igreja para o Estado. Hoje, se você for se casar, basta entrar em um cartório, pegar a senha e pagar a taxa. Trata-se de um contrato, reconhecido pelo Estado, que não lhe pergunta nada sobre religião. Por acontecer na esfera pública, costuma ser pouco cerimonioso e, se há algum grau de cerimônia, trata-se de herança dos tempos de monarquia. As cerimônias propriamente ditas são feitas nas igrejas ou nas casas das pessoas, ou seja, na esfera privada. Ao mesmo tempo, existem, ainda hoje, cidadezinhas nos interiores do país nas quais nascimentos e mortes ainda são registrados pela igreja católica, pois nunca chegaram cartórios por lá. Outra polêmica em torno dessa questão está ligada à existência de uma bancada evangélica em nosso Congresso Nacional, que já demonstrou em vários episódios uma falta de consideração pela laicidade do Estado, permitindo que convicções puramente religiosas permeiem suas escolhas e atitudes em uma clara ausência de espírito republicano. 23 Cidadania e Ética | Unidade 1 - Ética, Moral e Justiça Síntese da unidade Nesta unidade, vimos como os temas ética, moral e justiça estão relacionados a uma vida em sociedade considerada como adequada ou correta. Esse julgamento muitas vezes faz parte de um conjunto de valores que são parte de um costume ou hábito social. A ética enquanto justificativa racional é parte da filosofia moral, que buscou desde os gregos antigos estabelecer uma análise do que seria o certo e o errado. Vimos também a importância das discussões sobre ética e o quanto elas são necessárias para todas as sociedades. Na atualidade, vimos que a base das relações profissionais no que tange à ética passa pelo Estado laico. Outro fator importante de se ressaltar diz respeito ao modo como os temas éticos são tratados na academia. Como você pôde perceber, um curso de ética não vai necessariamente transformar as pessoas em indivíduos virtuosos e eticamente impecáveis. Na verdade, um curso de ética tem o objetivo de proporcionar a reflexão sobre os temas que concernem à conduta humana por meio dos filósofos que discutiram e aprofundaram tal temática. 24 Considerações finais Viver uma vida que vale a pena requer colocá-la constantemente em análise, o que pode ser um trabalho extremamente dispendioso, se não impossível de ser de feito. A filosofia nos permite olhar para a sua história e para as principais ideias de seus filósofos como uma forma de minimizar o esforço de ponderar sobre as questões da vida. Se vivemos em uma sociedade complexa, então nosso esforço será não somente de voltar o pensamento para nossos atos, como o de considerar o que os demais estão pensando. Não será surpresa alguma perceber que a maioria considera cansativo ou improdutivo colocar em dúvida os próprios costumes, deixando para momentos extremos esse ato. Contudo, as constantes crises éticas que atingem empresas, governos e sociedade demonstram que não podemos nos considerar profissionais éticos se não pensamos com profundidade a respeito do que realmente deve ser feito em prol do bem comum. A virtude do todo depende da compreensão de cada um. Essa unidade inicial funciona como um convite para continuarmos a nos aprofundar para sair dos hábitos repetitivos e encarar de fato o que podemos fazer de melhor, pois o grande desafio da ética contemporânea é, justamente, estabelecer essa relação com a moral, de modo que o Estado laico possa garantir que nenhum aspecto específico da moral se sobreponha aos outros (determinada religião, por exemplo). As principais características do nosso tempo são a diversidade, multiplicidade, heterogeneidade, multiculturalismo, sincretismo e diferenças de toda ordem convivendo juntas, o que revela uma moral cada vez mais diversa e complexa. Para garantir representatividade e equidade em uma república democrática, é imprescindível que o Estado laico seja defendido, pois somente ele pode proporcionar a liberdade de crença, de expressão, de ir e vir – em suma, a própria democracia. 25 2Unidade 22. A Condição Humana Para iniciar seus estudos Nesta unidade, você conseguirá compreender o conceito de condição humana, ou seja, o que nos define como seres humanos e o que constitui parte essencial do nosso ser diante do mundo e da sociedade. Vamos lá? Objetivos de Aprendizagem • Apresentar os principais elementos conceituais a respeito da condição humana. • Contextualizar a condição humana no espectro histórico e nos debates atuais em questões de isonomia e gênero. 26 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Introdução da unidade Nesta unidade, iniciaremos um estudo a respeito do ser humano, o que o define como ser, e quais são as suas particularidades enquanto parte de uma sociedade. Se, anteriormente, estávamos preocupados com o comportamento certo ou ético, agora iremos questionar o que significa ser humano. Aprofundaremos nossos conhecimentos acerca das concepções de homem, por mais estranho que isso signifique, diante do crescente papel da mulher na sociedade, falaremos das questões de raça e gênero. O que buscamos aqui é fornecer conceitos para que possamos, juntos e individualmente, pensar nossa condição humana em sociedade. 2.1 A condição humana Em 1958, a filosofa Hannah Arendt publica o seu livro intitulado A Condição Humana (em inglês: The Human Condition); nele, a autora procura desenvolver um relato sobre o desenvolvimento histórico da situação da existência humana. O texto parte da Grécia Antiga até a Europa moderna e define três atividades, as quais estariam à disposição do ser humano: labor, trabalho e ação. Essas atividades teriam como campos possíveis de atuação ou ação o da política, o do social, o público e, por fim, o privado. Figura 10 – Hannah Arendt Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. Para Arendt, o homem só é verdadeiramente livre quando deixa de ser escravo das necessidades, do labor e do trabalho, conseguindo atuar na esfera pública de modo efetivamente político. Neste sentido, o “homem livre” se vê em uma condição contrária à apolitização, sendo esta a redução do espaço público e a escravização do homem pelo labor. 27 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Podemos perceber que o conceito de “condição humana” busca compreender a existência humana, ou seja, como nós, seres humanos, estamos inseridos no mundo, em relação com ele, e com outros seres. Ao contrário da Biologia, que estuda a nossa formação material e orgânica, ou a Psicologia, que pretende descrever os nossos processos mentais, a busca filosófica pelo ser humano visa responder a uma pergunta mais essencial: o que é o homem? Com certeza, não somos apenas um conjunto molecular e orgânico reunidos em uma estrutura conhecida como animal mamífero. Essa descrição não é suficiente para analisar as idiossincrasias enquanto seres políticos. E, com certeza, também não somos apenas atividades em uma rede neural. Algo mais sobre o que somos parece escapar ao método da ciência moderna, restando à Filosofia, Sociologia e Antropologia um debate sobre tal conceito. Um aspecto importante deve ser apresentado, antes de nos aprofundarmos no assunto. Durante grande parte da história da Filosofia e do próprio ser humano, o termo comum utilizado era “Homem” para descrever todos os seres humanos em questão.Tal fato se deu, em parte, pela figura principal dos relatos ser o homem viril. Na Grécia Antiga, por exemplo, a maioria das mulheres possuía uma posição secundária em relação aos homens. Na Grécia antiga, as mulheres eram tidas como objetos, totalmente desprovidas de voz e não participavam da vida pública. Para um homem grego, uma mulher era uma espécie de posse, assim como um objeto, como uma mesa, por exemplo, ou um escravo. Inclusive o amor, na cultura helenística da antiguidade, se dava entre homens. O amor na Grécia antiga é essencialmente homoerótico. Não havia sentido para um homem dedicar seu sentimento de amor a uma mulher, pois, além de as mulheres serem posses dos homens, o sentimento nobre de philia (amor em grego) era mais apropriado de um homem para o outro, onde havia admiração mútua e onde as relações se davam de modo igualitário. Atualmente, após diversas lutas pelos direitos das mulheres de participarem da vida pública, o termo “Homem”, como representante de todos os seres humanos, soa destoante do contexto contemporâneo. Quando o mesmo for utilizado nesta unidade o intuito é tão somente uma referência ao conteúdo como este é conhecido nos livros de referência. 2.1.1 Concepções de homem Conforme o Dicionário Oxford de Filosofia (2017), nem sempre o conceito de homem, ou de ser humano, foi o mesmo. Na tradição filosófica, encontramos três principais concepções do homem, as quais nos permitem compreender o homem por diversas dimensões, possibilitando vários conceitos, o que significaria também afirmar que elas são complementares. São estas as três concepções: A concepção metafísica que vê o homem como uma espécie de essência imutável, um modelo eterno. Esta concepção é baseada na concepção platônica da Antiguidade, que predominou na Idade Média, por meio da teologia cristã, que teve o platonismo como base e só começou a ser questionada no Renascimento (séc. XV), mas permanece válida para o pensamento filosófico, religioso e teológico. A partir dessa concepção, entende-se que existe um “modelo de homem”, e seríamos as variações deste modelo. A concepção naturalista surge na Idade Moderna. Essa concepção é fruto do pensamento de filósofos como René Descartes e John Locke. O ser humano é visto como um ser dualista, ou seja, dividido em duas partes, que seriam a substância pensante (alma) e uma outra parte biológica e corporal. O ser humano se torna um produto de determinações naturais, oriundas da biologia nascente e não mais é tido como um ser autônomo, capaz de gerir seu próprio destino. 28 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Na terceira concepção, a histórico-social, o homem passa a ser visto como um processo contínuo, a partir de sua existência pessoal e concreta. Neste sentido, o ser humano passa a ser compreendido como alguém ou algo inserido no espaço e no tempo, marcado pela sua unicidade e capacidade de realizar atividades. O homem, visto como processo, seria um ser inacabado, pois não nasce pronto. Há em todo conhecimento produzido em qualquer época, em qualquer área, uma clara concepção do homem. Toda arte, reflexão e ação do homem trazem consigo esta questão, que não pode ser abandonada sem deixar para trás outros aspectos, sem correr o risco de perder uma grande e exclusiva atividade do homem, que é a capacidade de refletir sobre sua própria essência e existência. Por fim, temos a pergunta que não quer calar: por que estamos aqui? Por que fomos criados? Qual é o verdadeiro significado da vida? Você conseguiria classificar as definições abaixo de acordo com as três apresentadas nesta seção? “Depois, Deus disse: Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais domésticos e os répteis que rastejam na Terra.” (BÍBLIA, Génesis, 1:26) “Somos máquinas de sobrevivência – veículos robotizados cegamente programados de modo a preservarmos as moléculas egoístas a que chamamos genes. Essa é a verdade que me enche de espanto”. (DAWKINS, 2001) “Todo o homem, vá ele para onde vá, é acompanhado por uma nuvem de confortáveis convicções, que o seguem como moscas num dia de Verão.” (RUSSELL, 2009) 2.1.2 Raças e etnias Desde os primórdios, o homem vive em sociedade, sempre manifestando a capacidade de modificar os seus próprios hábitos e criar seus próprios significados e ideias em grupo. O ser humano evoluiu em grupo e por meio da sua interação com o meio ambiente. Os nossos ancestrais hominídeos, segundo os relatos históricos, eram, em sua maioria, nômades, situação que se alterou quando passaram a dominar o cultivo da terra e desenvolveram as primeiras aldeias e, posteriormente, cidades e técnicas de transformação do meio ambiente. O meio ambiente foi determinante para que o processo de constituição de sociedades e tecnologias fosse diferente a cada região do globo terrestre. Contudo, fortes indícios históricos e arqueológicos levam a concluir que os seres humanos possuem um começo comum para a sua sociedade. Testes realizados com DNA demonstram haver um conjunto comum de características que contam a favor de um ponto inicial comum. 29 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Figura 11 – Etnias Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. Mas o ser humano é sempre complexo, e podemos inferir que, à medida que os costumes sociais se desenvolveram e as culturas foram diferenciando os seres humanos, surgiu também um conjunto de ritos que serviram para identificação entre os membros de uma mesma tribo, bem como outros ritos de disputa entre as diversas tribos. “Havia, por exemplo, tribos e sociedades que disputavam por meio de trocas, qual o grupo presenteava melhor o outro” (MARTINS, 2005). Em seu texto “Da dádiva e em particular da obrigação de retribuir os presentes” (de agora em diante referenciado apenas como Da Dádiva), Marcel Mauss evidência que a dádiva é oposta à troca mercantil, revelando também a essência da reciprocidade, cujo caráter universal está atrelado à tríplice obrigação de “dar, receber e retribuir”. Dádiva é um termo que significa donativo. Uma dádiva representa aquilo que é dado, um presente ou uma oferta, ou seja, tudo aquilo que se recebe gratuitamente. São compreendidos como dádivas todos os atos de benevolência que naturalmente fazem parte de uma sociedade. Mauss busca, como objetivo central, descobrir “que força existe no objeto que é dado e que faz com que o donatário tenha que retribuir?”. Para esta façanha ele estabelece o uso de um método de comparação pelos estudos de sociedades antigas e uma dupla divisão do objetivo: (1) um modo arqueológico da natureza das transações humanas e (2) verificar que esta moral está economicamente funcionando ainda em nossas atuais sociedades. Inicialmente, Mauss percebe que não parece ter existido aquilo que se chama de economia natural, pois não se observam simples trocas de bens ou da vontade de indivíduos. Tratava-se de uma coletividade, que se obriga mutuamente à troca e ao contrato. Não se tratava exclusivamente de bens e riquezas, mas de prestações e 30 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana contraprestações que se embrenham sob uma forma preferencialmente voluntária. A todo este sistema, o autor chama de sistema de prestações totais. Envolvendo um direito contratual e o conjunto de prestações econômicas como constituintes de um conjunto de fatos da vida social das sociedades, o qual se manifesta como um fenômeno para as instituições e para a produção econômica. Podemos perceber que o processo de evolução da sociedade humana tomou não um único caminho de diferenciação, mas um conjunto de aspectos mediante a disposição dos recursos e das tradições. É por isso que, em outras sociedades, distantes em costumes e em disputa por recursos e valores sociais, ocorreu não uma economia coletiva ou detroca, mas uma disputa aberta de valores, em nome da escassez, por exemplo, de alimentos. Antônio Sérgio Guimarães (1999), estudioso do assunto, entende que a categoria raça é uma construção sociológica, ou seja, uma crença que afeta o comportamento humano distribuindo desigualmente vantagens e desvantagens às pessoas de acordo com esse “modelo de classificação racial” que existe nas sociedades. Neste sentido, Maria Aparecida Lima Silva e Rafael Lima Silva Soares, em seu artigo “Reflexões sobre os conceitos de Raça e Etnia”, publicado na revista eletrônica Entrelaçado em novembro de 2011, fazem a seguinte observação: Com a compreensão devida das contribuições adquiridas da antropologia cultural que traz o conceito de etnia para se pensar a questão do negro e as populações em situação semelhante, pode-se distinguir facilmente os pontos fundamentais e diferenciais entre a utilização de “raça” (no seu sentido mais bruto, advindo de um contexto de décadas anteriores) e de “etnia” atualmente. Assim, o conceito de etnia traz à baila as noções do universo cultural que cerca o indivíduo, o fazer parte de um grupo étnico não significa somente, ou necessariamente, ser possuidor de fatores morfológicos como cor da pele, constituição física, tipo de cabelo, nariz, estatura ou traço facial. O conceito de etnia, aplicado nesse sentido, avança na intenção de compreender a dimensão sociocultural e as experiências semelhantes que ligariam indivíduos, povos e sociedades no mesmo grupo. Além disso, o uso de “raça” no desígnio de grupos sociais humanos, do ponto de vista das ciências naturais, apresenta um erro, pois sugere que atualmente não há somente uma raça humana, mas sim várias, teoria que há muito se prova inconsistente. (SILVA, 2011) Para Yves de La Taille, especialista em desenvolvimento moral, os conceitos de raça e etnia têm significados distintos, de acordo com a cultura de cada sociedade. Elementos como as influências ideológicas, sociais, religiosas, jurídicas, etc. influenciam o modo como o conceito de raça aparece. Segundo o autor: [...] cada conceito possui significados que perpassam pelos homens brancos, negros, mestiços, índios e descendentes que, a partir da conscientização de saber quem é o seu “eu”, provocam e compreendem em cada instância o significado de cada palavra. Portando, podemos dizer que esses conceitos são modificados culturalmente. (TAILLE, 2006) La Taille ressalta que seres humanos não possuem nenhuma diferença racial em temos biológicos, como ocorre com outras espécies. Portanto, do ponto de vista genético, não há nenhuma solidez no conceito de raça no que concerne aos serem humanos, pois, biologicamente, raça é um subgrupo de uma espécie. Portanto, não há como saber ao certo a “raça” de um homo sapiens, observando apenas seus genes. La Taille ainda nos diz que “[...] não há dúvida de que os genes determinam mais o que somos do que a cor da pele” (TAILLE, 2006). E um gene, para uma determinada característica, nem sempre se apresenta igual; segundo La Taille, as formas alternativas de um determinado gene são chamadas de alelo. Assim sendo, um determinado gene, pode apresentar diferentes alelos em razão de alguma modificação em um pequeno trecho do DNA que ocorrem devido a mutações. Os alelos determinam a mesma característica, porém de maneiras diferentes. (TAILLE, 2006) 31 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Você está se lembrando de suas aulas de biologia? Vamos adentrar mais um pouquinho nesse território para aprofundarmos essa interdisciplinaridade imprescindível para compreendermos a falácia do conceito de raça. Genótipo é o nome que se dá à constituição genética de um indivíduo, ou seja, ao conjunto de seus genes. O genótipo será responsável, portanto, por determinar as características mensuráveis de um indivíduo (fenótipo). A cor da pele é um exemplo de fenótipo. La Taille nos diz que “Quando uma pessoa sofre um racismo por ser negra é compreendido que ela sofre racismo por causa os seus traços ligados ao fenótipo e não ao genótipo” (TAILLE, 2006). Para quem quiser se aprofundar um pouco sobre o tema, sugiro a leitura do artigo “A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social?”, de Sérgio Pena e Telma Birchal, publicado na revista da USP (Universidade de São Paulo). Saiba mais 2.1.3 Gênero e derivações atuais Seria o ser humano reduzido, em sua totalidade, ao seu corpo físico, ou seja, aos aspectos físicos, como cor da pele, seu gênero e etc? Estes aspectos seriam capazes de definir, limitar e especificar o comportamento de uma pessoa? Em um primeiro momento, podemos considerar que sim, já que existe um discurso comum que nos diz o que seria um comportamento masculino e um comportamento feminino. Alguns podem dizer que pessoas de pele negra possuem um determinado comportamento ligado aos ritmos tribais em maior evidência do que pessoas de pele branca. Porém, como foi visto nas seções anteriores, tratar o ser humano simplesmente pelo seu aspecto físico não garante que possamos realmente bater o martelo e dizer: o ser humano é desta forma e pronto. Nossa consciência, nossa capacidade cognitiva e nosso comportamento não se reduzem simplesmente a aspectos do nosso corpo. Figura 12 – Transexualidade Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018. 32 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Podemos admirar um grande ritmista negro, como o cantor Carlinhos Brown, por exemplo, mas seria incoerente concluir que todas as pessoas negras são, automaticamente, talentosos ritmistas. Afinal, é claro que existem muitos percussionistas de diversas etnias. Porém, inevitavelmente, nos portamos no mundo a partir de conceitos preconcebidos, que nos guiam a partir de estereótipos, que procuram generalizar o que é exclusivamente pontual de uma região ou sociedade em uma época e lugar. Assim, esses conceitos preconcebidos se mostram culturais e nunca oriundos de uma estrutura predeterminada biologicamente. Nossa tarefa ética é sempre refletir sobre estes preconceitos e revermos intimamente estes valores. Judite Butler, importante filósofa norte-americana nos diz que semelhante situação acontece com relação ao gênero, normalmente, associado ao “sexo biológico”, reduzido a uma lógica binária, com direito a terceiro excluído: masculino x feminino, macho x fêmea ou homem x mulher: Conceitualmente o ser humano nasceria dotado de determinadas características biológicas que o enquadrariam como um indivíduo com comportamento masculinos ou femininos. Não existe uma terceira, quarta ou mesmo quinta opção. (BUTLER, 2003) Porém, no século XXI, ficou claro que o sexo biológico não determina por si só a identidade de gênero ou a orientação sexual de uma pessoa. Butler nos diz que: A orientação sexual, por exemplo, diz respeito à atração que sentimos por outros indivíduos e, geralmente, envolve questões sentimentais, e não somente sexuais. (BUTLER, 2003) É claro que podemos inferir a origem natural e primeira do que seria ser “homem” e ser “mulher”, mas nesse processo de ruptura com a natureza em direção à cultura o homo sapiens, cada vez mais, reprimiu seus instintos e inventou a si próprio, em todos os sentidos possíveis. Assim, cada cultura desenvolveu o papel social que cada sexo deve desempenhar. Por exemplo, ser mulher hoje no Brasil é totalmente diferente de ser mulher em um país árabe. Com a pós-modernidade, houve uma fragmentação das identidades, que se multiplicam e romperam com as tradições, dessa forma as identidades de gênero se tornam também cada vez mais diversas. Butler nos diz que: [...] a experiência humana nos mostra que um indivíduo pode ter outras identidades que refletem diferentes representações de gênero (como os transexuais e transgêneros) e que não se encaixam nas categorias padrões. (BUTLER, 2003) Todo ser humanodesenvolve uma identidade. As identidades são características fundamentais de toda experiência humana, pois permitem que seres humanos possam exercer sua condição, como sujeitos, no mundo social. Butler nos diz sobre o conceito de gênero: O gênero refere-se à identidade com a qual uma pessoa se identifica ou se autodetermina; independe do sexo e está mais relacionado ao papel que o indivíduo tem na sociedade e como ele se reconhece. Assim, essa identidade seria um fenômeno social, e não biológico. (BUTLER, 2003) As questões relativas ao gênero aparecem na cultura ocidental com o feminismo. Simone de Beauvoir afirmou que ninguém nasce mulher, mas sim torna-se mulher. Essa famosa afirmação surge em tom de contestação, combatendo o pensamento determinista do final do século XIX, que usava a biologia para explicar a inferiorização do sexo feminino e as desigualdades sociais entre os gêneros. Para Beauvoir, o “ser mulher” é uma construção social e cultural. Um bom exercício antropológico é compararmos as culturas para percebermos nossas posturas etnocêntricas. Em diferentes culturas, por exemplo, tribos indígenas ou no antigo povo celta, as representações de feminino e masculino eram completamente diferentes das que temos atualmente. Em muitas sociedades, as mulheres exerciam o papel de guerreiras e participavam ativamente de esferas de decisão e poder. Recentemente, foram 33 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana encontrados vestígios de mulheres guerreiras vikings. Na África, há fascinantes relatos de que os franceses teriam lutado contra um exército de mulheres no Daomé (Benin), no século XVIII. Em 1990, Butler publica seu livro Problemas de Gênero (Civilização Brasileira, 2010). A obra cunhou, de modo inovador, a noção de gênero como performatividade. Para a filósofa, o gênero é uma produção social, ou seja, é um ato intencional construído ao longo dos anos, de fora para dentro e de dentro para fora. Segundo ela, gênero não deve ser visto como um atributo fixo de uma pessoa, mas como uma variável fluída, apresentando diferentes configurações. Butler conduz o seu pensamento à defesa de que a pessoa possa escolher o gênero a que quer pertencer. A alta complexidade social da nossa espécie, sobre a qual podemos destacar as extensas redes de relações sociais, as complexas construções de sentidos e significados e as estruturas de poder no âmbito material e simbólico, nos impõe certas dificuldades a respeito da natureza de nossas ações, pensamentos e compreensões. Não poderíamos afirmar que todas as nossas ações são frutos do nosso instinto, enquanto espécie biológica, ou esperar que todos os aspectos da sociedade possam ser analisados sob a ótica da evolução e adaptabilidade. (BUTLER, 2003) 2.1.4 Gênero e raça na sociedade brasileira No Brasil, as questões étnico-raciais nunca estiveram tão em pauta. Assistimos a um crescimento do movimento negro, a uma postura de reconexão com a ancestralidade e o tema racismo frequenta a mídia e o senso comum. Mas não era assim. Até a década de 1980, havia uma falácia segundo a qual o Brasil seria uma democracia racial desprovida de preconceitos. Porém, essa ideia veio sendo combatida, pois ela é justamente um sintoma desse racismo que está em nossa base estrutural, assim como o machismo e a gordofobia. Em termos históricos, nosso país, em seus quinhentos anos, teve escravidão até o 13/05/1888, ou seja, são quatro séculos de escravidão dos quinhentos anos de história. É claro que há muitos legados dessa época em nossa cultura. Naquele episódio de abolição, que já revelava sua fragilidade em suas próprias peculiaridades: na ausência do imperador a princesa Isabel assina a carta de alforria, pressionada por uma série de interesses econômicos vindos da Inglaterra liberal. É claro que a resistência negra nos quilombos foi gloriosa e merece nossas reverências, porém este episódio de abolição não ocorreu em uma situação de vitória dos negros. Muito pelo contrário, a abolição ocorreu paulatinamente, com leis precedentes, como a lei do sexagenário, que libertava negros após os sessenta anos e a lei do ventre livre, que libertava os filhos de escravos após determinada idade. Estas leis, em vez de preparar a sociedade para um processo de inclusão dos antigos escravos, acabam por explicitar o interesse puramente mercantil e unilateral, por parte dos donos de escravos, pois houve um discurso, segundo o qual estas leis seriam benefícios para os negros, porém, poucos chegavam aos sessenta anos e, mesmo se chegassem, já não produziam tanto como antes e se tornavam caros para os senhores, que agora podiam se livrar desse improdutivo escravo, deixando de se responsabilizar por ele, que via na tal “liberdade” um verdadeiro abandono. A lei do ventre livre compartilha do mesmo paradoxo: libertar filhos de escravos se revelou, de forma traumática, um desumano gesto de separação entre mães e filhos, sem nenhum tipo de consideração aos laços familiares. Portanto, a tese de La Tayle, segundo a qual o conceito de raça é uma construção cultural, se mostra procedente também aqui no Brasil. Os legados são gigantescos e incomensuráveis. Joaquim Nabuco, importante historiador brasileiro, nos diz que a escravidão não se apaga do dia pra noite, e sua estrutura permaneceria durante muito tempo ainda em nossa sociedade. Segundo ele: 34 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana A escravidão não é uma opressão ou constrangimento que se limite aos pontos em que ela é visível; ela espraia-se por toda parte; ela está onde vós estais; em nossas ruas, em nossas casas, no ar que respiramos, na criança que nasce, na planta que brota do chão. (NABUCO, 1976) Nabuco, em sua mais célebre frase do livro intitulado Minha formação, nos diz que que “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” (NABUCO, 1976). Podemos verificar esses legados, desde piadas e expressões populares que envolvem os negros de forma pejorativa, até na própria arquitetura, que concebe apartamentos minúsculos, mas com dependência de empregada. Inclusive a questão do trabalho doméstico, no Brasil, só ter regulamentação de acordo com as leis trabalhistas em pleno séc. XXI já revela o quanto nosso pensamento é carregado da lógica escravocrata. Como não houve nenhum tipo de programa ou projeto que olhasse pelos negros após a abolição, estes se viram jogados em um mundo, que lhes era totalmente hostil, o que gerou uma situação extremamente perversa em nossa sociedade: está na cor da pele a condição de inferioridade social, que coloca por terra qualquer discurso liberal de meritocracia na atualidade. Por não terem condições de adentrar na sociedade, os negros se concentraram nas margens desta, formando o que se chamam de favelas, aglomerados e morros. Não é à toa que, atualmente, os números de negros em presídios e favelas ainda é muito maior do que o de brancos, passados mais de cem anos da abolição. Se ligamos o noticiário, somos bombardeados de imagens que associam negros à criminalidade, às drogas e à violência. Nas novelas, durante décadas, os negros só apareceram na condição de empregados, e, como afirmou o antropólogo Roberto DaMatta (2004), o brasileiro tem uma tendência histórica a valorizar quem se mantém no seu lugar social. A pessoa que, em uma narrativa novelística, quer sair de sua condição inferior e adentrar uma condição socialmente superior é considerada o vilão da história, e quem se mantém humildemente em seu lugar é considerado virtuoso e admirável. Tudo isso são os legados da escravidão que precisam ser debatidos e combatidos. No Brasil contemporâneo, as questões de gênero e raça afloram e promovem debates acalorados, nem sempre guiados pela compreensão dos pontos em questão. A própria sociedade brasileira possui um aspecto conservador e tradicionalista fortemente marcado pela religiosidade,assim como possui em suas origens fatores ligados à exploração não sustentável de recursos, um desenvolvimento econômico sustentado por uma escravatura e forte desigualdade social, herdada destes e outros fatores históricos. Sem dúvidas a maior de todas as miscigenações não se deu entre índios, negros e brancos, como se costuma ler nos livros de história tradicionais, mas sim entre as várias etnias negras que, indiscriminadamente, eram tratadas de modo generalizador pelos colonos, que chamavam de “negros escravos” todos os povos oriundos da Guiné, do Congo, de São Tomé, da Costa da Mina, Moçambique e diversos outros pontos da África, para trabalharem nas lavouras em substituição aos índios. A escravidão é um elemento que aparece em diversas culturas e épocas na história da humanidade. De egípcios à gregos, de aborígenes pré-colombianos nas Américas às tribos africanas. Mas o que se viu durante o período colonial foi uma gigantesca estrutura comercial de escravos impulsionada pelo mercantilismo europeu, que fez da escravidão a mola mestra daquilo que veio a se chamar capitalismo. Por mais que entre as tribos africanas existisse a cultura da escravidão, o modo como os europeus se apropriaram dela e a dimensão que ela tomou formaram uma das mais perversas estruturas sociais já vividas pelo homem na história. O que mais importava aos compradores e revendedores de escravos era apenas que os negros escravizados fossem fortes e saudáveis. Arthur Ramos afirma que: [...] o número elevado de negros que, através do tráfico, eram disseminados, principalmente, para zonas de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Maranhão, locais onde eram cobiçados devido à necessidade de braços fortes para o trabalho nas lavouras de cacau, açúcar, algodão e café. (RAMOS, 1979) 35 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana Dentro do pensamento colonialista, o olhar do senhor de escravos em relação ao homem negro era simplesmente o da boa mercadoria, que adquiria para trabalho escravo, como diz Artur Ramos: [...] “para o branco senhor, não havia povos negros diversos, mas apenas o negro escravo”. Nesse sentido, os negros escravizados eram, para os colonizadores, a melhor resposta para o cumprimento do sentido da colonização (exploração da capacidade produtiva da América Portuguesa) sendo, quando era conveniente, ignoradas as diferenças culturais dos diversos grupos que foram forçosamente trazidos. É possível afirmar que a grande miscigenação de etnias na história brasileira se deu entre as diversas etnias africanas, muito mais do que entre brancos, índios e negros. (RAMOS, 1979) Ramos afirma ainda que as influências religiosas, muito fortes durante toda a colonização, criaram uma armadura ideológica, privilegiando grupos sociais em detrimento de outros. Mas, acima de tudo, o pior do legado da escravidão foi, certamente, o racismo. É um impacto que até hoje reverbera pelas camadas sociais, ao custo da lenta ascensão social e econômica dos descendentes dos escravos. A violência é outro fator que marca em muito as pessoas de pele negra. (RAMOS, 1979) Recentemente, a segregação racial foi considerada crime federal, mas isso não impede que ainda haja o preconceito e a exclusão de uma parcela significativa de pobres de origem negra. Isso tudo vem de um processo histórico que acabou por retirar oportunidades de crescimento dos negros. Existem muitos grupos que lutam pelo direito de igualdade dos negros e, com isso, há um real debate para combater a discriminação, seja qual for. Tente imaginar como a discriminação agiu sobre as últimas gerações de negros no Brasil. No mínimo, devemos concordar que o alto percentual de negros na zona de pobreza não é fruto do fato deles serem negros “preguiçosos ou favelados”, tampouco de não serem “esforçados e batalhadores”. O que temos é um grande débito histórico, que condenou brasileiros negros a uma condição deplorável de oportunidades para o crescimento e desenvolvimento, limitando a possibilidade de dignidade e acesso ao conhecimento, tão importante em uma sociedade contemporânea permeada por leis, valores financeiros, etc. Combater a desigualdade social é algo necessário. Esse combate pode garantir que maior número de pessoas tenha acesso às oportunidades em nossa sociedade, de modo que a meritocracia não seja apenas um discurso. Se desejamos defendê-la, devemos ter certeza de que exista equidade. O mérito é alcançado quando, numa disputa justa, um indivíduo se destaca por seu esforço. Além deste fator de equidade, podemos perceber, em países com altos índices de desenvolvimento, que menor desigualdade social traz a um país melhores condições financeiras, amplia o número de empreendedores, diminui as zonas de pobreza e com ela o crime etc. A lei de cotas revolucionou o acesso às universidades públicas no Brasil, gerando uma maior diversidade no meio acadêmico, mas mesmo assim a desigualdade de acesso ainda é gigantesca. Sabemos que a lei de cotas considera que pelo quesito pobreza todos devem ter acesso a políticas sociais que procurem diminuir a desigualdade social. Contudo, a questão que também surge é: como lidar com o peso histórico do racismo, que legou a uma população negra a situação atual? Como garantir que o racismo, que explicitamente ainda existe, não dificulte a vida dos pobres negros, privilegiando os que são pobres e brancos? Quais políticas públicas contribuem melhor para combater a desigualdade social e o racismo (atual e legado)? A questão da necessidade de cotas raciais, surge a partir de uma perspectiva histórica, que reconhece a vileza do processo de diáspora africana, no período de tráfego negreiro no ocidente. Durante séculos vimos, na história do nosso país, os negros serem preteridos, e estes conceitos pré-concebidos, que subjugam os negros, estão engendrados em nossa cultura. Trata-se do racismo. É necessário combatê-lo, buscando onde ele está em nós 36 Cidadania e Ética | Unidade 2 - A Condição Humana mesmos. Sendo brancos, índios ou negros, o racismo está dentro de nossa base cultural e histórica. Nesse sentido o tema das cotas aparece como uma demanda mínima, que tem como objetivo compensar essa dívida histórica. Em se tratando de gênero, ocorre algo semelhante. Há uma base estrutural em nossa sociedade baseada em uma visão heteronormativa que concebe a questão do gênero a partir de uma lógica binária, que hierarquiza os gêneros, sempre colocando o masculino em detrimento do feminino, gerando a misoginia. A misoginia, ou o ódio ao feminino, é a origem de outros preconceitos como a homofobia. A luta contra preconceitos por uma sociedade diversa e igualitária iniciou-se no Ocidente, com as mulheres, que questionaram a liberdade sexual dos homens, reivindicando controle sobre seus próprios corpos e levantando questões relativas ao direito reprodutivo. Os movimentos feministas se expandem e, a partir da década de 1990, se dispersam e se diversificam, passando a ocupar o ambiente acadêmico. O debate feminista, hoje, parece estar restrito às academias com feministas profissionais e as práticas limitam-se às ONGs, com reivindicações específicas que se desenvolvem onde o Estado é omisso, como as questões ambientais. (RAMOS, 1979) Ramos (1979) ressalta que a discussão sobre raça e gênero coloca a condição humana no centro de um conjunto de discursos, que procuram ou não garantir maior igualdade de direitos. Não se trata de uma ideologia com ambições morais, ou seja, o termo “ideologia de gênero” é pejorativo e nada tem de relação com os temas aqui apresentados. Como já descrito, cada sociedade tratará do que é ou não certo, bem como terá que lidar com os momentos de conflitos na evolução destes valores. O que podemos perceber até aqui é que a cultura e as mudanças fazem parte do conjunto de conhecimentos acerca do ser humano e de forma alguma estes
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