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Contra a Democracia

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18/05/2020 Contra a Democracia
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Crítica
16 de Abril de 2020 Filosofia política
Boas intenções, tristes realidades
Artur Polónio
Contra a Democracia
de Jason Brennan 
Tradução de Elisabete Lucas 
Lisboa, Gradiva, 2017, 382 pp.
Embora possa haver formas intrinsecamente injustas de governo, a democracia não é uma forma única ou
intrinsecamente justa de governo. O sufrágio sem restrições, uniforme e universal […] é moralmente censurável em
vários aspectos. O problema é que […] o sufrágio universal incentiva a maioria dos votantes a tomar decisões
políticas de um modo ignorante e irracional, impondo depois estas decisões ignorantes e irracionais a pessoas
inocentes. A única justificação para o sufrágio sem restrições e universal seria a nossa incapacidade de produzir um
sistema com melhor desempenho. (Brennan, 2017: 20)
O governo representativo é um fenómeno relativamente recente: não tem mais de um século e meio. Isto significa que,
durante muito tempo, a teoria democrática foi essencialmente especulativa, alimentada por muito romantismo e boas
intenções. Hoje, porém, dispomos de resultados que vêm da experiência; e isso justifica, no mínimo, que a teoria
democrática deve ser confrontada com os factos. Alguém deve, nas palavras do autor, desempenhar o papel de
«advogado do Diabo».1
Portugal Brasil
Stuart Mill, um dos grandes filósofos políticos do século XIX, era um defensor do governo representativo. Mill
esperava que o governo representativo, resultante do sufrágio universal, tivesse as melhores consequências — não só
no respeito pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento económico, mas também na promoção das virtudes cívicas
e na elevação moral dos cidadãos.
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Mill não viveu para ver essas consequências: na sua época, o sufrágio universal não era mais do que uma hipótese.
Sendo, porém, um pensador animado pelo espírito científico, não hesitaria, decerto, em confrontar as suas hipóteses
com a realidade se tivesse tido essa possibilidade. Vivesse ele hoje, teria a possibilidade de observar que as suas ideias
não parecem ter sobrevivido ao teste do tempo.
As formas mais comuns de compromisso político não só não conseguem educar-nos ou enobrecer-nos, mas também
tendem a estupidificar-nos e corromper-nos. (Brennan, 2017: 12)
Assim que entra no campo político, refere Brennan, citando o economista Schumpeter, o cidadão comum regride, na
análise e no raciocínio, a níveis de desempenho que, noutras esferas, reconheceria como infantil e primitivo.
Do ponto de vista da teoria democrática, dispondo da informação empírica de que dispomos, hoje não estamos, como
estava Mill, limitados a especular: hoje podemos observar e confrontar a teoria com a evidência disponível.
1. Hobbits e hooligans
Os cidadãos, observa Brennan, diferem em muitos aspectos. No que é relevante para o seu ponto de vista, o autor
divide os cidadãos democráticos em três tipos ideais ou «arquétipos conceptuais»: hobbits2, hooligans3 e vulcanos.4
O hobbit é, essencialmente, ignorante. Indiferente à política, carece de opiniões: o seu conhecimento da História ou da
realidade sociológica é superficial. Tipicamente, nas eleições abstém-se.
O hooligan é o fanático da política: tem opiniões fortes e fundamentadas; mas tende a consumir exclusivamente a
informação que confirma ou sustenta as suas opiniões, desprezando o que quer que as contradiga ou desminta. Ainda
que, frequentemente, seja capaz de argumentar a favor das suas ideias, não consegue explicar satisfatoriamente pontos
de vista alternativos. As opiniões políticas fazem parte da imagem do hooligan: o seu partido faz parte da sua
identidade. Tende a desprezar as pessoas que pensam de maneira diferente. A maioria dos políticos, dos activistas e
dos votantes são hooligans.
O vulcano fundamenta as suas opiniões políticas na ciência e na filosofia. Evita ser tendencioso, emotivo e irracional.
Quem não pensa como ele não é, ipso facto, idiota, ignorante ou egoísta: é apenas alguém que não pensa como ele.
Ao contrário do que se poderia pensar, o hooligan não é necessariamente extremista e o vulcano não é
necessariamente moderado: alguns marxistas ou libertários podem ser vulcanos e alguns social-democratas hooligans;
o hobbit, esse, tende a não ser, politicamente, coisa alguma.
Mas não serão, não obstante este perfil desolador do eleitorado, a democracia e a participação política valiosas?
Talvez. Talvez sejam boas porque tendem a produzir melhores resultados do que as alternativas; ou talvez sejam boas
porque produzem cidadãos melhores; ou, finalmente, talvez tenham valor em si mesmas.
Designarei por triunfalismo democrático a visão de que a democracia e a participação política generalizadas são
valiosas, justificadas e requeridas pela justiça, pelos três tipos de razões. O slogan do triunfalismo poderia ser: “Três
vivas à democracia!” (…) Esta livro critica o triunfalismo. A democracia não merece pelo menos dois dos vivas que
recebe e pode também não merecer o último. (Brennan, 2017: 19)
O autor oferece três argumentos contra o triunfalismo democrático. Em primeiro lugar, a democracia não é uma forma
intrinsecamente justa de governo: pelo contrário, é injusto e moralmente censurável permitir que decisões políticas
tomadas de modo incompetente e irracional possam prejudicar pessoas inocentes; a democracia só estaria justificada
caso fôssemos incapazes de inventar um sistema que produzisse melhores resultados. Além disso, a participação
política não nos torna melhores cidadãos: ao contrário, tende a embrutecer-nos, a corromper-nos e a tornar-nos
inimigos uns dos outros. Finalmente, a liberdade de participar no processo de decisão política não é como as outras —
nomeadamente, a liberdade de expressão, de religião ou de associação: a liberdade de participação no processo de
decisão política carece de uma boa justificação.
Presentemente, no entanto, a ideologia política dominante, no Ocidente, é uma espécie de liberalismo filosófico.
Seguindo, no essencial, a visão de Mill, o liberal pensa que as pessoas — desde que não sejam menores de idade ou
mentalmente diminuídas — devem ser livres de fazer as suas próprias escolhas, mesmo más, desde que não estejam a
causar mal a terceiros. Analogamente, também uma democracia deve ser livre de fazer as suas escolhas, ainda que
sejam más a ponto de conduzir a uma crise económica, por exemplo.
Esta analogia, de acordo com Brennan, está errada: um eleitorado não é, ao contrário de um indivíduo, uma entidade
com comportamentos e qualificações intelectuais unificados; um eleitorado é um conjunto de pessoas diferentes, com
interesses, comportamentos e aptidões diferentes. Quando um eleitorado toma decisões idiotas, o que sucede é que
algumas pessoas impõem as suas más escolhas a outras: às minorias, aos estrangeiros, às gerações do futuro, aos que
se abstêm de votar ou não podem fazê-lo. Se a maioria dos eleitores faz más escolhas, não está a prejudicar-se apenas
a si mesma, mas também a um conjunto de cidadãos inocentes. Justificar a tomada de decisão política é, pois, uma
tarefa mais complexa do que justificar a tomada de decisão individual.
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Como avaliar, então, a democracia? Terá a democracia valor intrínseco, ou meramente instrumental? Acreditamos, por
exemplo, que os seres humanos têm valor intrínseco; isto é, um ser humano tem valor em si mesmo. Um martelo,
porém, dificilmente terá valor intrínseco: um martelo é um instrumento, e um instrumento valioso se, e só se, for útil
para nós; dizemos, portanto, que um martelo tem exclusivamente valor instrumental. Alguns objectos, porém, têm
simultaneamente valor intrínseco e instrumental: um relógio, porexemplo, pode ser valioso em si mesmo, por um
conjunto vasto de razões; mas, se funcionar razoavelmente, pode ter ainda valor instrumental. E a democracia?
Muitos filósofos acreditam que a democracia tem, simultaneamente, valor intrínseco e instrumental. Tem valor
intrínseco porque constitui um processo de tomada de decisões inerentemente justo: no essencial, exprime a ideia de
que todos os indivíduos são igualmente valiosos. Mas tem, também, valor instrumental; isto porque tende a produzir
resultados relativamente justos.
Brennan defende que a democracia deve ser avaliada como avaliamos um martelo e não como avaliamos um relógio
ou um ser humano: a democracia é um instrumento, “é um meio para um fim, mas não um fim em si mesmo. […] A
democracia não é intrinsecamente justa. […] O valor que a democracia tem é puramente instrumental.” (Brennan,
2017: 28)
Se for verdade que o valor da democracia é justificado pelos resultados que produz, então, caso encontremos um
modelo que produza resultados melhores, devemos optar por ele. Platão, na Antiguidade, parecia pensar desse modo.
De acordo com Platão, o eleitorado — a assembleia dos cidadãos — é demasiado ignorante, demasiado estúpido e
irracional para governar bem. O governo por um rei-filósofo, honesto e sábio, seria preferível. Platão argumentava a
favor de um modelo a que os filósofos chamam, hoje, epistocracia.5 «Epistocracia» significa «o governo dos sábios»:
Um regime político é epistocrático na medida em que o poder político é formalmente distribuído de acordo com a
competência, a capacidade e a boa-fé para agir de acordo com essa capacidade. (Brennan, 2017: 29)
Aristóteles concorda com Platão num aspecto: o governo por um rei-filósofo sábio seria preferível à democracia.
Porém, argumenta, no mundo real, nunca teremos um rei-filósofo sábio: ninguém é suficientemente bom para o
exercício do cargo; e, ao contrário do que pensa Platão, também não podemos formar reis-filósofos sábios.
Aristóteles tem razão: no mundo real, encarregar da governação uma só pessoa seria demasiado difícil. Daí não se
segue, todavia, argumenta Brennan, que a epistocracia é impossível: várias formas de epistocracia serão possíveis,
segundo o modo como se limitar o impacto, no processo de decisão política, da participação dos eleitores menos
capazes e, portanto, mais susceptíveis de tomar más decisões.
Os epistocratas não precisam de afirmar que os peritos devem ser chefes. Os epistocratas precisam apenas de sugerir
que as pessoas incompetentes ou pouco razoáveis não devem ser impostas às outras como chefes. (Brennan, 2017:
33)
Hoje em dia, porém, a ideia de uma distribuição desigual do poder político parece desagradar a muitas pessoas. De um
modo geral, tomamos como inquestionável a ideia de que todas as pessoas devem ter uma parte igual de poder
político: a desigualdade política parece-nos intrinsecamente injusta.
É verdade que, no passado, a desigualdade política foi quase sempre injusta. É errado atribuir poder político a alguém
apenas porque é branco, homem, proprietário ou descendente de um senhor da guerra. É errado excluir alguém do
poder político só porque é negro, mulher, pobre ou descendente de pobres.
No entanto, do facto de, no passado, a desigualdade política ter sido quase sempre injusta, não se segue, de acordo
com Brennan, que a desigualdade política seja intrinsecamente injusta: ainda que, no passado, algumas pessoas
tenham sido impedidas de ter poder político por más razões, pode haver boas razões para impedir certas pessoas de ter
poder político, ou para atribuir-lhes menos poder político do que a outras. Impedir alguém de conduzir apenas porque
é ateu, homossexual, ou intocável, argumenta Brennan, seria errado; daí não se segue, porém, que não haja boas
razões para impedir algumas pessoas de conduzir: ao contrário, impedir que pessoas incompetentes conduzam, ou
pessoas que, de alguma maneira, representam um risco para os outros, é uma boa ideia. Analogamente, pode haver
boas razões para impedir que as pessoas incompetentes tomem decisões que poderão causar dano a outras.
Há, em suma, duas teorias básicas acerca da distribuição do poder político: o procedimentalismo e o
instrumentalismo. Os procedimentalistas sustentam que, em matéria de distribuição do poder político, há formas
intrinsecamente justas e formas intrinsecamente injustas. Os instrumentalistas reivindicam que devemos optar pela
forma de distribuição do poder político que produza os resultados mais justos, seja ela qual for, independentemente
dos procedimentos que lhes dão origem.
Brennan defende que a democracia deve ser avaliada instrumentalmente: se houver uma alternativa que produza
melhores resultados, devemos optar or ela. Por outro lado, não há, afirma, bons fundamentos procedimentalistas para
para preferir a democracia è epistocracia.
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2. Nacionalistas ignorantes, irracionais, desinformados
Quando se trata de votar, o conhecimento e a racionalidade não compensam, ao passo que a ignorância e a
irracionalidade não são punidas. (Brennan, 2017: 42)
Suponha o leitor que quer atravessar a rua. Se tiver uma crença falsa acerca de haver trânsito a circular na via, sofrerá
as consequências. Agora suponha que está prestes a votar. Ainda que vote sob a influência das ideias mais delirantes,
nada, ou quase nada, se segue daí. À excepção do improvável cenário de um empate, a verdade é que um voto
individual nada, ou quase nada, altera. Se decidir abster-se em vez de votar, os resultados serão os mesmos. E sê-lo-ão
quer o voto do leitor seja bem informado, quer seja completamente ignorante.
Um conjunto de estudos empíricos referidos por Brennan mostra que, em matéria de política, os cidadãos são
muitíssimo ignorantes. Como explicar esta situação?
De acordo com o autor, a situação é explicada por um fenómeno a que os economistas chamam “ignorância racional”:
“Obter informação tem um custo. […] Quando os custos esperados para adquirir informação de um certo tipo
excedem os benefícios esperados de possuir esse tipo de informação, as pessoas normalmente não se incomodam a
obter a informação” (Brennan, 2017: 51).
Se o meu voto individual nada ou quase nada altera, por que razão deveria investir tempo e recursos a informar-me
para votar? O que parece carecer de explicação não é o facto de a maioria dos cidadãos ser ignorante, em matéria de
política, mas sim o facto de haver uma minoria de cidadãos tão informada.
Se a ignorância política não tivesse efeito sobre as nossas preferências políticas, se as pessoas bem e mal informadas
tivessem as mesmas opiniões políticas, a ignorância e a má informação não importariam. Mas a informação importa.
As medidas políticas que as pessoas defendem dependem do que sabem. (Brennan, 2017: 55)
O problema é que a maioria dos cidadãos tende a processar a informação de maneira enviesada e motivada, em vez de
fazê-lo racional e desapaixonadamente. Tendemos a seleccionar a informação que confirma ou sustenta as nossas
crenças preexistentes e a desprezar a que as infirma ou debilita. Em política, os cidadãos exibem — por razões que
diversos estudos empíricos revelam — uma forte necessidade de pertencer a um grupo e de se identificar com ele. É o
apelo da tribo, o território onde o hooligan desabrocha e prospera. Ora, uma vez que a democracia confere a cada um
uma parte tão escassa de poder político, este mau comportamento epistémico compensa: os cidadãos não têm qualquer
incentivo para agir de outra maneira.
3. A participação política corrompe
A participação política tende a tornar-nos piores, não melhores. (Brennan, 2017: 36)
Teóricos como Mill, no século XIX, sabiam que as pessoas tendem a estar, de um modo geral, pouco informadas sobre
história, ciências sociais e política. Esperavam, contudo, que o envolvimento na política as tornaria mais informadas,
mais racionais e, de um modo geral, mais virtuosas; e isso porque o envolvimento na política requer uma perspectiva
alargadado interesse geral e do bem comum. Acreditavam que — usando os arquétipos conceptuais de Brennan —
era possível transformar os hobbits em vulcanos. Este é o argumento da educação.
O argumento da educação é popular entre os filósofos. Mas será sólido? A sua premissa — a ideia de que o
envolvimento na política requer que as pessoas se desenvolvam uma perspectiva abrangente acerca do interesse geral
e do bem comum — é, no mínimo, controversa. Sendo assim, o ónus da prova está do lado de quem a defende. Na
ausência de forte evidência a seu favor, devemos rejeitá-lo. Ora, a evidência disponível parece mostrar que a premissa
é falsa ou, no mínimo, implausível.
O problema, respondem muitos defensores do argumento da educação, reside no facto de não ser suficiente que a
democracia seja representativa: deve ser também deliberativa. Isto é, votar não basta: para que o argumento da
educação funcione, é necessário deliberar.
Idealizada como tem sido pelos filósofos, a democracia deliberativa parece atraente. Se as pessoas fossem racionais e
virtuosas, como os filósofos as concebem, a deliberação seria sempre um caso de grande elevação espiritual, do qual
todos sairíamos a ganhar: os ignorantes seriam informados ou corrigidos, os sábios seriam perfeitamente sensatos e
iluminantes, a verdade floresceria nas verdes colinas e, no fim do dia, o bem comum teria sido servido.
Infelizmente para as boas vontades filosóficas, na realidade as coisas só muito raramente (para sermos optimistas)
funcionam assim: no debate, as pessoas manipulam e são manipuladas, iludem e deixam-se iludir. Como na guerra, no
debate político a primeira vítima tende a ser a verdade. No debate político, o importante não é saber, mas sim vencer.
A educação não parece transformar hobbits em vulcanos: o mais provável é transformá-los em hooligans. Sendo
assim, parece claramente preferível que os ignorantes permaneçam ignorantes: antes ignorante do que corrupto.
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Temos fortes razões contra encorajar mais e mais cidadãos a participar na política, a despender tempo a pensar em
política, a assistir a notícias de política. Se o empenho político tende a corromper em vez de edificar, isso é um ponto
contra ele. (Brennan, 2017: 109)
4. A política não dá poder nem a si nem a mim
A democracia capacita o colectivo, não os indivíduos. (Brennan, 2017: 37)
Pode suceder que, apesar de tender a corromper-nos, a participação na deliberação política tenha algum benefício que
supere o custo. Pode suceder que a participação na política confira, a cada um de nós, poder: poder de dar ou recusar
consentimento à governação; poder de levar a governação a reagir aos interesses de cada um; poder para aumentar a
nossa autonomia; poder de impedir os outros de nos dominar; poder para desenvolver um sentido da vida boa e da
justiça.
Nada disso, argumenta Brennan: a participação na deliberação política não confere aos cidadãos individuais poder, de
nenhum modo significativo, mas sim ao grupo. Quando as sufragistas conseguiram o direito ao voto para as mulheres,
exemplifica o autor, isso certamente deu poder às mulheres como grupo, mas não às mulheres individualmente
(excepto, claro, às que desse modo conseguiram cargos políticos).
Talvez, porém, os direitos políticos sejam de tal modo essenciais, para cada um de nós, que compense dar aos outros o
poder de tomar decisões de maneira incompetente.
Brennan pensa que não: no Capítulo 4 passa revista aos principais argumentos a favor da ideia de que a democracia
nos dá poder, para concluir que nenhum está à altura. São todos insatisfatórios. A verdade é que, faça o leitor o que
fizer, isso em nada altera aquilo que o seu governo decide fazer: o leitor, eu, cada cidadão individual não tem qualquer
poder para alterar nem a lei nem a acção governativa.
A ideia de que a democracia nos dá poder é intuitiva, mas provavelmente assenta numa falácia da divisão
despercebida. A democracia dá-nos certamente poder de um modo que as ditaduras não dão. Mas, apesar de a
democracia nos dar poder, não lhe concede poder a si, ou a mim, aos seus amigos, à sua mãe ou aos seus filhos
adultos. A democracia não dá poder a indivíduos. Retira poder aos indivíduos e, em vez disso, proporciona-o à
maioria do momento. Numa democracia, os cidadãos individuais quase não têm poder. (Brennan, 2017: 159)
5. A política não é um poema
As instituições que nos ajudam a viver juntos em paz e prosperidade são boas. As instituições que, comparadas com
as alternativas, nos dificultam isso, dão-nos poucas razões para as apoiarmos, independentemente do que simbolizam.
(Brennan, 2017: 197)
Uma classe independente de argumentos a favor da democracia é a que Brennan designa por argumentos
«semióticos». Os argumentos semióticos apelam ao poder simbólico da democracia e ao que significa dar às pessoas
iguais direitos políticos, e não a preocupações com o ser mais ou menos justa do que as alternativas, ter ou não melhor
desempenho do que elas. Partem da premissa de que todas as pessoas partilham uma igualdade moral fundamental.
O autor rejeita estes argumentos, objectando que não mostram que os direitos democráticos têm valor para os
cidadãos; e que, mesmo que aceitemos a premissa de que todas as pessoas partilham uma igualdade moral
fundamental, não somos compelidos a aceitar que dela se segue que a democracia é preferível a outras formas de
governação: saber que sistema político promove melhor a igualdade moral dos cidadãos permanece uma questão em
aberto.
6. O direito a um governo competente
A democracia com sufrágio universal incondicional concede o poder político de forma promíscua. Quando hobbits e
hooligans votam, exercem poder político sobre os outros, e isto exige uma justificação. Deve ser justificado em
comparação com sistemas alternativos. (Brennan, 2017: 199)
Em política, a maioria dos meus concidadãos é ignorante e irracional; o seu carácter moral é questionável. Apesar
disso, tem poder sobre mim: pode forçar-me a fazer coisas que não escolheria caso fosse mais bem informada,
racional e virtuosa.
O que pensaria o leitor ao dar-se conta de que está prestes a ser operado por um cirurgião incompetente ou a embarcar
num avião tripulado por um piloto incapaz? Decerto se encontra numa situação precária. Se tiver alternativa, não
hesitará, caso seja for racional, em preferi-la. Analogamente, parece injusto que cidadãos incompetentes tenham o
poder de tomar decisões a que o leitor está obrigado a submeter-se: tal como no caso dos cirurgiões e dos pilotos,
deveria haver instituições que protegessem as pessoas inocentes da incompetência alheia. Se deve submeter-se a uma
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cirurgia ou embarcar numa viagem aérea, o leitor acredita que tem o direito de depender de pessoas competentes. Por
que deveria ser diferente o caso das decisões políticas?
De um modo geral, é injusto expor as pessoas a riscos desnecessários. Isto justifica que as pessoas tenham o direito de
não ser submetidas a decisões tomadas de maneira incompetente.
As decisões políticas de alto risco são por princípio injustas, ilegítimas e não têm autoridade se forem tomadas de
modo incompetente ou de má-fé, ou por uma estrutura de tomada de decisão geralmente incompetente. (Brennan,
2017: 37, 38)
As escolhas políticas do eleitorado são impostas a todos — aos votantes minoritários, aos não-votantes, às gerações do
futuro, aos estrangeiros sem direito ao voto, etc. — e não apenas aos votantes. Na medida em que as escolhas do
eleitorado decidem a acção dos governantes, ao fazer escolhas de modo irracional, ignorante ou de má-fé, o eleitorado
não está a causar dano apenas a si mesmo, mas sim ao conjunto dos governados. Isto significa expor as pessoas a um
risco desnecessário de dano sério. Logo, conclui Brennan, se houver um modelo de participação na decisão política
que evite ou minimize de algum modo esta situação, devemos optar por eleem detrimento do modelo democrático.
7. A democracia é competente?
É, pelo menos em teoria, possível que o eleitorado democrático seja competente como órgão colectivo, mesmo que a
esmagadora maioria dos indivíduos dentro desse órgão seja incompetente em política. Por vezes, a inteligência é uma
característica emergente de um sistema de tomada de decisões. Ou seja, por vezes um sistema de tomada de decisões
pode ser competente ainda que todos — ou a maior parte dos indivíduos — dentro desse sistema sejam incompetentes
como indivíduos. (Brennan, 2017: 241)
Talvez a democracia seja como os mercados. Nenhum indivíduo é, por si só, capaz de produzir um lápis número dois a
partir do zero, exemplifica o autor; contudo, o mercado produ-los eficientemente e a baixo custo. Analogamente,
talvez a democracia seja capaz de produzir decisões mais inteligentes do que qualquer modelo alternativo — ainda
que a maioria dos eleitores democráticos seja politicamente incompetente.
Brennan cita três teoremas matemáticos a partir dos quais os teóricos políticos procuram fazer uma «defesa
epistémica» da democracia; isto é, procuram provar que a competência é uma característica que emerge do processo
de tomada de decisão democrática: o teorema do milagre da agregação, o teorema do júri de Condorcet e o teorema de
Hong-Page.
No Capítulo 7, o autor argumenta que nenhum dos três teoremas tem sucesso na defesa epistémica da democracia:
todos eles, argumenta, mostram que a democracia pode ser competente dadas certas condições; mas as condições não
são satisfeitas em nenhum dos casos.
Talvez, porém, uma defesa da democracia não possa ser bem-sucedida se for feita a partir de premissas a priori, mas,
ao contrário, possa ter sucesso se partir de premissas empíricas e a posteriori.
Brennan pensa que não: a experiência parece mostrar que a democracia só não é tão incompetente quanto a ignorância
dos eleitores justificaria que fosse porque, na realidade, entre as escolhas políticas do eleitorado e a tomada de
decisões interpõe-se um conjunto de instâncias que tendem a evitar o pior: as burocracias governamentais, os
projectos políticos dos partidos, a generalidade dos políticos, etc. Estas instâncias não são, ao contrário dos eleitores,
ignorantes e irracionais: ao contrário, tendem a reduzir a influência dos eleitores na tomada efectiva de decisão
política.
A maior parte das eleições principais continua a ser de impacto elevado, embora não tão elevado como um aluno
ingénuo do quinto ano de escolaridade poderia pensar. As eleições não decidem directamente as medidas políticas,
mas alteram de modo significativo a probabilidade de diferentes medidas políticas virem a ser postas em prática. Se
estiver correcto, temos bases presuntivas para considerar que as eleições democráticas com sufrágio universal igual
são injustas, mesmo que isto não signifique que todas as decisões que todos os agentes de governos democráticos
tomem sejam igualmente injustas. (Brennan, 2017: 281)
8. O governo dos sábios
O princípio da competência deve aplicar-se a todas as decisões governamentais individuais de alto impacto. Pode
ocorrer que o eleitorado aja de forma incompetente na maioria das eleições, mesmo que os agentes do governo
actuem muitas vezes de forma competente após as eleições. Se assim for, […] isto deixa-nos com um dilema: ou as
eleições ainda se qualificam como sendo de impacto elevado, caso em que o princípio da competência nos diz que
devemos preferir presuntivamente a epistocracia à democracia, ou não se qualificam como sendo de alto impacto.
Neste último caso, o princípio da competência, em si mesmo, deixar-nos-ia indiferentes entre a epistocracia e a
democracia. (Brennan, 2017: 38, 39)
Uma maneira de reduzir o risco que as más escolhas políticas representam para o conjunto dos cidadãos é limitar o
acesso ao voto. Nas democracias que conhecemos, cada eleitor tem direito a um voto. Uma forma de epistocracia
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começaria, ao invés, por assegurar que, à partida, ninguém tem direito ao voto: qualquer cidadão que pretendesse
usufruir dele teria de provar estar bem informado politicamente. Só aos cidadãos que fizessem essa prova com sucesso
seria permitido votar. Todos teriam direito à livre expressão e manifestação, mas só os mais competentes teriam direito
ao voto.
Mais: nas democracias de que temos experiência não só cada eleitor tem direito a um voto, mas ainda cada voto tem o
mesmo peso no resultado final. Uma epistocracia poderia admitir o princípio de um eleitor, um voto; mas conceder
mais do que um voto aos eleitores que mostrassem — por desenvolver certas acções, por passar em certos exames,
etc. — maior competência política.
Outra possibilidade seria manter o sufrágio universal, mas criar um “conselho epistocrático”, constituído pelos
cidadãos politicamente mais competentes, com direito a veto. O papel deste conselho epistocrático não seria iniciar a
acção, mas sim deter a acção que as escolhas patetas dos eleitores originaria, caso não fosse travada. Isto não é tão
inaceitável quanto pode parecer à primeira vista: com efeito, a generalidade dos democratas aceita que certos órgãos
exerçam a supervisão judicial das decisões democráticas. Por que não aceitaria submetê-las à supervisão política?
No entanto, qualquer forma de epistocracia, reconhece o autor, levanta uma dificuldade: como decidir o que conta
como competência política? Não é difícil decidir o que conta, por exemplo, como competência judicial: qualquer juiz
é seguramente mais competente em matéria judicial do que eu, que não sou juiz, ou mesmo do que o próprio Albert
Einstein, que também não o era. Einstein, porém, percebia mais de Física do que qualquer juiz alguma vez perceberá.
A dificuldade está em decidir em que especialistas confiar em cada caso.
Esta dificuldade é considerável, mas não insuperável: um regime epistocrático poderia ultrapassá-la com mais ou
menos sucesso. Afinal, trata-se de uma questão empírica, e não constitui, segundo Brennan, uma objecção de fundo à
epistocracia. Sucessivos ajustes poderiam ir melhorando o modelo
No século XIX, o filósofo político inglês Edmund Burke reflectiu longamente sobre a Revolução Francesa.
Preocupava-o o facto de a Revolução, ao pretender substituir o regime claramente injusto de Luís XVI por um melhor,
tenha acabado por substituí-lo por um regime ainda pior: afinal, os franceses teriam obtido um resultado melhor
mantendo o regime injusto de Luís XVI do que tendo tentado substituí-lo por algo melhor.
A ideia básica a reter da reflexão de Burke sobre a Revolução Francesa é a seguinte: devemos ser extremamente
cautelosos quando procuramos alterar radicalmente as instituições políticas existentes. A esta ideia chamamos
«conservadorismo burkiano». Claro que se levássemos o conservadorismo burkiano às últimas consequências,
teríamos tido fracas razões para substituir as monarquias do século XIX por democracias. O conservadorismo
burkiano deve tornar-nos prudentes, mas não paralisar-nos: seja como for, teremos de recorrer à experiência e decidir,
com base nela, o que resulta e o que não resulta.
9. Inimigos cívicos
O mais lamentável na política é ela tornar-nos inimigos uns dos outros. O problema não é meramente sermos
tendenciosos ou e tribalistas, tendermos a odiar pessoas que discordam de nós apenas porque discordam. Pelo
contrário, o problema é, em primeiro lugar, a política levar-nos a relacionamentos genuinamente de oposição, e, em
segundo lugar, termos razão em ficar ressentidos com o modo como nos tratam, por a maior parte dos nossos
concidadãos tomar decisões políticas incompetentes. […] Tudo considerado, devemos querer expandir o âmbito da
sociedade civil e reduzir a esfera da política. (Brennan, 2017: 39)
A maior parte do debate político, no quotidiano, não é acerca de questões existenciais profundas, mas sim acerca de
questões triviais e insignificantes. Devemos manter o valor do ordenado mínimo ou aumentá-lo em meia-dúziade
euros? Devemos reduzir os impostos em 3 pontos percentuais ou em 3,5? Devemos aumentar o orçamento para a
educação em 0,01 % do PIB ou em 0,02 %? No entanto, estas disputas insignificantes transbordam da esfera política e
oferecem-nos boas razões para nos odiarmos fora dela.
O músico português mais ouvido em Portugal, em 2019 — segundo fontes altamente duvidosas e indignas de crédito
— foi David Carreira. O leitor, porém, supostamente acha a música de David Carreira intolerável. Prefere Mozart. A
popularidade de David Carreira em Portugal, entretanto, em nada afecta a vida do leitor: pode decidir simplesmente
não o ouvir. Suponhamos agora que submetemos ao escrutínio público a decisão acerca do que devemos ouvir: a
escolha será entre David Carreira e Ana Malhoa; Mozart nem aparecerá no boletim de voto! O leitor não voltará a
ouvir o Requiem em Re menor K626 — a não ser na mais abjecta clandestinidade. Terá, assim, todas as boas razões
para odiar não só quem votou em David Carreira, mas também quem o fez em Ana Malhoa.
Algo idêntico se passa com as decisões políticas: as escolhas são restritas. Apesar de as opções possíveis serem
muitas, as opções efectivas são poucas. Uma vez a decisão tomada, as poucas opções efectivas passam a ser apenas
uma: obrigam igualmente toda a gente. As deliberações políticas são impostas sob a ameaça de recurso à violência.
Quando alguém diz “Devia haver uma lei a exigir X” está com efeito a dizer: “Quero ameaçar as pessoas com
violência a menos que façam X”. Uma batalha política é uma batalha relativa a quem terá o poder de forçar o outro a
18/05/2020 Contra a Democracia
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submeter-se à sua vontade. (Brennan, 2017: 334)
Fora da política, é-me relativamente indiferente que o leitor tenha preferências diferentes das minhas: tolerar as suas
preferências não me impõe custos significativos. Na decisão política, contudo, são as preferências do leitor contra as
minhas: as que prevaleceram impedirão as outras.
Na sociedade civil, a maioria dos meus concidadãos são meus amigos cívicos, parte de um grande esquema
cooperativo. Uma das características repugnantes da democracia é transformar essas pessoas em ameaças ao meu
bem-estar. Os meus concidadãos exercem poder sobre mim de formas arriscadas e incompetentes. E isso torna-os
meus inimigos cívicos. (Brennan, 2017: 339)
Conclusão
Desde Platão que a democracia tem os seus críticos. E, tal como Platão, os críticos da democracia são geralmente
melhores na crítica que fazem do que nas alternativas que defendem. Penso que é o caso de Brennan. Isto não é,
todavia, surpreendente: sobre a democracia temos um conjunto muito vasto de informação, ao passo que sobre
alternativas nunca experimentadas apenas podemos especular. E, por muito informada que seja a especulação, será,
ainda assim, apenas especulação.
Churchill6 observava que o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com o eleitor
médio. Mesmo parecendo acreditar genuinamente que a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os
outros que experimentámos, permaneceu, todavia, um democrata. Churchill era, como Burke, um conservador: por
vezes, ao querermos corrigir um mal acabamos por produzir um mal maior. O menor dos males é preferível por
princípio.
Mais do que uma defesa da epistocracia, Brennan oferece uma demolição metódica, argumento a argumento, da ideia
de que a democracia é o melhor modelo possível de participação política. Qual é o modelo melhor permanece,
todavia, uma questão em aberto.
Contra a Democracia é uma obra que vale a pena ler. Rigoroso na análise, Brennan escreve de maneira clara e
agradável. A obra indica ainda uma extensa bibliografia especializada.
Artur Polónio
Notas
1. O advogado do Diabo é alguém que, no contexto de um debate, toma uma posição com a qual não concorda
necessariamente, em benefício do próprio debate ou com o propósito de explorar uma ideia ou avaliar um argumento. Desde
o século XVI até 1983, ano em que foi abolida pelo Papa João Paulo II, era prática da Igreja Católica atribuir a um Promotor
Fidei (ou «Promotor da Fé») a tarefa de procurar falhas ou lacunas num processo de canonização. O papel de Promotor da
Fé ficou popularmente conhecido como «Advogado do Diabo». ↩ 
2. Os hobbits são uma raça humanóide ficcional, criada pelo romancista J. R. R. Tolkien. ↩ 
3. Originalmente, hooligan é o adepto fanático e violento de um clube de futebol. Em Inglaterra, o fenómeno remonta ao
século XIV, tendo atingido dimensões alarmantes na segunda metade do século XX. ↩ 
4. Os vulcanos, originários do planeta ficcional Vulcano, são uma espécie humanóide extraterrestre do universo Star Trek. Os
vulcanos procuram viver segundo a lógica e a razão, e evitar a emoção. O mais famoso vulcano, interpretado pelo actor
Leonard Nimoy, é Mr. Spock. ↩ 
5. O termo «epistocracia» foi introduzido pelo filósofo contemporâneo David Estlund. ↩ 
6. Curiosamente, Churchill não foi Primeiro-Ministro eleito do Reino Unido em Maio de 1940: nessa altura, substituiu no
cargo o reservado Neville Chamberlain, sem que tivessem sido convocadas eleições gerais; e, em Julho de 1945, após a
vitória dos Aliados sobre as forças do Eixo, no desfecho da Segunda Guerra Mundial, perderá as eleições gerais para o
apagado Clement Attlee. Só em 1951 vencerá uma eleição geral. Nem sempre beneficiado pelo modelo democrático,
Churchill mostrou-se sempre, ao longo dos seis anos que durou o conflito, um intransigente defensor da democracia. ↩ 
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