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2016 Filologia Portuguesa Prof. Luiz Henrique M. Queriquelli 469.07 Q4f Queriquelli; Luis Henrique M. Filologia portuguesa / Luis Henrique M. Queriquelli: UNIASSELVI, 2016. 176 p. : il. ISBN 978-85-515-0039-2 1.Língua Portuguesa – Estudo e Ensino. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. Copyright © UNIASSELVI 2016 Elaboração: Prof. Luiz Henrique M. Queriquelli Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: III aPresentação Caro acadêmico! Este Caderno de Estudos pretende oferecer uma porta de entrada para os estudos filológicos da língua portuguesa. A filologia é uma das áreas mais an- tigas ligadas aos estudos da linguagem. Inicialmente, ela consistia no estudo de textos antigos, para fins de estabelecimento, interpretação e edição, mas na Idade Moderna os filólogos passaram a assumir também a tarefa de descre- ver e explicar o desenvolvimento histórico das línguas com base nos textos antigos. Na virada para o século XX, a filologia foi o terreno em que floresceu a linguística moderna. Hoje, os estudos filológicos compartilham o mesmo espaço que agora também é ocupado pela linguística histórica, pelos estudos variacionistas e pelos estudos de gramaticalização, embora cada abordagem difira em métodos, concepções e, eventualmente, objetos. Resumindo, isso quer dizer que, ao convidarmos você a embarcar nesta incursão pelos estudos filológicos lusófonos, em outras palavras, nós estamos convidando você a co- nhecer a história da língua portuguesa. Talvez você esteja se perguntando: por que devo estudar a história da lín- gua portuguesa? Esta é uma pergunta extremamente importante, que pode ter diferentes respostas, e é por isso que o primeiro capítulo deste caderno é dedicado a respondê-la. Você terá a oportunidade de conhecer algumas dessas possíveis respostas, mas a resposta assumida neste material caminha na seguinte direção: se não conhecermos a história da nossa língua, não te- remos condições de compreender uma série de aspectos que distinguem o português do Brasil; consequentemente, não teremos esclarecimento suficien- te para ensinar essa língua no contexto escolar brasileiro e, provavelmente, vamos reproduzir estereótipos, preconceitos e prescrições equivocadas aos nossos alunos. Essa será a tônica assumida em todo o material: este Caderno de Estudos visa a informá-lo sobre a história da língua que usamos hoje, para que você possa ensiná-la com a consciência de que ela é algo vivo e dinâmico, que está em constante mudança ao longo do tempo. Prof. Luiz Henrique M. Queriquelli IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! UNI Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI V VI VII sumário UNIDADE 1 - POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? .............................................. 1 TÓPICO 1 – UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA ............................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O ESTUDO DOS TEXTOS ANTIGOS ............................................................................................. 5 3 A LINGUÍSTICA HISTÓRICO-COMPARATISTA E O INDO-EUROPEU .................................................................................................................................. 8 4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA LÍNGUA PORTUGUESA ............................................................................................................ 14 4.1 EXEMPLOS DE MUDANÇAS POR MOTIVAÇÃO INTERNA E EXTERNA AO SISTEMA............................................................................................................. 14 4.2 DO LATIM AO PORTUGUÊS ........................................................................................................ 16 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 21 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 23 TÓPICO 2 – DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA À LINGUÍSTICA HISTÓRICA: UMA MUDANÇA DE MENTALIDADE............................................ 25 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 25 2 LIMITAÇÕES DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA ....................................................................... 25 3 A LINGUÍSTICA HISTÓRICA .......................................................................................................... 27 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 29 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 32 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 33 TÓPICO 3 – ASPECTOS HISTÓRICOS NA IDENTIDADE DA LÍNGUA DE HOJE ........................................................................................................... 35 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 35 2 A IDENTIDADE GRAMATICAL DO PORTUGUÊS BRASILEIRO E SUA HISTORICIDADE .................................................................................................................. 36 3 LÍNGUA E IDENTIDADE ..................................................................................................................36 4 IDENTIDADE GRAMATICAL E ASPECTOS DISTINTIVOS ................................................... 39 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 42 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 43 TÓPICO 4 – O DEBATE SOBRE AS ORIGENS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO ..................................................................................................................... 45 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 45 2 EVOLUCIONISTAS, CRIOULISTAS E INTERNALISTAS ......................................................... 47 3 PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS ............................................................................................... 50 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 59 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 60 VIII UNIDADE 2 - PERMANÊNCIAS E REINCIDÊNCIAS LATINAS ................................................ 61 TÓPICO 1 – VOCALISMO E ALÇAMENTO VOCÁLICO ............................................................. 63 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 63 2 VOGAIS ÁTONAS ............................................................................................................................... 63 2.1 AS VOGAIS ÁTONAS E O LATIM ............................................................................................... 66 2.2 OUTROS ASPECTOS DO VOCALISMO ..................................................................................... 71 2.2.1 Ditongos /ej/ e /ej̃/ .................................................................................................................... 71 2.2.2 Oposição entre /ɐ/ e /a/ ........................................................................................................... 73 3 ALÇAMENTO DAS VOGAIS PRETÔNICAS ................................................................................ 77 3.1 O ALÇAMENTO DAS VOGAIS PRETÔNICAS E O LATIM .................................................... 82 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 85 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 87 TÓPICO 2 – ASPECTOS DO CONSONANTISMO ......................................................................... 88 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 88 2 QUEDA DE /S/ FINAL E DESNASALIZAÇÃO ............................................................................. 88 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 94 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 95 TÓPICO 3 – ASPECTOS MORFOSSINTÁTICOS I: CLÍTICOS, PREPOSIÇÕES, CLASSES NOMINAIS E DUPLA NEGAÇÃO ............................. 96 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 96 2 PRÓCLISE DO PRONOME ÁTONO ............................................................................................... 96 3 USO DA PREPOSIÇÃO EM COM VERBOS DE MOVIMENTO .............................................. 98 4 CLASSES NOMINAIS TEMÁTICAS ............................................................................................... 100 5 NEGAÇÃO REPETITIVA .................................................................................................................... 104 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 108 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 109 TÓPICO 4 – ASPECTOS MORFOSSINTÁTICOS II: GERÚNDIO, CONDICIONAL ANALÍTICO, PARTICÍPIOS E DATIVO COM INFINITIVO ......................................................................................... 110 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 110 2 O MODO CONDICIONAL ................................................................................................................ 113 3 PARTICÍPIOS ........................................................................................................................................ 117 4 DATIVO COM INFINITIVO ............................................................................................................. 122 4.1 A CONSTRUÇÃO DE DATIVO COM INFINITIVO E O DATIUUS AUCTORIS LATINO ............................................................................................ 126 4.2 O DCI NO PORTUGUÊS ARCAICO: EVIDÊNCIA DE UMA PERMANÊNCIA SINTÁTICA? .............................................................................................. 128 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 131 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 133 UNIDADE 3 - COMO TRAZER A HISTÓRIA DA LÍNGUA PARA A SALA DE AULA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ...................................... 135 TÓPICO 1 – A LÍNGUA QUE O ESTUDANTE TRAZ PARA A ESCOLA É CARREGADA DE HISTORICIDADE ...................................................................... 137 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 137 2 HISTORICIDADE ................................................................................................................................ 137 3 A HISTORICIDADE QUE O ESTUDANTE TRAZ PARA A SALA IX DE AULA ................................................................................................................................................ 139 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 141 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 144 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 145 TÓPICO 2 – DA FONOLOGIA ATUAL ÀS PERMANÊNCIAS FÔNICAS ................................. 147 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 147 2 TRATANDO DO VOCALISMO CONSERVADOR EM SALA DE AULA ............................... 147 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 153 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................154 TÓPICO 3 – DO VERNÁCULO ATUAL ÀS PERMANÊNCIAS MORFOSSINTÁTICAS ................................................................................................... 155 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 155 2 DO USO DE EM COM VERBOS DE MOVIMENTO AO USO DE IN COM ACUSATIVO NO SISTEMA PREPOSICIONAL LATINO ......................................... 155 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 159 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 160 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 161 X 1 UNIDADE 1 POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • conhecer as origens da filologia e seu papel na compreensão da história das línguas românicas; • compreender a diferença existente entre linguística diacrônica e linguís- tica histórica, bem como a mudança de mentalidade que essa diferença representou; • reconhecer a existência de aspectos históricos na identidade da língua de hoje; • identificar as principais teses por trás do debate sobre as origens do portu- guês brasileiro. Essa unidade está organizada em quatro tópicos. Em cada um deles você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior compreensão dos temas a serem abordados. TÓPICO 1 – UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA TÓPICO 2 – DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA À LINGUÍSTICA HISTÓRICA: UMA MUDANÇA DE MENTALIDADE TÓPICO 3 – ASPECTOS HISTÓRICOS NA IDENTIDADE DA LÍNGUA DE HOJE TÓPICO 4 – O DEBATE SOBRE AS ORIGENS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO Assista ao vídeo desta unidade. 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 1 INTRODUÇÃO Desde a Antiguidade, os estudiosos da linguagem perceberam similaridades entre o latim e o grego clássicos, que não deveriam ser fruto do acaso. Entretanto, no período medieval, crenças infundadas sobre a natureza das línguas humanas obstruíram o desenvolvimento dos estudos sobre a gênese e a mudança linguística. Uma dessas crenças, por exemplo, muito disseminada na escolástica cristã, era a de que o latim derivava diretamente do grego – o que veremos não ser verdade – e de que este derivava diretamente do hebraico, que seria supostamente a língua original, cuja variedade mais antiga teria sido falada por Adão (PINTO, 2008, p. 156). Assim, forjava-se uma evolução histórica das principais línguas que formavam a base da civilização cristã. Tal linha evolutiva era conveniente, mas carecia de fundamentação factual. Com a revolução ideológica pela qual a Europa passou a partir de meados do séc. XVII (a chamada revolução científica), cresceu o interesse pelas línguas do Oriente, que passou a ser largamente explorado por conta das navegações ultramarinas. Em consequência dessa expansão do conhecimento sobre as línguas humanas pelo mundo, os estudiosos da linguagem de então se viram tentados a comparar as diversas línguas que passavam a ser descobertas pouco a pouco. A essa altura, naturalmente, tais estudiosos já tinham traçado a linha hereditária entre as línguas latinas, as línguas germânicas e outras línguas europeias. Faltavam, porém, algumas peças para fechar o quebra-cabeça. Essas peças foram finalmente encontradas e encaixadas quando o filólogo Sir William A Escolástica foi o método de pensamento dominante no ensino nas universidades medievais europeias de cerca de 1100 a 1500. Nasceu nas escolas monásticas cristãs, a fim de conciliar a fé cristã com um sistema de pensamento racional, especialmente o da filosofia grega, e colocava uma forte ênfase na dialética para ampliar o conhecimento por inferência e resolver contradições. NOTA UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 4 Jones (1746-1794) comparou o sânscrito, uma antiga língua da Índia, às línguas europeias. Sir Jones verificou que essa língua, sem dúvidas, guardava parentesco com o latim, com o grego, com o protogermânico e também com o persa, que era falado no Irã. Ao fazer tal descoberta, Sir Jones, que era sócio fundador da Royal Asiatic Society, em Londres, decidiu publicá-las em um discurso proferido numa assembleia dessa academia, em 1786. Em seu discurso, ele mostrou que as gritantes semelhanças existentes entre todas essas línguas só poderiam ter uma explicação: todas derivavam de uma mesma língua ancestral. Essa língua ancestral foi chamada de indo-europeu (ou protoindo-europeu, já que não se sabe exatamente como ela era, uma vez que não restaram registros). A descoberta desse filólogo foi a pedra fundamental da linguística histórico-comparatista. FIGURA 1 – LEGADO DE SIR WILLIAM JONES EM EXPOSIÇÃO NA ROYAL ASIATIC SOCIETY EM LONDRES FONTE: Ibbotson (2014) A Royal Asiatic Society é uma organização fundada em Londres, em 1823, com o objetivo de investigar e encorajar a investigação de assuntos da ciência, da literatura e das artes relativos à Ásia. NOTA TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 5 A Inquisição era um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, cujo objetivo era combater a heresia. Nas próximas seções deste tópico, veremos por que a filologia é tradicionalmente considerada “o estudo dos textos antigos”, veremos como a filologia participa do surgimento da linguística histórico-comparatista (e como a descoberta do idioma indo-europeu cumpre um papel decisivo nessa história) e faremos algumas considerações sobre a formação histórica da língua portuguesa. Acompanhe. 2 O ESTUDO DOS TEXTOS ANTIGOS Você deve se perguntar: por que estamos falando de linguística histórico- comparatista neste tópico que propõe explicar as origens da filologia? A resposta a esta pergunta nos leva a entender que, em última instância, a filologia era tudo o que existia até aquele momento em termos de estudos da linguagem. Portanto, ser um estudioso das línguas naquela época era o mesmo que ser um filólogo. Mas o que fazia um filólogo? Como dissemos na apresentação deste Caderno de Estudos, inicialmente, a filologia consistia no estudo de textos antigos, para fins de estabelecimento, interpretação e edição, mas na Idade Moderna os filólogos passaram a assumir também a tarefa de descrever e explicar o desenvolvimento histórico das línguas com base nos textos antigos. Por isso, uma definição comum dada à filologia é a de “estudo dos textos antigos”. Mas, como você já deve ter se dado conta, a abrangência da filologia é muito maior do que isso e variou ao longo do tempo. Vamos entender um pouco o que é estabelecimento, interpretação e edição de textos antigos. Estabelecer um texto antigo significa organizá-lo, a partir do confronto de manuscritos, comentários ou edições antigas, a fim de oferecer aos leitores e estudiosos do momento atual uma versão o mais completa e fidedigna possível. Esse é um trabalho extremamente difícil, minucioso e técnico, pois a situação de muitos textos antigos é, não raras vezes, caótica. Há textos dos quais só sobraram fragmentos, devido à censura da Inquisição. Há textos quase ilegíveis, por conta da deterioração ocorrida com o tempo. Há textos fragmentados cujas lacunas foram emendadas por outros autores, e nesse caso o filólogo tem o trabalho hercúleo de identificar o que é texto original e o que são emendas falsárias. De modo semelhante,em edições antigas, muitos NOTA UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 6 Liofilização ou criodessecação é um processo de desidratação usado para conservar livros muito antigos. As folhas são congeladas sob vácuo e o gelo formado é sublimado. Dessa forma, a folha não se desfaz quando manuseada. FIGURA 2 - RESTAURAÇÃO DE UM LIVRO LIOFILIZADO NO ARQUIVO HISTÓRICO DE COLÔNIA, ALEMANHA FONTE: Spekking (2011) A interpretação de textos antigos, por parte do filólogo, passa principalmente pelas notas e paratextos que complementam o estabelecimento de um texto. Os paratextos envolvem introduções, prefácios, apêndices, estudos complementares etc. que acompanham o texto estabelecido numa edição crítica. A natureza das notas é muito diversa: qualquer tipo de esclarecimento que o comentador (ou exegeta) julgue apropriado para guiar o leitor do seu tempo cabe nas notas, e isso envolve desde comentários de cunho linguístico até explicações relativas ao estilo do autor, editores se sentiam no direito de “corrigir” o texto original, alterando aquilo que julgavam erros gramaticais ou vícios de estilo etc. Nesse caso, o confronto de edições, manuscritos e comentários pode levar o filólogo a desvendar o que foi adulterado e estabelecer o texto plenamente. NOTA TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 7 Liofilização ou criodessecação é um processo de desidratação usado para conservar livros muito antigos. As folhas são congeladas sob vácuo e o gelo formado é sublimado. Dessa forma, a folha não se desfaz quando manuseada. Um pequeno exemplo desse tipo de diferença são as abreviaturas usadas tanto por escribas quanto pelas primeiras casas editoras quando se chegava ao final de uma linha, no limite da “mancha da página” (aquele espaço recoberto pelo texto numa página). Existia um sem-número de convenções abreviatórias usadas para que a mancha ficasse perfeitamente justificada. A figura a seguir mostra um dicionário de abreviaturas latinas usadas por escribas e editores antigos. à sua biografia, ao gênero no qual o texto se enquadra, a subtextos pretendidos pelo autor no seu contexto histórico, entre outras inúmeras possibilidades. A edição de textos antigos, por fim, é o trabalho final, posterior ou concomitante ao estabelecimento e à interpretação. Envolve editar de fato o texto, isto é, prepará-lo para ser publicado, definindo-o com base em critérios científicos. Entre os muitos desafios envolvidos no trabalho de edição está a transcrição do texto, por exemplo. As convenções alfabéticas e ortográficas variaram muito ao longo da história, e isso se apresenta como um problema ao editor-filólogo. Tanto os escribas antigos ou medievais quanto os editores dos tempos da Prensa de Gutenberg dispunham de convenções diagramatórias significativamente diferentes das atuais. NOTA UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 8 Agora que você pôde entender um pouco do que é a filologia enquanto estudo dos textos antigos, vamos voltar a falar sobre como a filologia propiciou o surgimento da linguística histórico-comparatista e sobre as consequências desse acontecimento. 3 A LINGUÍSTICA HISTÓRICO-COMPARATISTA E O INDO-EUROPEU Conforme dissemos antes, a descoberta do filólogo Sir William Jones foi a pedra fundamental da linguística histórico-comparatista. Num famoso trecho do já mencionado discurso em que seus achados foram anunciados, fica clara a fascinação que o estudioso sentiu ao perceber os elos que ligam as línguas do Velho Mundo e do Oriente: O sânscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais extraordinariamente refinado do que ambos. Mantém, todavia, com estas duas línguas tão grande afinidade, tanto nas raízes verbais quanto nas formas gramaticais, que não é possível tratar-se do produto do acaso. É tão forte essa afinidade que qualquer filólogo que examine o sânscrito, FIGURA 3 - DICIONÁRIO DE ABREVIATURAS LATINAS USADAS POR ESCRIBAS E EDITORES ANTIGOS Fonte: O autor (2016) TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 9 o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três provieram de uma fonte comum, a qual talvez já não exista. Razão idêntica, embora menos evidente, há para supor que o gótico e o celta tiveram a mesma origem que o sânscrito. (JONES, 1788 apud ROBINS, 1983, p. 107). Essa constatação abriu o caminho para que o termo “indo-europeu” fosse cunhado, em 1813, pelo polímata inglês Thomas Young. Mais do que isso, esse marco da filologia, que até então monopolizava os estudos da linguagem, fez nascer a ciência que dominaria essa área do conhecimento, a linguística, relegando para a filologia um campo de ação mais limitado. Como observam Gonçalves e Basso (2010, p. 13): O século XIX foi o período em que uma série de filólogos desenvolveu gramáticas comparativas entre várias línguas indo-europeias, entre eles Rasmus Rask, Jakob Grimm, Franz Bopp, August Schlegel, Wilhelm von Humboldt e August Schleicher. Trata-se do primeiro capítulo da história da linguística moderna, que viria a culminar em abordagens cada vez mais cientificizantes, como a dos chamados neogramáticos do final do século, que abriram caminho para o estruturalismo no início do século XX. Mais tarde, quando Saussure fundaria definitivamente a linguística moderna, estabelecendo a divisão entre análise sincrônica e análise diacrônica, a filologia, além de continuar sendo reconhecida como “o estudo dos textos antigos”, passou a se confundir com a disciplina “história da língua” e com a chamada “linguística diacrônica”, mas nunca mais foi reconhecida como a ciência da linguagem em sentido amplo, pois essa atribuição se tornou exclusiva da linguística. Polímata é um indivíduo que estuda ou que conhece muitas ciências, isto é, é uma pessoa cujo conhecimento não está restrito a uma única área. NOTA UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 10 Você estudará esse assunto com mais profundidade na disciplina de Linguística Aplicada à Língua Portuguesa, mas desde já é importante saber que fazer uma análise sincrônica de uma língua é olhar para esta língua e buscar entender como ela funciona em um específico momento histórico, independente de como ela foi antes e de como ela será ou seria depois; ou seja, é fazer uma fotografia daquela língua; e fazer uma análise diacrônica de uma língua, ao contrário da análise sincrônica, é justamente olhar para a evolução dessa língua no tempo, a fim de encontrar explicações para os processos que a levaram a ser como ela é em determinado momento histórico; ou seja, é fazer um filme daquela língua. Por exemplo, se fizermos uma análise sincrônica do português brasileiro contemporâneo, encontraremos a forma pronominal você (com variantes como cê e ocê). Se olharmos, contudo, para a diacronia, veremos que essa forma derivou da expressão de tratamento de deferência vossa mercê, que se transformou sucessivamente em vossemecê, vosmecê, vancê e você. Com o pontapé dado por Sir William Jones, outros filólogos aprofundaram os estudos sobre as línguas indo-europeias, com destaque para Rasmus Rask, Jakob Grimm, Franz Bopp, August Schlegel, Wilhelm von Humboldt e August Schleicher, nomes já destacados por Gonçalves e Basso (2010, p. 13), na citação feita acima, além de Hermann Osthoff e Karl Brugmann. Entre as contribuições mais relevantes desses comparativistas, podemos destacar: 1. as investigações sobre mudanças fonéticas das línguas indo-europeias, como as Leis de Grimm; e 2. as tentativas de reconstrução do protoindo-europeu, como a de August von Schleicher, que inclusive escreveu textos nessa língua. Eis alguns exemplos das leis que Jakob Grimm (1822) propôs para desvendar o caminhodas mudanças do protoindo-europeu (PIE) para suas línguas derivadas: Consoantes oclusivas surdas do PIE e/ou das línguas mais antigas da família passam a fricativas surdas nas línguas germânicas, como em p → f, t → θ. Consoantes oclusivas sonoras do PIE e/ou das línguas mais antigas da família passam a oclusivas surdas, como em b → p, d → t. Consoantes oclusivas aspiradas sonoras do PIE e/ou das línguas mais antigas da família tornam-se oclusivas sonoras, como em bh → b e dh → d. IMPORTANT E TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 11 Ao descrever determinados sons como “oclusivas surdas”, “fricativas surdas”, “oclusivas sonoras”, “oclusivas aspiradas”, “oclusivas sonoras”, estamos usando uma nomenclatura fonética que baseia essa descrição no ponto de articulação e no modo como os sons são produzidos no nosso aparelho fonador. Essas descrições, especificamente, fazem referência ao modo. Por exemplo, “oclusivas” (também chamadas de plosivas) são aquelas consoantes que soam quando nossa boca fecha a passagem do ar (oclusão) e em seguida o som sai explodindo (por isso, plosivas). “Surdo” ou “sonoro” diz respeito ao fato de as cordas vocais vibrarem ou não na produção do som, respectivamente. Fricativas são aquelas consoantes que soam quando o ar passa raspando (fazendo fricção). Tais leis se aplicariam a casos como os seguintes: d → t: PIE *dékm(t) “dez”, latim decem, grego antigo déka, sânscrito daśan → inglês ten, alemão zehn, pronunciado [tze:n]. p → f: PIE *póds “pé”, latim pēs, grego antigo poús, sânscrito pāda→inglês foot, alemão Fuss. bh→b: PIE *bhréhter “irmão”, sânscrito bhrātŗ→inglês brother, alemão Bruder. A descoberta de leis como essas, o cotejamento de registros de línguas de todo o mundo que pouco a pouco se tornavam mais acessíveis, a ampliação da compreensão sobre a natureza, o funcionamento e a mudança das línguas humanas, e a mudança de mentalidade quanto ao tratamento delas – pouco a pouco menos imbuído de preconceitos e mais objetivo – fizeram com que a compreensão que se tinha sobre o desenvolvimento histórico das línguas naturais mudasse completamente. Nas décadas seguintes, os filólogos puderam identificar os ramos mais antigos da família indo-europeia, como o anatólico, surgido por volta de 2000 a.C.; o indo-iraniano, por volta de 1400 a.C.; e o grego, por volta de 1300 a.C. Com base nesse conjunto de descobertas, estima-se que o PIE tenha sido falado provavelmente antes de 2500 a.C. NOTA UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 12 A ideia de “ramos” remete à metáfora de uma árvore. Essa metáfora foi proposta pelo já citado August von Schleicher, na obra “Compêndio da gramática comparativa de línguas indo-europeias”, de 1862, onde ele elaborou a teoria da árvore genealógica (Stammbau Theorie). Assim como se fala em ramos, também se fala em tronco. O indo-europeu, a propósito, é considerado um tronco. E, caso você esteja se perguntando, ele não é o único existente no mundo. Há outros troncos linguísticos, como o semítico, o sino-tibetano e o altaico. Mais de dois séculos após o início dos estudos comparatistas sobre o tronco indo-europeu, hoje já temos uma visão muito completa sobre o desenvolvimento desse tronco, conhecemos em detalhes muitas de suas ramificações e sabemos da história delas, tanto da sua história interna (a história das suas mudanças estruturais, independentemente das influências sociais, geográficas etc.) quanto da sua história externa (a história dos fatores externos à estrutura da língua, as mudanças sociais, guerras, colonizações, migrações etc. que motivaram a mudança linguística). A filologia indo-europeia – sem demérito para os estudos dos demais troncos linguísticos – foi talvez o grande motor que fez avançar a ciência das línguas naturais. Alguns dos grandes gênios que nos legaram o arcabouço conceitual da linguística moderna, como Saussure, Meillet e Humboldt, beberam diretamente dessa fonte. A imagem a seguir traz uma visão geral do tronco indo-europeu, com todas as suas ramificações e línguas conhecidas, tanto aquelas ainda em uso quando aquelas já extintas. NOTA TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 13 FIGURA 4 - TRONCO INDO-EUROPEU FONTE: O’Neill (2014) Para visualizar com maior clareza o Tronco Indoeuropeu, acesse a trilha da disciplina de Filologia Portuguesa. Se, por um lado, não podemos falar em filologia sem abordar o desenvolvimento da filologia indo-europeia, por outro, é necessário reconhecer que nosso foco neste material não é explorar exaustivamente a história do tronco indo-europeu, mas sim a história de uma língua específica nesse tronco, a língua portuguesa. Acima de tudo, nossa preocupação é fazer com que esse conhecimento histórico lhe dê condições de ser um professor mais completo e consciente acerca da formação da nossa língua, a fim de formar estudantes aptos a usar diferentes ATENCAO UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 14 variedades e registros do português brasileiro, com proficiência e adequação aos diferentes contextos. Isto posto, passamos ao próximo tópico, que oferecerá um breve panorama da formação da língua portuguesa. 4. CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA LÍNGUA PORTUGUESA Você certamente já ouviu falar que o português veio do latim e agora sabe que ambos descendem do indo-europeu. Se você voltar e der uma olhada naquela árvore que recém-apresentamos, verá que o latim descende mais especificamente do itálico, uma língua indo-europeia falada na Península Itálica antes de o latim surgir e imperar na região. Da mesma forma, verá que o português descende mais especificamente não do latim, mas do romance – no caso, do romance ibérico. Mas como essas línguas surgiram umas das outras? O que acontece para que elas mudem? Quando sabemos que uma nova língua surge? Essas são perguntas centrais para esta disciplina, e vamos respondê-las aos poucos. Há pouco falamos que uma língua tem uma história interna e uma história externa, lembra-se? Pois bem. A história interna mostra como as regras estruturais da língua foram mudando, e o sistema foi se reorganizando. Essas mudanças estruturais podem acontecer motivadas por possibilidades inerentes ao próprio sistema, ou motivadas por fatores externos que induzem ajustes na estrutura da língua. Muitas vezes podem acontecer por ambas as motivações, isto é, já existe uma motivação interna para a mudança e, além disso, alguma motivação externa “dá mais uma ajudinha” para a mudança acontecer. 4.1 EXEMPLOS DE MUDANÇAS POR MOTIVAÇÃO INTERNA E EXTERNA AO SISTEMA Antes de prosseguirmos com a nossa brevíssima história da formação da língua portuguesa, é válido dar alguns exemplos práticos de como essas mudanças internas acontecem de acordo com cada motivação. Vamos falar primeiro sobre uma mudança no latim de motivação estritamente estrutural. Assim como ainda acontece no português brasileiro (PB), no latim arcaico (falado entre os séculos II e V a.C.), havia uma tendência a se apagar o som nasal em final de palavra. Por exemplo, assim como no PB muitas vezes dizemos viage[viaʒi] ao invés de viagem, home [ɔmi] ao invés de homem, também em latim arcaico se dizia, por exemplo, sella ao invés de sellam, équa ao invés de equam, Deciu ao invés de Decium, Fortunatu ao invés de Fortunatum, plurima ao invés de plurimam, pane ao invés de panem, permissūm ao invés de permissū, diem ao invés de die (WALLACE, 2005). A questão é que, em latim, esse -m final era extremamente TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 15 significativo: ele indicava que aquela palavra era um objeto direto numa sentença, e a sua ausência podia mudar o sentido da frase, fazendo com que aquela palavra fosse compreendida como um sujeito, ou um advérbio,por exemplo. Durante alguns séculos, esse fenômeno foi algo pontual, que não afetava o sistema da língua como um todo, porém, alguns séculos mais tarde, esse fenômeno se tornou mais e mais regular, e fez com que a língua tivesse que se reorganizar. Por causa dessa, entre outras motivações internas na língua latina, hoje nossa língua é uma analítica, em que a ordem das palavras é fundamental para o significado: temos que dizer “o estudante está lendo o livro”, pois, se dissermos “estudante o está livro o lendo”, a frase ficará incompreensível. Em latim, que era uma língua sintética (pois a palavra sintetizava nela mesma sua função sintática), a ordem das palavras na frase era mais livre. Agora, um exemplo de mudança por motivação externa. A Península Ibérica, onde estão Espanha e Portugal, passou por cerca de sete séculos de domínio dos árabes (os mouros), do séc. VIII ao séc. XV. O contato da língua árabe com o romance ibérico (aquela língua da qual derivaria o português) deixou muitas marcas, sobretudo no léxico (no vocabulário da língua). O artigo definido do árabe é a forma al; por isso, todas as palavras iniciadas por al- em português são de origem árabe, já que se lexicalizaram na nossa língua incluindo o artigo no radical. Exemplos são: alface, alfavaca, alfaiate, alfândega, albergue, alecrim, almoço (que é uma arabização do latino admorsus), almoxarife, almanaque, alambrado, entre muitos outros. Muitas vezes, o /l/ do artigo al caía por motivações fonológicas, reduzindo-o apenas a /a/. Por isso temos, na língua, vocábulos como açafrão, acelga, acém, açougue, açúcar, azar, azeite, azeitona, azul, azulejo, atabaque, ataúde, amálgama, andaime, andaluz, anil, anta, arraia, arraial, arroba, arroz etc. Mas, engana-se quem pensa que a influência árabe ficou apenas no inventário lexical da língua. O grande influxo de léxico árabe na língua acabou forçando mudanças estruturais nela, particularmente na morfologia e na prosódia. “Sabemos que a maioria dos vocábulos terminados em /i/ tônico, ou ainda /im/ ou /il/, são influências árabes” (SILVA, 1996, p. 150). Por exemplo: javali, anil, cantil, covil, alecrim, carmesim, cetim, gergelim, jasmim. Na morfologia, isso fez com que surgisse uma quarta classe nominal na nossa língua além das outras três herdadas do latim (as de tema em a, o e e); muitas vezes essa classe é chamada de atemática. Na prosódia, isso motivou a criação de um novo padrão acentual. O acento natural do romance ibérico recaía sobre a penúltima sílaba, como é ainda hoje na nossa língua na maioria dos vocábulos – isso explica por que não colocamos um acento gráfico numa palavra quando o acento dela está na penúltima sílaba (como em palavra, casa, parede etc.). Entretanto, a influência árabe fez surgir uma nova regra para palavras terminadas em /i/ ou /l/, nas quais o acento natural recai sobre a última sílaba. Por isso não colocamos acento gráfico nas palavras mencionadas acima, pois ao lê-las reconhecemos que o acento naturalmente está na última sílaba – prova de que se trata de uma regra prosódica. UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 16 4.2 DO LATIM AO PORTUGUÊS Se o português é uma língua latina, o que aconteceu do latim ao português? Para responder a essa pergunta é conveniente voltar para uma outra pergunta que fizemos anteriormente: quando sabemos que uma nova língua surgiu? De antemão, podemos afirmar que, em geral, o surgimento de uma nova língua é algo muito mais político do que linguístico. Reconhece-se que uma nova língua existe quando as pessoas (em geral, os governos) afirmam que uma nova língua está sendo falada. Na Península Itálica, por exemplo, a língua falada na região do Lácio (ou Latio, de onde vem o termo latim) nada mais era do que um dialeto do itálico, que coexistia com outros dialetos dessa língua, como o piceno, o umbro e o osco. Portanto, em determinado momento, embora tivessem uma identidade gramatical própria, um léxico próprio etc., o latim, o piceno, o umbro e o osco nada mais eram do que dialetos do itálico. À medida que os latinos, com a ascensão de Roma, foram ganhando poder e prestígio sobre território italiano, eles também ganharam coragem para afirmar que a variedade do itálico que eles falavam não era só um dialeto, mas era uma língua: a língua latina – isso aconteceu por volta do séc. VII a.C. Algo muito parecido aconteceu com o português. Ao longo da expansão do Império Romano, o latim foi levado para muitas regiões da Europa e nelas imposto. Uma dessas regiões foi a Ibéria. Ali, antes da chegada dos latinos, falavam-se diferentes línguas indo-europeias, entre elas, línguas celtas, variedades de grego e o basco. Depois de algum tempo de domínio romano, os ibéricos aceitaram a imposição do latim. Obviamente, o latim falado ali não era o mesmo falado em Roma, sobretudo não era o mesmo falado pela elite romana. Imagine que era um latim falado pelos soldados (muito diferente do latim falado pelos senadores romanos) e, ainda por cima, cheio de influências das línguas nativas com as quais ele entrou em contato e foi influenciado. Não é à toa que os romanos faziam questão de diferenciar o latim falado em Roma (o que eles chamavam de latine loqui) do latim falado nas colônias (o que eles chamavam de romaniceloqui). Esse termo, romaniceloqui (algo como “o falar dos românicos”), era de certa forma pejorativo entre os romanos: significava o jeito (errado) como os colonos falavam. A propósito, o termo romance, usado para designar as línguas que derivaram do latim nas diversas regiões colonizadas pelos romanos, vem de romanice (pronunciado românice), resultado da síncope (da queda) do i no meio da palavra. NOTA TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 17 Uma das provas de que esse latim falado na Ibéria não era o mesmo falado em Roma são as camadas (ou estratos) que o compunham: a base gramatical dele e a maior parte do léxico, isto é, seu substrato (o estrato que está por baixo, na base), é a língua do colonizador, o latim; apesar disso, permaneciam muitos vocábulos das línguas nativas e certamente resquícios estruturais delas, na morfologia e em eventuais construções sintáticas; essas permanências compunham o seu superstrato (o estrato que está por cima, na superfície). O quadro a seguir mostra um pouco do que restou desse superstrato oriundo das línguas pré-românicas: QUADRO 1 – PERMANÊNCIAS MORFOLÓGICAS E LEXICAIS DAS LÍNGUAS DOS POVOS PRÉ- ROMANOS Contribuições linguísticas do basco: Sufixos –rro / -rra (como em bezerro, cachorro, piçarra, bizarro, guitarra), -rdo / -rda (como em esquerdo, palavra suplantou a latina sinônima sinister), barro, nava (que quer dizer “depressão”, e que entra no topônimo Navarra), Tagus (que deu Tejo), lausiae (que deu lousa), arrugia (que deu arroio, palavra que significava antes “galeria das minas”), antropônimos Sancho / Sanches, Gimeno / Gimenes, Urraca. Contribuições linguísticas do celta: Sufixo -essu> -és (em Algés, Arbués), briga e dunum “fortaleza”, palavras que entraram na composição dos topônimos Conímbriga> Coimbra, Lugdunum> Lião, Vinodunum> Verdun, carrus> carro, carruca> charrua, por importação francesa, substituindo-se a palavra latina aratrum, manteiga, bragas “roupa branca” (e, por etimologia popular barriguilha, formado a partir de braguilha), sagum> saio / saia, camisa, cogula “veste sacerdotal”, brio, caminho, légua, caballus> cavalo, que suplantou o latim equus, preservado no português como o feminino égua, gato, bico, cabana, cerveja, trado, lança, cumba “vale”, no topônimo Santa Comba Dão (em que deve ter havido uma reinterpretação de comba como colomba, donde o “santa”), cambiare> cambiar, que em alguns casos suplantou a palavra latina correspondente mutare, basium> beijo e basiare> beijar. Contribuições linguísticasdo grego: No léxico, podemos citar os itens: púrpura, governar, tomilho, golpe, greda, cima, gesso, escola, igreja, bodega, bispo, Ângelo, blasfêmia e blasfemar, batizar, cada, monarquia, drama, mecânica. Não são aqui mencionados os termos técnicos de que o grego abasteceu abundantemente o português, por não terem entrado para a língua neste período histórico. Fonte: Castilho (2009, p. 16) Após a queda do Império Romano do Ocidente, no séc. V d.C., o poder político que garantia a manutenção do latim em todo o território colonizado (a chamada România) desapareceu, e pouco a pouco os romances das mais diversas regiões foram desenvolvendo de forma autônoma e diversa, tornando-se línguas diferentes. Foi exatamente o que aconteceu com o romance ibérico. UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 18 O fim da ingerência romana na Ibéria fez com que o romance ibérico fosse se desenvolvendo de forma autônoma e, de certa forma, “descontrolada”, justamente pela ausência de poderes políticos que garantissem a manutenção de uma língua- padrão. Isso acelerou a mudança linguística. Do séc. V, quando cai o Império Romano do Ocidente, até o séc. XII, quando surge a língua portuguesa, muita coisa aconteceu. Os ibéricos não passaram sete séculos em paz falando o romance ibérico como eles bem quisessem. Muito pelo contrário: foram sete séculos de guerra e submissão a novos conquistadores: primeiro os bárbaros e depois os árabes. Esse novo período de submissão a novos conquistadores também deixou marcas na língua. Acima, já demos alguns exemplos de permanências árabes no português. Agora, oferecemos alguns exemplos de permanências germânicas: QUADRO 2 – PERMANÊNCIAS GERMÂNICAS Substantivos comuns: Elmo, orgulho, aleive, laverca, sabão, burgo, guerra (que suplantou o latim bellum), brasa, trégua, luva, espora, albergue, fralda, coifa, feudo, embaixada, rico, branco, bruno, guisa “maneira”, donde guisado “disposto, arranjado”, parra, ufano, íngreme, aio, aleive (donde aleivosia, “calúnia”), ganso, bramar, guardar, roubar, gastar, britar, agasalhar, gabar-se, guarir e guarecer “curar”, sufixo -engo (avoengo, realengo, solarengo, abadengo), sufixo -ardo (bastardo). Substantivos próprios: Os nomes próprios germânicos compunham-se de elementos significativos, tais como Wulf “lobo, força”, Mir e Mil “glória”, Rigo e Riz “poder”, donde Ruderigo>Rodrigo, Gunths “espada, valor guerreiro”. Esses elementos aparecem em Teodulfo, Rodolfo, Gondemir “célebre na luta”, Argemil, Teodorigo, Godo, Godinho, Alvarenga, Ramiro, Elvira, Fernando, Afonso, Gondomar, Wilhelm>Guilherme, Rugerius>Rogério, Viliati>Guilhade. Topônimos: Vimaranis>Guimarães, Fafiães, Atiães, Ermegilde, Ramilde, Resende, Álvaro e Alvarenga, Ataíde, Baião, Borgonha, Brandão, Brito, Burgo, Guedes, Guiães, Lobão, Melo, Ourique, Gomes / Gomide, Gonçalo, Gonçalves, Gouveia, Gradim, Teles, Valdemir, Vera, Esposende, Godói. Muitos desses topônimos transformaram-se em antropônimos. Fonte: Castilho (2009, p. 20) Talvez você esteja se perguntando: se foi assim, por que os ibéricos não passaram a falar alemão ou árabe, assim como tinham passado a falar latim antes? A chave para responder a essa questão está na religião: o cristianismo já tinha se difundido pela România quando o Império caiu, e a língua do cristianismo era o latim, incluindo aí todas as variedades de latim, inclusive o latim “caipira” dos românicos. Os cristãos ibéricos resistiram bravamente à imposição das religiões bárbaras e do islamismo árabe, e a língua era uma parte central dessa resistência. Passar a falar a língua dos pagãos era como abandonar suas crenças. TÓPICO 1 | UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA FILOLOGIA 19 Os cristãos ibéricos criaram núcleos de resistência na forma de pequenos reinos espalhados principalmente pelo norte da península e, aos poucos, foram expulsando os árabes do território. Essa expulsão progressiva ficou conhecida como as Guerras de Reconquista. Com o avançar da Reconquista, por volta do séc. X, o Reino de Castela despontou como uma das potências da região. Como você pode imaginar, assim como tinha acontecido mais de um milênio antes na Península Itálica, quando os latinos, sentindo-se poderosos, declararam que falavam latim, também na Ibéria os castelhanos decidiram que no Reino de Castela se falava castelhano. E assim surgiu o castelhano. Outra potência ibérica surgida também por volta do séc. X era o Reino de Leão, que ficava no noroeste da península, na região conhecida como Galícia. Naturalmente, ao se verem poderosos, os leoneses decidiram que falavam a língua galega. Naquele momento, Portugal era apenas um condado do Reino de Leão, chamado Condado Portucalense, por conta do porto que o dava fama, o mesmo que dá nome hoje à Cidade do Porto. Tudo ia muito bem no Condado Portucalense até que, no séc. XII, algumas coisas mudaram. Depois da morte do Conde D. Henrique, em 1112, sua viúva, Teresa de Leão, assumiu o governo do condado até que seu filho, Afonso Henriques, atingisse a maioridade. O problema é que a conduta de Teresa não agradou à corte e tampouco ao seu filho Afonso. Além de cometer certas arbitrariedades ultrajantes, Teresa mantinha relações afetivas com um fidalgo galego chamado Fernão Peres. Assim, aos 14 anos, Afonso Henriques resolveu se rebelar contra a sua mãe, contra a ingerência dos galegos (os leoneses), contra a ingerência dos espanhóis (os castelhanos) e naturalmente contra a ameaça ainda presente dos mouros. Ele então reuniu um exército e, com sucesso, venceu as batalhas que travou contra todos os seus adversários. Orgulhoso de seus feitos e agora cheio de poder, Afonso Henriques decidiu que o Condado Portucalense não seria mais um condado do Reino de Leão e passaria a ser um reino independente. Estava fundado então o Reino de Portugal, e, naturalmente, esse reino tinha que ter sua própria língua: estava fundada a língua portuguesa. Obviamente, quando os latinos declararam a existência do latim, quando os castelhanos declararam a existência do castelhano, os leoneses, a do galego, e os portucalenses, a do português, seus respectivos dialetos já tinham sofrido inúmeras mudanças e já tinham ganhado uma identidade linguística própria, o que permitia que seus falantes as sentissem como línguas distintas de fato. Isso nos leva a concluir que o surgimento de novas línguas passa tanto pela mudança linguística propriamente quanto pela mudança política da comunidade que fala uma determinada língua. Esses processos raramente são totalmente concomitantes e coincidentes entre si – geralmente, a mudança linguística ocorre antes, lentamente, silenciosamente, imperceptivelmente, até que surja a situação política propícia para que uma nova língua seja declarada. UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 20 O português brasileiro já se distanciou muito, linguisticamente falando, do português europeu. Mais cedo ou mais tarde, dependendo dos desdobramentos políticos por que passarmos, é muito provável que as pessoas passem a se referir a uma língua brasileira. Isso, a propósito, já acontece em softwares e em muitos formulários eletrônicos na internet. Do latim ao português muitas mudanças linguísticas se processaram, e veremos com mais detalhes algumas delas ao longo deste material. Algumas já foram mencionadas aqui: • na passagem para o romance, o latim deixou de ser uma língua sintética, por conta de erosões fonéticas responsáveis por apagar as marcas morfológicas que sustentavam a sintaxe latina, e assim o sistema românico se reorganizou em uma sintaxe analítica; • a língua sofreu profundas mudanças no léxico (no vocabulário), principalmente por conta do contato com outras línguas: primeiro, as línguas nativas dos povos colonizados (no caso da Ibéria, línguas como o basco, o grego e o celta), depois, aslínguas dos colonizadores pós-romanos (no caso da Ibéria, os bárbaros e os mouros). Além disso, tendências para mudanças que já estavam prefiguradas internamente no sistema da língua latina também foram se manifestando, e a língua foi mudando naturalmente, como já explicamos acima no exemplo do apagamento das nasais finais. Havia muitas outras tendências inscritas no que chamamos de “deriva da língua” (SAPIR, 1921, p. 160), e você conhecerá algumas delas nas próximas unidades. IMPORTANT E 21 Neste tópico você viu que: Neste tópico você aprendeu que inicialmente a filologia consistia no estudo de textos antigos, para fins de estabelecimento, interpretação e edição, mas na Idade Moderna os filólogos passaram a assumir também a tarefa de descrever e explicar o desenvolvimento histórico das línguas com base nos textos antigos. Com a revolução ideológica pela qual a Europa passou a partir de meados do séc. XVII (a chamada revolução científica), cresceu o interesse pelas línguas do Oriente, que passou a ser largamente explorado por conta das navegações ultramarinas. Em consequência dessa expansão do conhecimento sobre as línguas humanas pelo mundo, os estudiosos da linguagem de então se viram tentados a comparar as diversas línguas que passavam a ser descobertas pouco a pouco. • Estabelecer um texto antigo significa organizá-lo, a partir do confronto de manuscritos, comentários ou edições antigas, a fim de oferecer aos leitores e estudiosos do momento atual uma versão o mais completa e fidedigna possível. A interpretação de textos antigos, por parte do filólogo, passa principalmente pelas notas e paratextos que complementam o estabelecimento de um texto. A edição de textos antigos é o trabalho final, posterior ou concomitante ao estabelecimento e à interpretação. Envolve editar de fato o texto, isto é, prepará- lo para ser publicado, definindo-o com base em critérios científicos. • Mais de dois séculos após o início dos estudos comparatistas sobre o tronco indo-europeu, hoje já temos uma visão muito completa sobre o desenvolvimento desse tronco, conhecemos em detalhes muitas de suas ramificações e sabemos da história delas, tanto da sua história interna (a história das suas mudanças estruturais, independentemente das influências sociais, geográficas etc.) quanto da sua história externa (a história dos fatores externos à estrutura da língua, as mudanças sociais, guerras, colonizações, migrações etc. que motivaram a mudança linguística). A filologia indo-europeia foi talvez o grande motor que fez avançar a ciência das línguas naturais. Alguns dos grandes gênios que nos legaram o arcabouço conceitual da linguística moderna, como Saussure, Meillet e Humboldt, beberam diretamente dessa fonte. • O surgimento de novas línguas passa tanto pela mudança linguística propriamente quando pela mudança política da comunidade que fala uma determinada língua, e esses processos raramente são totalmente concomitantes e coincidentes entre si – geralmente, a mudança linguística ocorre antes, lentamente, silenciosamente, imperceptivelmente, até que surja a situação política propícia para que uma nova língua seja declarada. O português brasileiro já se distanciou muito, linguisticamente falando, do português europeu. Mais cedo ou mais tarde, dependendo dos desdobramentos políticos por que passarmos, é muito provável que as pessoas passem a se referir a uma língua brasileira. Isso, a propósito, já acontece em softwares e em muitos formulários eletrônicos na internet. RESUMO DO TÓPICO 1 22 • Na passagem para o romance, o latim deixou de ser uma língua sintética, por conta de erosões fonéticas responsáveis por apagar as marcas morfológicas que sustentavam a sintaxe latina, e assim o sistema românico se reorganizou em uma sintaxe analítica. A língua sofreu profundas mudanças no léxico (no vocabulário), principalmente por conta do contato com outras línguas: primeiro, as línguas nativas dos povos colonizados (no caso da Ibéria, línguas como o basco, o grego e o celta), depois, as línguas dos colonizadores pós-romanos (no caso da Ibéria, os bárbaros e os mouros). 23 Leia o texto a seguir para responder à questão: Os estudos dos períodos anteriores ao século XIX eram muito esparsos e baseados em suposições muitas vezes infundadas, como a de que o latim derivava diretamente do grego, e este diretamente do hebraico, a suposta língua original cujo dialeto mais antigo Adão teria falado. Aos poucos, as hipóteses que ligavam o latim e o grego ao hebraico foram sendo descartadas, em grande parte devido ao interesse crescente pelas línguas do Oriente, que passaram a ser mais bem conhecidas pelo Ocidente europeu em virtude dos contatos crescentes entre os povos, derivados de um trânsito comercial e colonialista mais intenso, acirrado pelos movimentos expansionistas europeus. Muitos estudiosos, principalmente aqueles que participaram dos estudos linguístico- comparativos entre o século XIX e começo do século XX, descobriram semelhanças também entre diversas línguas da Europa, organizando essas línguas em famílias linguísticas, que, por sua vez, também eram aparentadas entre si. Exemplos mais comuns são justamente as línguas românicas, como o francês, o espanhol, o italiano, o romeno, o português etc., cujo percurso do latim até seu estado moderno foi documentado através dos mais diversos tipos de texto (políticos, literários, jurídicos etc.), e também as línguas germânicas, como o inglês, o holandês, o alemão, o islandês, o dinamarquês etc., que descendem de uma língua chamada de protogermânico. Fonte: GONÇALVES, Rodrigo Tadeu; BASSO, Renato Miguel. História da Língua. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2010. p. 12. A partir desta leitura, julgue as afirmações a seguir: I. A revolução ideológica pela qual a Europa passou a partir de meados do séc. XVII, as navegações ultramarinas e a consequente expansão do conhecimento sobre as línguas humanas pelo mundo fizeram com que a compreensão sobre a natureza e a mudança das línguas humanas mudasse, dando origem aos estudos filológicos modernos. II. A filologia pode ser compreendida como “o estudo dos textos antigos”, pois inicialmente ela consistia no estudo de textos antigos, para fins de estabelecimento, interpretação e edição, embora na Idade Moderna os filólogos tenham passado a assumir também a tarefa de descrever e explicar o desenvolvimento histórico das línguas com base nos textos antigos. III. Os estudos indo-europeus, além de serem um marco da filologia, fizeram nascer a ciência que dominaria os estudos da linguagem, a linguística, relegando para a filologia um campo de ação mais limitado. IV. A história do latim ao surgimento do português pode ser resumida nos seguintes estágios: latim vulgar (levados pelos soldados à Ibéria) > romance ibérico (com influências germânicas e árabes) > elevação do romance ibérico falado no Condado Portucalense à condição de língua quando esse condado se torna o Reino de Portugal. AUTOATIVIDADE 24 É correto apenas o que se afirma em: a. I e II. b. I, II e IV. c. I, III e IV. d. Todas as afirmações estão corretas. 25 TÓPICO 2 DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA À LINGUÍSTICA HISTÓRICA: UMA MUDANÇA DE MENTALIDADE UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Até aqui, já vimos que as línguas têm o que se chama de história interna e história externa; já vimos que as línguas podem ser analisadas na sincronia ou na diacronia; e já vimos que a filologia, depois de um certo momento, passou a ser confundida com a disciplina história da língua e com a chamada linguística diacrônica. Atualmente, entretanto, existe uma diferença sensível entre o que se convencionou chamar de linguística diacrônica (e a filologia se situa nesse âmbito) e o que se convencionou chamar de linguística histórica. Talvez você esteja se perguntando:ora, se eu aprendi que a linguística diacrônica olha para o desenvolvimento de uma língua de um ponto de vista histórico, analisando sua formação ao longo do tempo, linguística diacrônica e linguística histórica não seriam a mesma coisa? Teoricamente sim, porém na prática existe um debate, de viés teórico-ideológico, acerca dessas duas terminologias, sendo que de fato essa diferença terminológica revela uma mudança de mentalidade ocorrida no último século. Vamos entender melhor que mudança de mentalidade é essa. 2 LIMITAÇÕES DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA Desde o séc. XVII até meados do séc. XX, muitos filólogos – mais tarde usando princípios da linguística diacrônica – produziram muitas gramáticas históricas, sobretudo das línguas modernas. Essas gramáticas – verdade seja dita – supervalorizavam a história interna das línguas e davam pouca importância para sua história externa. Essa subvalorização da história externa, no fundo, revelava uma compreensão limitada sobre o modo como os fatores sociais são determinantes no condicionamento da mudança das línguas. Assim, muitas vezes, a filologia orientada pela linguística diacrônica podia até ser competente em descrever as mudanças de uma língua no plano histórico, mas era incapaz de explicá-las por ter uma compreensão limitada sobre como a interação entre os fatores linguísticos e sociais converge para a variação e a mudança das línguas. Apenas para citar um exemplo do que estamos tratando aqui, na Gramática do Português Antigo, de Joseph Huber, uma obra de excelência na área dos estudos romanistas, publicada em 1933, seu autor dedica, em meio a 420 páginas, apenas UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 26 20 páginas a uma seção intitulada “História externa da língua portuguesa”, reservando todo o restante da obra à sua história interna. Não bastasse essa evidente desproporção, o próprio ato de se abordar a história externa numa seção à parte é sintomático, já que, como veremos, não há muito sentido em separar uma da outra. Além disso, o tipo de “história externa” tradicionalmente feita, caricaturalmente falando, era uma história de reis e rainhas, de colonizados e colonizadores, de migrações e expansões territoriais. Para dar uma amostra daquilo a que estamos nos referindo, transcrevemos aqui o início da referida seção da obra de Joseph Huber (1986 [1933], p. 17): O português – que, fora da República Portuguesa, ainda hoje se fala na província espanhola da Galiza, situada ao norte de Portugal, e, como português oceânico, em territórios ultramarinos, por exemplo no Brasil, nas ilhas cabo-verdianas, na ilha de S. Tomé, na Guiné portuguesa (cf. a este respeito Leite de Vasconcellos, Esquisse d'une dialectologie portugaise, Paris, 1901) – proveio, como as restantes línguas românicas, da língua romana corrente. A história da língua portuguesa começa, portanto, com a romanização da Península Ibérica. Hoje já não é possível acompanhar o processo da romanização em pormenor, nem sequer em todos os seus traços fundamentais. De uma maneira geral, podemos dizer (cf. Gerland, in G Grdr. I2, 429) que na romanização da Península Ibérica – Portugal, compartilhava, naquela época, o destino da Espanha, a qual foi constituída como província romana em 197 – se podem distinguir duas épocas principais. A primeira situa-se no tempo da República, desde as Guerras Púnicas até à constituição do domínio de Augusto, e é essencialmente um período de conquista guerreira. Somente com o Imperador Augusto é que as três províncias, Tarraconense, Lusitânia e Bética, nos surgem quase subjugadas, não possuindo, contudo, a Lusitânia os limites do Portugal de hoje. Por sua vez, a segunda época – durante os séculos do Império a pode ser considerada uma época da assimilação pacífica. A Península Ibérica, devido à, riqueza do solo, ao comércio e à navegação com ele ligada, era para Roma da maior importância. O país também fornecia numerosos soldados, e este tráfego militar não foi de pouca importância para a romanização. Esta deu mais um passo quando, em 74, Vespasiano concedeu o direito de cidadania a todas as cidades hispânicas. Se a Lusitânia, no ano 72 a.C., ainda era uma parte da província romana da Hispânia Ulterior, no ano 27 a.C. passou a constituir uma província imperial à parte (Provincia Emeritensis), tendo como capital Augusta Emerita (hoje Mérida). O imperador Constantino dividiu as três antigas províncias em sete novas; nesta divisão, a Lusitânia estava limitada a norte pelo Douro, a sul e a ocidente pelo mar. Sobre a romanização da Península Ibérica, cf. especialmente Harri Meier, Beiträge, 1930, pp. 88-97. Os aspectos tratados por Huber são de fato muito importantes para a compreensão da formação dialetológica do romance ibérico. Mas perceba que, nem nesse trecho citado nem em qualquer outro dentro de toda a seção sobre história externa, há qualquer menção a socioletos (variedades faladas por diferentes grupos sociais), ou sobre o prestígio ou desprestígio de determinadas variedades linguísticas dentro do contexto social, entre outras questões relevantes. Por esse tipo de postura tradicionalmente assumida pela filologia românica orientada pela TÓPICO 2 | DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA À LINGUÍSTICA HISTÓRICA: UMA MUDANÇA DE MENTALIDADE 27 linguística diacrônica, pesquisadores como Mattos e Silva (2008, p. 41) afirmam que há uma “linguística diacrônica ou associal” e uma “linguística histórica sócio- histórica”, sendo esta última um desenvolvimento posterior, motivada por uma mudança de paradigma epistemológico na análise das línguas humanas. Pelo que expusemos até aqui, faz sentido que Mattos e Silva chamem a linguística diacrônica de “associal”, embora nos pareça um termo um tanto pesado. Mas o que seria essa linguística histórica sócio-histórica? 3 A LINGUÍSTICA HISTÓRICA No Curso de Linguística Geral, uma obra seminal para a consolidação da linguística moderna, Saussure (1977 [1917]) faz uma série de insinuações relativas à dinâmica das transformações no plano diacrônico, mas trata timidamente dos fatores sociais nelas envolvidos. Essas insinuações, porém, receberam uma formulação teórica bem-acabada ao final da década de 60, quando Labov, junto de Weinreich e Herzog, publicou os Fundamentos Empíricos para uma Teoria da Mudança Linguística. A abordagem variacionista, fundada por esse trabalho, deu uma nova orientação para os estudos históricos sobre a linguagem, apresentando uma alternativa à abordagem histórico-comparatista em voga desde os séculos XVIII e XIX, que se mostrava cada vez mais incompatível com o estado da arte dos estudos linguísticos. Não é à toa que tal trabalho foi preparado para ser apresentado num simpósio intitulado “Direções para a Linguística Histórica”, organizado na Universidade do Texas em abril de 1966. É importante lembrar que, pouco tempo depois que o Curso de Linguística Geral veio à baila, Meillet, em 1921, em resposta a Saussure (de quem fora aluno), havia publicado Linguística Histórica e Linguística Geral, obra em que tentou reconciliar sincronia e diacronia, colocando o fator social da linguagem como elo e reforçando noções como a de gramaticalização, que ele mesmo já havia formulado uma década antes, em A Evolução das Formas Gramaticais, de 1912. Coelho et al. (2010, p. 15) propõem uma síntese das diferenças entre Meillet e Saussure oportuna para o problema que buscamos contextualizar aqui: Comparando brevemente as ideias de Meillet e de Saussure, podemos dizer que (i) Saussure opõe linguística interna (aquela que se ocupa estritamente da língua) e linguística externa (aquela que se ocupa das relações entre a língua e fatores extralinguísticos), e Meillet as associa; (ii) Saussure distingue abordagem sincrônica (estrutural) de abordagem diacrônica (histórica), e Meillet as une. Em suma,enquanto Saussure elabora um modelo abstrato da langue (sistema de signos), Meillet busca explicar a estrutura linguística por meio de fatores históricos e sociais. Essas ideias de Meillet, como vamos ver adiante, serão retomadas por Labov décadas depois. Até a década de 60, a Linguística norte-americana não havia considerado o tipo de abordagem proposto por Meillet, o que veio a mudar com as proposições UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 28 de Labov. Influenciados por Meillet, cujos trabalhos salientavam a natureza histórica e social da linguagem, Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968], p. 274) mostraram que, no plano sincrônico, as línguas estão sempre em variação, numa “[...] heterogeneidade ordenada, que é a característica fundamental da linguagem”. Eventualmente, as variações podem resultar em mudanças na língua, as quais só aparecem no plano diacrônico, sendo que o fator decisivo para as motivar não é outro senão o fator social. Disso, surgem implicações mútuas tanto para os estudos sincrônicos como para os estudos diacrônicos. Observando a ação de fatores sociais sobre a língua, passa a ser possível compreender variações no presente e mudanças no curso do tempo de forma interligada. Como observaram Coelho et al. (2010, p. 22), [...] ao eleger como objeto de estudo a estrutura e a evolução linguística, Labov rompe com a relação estabelecida por Saussure entre estrutura e sincronia de um lado e história evolutiva e diacronia de outro, aproximando igualmente a sincronia e a diacronia às noções de estrutura e funcionamento da língua. Castro (1991, p. 14) partilha do mesmo posicionamento e acrescenta: A entrada dos conceitos e métodos da sociolinguística para o campo habitualmente ocupado pela linguística histórica tem vantagens mútuas: a sociolinguística procura, e encontra, nos estados passados de uma língua os dados que podem validar ou invalidar as hipóteses que formulou para explicar uma mudança atualmente em curso; e a linguística histórica tem a possibilidade, que até aqui lhe escapava, de ver processarem-se perante os seus olhos mudanças análogas àquelas que se deram no passado, e que apenas podia conjecturar. Uma das maiores provas do quão frutífero pode ser esse casamento entre linguística histórica e sociolinguística, que rende dados e ferramentas potenciais para ambas as partes, são os estudos de gramaticalização. Tal campo, também influenciado por Meillet, vem ampliando, pelo menos desde a década de 70, a compreensão dos processos de mudança linguística sob uma perspectiva pancrônica (considerando sincronia e diacronia em conjunto). Atualmente, estudos sociolinguisticamente orientados vêm comparando os modos pelos quais elementos em aparente processo de gramaticalização são usados por falantes em situações reais nas quais seu comportamento é moldado (NEVALAINEN; PALANDER-COLLIN, 2011, p. 119). Se esta interseção dos dois campos procede, o estudo da história social ganha, então, um novo significado para quem pretende compreender o português. Nas próximas unidades deste material você terá exemplos mais concretos de como fatores linguísticos e sociais convergem no direcionamento da mudança linguística. Entretanto, para que você tenha uma ideia mais clara de como isso acontece, podemos mencionar um breve exemplo de como a linguística diacrônica e a linguística histórica tratam diferentemente um mesmo fato linguístico. TÓPICO 2 | DA LINGUÍSTICA DIACRÔNICA À LINGUÍSTICA HISTÓRICA: UMA MUDANÇA DE MENTALIDADE 29 Pense nas possibilidades existentes para a realização (a pronúncia) do fonema /r/ em português brasileiro em final de sílaba (pense em como se pronunciam as palavras porque e amor, por exemplo). Entre as diferentes possibilidades que lhe devem ter vindo à mente – além do erre forte [R] (o erre de radialistas), do erre tap [ɾ] (o erre do paulistano ou do gaúcho), da fricativa velar [ɣ] (o erre do carioca), da fricativa glotal [h] (o erre do litoral catarinense) – está o retroflexo [ɻ], também chamado de “r caipira”. Se um linguista diacrônico fosse descrever a história dessa variante no PB, provavelmente ele diria que, no período da colonização, essa forma entrou na língua por conta do contato com línguas indígenas, especialmente o tupinambá e o guarani (já que essa realização do fonema /r/ não existe no português europeu e em nenhuma outra língua latina), e não iria muito além disso. Já um linguista histórico, além de mostrar que essa forma entrou via contato com línguas indígenas brasileiras, iria adiante, mostrando que essa forma é típica de dialetos rurais, que historicamente ela não foi frequente em dialetos urbanos, e que carrega um estigma social por isso, o que condiciona historicamente a sua presença na língua, vinculando-se a outros aspectos, como a escolaridade dos falantes, sua etnicidade, suas comunidades de fala, seu local de residência etc., além de condicionantes estritamente linguísticos. Nossa abordagem da história e da formação da língua portuguesa e, em particular, do português brasileiro, daqui em diante, será tanto quanto possível vinculada à perspectiva da linguística histórica, que dá igual importância tanto à história interna e à história externa da língua. LEITURA COMPLEMENTAR O texto a seguir é um fragmento do seguinte artigo: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Teorias da mudança linguística e a sua relação com a(s) história(s) da(s) língua(s). Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto, v. 3, n. 1, 2008, p. 39-53. O que é a mudança linguística? Quais as teorias contemporâneas sobre a mudança das línguas no tempo? Rosa Virgínia Mattos e Silva A mudança das línguas no tempo é o cerne da Linguística Histórica. Já que os principais testemunhos para o passado linguístico são os textos escritos – inscrições, manuscritos, textos impressos –, são apropriadas metáforas para definir a Linguística Histórica, como a de Roger Lass, “Ouvir o inaudível” (1997, p. 45), e a mais conhecida, de William Labov, “a arte de fazer o melhor uso dos maus dados” (1982, p. 20). Metáforas que, em parte, podem delimitar o que seja o trabalho nesse campo da Linguística. Ao longo de seu tempo histórico, as línguas mudam: há mudanças UNIDADE 1 | POR QUE ESTUDAR A HISTÓRIA DA LÍNGUA ? 30 fônicas, mórficas, sintáticas e léxico-semânticas. Contudo, a história de uma língua, como a história dos homens, como disse Michel Foucault, “não é uma duração: é uma multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos outros” (2000 [1972], p. 293). Se assim é, a linearidade temporal nas línguas deve ser revista e a “multiplicidade de tempos que se emaranham” deve ser levada em conta por aquele que faz Linguística Histórica. Uma lei do tipo neogramático, em que X (no tempo A) > Y (no tempo B), não se sustenta, porque entre A e B múltiplos fatores condicionantes podem ter efeitos inesperados sobre a mudança de X>Y. Pode-se conceber a mudança linguística no sentido estrito e no sentido lato. No primeiro caso, pode ser trabalhada em duas orientações: a) a Linguística Histórica sócio-histórica; b) a Linguística Diacrônica ou associal. Quanto à Linguística Histórica no sentido lato, trabalha com dados datados e localizados, como qualquer Linguística que trabalhe com corpus, como a Dialetologia e a Sociolinguística laboviana, a Etnolinguística e mesmo a teoria da conversação, desde que use corpora. Inspirei-me para essa dicotomia – sentido lato e estrito – em Eugênio Coseriu que, em Sincronia, Diacronia e História diz que a “descrição e a história da língua situam-se no nível histórico da linguagem e constituem juntas a Linguística Histórica” (1979, p. 236) e no clássico Empirical Foundations for a Theoryof Language Change (1968), em que Uriel Weinreich, estudioso do contato linguístico, Marvin Herzog, dialetólogo,
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