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A LUDICIDADE E A PEDAGOGIA DO BRINCAR Simone Costa Moreira O brincar: um direito assegurado às crianças Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer a criança como um sujeito de direitos. � Analisar o brincar como um direito fundamental à infância. � Identificar as políticas públicas que garantem o brincar. Introdução Essencial ao entendimento da ludicidade e da pedagogia do brincar é a concepção do brincar como um direito das crianças. Observando a história e a atualidade, é possível afirmar que nem sempre ser criança significou ou significa ter infância. O direito à infância está garantido em leis e acordos internacionais, mas ainda se encontra longe de estar assegurado a todas as crianças. Sendo o brincar parte essencial do direito à infância, pode-se dizer que também este precisa ser fortalecido para que as crianças vivam essa fase da vida em plenitude. Neste capítulo, você terá acesso a informações importantes para a compreensão da criança como sujeito de direitos, além de refletir acerca do brincar como um direito fundamental para a existência da infância e, também, identificar algumas das principais políticas públicas que ga- rantem o brincar na atualidade. A criança: um sujeito de direitos Nesta seção, você obterá elementos para o reconhecimento da criança como um sujeito de direitos. Apesar de, atualmente, a compreensão da criança e da infância estar bem consolidada – ao menos do ponto de vista legal –, como será possível verificar na Constituição Brasileira de 1988, torna-se importante destacar que essa compreensão nem sempre foi entendida assim. Sobre ser criança e ter infância Se crianças existiram desde sempre, desde o primeiro ser humano, pode-se dizer o mesmo em relação à infância? Criança e infância são conceitos sócio- -históricos que devem ser entendidos em relação aos seus contextos, mas não são sinônimos. A ideia de infância é uma construção social da modernidade. Do período da Antiguidade à Idade Moderna, a infância não existia enquanto objeto discursivo, e nem a criança existia como figura social e cultural. Para com- preender a emergência desses conceitos, é preciso compreender a construção histórica da família e as mudanças nas relações de produção nesse período (CORAZZA, 2002). Durante boa parte da história humana, a infância foi vista simplesmente como um período transitório, ou seja, aqueles que sobrevivessem a ela entrariam no mundo adulto. De acordo com Andrade (2010, p. 48-49): Na Idade Média, as crianças pequenas não tinham função social antes de trabalharem, sendo alta a taxa de mortalidade infantil. Aquelas que eram pobres, assim que cresciam eram inseridas no mundo do trabalho, sem qual- quer diferenciação entre adultos e crianças. As crianças nobres tinham seus educadores e eram vistas como miniaturas dos adultos e deveriam ser educadas para o futuro de transição para a vida adulta. Até o século XVII, a vida em família era vivida em público, não havia privacidade e tudo ocorria no movimento de uma vida coletiva, inclusive com as funções educativas ficando a cargo do grupo como um todo. O século XVIII foi um marco, pois as famílias começaram a se transformar, isto é, passou a haver um sentimento de família e a busca por privacidade (ANDRADE, 2010). Os moldes de família burguesa começaram a surgir: o modelo capitalista de produção e a instauração da propriedade privada deram aos pais responsa- bilidade pela criança, além de ela passar a ser herdeira de riquezas, misérias e valores sociais. A criança foi nascendo socialmente, considerada como um ser dependente, frágil, ignorante e vazio, que precisava ser treinado para ser um bom cidadão, cabendo à família a responsabilidade pela sua socialização. A burguesia faz surgir um novo sentido de família, apresentando o modelo nuclear como hegemônico e trazendo também um novo “sentimento de infância”, colocan- do a criança numa condição diferente do adulto (ANDRADE, 2010, p. 50). O brincar: um direito assegurado às crianças24 A concepção de infância na contemporaneidade – que preza pelo cuidado e pela proteção infantil – foi construída historicamente a partir do fim do século XVI, ou seja, reconhecer a infância nem sempre foi o mesmo que ter afeição pela criança – tal reconhecimento correspondia à consciência da particularidade infantil, o que distinguia essencialmente a criança do adulto (ARIÈS, 1981). O interesse pela infância na modernidade inaugura a preocupação com a criança e com a sua formação. Havia um discurso que apresentava a infância como uma fase do desenvolvimento humano em que a criança, frágil e de- pendente do adulto, deveria receber educação e disciplina. Paradoxalmente, o reconhecimento da criança na família trouxe consigo a perda de sua liberdade. Ou seja, junto ao reconhecimento da infância, foram inauguradas teorias e práticas para governá-la (ANDRADE, 2010). O filme Crianças invisíveis: a infância perdida (Itália, 2005) é uma produção encomendada pela Unicef para dar visibili- dade à diversidade da infância nos diferentes continentes, assim como para refletir e problematizar até que ponto o direito à infância está assegurado às crianças em todo o mundo. Assista ao filme por meio do link ou código a seguir. https://goo.gl/ExIGae Nos séculos XIX e XX, variadas áreas do saber construíram conhecimentos para cuidar dessa categoria, tais como: normas de higiene e cuidados, cam- panhas de amamentação, instituições de atendimento como creches e jardins da infância. Ao mesmo tempo, esses saberes e instituições destinavam-se às crianças burguesas. Entretanto, outras infâncias coexistiam, ou seja, as crianças abandonadas (em orfanatos, rodas de expostos), exploradas nas fábricas ou, ainda, privadas de condições mínimas para sua subsistência (ANDRADE, 2010). Atualmente, fala-se de crianças e infâncias – no plural – devido à existência de diferentes populações infantis. “Sendo a infância uma construção histórica e social, é impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea [...]” (FRANCO, 2002, p. 30). 25O brincar: um direito assegurado às crianças O documentário brasileiro intitulado A invenção da infância, de Liliana Sulzbach (2000), retoma os conceitos de infância e criança e, ao mesmo tempo, apresenta os contrastes das infâncias nas diferentes regiões do Brasil. Com um recorte das infâncias da década de 1990, o documentário demonstra, a partir de entrevistas com crianças que vivem em diferentes condições econômicas e culturais, que “ser criança não significa ter infância”. Para ver o documentário, acesse o link ou código a seguir. https://goo.gl/T3nPJc Percepção da criança como um sujeito de direitos De acordo com Costa (2013), sujeito de direito é diferente de sujeito. Sujeito é uma pessoa física, associada a um ser com personalidade própria. Sujeito de direito pode ser uma pessoa física, uma pessoa jurídica ou até mesmo um ente despersonalizado que se configura como um ser com direitos e deveres. Costa (2013) afirma também que um sujeito necessita de um sujeito de direito para que exista socialmente. E como isso tem relação com a criança? Vejamos um exemplo: O carro se envolveu em um acidente. O acidente possui significantes avarias materiais e lesões físicas dos ocupantes. No carro estavam um homem (40 anos), uma mulher (42 anos) e uma criança (8 anos). O homem e a mulher que estavam no carro sofreram lesões e devem permanecer no hospital por 14 dias. A criança não sofreu lesão e teve alta hospitalar. Se a criança terá alta e os pais permanecerão no hospital, quem deve retirar a criança do hospital e cuidar dela até que os pais possam reassumir os cuidados do filho? A criança é um sujeito com personalidade própria, contudo, por se tratar de um indivíduo menor de idade, na situação em que os pais se encontram impossibilitados de cuidar dela, o Estado deve intervir para que se garantamos direitos da criança. Sendo a criança amparada por leis, ela é um sujeito de direito. No Brasil, como veremos no decorrer deste capítulo, a criança está amparada pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Dessa forma, o sujeito, a criança, é um sujeito de direito. O brincar: um direito assegurado às crianças26 Porém, há de se atentar para o direito da criança de participar para garantir o seu desenvolvimento e sua proteção, assim como o desenvolvimento e a proteção de outras crianças. Experiências de diversas organizações e inúmeras cidades amigas da criança demonstram benefícios de encorajar a manifestação de opiniões e a participação em tomadas de decisões das próprias crianças no que diz respeito às temáticas que lhes competem. Sobre tal assunto, Sarmento (2016, p. 13) argumenta: [...] as crianças não vivem fora do mundo social e vivem em constante in- teração com os adultos, não existe o puro olhar da visão infantil. O olhar é sempre, desde o primeiro momento, contaminado pela cultura, e essa cultura as crianças partilham com os adultos. Agora, é verdade que as crianças, por terem uma enorme plasticidade da renovação das formas e dos conteúdos, poderão propor e sugerir outros modos de ver o mundo que não aqueles que estão cristalizados nas culturas dominantes das nossas sociedades. Com isso, ressalta-se a compreensão de que ser um sujeito de direitos, também no caso das crianças, envolve a oportunidade de discutir e decidir sobre os rumos das políticas públicas que envolvem a infância, seja nas esferas global, federal, estadual, municipal ou local. Ser um sujeito de direitos não inclui apenas o direito à proteção, apesar de, sem dúvida, ele ser primordial. Crianças partícipes e autônomas são formadas a partir da experiência indi- vidual e coletiva de decidir sobre os temas que envolvem suas vidas e a vida do planeta, que é de responsabilidade de todos nós. O conceito de criança pode ser estabelecido de diferentes maneiras, conforme as perspectivas social, cultural, biológica e histórica. Diversos critérios já foram adotados ao longo da história para definir a criança. Atualmente, os pressupostos mais usuais estão relacionados à idade e são divergentes, como podemos observar no quadro a seguir: Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil) Ministério da Saúde (Brasil) Organização Mundial da Saúde Organização das Nações Unidas Até 12 anos incompletos Até 10 anos Até 10 anos Até 14 anos incompletos 27O brincar: um direito assegurado às crianças A Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde valem-se, prio- ritariamente, dos pressupostos biológicos para definir a idade da criança. A Organização das Nações Unidas utiliza uma métrica atrelada também à diver- sidade sociocultural. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que caracteriza a criança até os 12 anos, baseia-se em fatores biológicos e no contexto brasileiro. A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou um importante marco na conquista de direitos de toda a população brasileira, e, portanto, para as crianças e os adolescentes também. A Declaração dos Direitos da Criança, elaborada pela Organização das Nações Unidas, foi inserida na Constituição Federal de 1988 por meio do artigo 227, que diz: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao ado- lescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, documento on-line). O artigo sinaliza a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado, como instâncias de garantia dos direitos elencados na Constituição Federal. De acordo com Oliveira (2013, documento on-line), a referência: [...] à família explicita sua condição de esfera primeira, natural e básica de atenção, cabendo ao Estado garantir condições mínimas para que a família exerça sua função e, ao mesmo tempo, para que não recaia sobre ela toda a responsabilidade e ônus. As discussões internacionais sobre os direitos humanos foram fundamentais para a garantia do avanço da doutrina da proteção integral e para o reconhe- cimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Dando continuidade à garantia da doutrina da proteção integral de crianças e adolescente no Brasil, em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Reforçando a compreensão desses grupos sociais (crianças e adolescentes) como sujeitos em condições peculiares de desenvolvimento, o ECA garantiu o seu acesso e sua prioridade no atendimento dos serviços sociais, educacionais e de saúde. Por conta dessa mudança de concepção, de pessoas em situação irregular para sujeito de direitos, todas as crianças e os adolescentes tornam-se responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. O brincar: um direito assegurado às crianças28 No caso de não cumprimento da proteção destes, a família, o Estado e a sociedade se encontrarão em situação irregular. Analisando o contexto atual, questiona-se se esses direitos estão asse- gurados para as crianças e os adolescentes. A esse respeito, Oliveira (2013) declara que, no Brasil, não faltam leis, mas sim políticas públicas consistentes para fazer cumprir a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Brincar: um direito fundamental à infância Neste subcapítulo, você é convidado a refletir sobre o brincar como um direito fundamental à infância. Brincar como direito fundamental significa que uma criança pode ter acesso à alimentação, moradia, cuidados básicos, mas, se ela é impedida de brincar, não vive sua infância plenamente. Observando a história e a atualidade, é possível afirmar que nem sempre ser criança significa ter infância. Para que as crianças – no Brasil, pessoas de 0 a 12 anos – possam de fato usufruir a infância, muitos acordos internacionais e legislações federais e locais foram e continuam sendo elaborados. O direito à infância está garantido em leis e acordos internacionais, mas continua longe de estar assegurado a todas as crianças. Sendo o brincar parte essencial do direito à infância, pode-se dizer que também este precisa ser fortalecido para que as crianças vivam essa fase da vida em plenitude. Conforme Simiano (2014, p. 43), “[...] brincar é um direito de todas as crianças porque é vital para o seu desenvolvimento e bem-estar”. A Declara- ção Universal dos Direitos da Criança (UNICEF, 1959, documento on-line) afirma que “a criança deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras os quais deverão estar dirigidos para educação; a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover o exercício deste direito”. Além disso, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente garante como direito das crianças o brincar, a recreação, o lazer, a arte e as atividades culturais. Ambos os documentos afirmam que: [...] brincar não é “opcional” – é essencial na vida das crianças. Se as crianças vivem ao máximo e crescem para ser o melhor que podem ser: física, emo- cional, social, intelectual e esteticamente, elas precisam de oportunidades para brincar e também para lazer e descanso. Elas precisam de espaço para apenas “ser” a cada dia (THORNTON; TALBOT; FLORES, 2013, p. 20). 29O brincar: um direito assegurado às crianças Por tudo isso, brincar é parte constituinte da infância, é condição sine qua non para a sua existência. O brincar não é um comportamento obrigatório, mas é essencial para o bem-estar e a saúde. Na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (BRASIL, 1990), também constam as atividades lúdicas relacionadas à cultura – como música, dança, arte, teatro e histórias –, atividades que têm raízes nas brincadeiras infantis. A garantia do direitoà brincadeira na infância é responsabilidade de todos. Isso significa construir espaços, capacitar recursos humanos, garantir segurança, ofertar equipamentos esportivos e brinquedos, responsabilizar-se pela manutenção dos espaços e equipamentos, entre outras ações. “Os ‘espaços de brincar’ no Brasil ainda não são ideais e muitas crianças são submetidas a condições para brincar que não atendem às suas necessidades, devido à falta de segurança, ao ambiente inadequado e aos desafios espaciais” (THORNTON; TALBOT; FLORES, 2013, p. 24). Portanto, estratégias precisam ser definidas em todas as esferas (local, municipal, regional, federal, global) para garantir recursos e agentes capacitados como facilitadores do brincar para e com as crianças. Campos e Rosemberg (2009, p. 14) apresentam critérios para o trabalho de creches, tendo como princípio básico o respeito à criança. Neste exemplo, selecionamos os critérios que dizem respeito especificamente ao brincar. Nossas crianças têm direito à brincadeira — Os brinquedos estão disponíveis às crianças em todos os momentos. — Os brinquedos são guardados em locais de livre acesso às crianças. — Os brinquedos são guardados com carinho, de forma organizada. — As rotinas da creche são flexíveis e reservam períodos longos para as brincadeiras livres das crianças. — As famílias recebem orientação sobre a importância das brincadeiras para o desenvolvimento infantil. — Ajudamos as crianças a aprender a guardar os brinquedos nos lugares apropriados. — As salas onde as crianças ficam estão arrumadas de forma a facilitar brincadeiras espontâneas e interativas. — Ajudamos as crianças a aprender a usar brinquedos novos. — Os adultos também propõem brincadeiras às crianças. — Os espaços externos permitem as brincadeiras das crianças. — As crianças maiores podem organizar os seus jogos de bola, inclusive futebol. O brincar: um direito assegurado às crianças30 — As meninas também participam de jogos que desenvolvem os mo- vimentos amplos: correr, jogar, pular. — Demonstramos o valor que damos às brincadeiras infantis partici- pando delas sempre que as crianças pedem. — Os adultos também acatam as brincadeiras propostas pelas crianças. As políticas públicas que garantem o brincar Aqui você identificará algumas políticas públicas que garantem o brincar, entendendo seus avanços a partir dos contextos históricos no decorrer do tempo. Você compreenderá a importância da legislação para que políticas públicas destinadas à infância sejam elaboradas e operacionalizadas. Da mesma forma, você será provocado a pensar no muito que há por fazer para que as crianças tenham os seus direitos garantidos na prática, inclusive, o direito ao brincar. A percepção da criança e do adolescente como seres em desenvolvimento no mundo moderno, como visto anteriormente neste capítulo, foi resultado de um longo processo que envolveu transformações na organização social, desde o ponto de vista da esfera privada das famílias até a esfera pública do convívio social. A infância e a adolescência entendidas como categorias sociais permitiram a adoção de práticas sociais que reforçaram a formação da identidade sociocultural infantojuvenil (ARIÈS, 1981). Durante o século XX, as crianças e os adolescentes ocuparam um amplo destaque na sociedade ocidental, recebendo atenção especial das famílias e sendo motivo de interesse e preocupação por parte de especialistas de diferentes áreas e do Estado. No Brasil, a abolição da escravidão, o advento da República e o início da industrialização, ao final do século XIX, contribuíram para o surgimento de preocupações sociais. A normatização das ações direcionadas à infância pode ser verificada no processo histórico brasileiro, seja na construção de políticas públicas motivadas por concepções de prevenção e recuperação de menores em situação irregular ou na atual proteção de crianças e adolescentes como reconhecidos sujeitos de direitos (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2013). A assistência, a saúde e a educação foram validadas como opções ao enfren- tamento das problemáticas sociais, na medida em que adotaram um caráter universal, obrigatório e de responsabilidade do Estado. Durante o período de abertura democrática do país, a política de assistência social da Constituição Brasileira de 1988 foi integrada ao Sistema de Seguridade Social, configurando-se como um conjunto integrado de ações governamen- 31O brincar: um direito assegurado às crianças tais e da sociedade civil, voltadas à proteção da família, da maternidade, de todas as fases da vida; o amparo às crianças e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade social; a integração dos jovens ao mercado de trabalho e; a integração de pessoas portadoras de necessidades especiais (MENDONÇA, 2002). Já a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente possibilitou que a infância e a adolescência adquirissem status de sujeitos de direitos – re- velando uma profunda alteração em termos legislativos, culturais e conceituais para as diretrizes, políticas públicas e demais serviços de atendimento da criança e adolescência no Brasil (PEREZ; PASSONE, 2010). Dessa forma: [...] a nova política se caracterizou pela modificação da tutela jurídica, substi- tuída pelo compromisso do Estado em oferecer assistência integral, pública, gratuita e universal ao jovem segundo as necessidades de cada fase de seu ciclo de desenvolvimento (MENDONÇA, 2002, documento on-line). Paralelamente à elaboração e à implementação de políticas sociais destina- das ao atendimento à criança e ao adolescente, o período de redemocratização se caracterizou pela reforma administrativa do Estado, que descentralizou e municipalizou políticas públicas. Também, esse período institucionalizou o controle social, com a criação de conselhos e espaços públicos de interlocução e cogestão política (como os Conselhos Tutelares, os centros de defesa da criança e do adolescente, Ministério Público, Judiciário e Segurança Pública – com suas delegacias especializadas, Conselhos de Direitos, Fóruns de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes), bem como mobilizou a participação social de diversos setores da sociedade civil (PEREZ; PASSONE, 2010). Ainda, observou-se, nas últimas décadas, a entrada em cena de novos atores no atendimento às políticas sociais da infância e da juventude. Entre eles, encontram-se: nichos empresariais (por meio, especialmente, de fundações, entidades caritativas e filantrópicas), organizações não governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs), entre outros. O recente fortalecimento das organizações da sociedade civil e a discussão sobre a atuação desses atores no atendimento às políticas sociais têm revelado o caráter heterogêneo da sociedade civil como espaço de disputas de interesses e disputa dos recursos estatais destinados a essas políticas. Nesse sentido, deve-se atentar para os riscos de que ações oriundas da sociedade civil e da iniciativa privada possam deslocar a noção histórica de direitos pessoais e coletivos, conquistados na ordenação democrática da sociedade brasileira, para antigas relações sociais mediadas pela noção de caridade (PEREZ; PASSONE, 2010). O brincar: um direito assegurado às crianças32 Por que e como as políticas públicas devem preocupar-se com o brincar das crianças? As políticas públicas de atendimento à infância são essenciais para assegurar o direito ao brincar. A importância do brincar e a defesa do direito do brincar, uma vez legalmente reconhecidas, pela Constituição da República Federativa do Brasil (1988), pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº. 8069, de 1990) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – 9394, de 1996), são reavivadas por organizações como a Rede Nacional da Primeira Infância, no Brasil, e, no mundo, por entidades como a International Play Association: Promoting the Child’s Right to Play (IPA World). O Dia Internacional do Brincaré comemorado em 28 de maio por mais de 40 países, entre eles, o Brasil. O atendimento em creches e pré-escolas como um direito social das crianças se concretiza na Constituição de 1988, com o reconhecimento da Educação Infantil como dever do Estado com a Educação. […] Frente a todas essas transformações, a Educação Infantil vive um intenso processo de revisão de concepções sobre a educação de crianças em espaços coletivos, e de seleção e fortalecimento de práticas pedagógicas mediadoras de aprendizagens e do desenvolvimento das crianças (BRASIL, 2013, p. 81-82). Em 2009, foi elaborado um documento que estabelece os princípios para a Educação Infantil no Brasil: as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs), parecer do CNE/CEB n. 20/09 (BRASIL, 2009). As DCNEIs articulam-se às Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e reúnem princípios, fundamentos e procedimentos definidos pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação para orientar as políticas públicas e a elaboração, o planejamento, a execução e a avaliação de propostas pedagógicas e curriculares de Educação Infantil (BRASIL, 2010). 33O brincar: um direito assegurado às crianças Além dessas importantes normativas que são as DCNEIs, no Brasil, uma série de políticas públicas destinadas à promoção e à proteção da infância são dinamizadas por diferentes órgãos governamentais e instituições não governamentais. Em âmbito federal, existem políticas ministeriais ou inter- ministeriais que, direta ou indiretamente, asseguram o direito ao brincar. O Ministério da Educação, por exemplo, promove políticas como o Proinfância (uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação, porém, direcio- nada à reestruturação e à aquisição de equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil), o Brincar para Todos (uma ação da Secretaria de Inclusão) e a Base Nacional Comum Curricular (documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais a todos os alunos ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica). O Ministério do Esporte oferta o Programa Brincando com Esporte (atividades esportivas nos períodos de férias escolares), o Ministério da Cultura oferta os Pontos de Cultura (grupos que articulam atividades culturais em suas comunidades e redes), o Ministério do Desenvolvimento Social oferta o Programa Bolsa Família (programa de transferência de renda do governo federal que, ao exigir a frequência escolar e o acompanhamento constante da saúde das crianças como pré-condição para o recebimento do benefício, tirou milhares de crianças da situação de trabalho infantil). Entretanto, quando procuramos políticas públicas que garantam especifica- mente o brincar, é abundante o número de fundações privadas e ONGs atuando na sua promoção. À medida que encontramos políticas públicas governamentais que, indiretamente, propiciam o direito à infância e, portanto, ao brincar, ao tratar de políticas específicas para assegurar espaços, equipamentos e recursos humanos para a realização de brincadeiras e jogos, percebe-se a participação majoritária de organizações da sociedade civil. Brincar é condição para a vivência da infância e é vital. Por isso, enquanto educadores, faz-se necessário identificar quais políticas públicas estão sendo promovidas para a garantia do brincar, nas diferentes esferas (federal, estadual, municipal ou local), e, indo além, faz-se necessário promovê-las ou reforçá-las em caso de inexistência ou de sua ineficiência como um dever de cidadão. O brincar: um direito assegurado às crianças34 ANDRADE, L. B. P. Educação infantil: discurso, legislação e práticas institucionais [on- line]. São Paulo: UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. Disponível em: <http:// institutoveritas.net/livros-digitalizados.php?baixar=95>. Acesso em: 27 maio 2018. ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Decreto nº. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial, Brasília, DF, 22 nov. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 27 maio 2018. BRASIL. Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 27 maio 2018. BRASIL. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9394.htm> Acesso em: 27 maio 2018. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC, 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013- pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file> Acesso em: 27 maio 2018. BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CEB Nº.: 20/2009. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial, Brasília, 9 dez. 2009. Seção 1, p. 14. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pceb020_09. pdf>. Acesso em: 27 maio 2018. Atualmente, muitos voluntários e organizações sem fins lucrativos estão se deslocando para campos de refugiados, especialmente na Europa, com o intuito de assegurar o direito ao brincar e, consequentemente, contribuir para a garantia do direito à infância das crianças refugiadas. Conheça o exemplo da brasileira Alessandra Luiza de Moraes, criadora do “Child Rescue Project”, e descubra mais sobre os desafios da garantia do direito ao brincar às crianças de todo o mundo. Para ler a entrevista, acesse o link a seguir. https://goo.gl/Iu2CCA 35O brincar: um direito assegurado às crianças CAMPOS, M. M.; ROSEMBERG, F. Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. 6. ed. Brasília, DF: MEC, SEB, 2009. CORAZZA, S. M. Infância e educação: era uma vez, quer que eu conte outra vez? Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. COSTA, L. X. Sujeito de direito e pessoa: conceitos de igualdade? Legis Augustus, v. 4, n. 2, p. 75-87, 2013. FRANCO, M. E. W. Compreendendo a infância. Porto Alegre: Mediação, 2002. (Cadernos de Educação Infantil; 11). FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Declaração Universal dos Direitos da Criança. [S.l.]: UNICEF, 1959. 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In: QUEM está na escuta?: diálogos, reflexões e trocas de especialistas que dão vez e voz às crianças. [S.l.]: Mapa da Infância Brasileira, [2016] p.5-13. SIMIANO, M. P. Cidade amiga da criança: um estudo sobre os espaços públicos de brincadeira para a infância na cidade de Tubarão. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) -Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2014. Disponível em: <http://pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/109622_Maristella.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018. THORNTON, L.; TALBOT,J. P.; FLORES, M. O direito de brincar: guia prático para criar oportunidades lúdicas e efetivar o direito de brincar. Diadema: Maistype, 2013. UNICEF. Declaração Universal dos Direitos da Criança. 1959. Disponível em: <http://www. dhnet.org.br/direitos/sip/onu/c_a/lex41.htm>. Acesso em: 12 jun. 2018. Leitura recomendada BARBA, M. D. ‘Elas estão tão traumatizadas que mal conseguem brincar’: por que uma brasileira largou tudo para divertir crianças refugiadas. 2016. Disponível em: <http:// www.bbc.com/portuguese/internacional-36679606>. Acesso em: 27 maio 2018. O brincar: um direito assegurado às crianças36
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