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i SAMUEL MAGOJI SANDA ENSAIO SOBRE A FAMÍLIA PÓS-MODERNA MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2007 ii SAMUEL MAGOJI SANDA ENSAIO SOBRE A FAMÍLIA PÓS-MODERNA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de Mestre em Sociologia sob a orientação da Doutora Caterina Koltai. SÃO PAULO 2007 iii BANCA EXAMINADORA ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ iv DEDICATÓRIA A todos aqueles que me ajudaram direta ou indiretamente a completar esta longa, longa, jornada. v AGRADECIMENTOS A minha querida orientadora que me ajudou enormemente a começar e a terminar este mestrado. A Dra. Carmen e seus seminários de pesquisa que me que ajudaram a compartilhar coletivamente as tristezas e alegrias com outros pós- graduandos. Ao agora Dr. Adrian Ribaric, cujas aulas serviram de inspiração na elaboração desta dissertação. A Dra. Norma e suas aulas sobre emoções e obras literárias que me abriram novos horizontes. A Dra. Marinês e sua adorável mestra filha Raquel que trabalharam dias a fio para corrigir esta dissertação. A meu amigo Felipe e sua futura mestra Lú pela disposição de fazer a revisão final quando eu já não agüentava mais olhar para o computador. Aos meus pais e minha irmã que me apoiaram nesta cara empreitada. Aos meus futuros orientandos que um dia ainda farei sofrer. vi Resumo A presente tese teve como objetivo estudar, por meio de uma perspectiva interdisciplinar, a família pós-moderna, dialogando com dois filmes Casamento Grego (2002) e Um Grande Garoto (2002). O estudo consistiu de uma breve reflexão histórica sobre o papel da família desde a sua ascensão no século XIX até a atual época, em que as instituições encontram-se em crise ou desordem. Parte-se da premissa que a crise pela qual a família está passando é provocada, em parte, pela cultura narcísica que tem produzido jovens adultos que, ao colocarem o desejo como papel central em suas vidas, são incapazes de assumir responsabilidades, preferindo relacionamentos virtuais que possibilitam situações mais românticas e satisfatórias. Além disso, eles são incapazes de tomar decisões, pois vivem em constante oscilação entre atração e repulsão, esperança e temor, e preferem recorrer a supostos especialistas de relacionamento humanos. Como conseqüência, acabam por ceder o espaço público aos especialistas de organizações cívicas e a falsos políticos. Uma das soluções que aponto para atenuar a desordem instaurada na contemporaneidade é a criação de um novo projeto político capaz de criar sujeitos transformadores que possam, por meio de uma nova cultura, promover a criação de práticas que retomem o sentido dos valores iluministas e democráticos. Palavras chaves: interdisciplinar, família, desordem, narcísica, virtuais, político, humanidade. vii Abstract The present dissertation had as objective to study, through an interdisciplinary perspective, the post-modern family, rapporting with two movies My Big Fat Greek Weeding (2002) and About a Boy (2002). The reflection consisted of a brief historical reflection about the function of the family since its ascension in the 19th century until nowadays, time in which it, like the others institutions, is in crisis or disorder. I believe that this crisis that the family is passing through is provoked in part by a narcissistic culture that has been producing young adults that when setting the desire in a central role in their lives are incapables to assume responsibilities preferring virtual relationships to keep at sight more romantic and satisfactory possibilities. Besides, they are incapables to take decisions, because they live in constant oscillation between attraction and repulsion, hope and fear, preferring to appeal to the so-called specialists of human relationships, always ready to offer their services in exchange for fees. As consequence they end up leaving the public space to supposed civics organizations and false politicians. One possible solution that I show to minimize this disorder is a creation of a new political project capable of creating transforming subjects that can, through a new culture, promote the creation of practices that recover the sense of the Illuminist and democratic values. Key words: interdisciplinary, family, disorder, narcissistic, virtual, political, humanity viii Sumário Resumo Abstract Introdução ........................................................................................................ 01 Capítulo I: Sociedade e família contemporânea ............................................... 09 1.1- O mito do pai da horda: como tudo supostamente começou... ....... 11 1.2- Flashback da história da família ocidental ..................................... 14 1.3- A família moderna .......................................................................... 17 1.4- Família contemporânea .................................................................. 28 Capítulo II: O imaginário social da família ........................................................ 37 2.1- Casamento grego ........................................................................... 40 2.2- Um grande garoto ........................................................................... 49 Capítulo III: Feito a ser feito ............................................................................. 63 3.1- O sujeito do século XXI: a socialização .......................................... 65 3.2- O indivíduo autônomo e heterônimo ............................................... 69 3.3- Entre autonomia e heteronomia ..................................................... 71 3.4- O ressentimento: o novo “mal-estar” contemporâneo ..................... 74 3.5- Como criar, então este projeto político na contemporaneidade? .... 75 Considerações finais ........................................................................................ 89 Referências Bibliográficas ................................................................................ 95 1 Introdução Vivenciamos, no início de século XXI, uma época parecida com a descrita por Alvin Toffler, em A Terceira Onda (1980): terroristas fazendo jogos de morte com reféns, embaixadas em chamas, governos do mundo reduzidos à paralisia ou à imbecilidade.Diante desse cenário, o homem pós-moderno parece rumar para seu fim ao lado de seus botes salva-vidas: igreja, família e Estado. Mas será? Nas últimas décadas, a humanidade tem se desenvolvido tecnologicamente de uma maneira espantosa, desenvolvemos a clonagem, descobrimos novas formas de gerar energia, nossas produções acompanham cada vez mais nossa imaginação e quem sabe colonizaremos o espaço daqui a alguns anos. Além disso, não envelhecemos mais como nossos pais e esperamos estar próximos da cura de doenças como câncer, AIDS e Mal de Alzheimer, além de termos condições de acabar com a fome entre nós humanos. Tendo evoluído tanto tecnologicamente, porque vivemos em tempos obscuros? A resposta mais fácil e corriqueira seria responsabilizar o sistema, mas qual deles? Prefiro pensar que o mundo atravessa, mais uma vez, um momento difícil porque nos esquecemos de evoluir socialmente, ou melhor, nosesquecemos, em meio da aceleração de tempo e conhecimento, daquilo que nos torna humanos. Então, o que somos hoje? Essa parece ser uma grande questão atualmente. Em que o homo sapiens demens se tornou na pós-modernidade? Responder esta indagação, para Castoriadis, é uma missão quase impossível, pois ela gera uma infinidade de perguntas que exigem respostas bastante complexas. Uma das perguntas, feita pelo autor, é: “Qual é a parcela de todo o meu pensamento e de todas as minhas maneiras de ver as coisas e de fazer coisas que não está condicionada e co-determinada, em um grau decisivo, pela estrutura e pelas significações da minha língua 2 materna, pela organização do mundo que essa língua carrega consigo, pelo meu primeiro ambiente familiar, pela escola, por todos os faça e não faça com que freqüentemente fui assediado pelos meus amigos, pelas minhas opiniões correntes a meu redor pelos modos de fazer que me são impostos pelos inumeráveis que me cercam e assim por diante?” (Castoriadis, 1987/1992, p. 230). Foi pensando nesta pergunta essencial que me aventurei a realizar, na graduação, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O trabalho tinha como foco a família, instituição esta escolhida devido ao papel que desempenha na sociedade. Segundo Lasch (1977/1991), o papel da família é inculcar modos de pensar e de atuar que se transformam em hábitos para seus indivíduos, ou seja, ao fato de ela ser uma das grandes responsáveis pela produção e formação dos indivíduos para a vida em sociedade. Sendo que toda mudança seja macro ou micro social, cultural ou política acaba se refletindo na família, o que facilita fazer um mapa dos principais fatores que afetam a sociedade e seus membros. No TCC, o referencial teórico básico foi o apresentado pela psicanalista e historiadora Elizabeth Roudinesco no livro A família em desordem (2002). Naquela ocasião, o estudo em torno da crise da família, o enfraquecimento da função paterna e as conseqüências da tecnologização e da cultura jovem nas relações familiares foram alvo de minha investigação científica. Na época, apesar das minhas pretensões juvenis, não consegui responder à vasta pergunta acima citada. Tendo em vista a complexidade do tema, consegui, quanto muito reproduzir as descobertas de Roudinesco e de alguns outros autores. No entanto, a frase com a qual a autora termina seu livro – “a família do futuro tem que ser mais uma vez inventada” (2002/2003 p.199) – pareceu-me estar conectada à pergunta de Castoriadis e apontou novos caminhos. Foi por causa dessa suposta conexão que me motivei a empreender essa dissertação de mestrado. O resultado tornou-se possível devido às novas bibliografias encontradas nestes três anos de pós-graduação e a utilização de videologias ou mitologias pós-modernas. Essas novas ferramentas me possibilitaram, num primeiro momento, a releitura crítica do meu TCC e, num segundo momento, indicaram-me novos caminhos na minha tentativa de continuar desvendando o imaginário social pós-moderno sobre a família, a sociedade atual e 3 o tipo de indivíduo que ela produz hoje em dia e poderá vir a produzir no futuro. Um dos pontos norteadores de minha dissertação de mestrado é o texto de Freud Totem e Tabu (1914/1968), no qual o autor elabora seu mito do pai da horda que mostra como teria se dado a passagem da natureza para a cultura. Neste texto, que suscitou inúmeras polêmicas no campo das ciências sociais, Freud defende a tese de que sem referência paterna nenhuma cultura é concebível, pressuposto sem o qual fica difícil entender as críticas, justificadas ou não, feitas à família contemporânea, principalmente no que diz respeito à falência da função paterna. O mito traz como um dos seus principais elementos a proibição do incesto que tem como função simbólica diferenciar o mundo animal do mundo humano. É esta função exercida pela proibição do incesto que fez com que Roudinesco afirme que a família pode ser considerada uma instituição humana duplamente universal, pois associa um fato de cultura construído pela sociedade a um fato de natureza, inscrito nas leis da reprodução biológica. A associação entre cultura e natureza permitiu, pelo ponto de vista freudiano, a constituição da família, necessidade da civilização que possibilitou ao homem não ser privado da mulher e esta de não ser separada de seus filhos, instaurando, desse modo, o que mais tarde ele veio a chamar de “moral sexual civilizada” fundamentada na repressão pulsional necessária à manutenção dos ideais reguladores da sociedade, conjugando obrigação ao trabalho e potência do amor. As transformações que ocorreram na instituição familiar, assim como as diferentes formas de abordá-la ao longo do tempo, têm como núcleos duas grandes ordens: biológica (diferença sexual) e simbólica (proibição do incesto e outros interditos), o que me faz concordar, junto com Roudinesco, que não basta definir família por meio do ponto de vista antropológico, pois é preciso saber também qual a sua história e como se deram as mudanças que resultaram na desordem na atualidade. Tendo isto em mente, procurei um autor que pudesse me auxiliar no estudo 4 das principais mudanças históricas sofridas pela família. Durkheim foi a minha escolha devido a sua teoria da “retração familiar” desenvolvida em seu curso de 1892. Esta retração, ou melhor, contração familiar não diz respeito somente ao tamanho do grupo familiar, mas também à sua constituição e à relação com os bens, visto que as formas primitivas de família, em que as relações do grupo doméstico dependiam primeiramente da posse coletiva e sagrada, deu lugar a um novo tipo de família, fundada na propriedade privada e na designação do chefe de família que passou a ser o centro de gravidade da nova família. Nesta, o poder se deslocou das coisas para as pessoas, ou melhor, a uma pessoa em particular, o pai, que passou a concentrar tudo o que havia de moral e religioso na família. Durkheim foi o primeiro a chamar a atenção para o fato de que a diminuição da função do pai poderia gerar, num futuro próximo, indivíduos interessados em perseguir fins apenas pessoais, desembocando numa sociedade anômica. Sua percepção foi muito importante porque, de certo modo, ela anunciava a percepção de alguns autores contemporâneos, tais como Lash (1977/1991) e Lipovestky (1992), que atribuem à falência da função paterna em nossos dias, grande parte dos problemas sociais e patologias contemporâneas. Em outras palavras, a idéia de contração familiar de Durkheim faz pensar que a família, tal qual a conhecemos hoje em grande parte do mundo ocidental, constituída por pai, mãe e filhos solteiros é uma forma histórica de família criada pela Europa moderna, fruto de uma longa evolução que se estendeu por quase três séculos. Roudinesco (2002) pontua três momentos da evolução familiar. O primeiro, tradicional, vigorou durante o Antigo Regime, teria por características principais a transmissão do patrimônio paterno aos filhos após a morte do pai e os casamentos arranjados pela família. A célula familiar dessa época repousava sobre uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida à autoridade patriarcal, em que o casamento dos filhos, em geral em idade precoce, visava a manutenção ou a ampliação do patrimônio e não se consideravam as necessidades afetivas e sexuais dos noivos. 5 O segundo momento teria começado no final do século XVIII com as Revoluções Burguesas, Francesa e Industrial. Esse momento se estendeu até meados do século XX, quando começou a dar sinais de fraqueza. Esse tipo de família, denominada por Roudinesco de moderna, baseia-se no casamento fundamentado no amor romântico, na reciprocidade dos sentimentos e no reconhecimento da importância da sexualidade. O casamento burguês foi valorizando, cada vez mais, a divisão dotrabalho entre os esposos, ao mesmo tempo em que, com o passar do tempo, acabou repassando a educação dos filhos para o Estado. O terceiro tipo de família, a que se pode chamar de contemporâneo segundo Roudinesco, ou pós-moderna, segundo outros autores, foi gerada em movimentos revolucionários e da contracultura da década de 1960 e se caracterizaria pela união temporária de dois indivíduos que buscam relações íntimas ou realização sexual e pelo aumento considerável das separações. Essa família, que se apresenta desconstruída, recomposta, mono ou homo parental, parece estar sujeita a uma grande desordem, o que não significa, no entanto, que tenha atingido o nível de degradação que alguns lhe atribuem, responsabilizando- a por situações catastróficas, como “professores apunhalados, crianças estupradoras e estupradas; carros incendiados, periferias entregues ao crime e à ausência de qualquer autoridade” (ROUDINESCO, 2002, p. 10). Concentrei meu estudo no segundo e no terceiro períodos, visto que no primeiro é narrada a ascensão e a queda da família burguesa. Digo queda porque nesse período houve o controle social, cada vez mais intenso, sobre atividades antes relegadas às famílias. Foi também nesse período, século XIX, que emergiram movimentos tais como o feminismo. Já no segundo período podemos constatar a forma como as transformações do período anterior desembocaram na família pós-moderna. Após aprofundar o estudo da família moderna, debrucei-me sobre a família pós-moderna, instituição que vive num mundo de inovações incessantes que geram uma obsolescência acelerada de conhecimento e valores, em que o modo 6 encontrado pelos seus membros para sobreviver a essas rápidas transformações parece estar sendo o do prolongamento da juventude para que, assim como as mercadorias ou bens simbólicos, possam estar sempre novos e adequados aos estilos da moda. A esta postergação das atitudes que antigamente definiam a entrada na vida adulta, tais como o matrimônio e a procriação, alguns antropólogos tais como Marguilis (1998), Martín-Barbero (1998), Urresti (1998) e Feixa (2000) deram o nome de moratória social. Esta moratória, na opinião de Morin (1984), embora permita ao indivíduo ter disponíveis todos os recursos para se capacitar para a vida em sociedade, se prolongada além do necessário, pode acabar resultando num sujeito anti-social chamado jovem adulto que se recusa a se comportar como adulto e se refugia em seu mundo de eterno presente para fugir de uma realidade que vive como opressora. Considerando que ser adulto significa ter responsabilidades e envelhecer, talvez possamos afirmar que os adultos estão se tornando raros. Atualmente, vê- se com freqüência jovens adultos denominados de girlies, grups, kids adults ou parasitas solteiros, que parecem ter em comum o aspecto jovial e a mentalidade juvenil. Além disso, assemelham-se a controles remotos, não se ancorando em ninguém e em parte alguma, oscilam entre sonhos e pesadelos perdendo a noção de quando o primeiro termina e o segundo começa. Os jovens adultos não se ancoram em nada, pois vêem os compromissos a longo prazo como uma armadilha a ser evitada a qualquer preço, pois “ao se comprometerem ainda que sem entusiasmo, estarão fechando a porta a outras possibilidades românticas talvez mais satisfatórias e completas. Se você deseja relacionar-se mantenha distância; se quer usufruir do convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas abertas” (Bauman, 2003/2004, p. 10). Não por acaso os relacionamentos, segundo Bauman (2003/2004), vêm se tornando, dessa maneira, cada vez mais virtuais, parecendo inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear. Deste modo, eles permitem que a pessoa mantenha no campo de visão a tecla “deletar” usada em caso de 7 emergência. É, aliás, essa característica de transitoriedade que caracteriza a família contemporânea ou pós-moderna, fruto de divórcios, separações e recomposições conjugais. A característica de transitoriedade e outras mais são discutidas, no capítulo dois da presente dissertação, por meio de filmes. A razão pela qual utilizo as produções cinematográficas ao invés de dados estatísticos deve-se ao fato de eu acreditar, assim como Barthes (2003), que essas produções são mitos, ou seja, sistemas de valores que mostram toda a idéia de um povo a respeito do que é justiça, moralidade, estética, arte, literatura etc. Essas construções sociais cujo objetivo é realizar o desejo imemorial da humanidade de reproduzir o real têm como seu maior representante nos tempos atuais o cinema, como bem pontuou o historiador Elísio dos Santos (2000). Desde a sua invenção até nossos dias, o cinema continua sendo a manifestação artística e comercial mais popular, sendo que o número de seus espectadores não cessa de crescer, principalmente se levarmos em conta que filmes realizados para o cinema vêm encontrando outros canais de circulação como a TV aberta, TV por assinatura, vídeo, DVD e internet. Partindo deste pressuposto, estudei a família contemporânea por meio de filmes que, em função dos processos de globalização ocorridos no Ocidente, têm mostrado a imagem de uma família diferente da tradicional família burguesa, conjugal ou restrita, fundada no amor romântico e sancionada pelo casamento, na reciprocidade dos sentimentos e no desejo. Este modelo de instituição poderia ser visto de forma majoritária até décadas atrás em filmes e em livros cujas temáticas referiam-se aos sofrimentos causados por traições, separações, divórcios e crianças traumatizadas pelos conflitos familiares. A família retratada nos filmes atuais ganhou novas formas, podendo ser constituída por mães solteiras, casamentos entre indivíduos do mesmo gênero etc. Além disso, há a divisão cada vez menos clara entre as funções maternas e paternas, que acabam se mesclando. É como se encontrássemos a imagem da família em desordem, definida por Roudinesco como sendo a união temporária entre dois indivíduos em busca de relações íntimas ou satisfação sexual, 8 valorizando cada vez mais o espaço privado em detrimento do publico. Parece-me que os filmes que tratam da família pós-moderna podem, grosso modo, ser divididos em dois tipos: um que elogia as novas formas de família e outro que reflete, de forma nostálgica, a família mais clássica, ainda organizada em torno dos laços do casamento, da autoridade paterna e da velhice depositária de tradições. É o caso, a meu ver, de um dos dois filmes que escolhi trabalhar, Casamento grego (2002), que acompanha as agruras de um patriarca tradicionalista grego tentando impedir o casamento de sua filha com um noivo pós- moderno. A esse tentei opor Um grande garoto (2002), que aborda outro tipo de família, que alguns classificariam como a família da pós-modernidade, sem hierarquias, sem autoridades baseada na fraternidade e dissecada pelo discurso da especialidade. Na última parte de minha dissertação, após ter mostrado os caminhos que levaram à família pós-moderna e ter delimitado suas principais características, aventurarei-me a responder a uma parcela do desafio da pergunta lançada por Castoriadis, ou seja, “quem sou eu nos tempos atuais?”. Apoiado em considerações feitas por Castoriadis, Maturana (1993/2004), Giannotti (2004), entre outros, busquei responder a essa pergunta por meio da retomada dos conceitos castoriadianos de autonomia e heteronomia e do conceito de sociedade neomatrística de Maturana, tendo como pano de fundo a utopia de poder criar um mundo novo por meio da instituição de uma nova cultura, como proposta por Maturana, capaz de contribuir para o projeto de autonomia de Castoriadis e de um novo ser humano deliberativo e criador de projetos coletivos. 9 Capítulo I Sociedade e Família Contemporânea“A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada”. Elisabeth Roudinesco Este capítulo tem como objetivo delinear algumas características da sociedade atual e, mais especificamente, da família e do indivíduo contemporâneos. Para tanto, apresento inicialmente uma retrospectiva histórica a respeito da instituição familiar, na esperança de que as diferentes formas por ela assumida ao longo da história possam me ajudar a compreender a configuração atual da família ocidental. Ao refletirem sobre a família contemporânea, certos autores como Lash (1977/1991) e Lipovestky (1992), demonstram assumir uma postura catastrófica quando afirmam que a família ocidental, fragmentada e em crise, estaria passando por um processo inédito: o total colapso da função paterna que gera novas patologias sociais. Em oposição a esta leitura alarmista, apóio-me em Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista francesa, para discutir o tema em questão. No livro A família em desordem (2002/2003), embora Roudinesco reconheça o momento de desordem pelo qual vem passando a família ocidental burguesa e não menospreze o que tal crise pode ter de significativo e sintomático, a autora afirma não ver motivos para tanto medo, pois a família, instituição presente em diversas culturas, com hábitos sexuais e educativos diferentes daqueles que conhecemos, é universal, enquanto a crise atual é histórica e vêm se desenvolvendo desde o século XIX. 10 Convém lembrar que Lévi-Strauss, em seu texto consagrado La famille (1956), indicava que a família não só é universal, mas também tem por função, em qualquer sociedade, unir, de forma mais ou menos duradoura e socialmente aprovada, um homem e uma mulher a fim de criar uma aliança (o casamento) e uma filiação (a prole). Para tanto, é necessária a existência de duas famílias anteriores, uma pronta a fornecer um homem e a outra, uma mulher. Esse casal, por meio de seu casamento, origina uma terceira e assim sucessivamente. Dessa forma, Lévi-Strauss (1956) exige daqueles que estudam o fenômeno familiar um pensamento menos linear e mais complexo, o que significa trabalhar em dois planos: antropológico, focando a universalidade das estruturas de parentesco que enfatizam o fato de que cada família provém da união de duas famílias anteriores; e sociológico, que enfatiza a família histórica ao fazer um estudo vertical das filiações e gerações e nas continuidades e distorções entre pais e filhos, assim como na transmissão dos saberes e das atitudes que uma geração herda de outra. Qual desses caminhos trilhar e como encadeá-los? Encontrei a resposta para essas indagações no livro de Roudinesco que aponta o mito freudiano do pai da horda como ponto de partida tanto da antropologia quanto da sociologia para o estudo da família. Assim, apresento a seguir um breve resumo de Totem e Tabu (1914/1968), livro com o qual Freud inaugurou sua teoria do social e da cultura, na qual considera que o parricídio gerou a humanidade assim como as suas instituições. Totem e Tabu, texto que suscitou inúmeras polêmicas no campo das ciências sociais, é considerado fundamental dentro do pensamento freudiano, pois nele Freud defendeu sua tese de que nenhuma cultura é concebível sem a referência paterna. Sem conhecer tal pressuposto, dificilmente se entende as críticas, justificadas ou não, que têm sido feitas à família contemporânea, principalmente no que diz respeito à falência da função paterna. A maior parte das críticas que esse texto freudiano suscitou no momento de sua publicação foi proferida por antropólogos. Um deles, Frazer (1910), que 11 sustentou uma hipótese inversa à de Freud, que relacionava exogamia e incesto, ao dizer que havia uma disjunção entre exogamia e totemismo. Apesar da discordância Frazer e Freud tem a mesma leitura de Durkheim sobre exogamia e totemismo, ou seja, a de que “o tabu que se liga ao totem deve necessariamente implicar na proibição das relações sexuais com a mulher pertencendo ao mesmo totem que o homem”. Quanto a Freud, esse nunca deixou de relacionar entre si os dois tabus totêmicos: não matar o pai e não se casar com uma mulher do grupo do totem. Segue abaixo o mito freudiano citado. 1.1 O mito do pai da horda: como tudo supostamente começou... Era uma vez uma horda de sapiens que, no início dos tempos, era governada por um homo tiranus que mantinha sob seu jugo todos os machos e todas as fêmeas do grupo e impedia pela força bruta que os demais machos usufruíssem das fêmeas, tornando-se, conseqüentemente, o pai de todos. Um dia, após longos anos de repressão, alguns filhos do tirano, inconformados com o fato de o pai possuir todas as fêmeas, uniram-se para destroná-lo. Essa primeira rebelião falhou e os filhos foram banidos da comunidade. Mais tarde, ainda inconformados, unidos pelo ódio ao tirano, os machos arriscaram uma segunda investida e conseguiram assassinar o chefe da horda primitiva. Quando este foi morto, transformou-se em pai e os filhos converteram-se em irmãos de fato. Como salienta Enriquez (1990) em seu livro Da Horda ao Estado, aquilo que começa como um conto de fadas, do tipo “era uma vez”, aos poucos chama nossa atenção para o fato inédito de que o ódio partilhado transformou seres submissos em irmãos e o chefe da horda em pai. Neste texto, que Lacan considera o único mito moderno, Freud defende a idéia de que o primeiro agrupamento realmente humano só pode se constituir a partir de um crime cometido em conjunto. É por esse motivo que, do ponto de vista freudiano, o pai só existe morto, real ou simbolicamente. Após o assassinato os irmãos devoraram o corpo do pai morto para 12 incorporarem e se apoderarem da sua força e, nesse momento de festim canibalesco os irmãos se reconhecem como tais. Como lembra Enriquez (1990) na obra citada, o festim é o segundo momento forte da história, pois, ao comerem juntos a mesma carne, os irmãos se identificaram definitivamente como irmãos, tornando-se iguais, porque estavam unidos pelo sangue. Cabe ressaltar que, por mais que os filhos odiassem o pai pelo fato de ele representar um obstáculo aos seus anseios de poder e à realização de seus desejos sexuais, também o amavam e admiravam. Dessa ambivalência – odiar e amar o mesmo objeto ao mesmo tempo – deve-se encontrar a explicação da culpa que os filhos passaram a sentir uma vez saciado o ódio. Movidos pela culpa do parricídio, eles decidiram renunciar a posse das fêmeas e transformaram o pai num totem ou, em outros termos, no fundador do grupo. Convém salientar que, ao instaurarem o totemismo, os irmãos inauguraram uma nova organização social na qual o pai morto se tornou muito mais poderoso do que quando estava vivo. Assim, aquilo que era proibido pela força bruta do pai como a posse das fêmeas passou a ser vedado pelos próprios filhos. A proibição da morte do totem teve como uma de suas finalidades, além de diminuir o sentimento de culpa evitar que um dos irmãos desejasse se apoderar de todas as fêmeas do clã, o que levaria a uma luta de todos contra todos, pois nenhum dos irmãos tinha força suficiente para assumir o lugar do pai. Por tal motivo, todos decidiram renunciar ao motivo do parricídio, ou seja, às mulheres do clã, que passaram a funcionar enquanto moeda de troca, instaurando desse modo à proibição universal do incesto. A respeito do valor do mito freudiano, Lévi-Strauss tece os seguintes comentários em seu livro As Estruturas Elementares do Parentesco (1976): “[...] como todos os mitos o que é apresentado com tão grande força dramática em Totem e Tabu admite duas interpretações. O desejo da mãe ou da irmã, o assassinato do pai e o arrependimento dos filhos não correspondem, sem dúvida, a qualquer fato, ou conjunto de fato, que ocupam na história um lugar definido. Mas traduzem, talvez, em forma simbólica, um sonhoao mesmo tempo duradouro e antigo. O prestígio deste sonho, seu poder de modelar, sem que se saiba, os pensamentos dos homens, provém justamente do fato dos atos por ele evocados nunca terem sido cometidos, porque a cultura sempre e em toda parte se opôs a isso As satisfações simbólicas nas quais, segundo 13 Freud se expande o sentimento do incesto não constituem, portanto, a comemoração de um acontecimento. São outra coisa e, mais do que isso, são a expressão permanente do desejo de desordem, ou antes, da contra-ordem” (p. 531-532). Enriquez afirma que as duas interpretações de Lévi-Strauss sobre o mito do pai da horda permitem aos etnólogos e sociólogos abordarem o texto freudiano sob uma nova ótica, pois chama a atenção para o fato de que o sonho de assassinato do pai é antigo e perdura até os dias atuais. Esse sonho explica principalmente porque o incesto, conscientemente condenado, continua inconscientemente desejado. Freud pôde ser reconhecido, na presente dissertação, como um seguidor de Durkheim porque sua clínica lhe permitiu estabelecer um elo entre os dois tabus totêmicos: não matar o totem e não se casar com uma mulher do grupo do totem. Ao reconhecer o pai no lugar do animal totêmico, Freud (1914/1968) discutiu que estas duas medidas – a proibição do assassinato e do incesto – correspondem aos dois desejos reprimidos do Complexo de Édipo: matar o pai e casar-se com a mãe. O assassinato do pai da horda funda, portanto, a culpabilidade e inaugura a Era das regras sociais e do direito, formuladas em nome do pai morto. Convém lembrar que, segundo Freud, a instauração de um sistema de repressão coletivo marcou a passagem da natureza para a cultura, o que mais uma vez não contradiz Durkheim, para quem o sagrado emana do coletivo. De acordo com Freud (1927), a Kultur, que alguns optam por traduzir como “cultura” e outros preferem o termo “civilização”, definida por ele como sendo a totalidade das obras e organizações cuja instituição nos afasta do estado animal de nossos ancestrais e que serve a dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a organização dos homens entre si. Nesse sentido, pode-se afirmar que a família foi a primeira instituição fundada pelos humanos com o intuito de protegê-los contra a natureza e organizá-los entre si. Em síntese, ainda que seja uma construção mítica, a proibição do incesto, tal qual descrita por Freud, está ligada a uma função simbólica que consiste em diferenciar o mundo animal do mundo humano, arrancando uma pequena parte do 14 humano do continuum biológico que caracteriza o destino dos mamíferos. Tal afirmação permite a Roudinesco (2002/2003) argumentar que a família pode ser considerada uma instituição humana duplamente universal, que associa um fato de cultura, construída pela sociedade, a um fato de natureza, inscrita nas leis da reprodução biológica. Do ponto de vista freudiano, a constituição da família foi uma necessidade da civilização que possibilitou ao homem não ser privado da mulher e a esta de não ser separada de seus filhos, instaurando, desse modo, o que mais tarde o autor veio a chamar de “moral sexual civilizada”. Esta se fundamenta na repressão pulsional necessária à manutenção dos ideais reguladores da sociedade, conjugando obrigação ao trabalho e potência ao amor. Com Freud (1914/1968) parece concordar a antropóloga Gough (1980), que considera a família como essencial para o aparecimento da civilização, permitindo um grande salto para frente no que diz respeito à cooperação, ao conhecimento voluntário, ao amor e à criatividade. As transformações que ocorreram na instituição familiar, assim como as diferentes formas de abordá-la ao longo do tempo, têm girado em torno de duas grandes ordens: a biológica (diferença sexual) e a simbólico (proibição do incesto e outros interditos). Tendo em vista tais considerações, coloco-me ao lado de Roudinesco (2002/2003) ao entender que não basta definir família apenas por meio do ponto de vista antropológico, mas também é preciso saber qual a história dessa instituição e como se deram as mudanças que resultaram na aparente desordem a ela atribuída na atualidade. 1.2 Flashback da história da família ocidental Com o objetivo de entender a história da família ocidental e salientar suas principais transformações, num primeiro momento, remeto-me a Durkheim e a sua “teoria da retração familiar”. Tal teoria, desenvolvida no curso que ministrou em 1892, foi retomada em 2001, no livro Lacan et les sciences sociales por Zafiropoulos que tenta identificar na psicanálise as influências da sociologia de 15 Durkheim. Tal inspiração não é pequena, visto que Durkheim foi o primeiro indicar as conseqüências daquilo que denominou como “lei da retração familiar”, em que chamava a atenção para a degradação da potência do pai, em particular, e das estruturas familiares, em geral, o que, segundo ele, inevitavelmente leva à produção de indivíduos interessados em perseguir fins pessoais e, portanto, em anomia. Se essa percepção de Durkheim, transcrita para o seu texto La famille conjugale (1892), parece importante é porque de certo modo ela parece anunciar a percepção de alguns autores modernos, como Horkheimer e Adorno (1973), preocupados com a falência da função paterna e as patologias sociais e individuais que dela decorrem. Em outras palavras, a idéia de contração familiar de Durkheim indica que a família, tal qual a conhecemos hoje em dia em grande parte do mundo ocidental – constituída pelo pai, mãe e filhos solteiros –, não passa de uma forma histórica criada pela Europa moderna, fruto de uma longa evolução que se estendeu por quase três séculos e que pode ser definida como um resto da antiga família patriarcal, constituída por pai, mãe e gerações de descendentes, salvo as filhas e seus descendentes, cujos laços de parentesco decorriam, da propriedade coletiva dos bens. Durkheim (1892) insiste no fato de que esse processo de contração familiar não diz respeito somente ao tamanho do grupo familiar, mas também à sua constituição e à relação com os bens. As formas primitivas de família, em que as relações do grupo doméstico dependiam primeiramente da posse coletiva e sagrada, cederam lugar a um novo tipo de família, fundada na propriedade privada e na figura de um chefe de família, que passou a ser o centro de gravidade do novo grupo familiar. Neste, o poder se deslocou das coisas para uma pessoa particular, o pai, que passou a concentrar tudo o que havia de moral e religioso na família. A fragilidade dessa nova forma de família, cujo funcionamento sofria influência da Igreja e do Estado, acabou desembocando na família moderna ou conjugal e, quanto mais se avança na história, mais essa família conjugal ou dos 16 esposos se torna o elemento essencial e permanente da família. Segundo Durkheim, só essa contração do grupo doméstico, vista ao longo da história, pode explicar as características da família moderna e a decadência da potência paterna a partir do século XVIII, quando, a partir da Revolução Francesa, a instituição familiar deixou, segundo Roudinesco (2002/2003), de ser conceitualizada como paradigma de um vigor divino ou de Estado. A partir de agora, apresentarei a versão proposta por Roudinesco (2002/2003) a respeito da ascensão e a queda da família ocidental burguesa por meio da pontuação histórica. Para a autora, três foram as fases da família que merecem destaque: tradicional, moderna e contemporânea. A primeira etapa, denominada tradicional, teria vigorado durante o Antigo Regime. Caracterizava-se por casamentos arranjados e pela transmissão do patrimônio aos filhos quando ocorria a morte do pai. A célula familiar desta época repousava sobre uma ordem de mundo imutável e inteiramente submetida à autoridade patriarcal, para a qual o casamento dosfilhos, em geral em idade precoce, visava a manutenção ou ampliação do patrimônio, sem que se considerassem as necessidades afetivas e sexuais dos noivos. A fase seguinte, da família moderna, teria começado no final do século XVIII, com a Revolução Burguesa e se estendido até meados do século XX, quando começou a apresentar sinais de fraqueza. Esta família fundava-se sobre o casamento baseado no amor romântico, na reciprocidade dos sentimentos e no reconhecimento da importância da sexualidade. O casamento burguês, ao mesmo tempo em que paulatinamente valorizava a divisão do trabalho entre os esposos, repassou a responsabilidade pela educação dos filhos para o Estado. Por fim, a fase da família contemporânea, gerada nos movimentos revolucionários e de contracultura ocorridos durante a década de 60, caracteriza- se por dois aspectos: a união temporária de dois indivíduos que buscam relações íntimas ou realização sexual; e o aumento considerável das separações. Essa família, desconstruída, recomposta, mono ou homo parental, parece estar sujeita a uma grande desordem. Isso não significa, no entanto, que ela tenha atingido o 17 nível de degradação que alguns lhe atribuem, responsabilizando-a por situações catastróficas como “professores apunhalados, crianças estupradoras e estupradas; carros incendiados, periferias entregues ao crime e à ausência de qualquer autoridade” (ROUDINESCO, 2002/2003, p. 10). Certamente, diferente das que a antecederam, a família contemporânea apresenta alguns problemas específicos que serão abordados ao longo do trabalho. Terminada essa pontuação histórica, por meio da qual expus a historicidade da família discorrerei a seguir sobre a família burguesa em suas versões moderna e pós-moderna com o intuito de entender o que mudou nas últimas décadas. É mister evocar o lembrete feito por Adorno e Horkheimer em Temas básico de sociologia (1973), no artigo que dedicaram à família, de que só é possível abordar a família moderna e sua crise se tivermos em mente que ela é fruto da realidade social em suas sucessivas concretizações históricas e que o social a perpassa naquilo em que ela tem de mais íntimo. Assim, só é possível entender a sua tão decantada crise por meio das contradições da sociedade burguesa, ressaltando que a família permaneceu encravada nessa sociedade como uma instituição essencialmente feudal, fundada sobre o princípio do sangue e do parentesco natural. 1.3 A família moderna A família dita moderna é fruto de duas feridas narcísicas infligidas pelos efeitos das Revoluções Francesa e Industrial sobre o sujeito ocidental entre meados do século XVIII e o início do XX. Tais feridas, que consistem na perda da origem divina do homem e na perda da plenitude do eu, deram início ao desmonte da figura mítica do pai e a ingerência de certas instituições estatais no âmbito privado. As duas revoluções citadas deram início àquilo que Lasch (1977/1991) denominou controle social sobre as atividades até então relegadas aos indivíduos ou às suas famílias. A Revolução Francesa, marco da História Contemporânea n opinião de Roudinesco (2002/2003), longe de acabar com a família, colocou-a no centro da 18 nova sociedade, pois não passou despercebido aos revolucionários o fato de que, enquanto átomo da sociedade civil, a família, com suas inúmeras funções, era a base do Estado, havendo continuidade entre o amor à família e à Pátria. Não por acaso, o Estado pós-revolucionário passou a se interessar cada vez mais pela família, tornando-a alvo de uma política que permitisse o surgimento de uma individualidade cidadã e democrática. Para que essa individualidade pudesse se concretizar, foi preciso, num primeiro momento, transformar a figura absolutista do pai em algo mais igualitário, processo que se iniciou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França, promulgada pela Assembléia Nacional, e foi progredindo ao longo do século XIX por meio da evolução jurídica que corroeu de maneira progressiva as prerrogativas paternas. Isso ocorreu, por exemplo, com o fim do direito testamentário que, ao possibilitar a divisão do patrimônio, dissolveu o poder do patriarca, pois permitiu que seus filhos tivessem acesso à herança antes de sua morte. Em outros termos, essa lei representou o assassinato simbólico do pai. Um dos objetivos desta lenta evolução foi o fortalecimento do poder do Estado, que acabou se tornando o avalista da autoridade paterna, ou seja, nesta nova sociedade burguesa, a partir do momento em que precisou prestar contas ao Estado, o pai deixou de se assemelhar a um Deus todo poderoso, autorizado a exercer uma brutal opressão sobre mulher e filhos, mesmo que tentasse justificá- la como um meio de despertar neles a autoconsciência. Ao mesmo tempo em que se acompanham as conseqüências da Revolução Francesa, fazem-se sentir os efeitos da Revolução Industrial que, em seu primeiro estágio, retirou a produção do âmbito doméstico, visto que os capitalistas passaram a considerá-la antieconômica, o que os levou a coletivizá-la em fábricas sob sua própria supervisão. Foi assim que, no estágio seguinte, os donos de fábricas apropriaram-se das habilidades e dos conhecimentos técnicos dos antigos artesãos, reagrupando e administrando suas habilidades sob uma direção supostamente científica que se encarregou de parcelar o processo de produção e atribuiu uma função específica a cada operário. Dessa maneira, tal forma de 19 direção guardava para si o conhecimento do processo produtivo como um todo, criando um gigantesco aparato gerencial composto por especialistas. O efeito combinado da revolução política e econômica permitiu a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, fato este que produziu grandes transformações na estrutura familiar, visto que, por meio do trabalho, as mulheres conquistaram a capacidade de serem chefes de família. Não é de se admirar, portanto, que pouco tempo depois as mulheres tenham conquistado também o direito ao divórcio, até então exclusivo dos homens. Essas importantes conquistas femininas começaram a abalar o pátrio poder, até então, intocável e intocado. Com a introdução do divórcio, o casamento deixou de ser um pacto indissolúvel e garantido pela presença divina para se tornar, pelo menos formalmente, um contrato quase livremente consentido entre homens e mulheres, supostamente baseado naquilo que veio a ser chamado de amor romântico. Digo quase livremente consentido porque, embora houvesse a possibilidade de escolha do cônjuge, esta ainda era determinada pelos pais, principalmente quando havia patrimônio em jogo. Talvez a liberdade com relação à união matrimonial apenas fosse encontrada nas camadas mais baixas da escala social, nas quais, por não haver patrimônio, os filhos podiam escolher o cônjuge mais livremente. Os casamentos arranjados, segundo Perrot (1950/1991), tinham por objetivo absorver todas as funções: não só da aliança, mas também do sexo, o que significava que o casamento transportava a lei e a dimensão jurídica para o dispositivo da sexualidade que leva a economia do prazer e a intensidade das sensações (sentimentos) para o regime da aliança. Como conseqüência as tragédias que os casais passaram a vivenciar resumiam a se conflitos entre aliança e desejo, uma vez que, quanto mais cerradas às estratégias matrimoniais para assegurar a coesão familiar, maior o sufocamento do desejo. Além disso, quanto mais forte o individualismo, mais ele se insurgia contra as escolhas do grupo e os casamentos arranjados. Nesse contexto, como salienta a autora, a família passou a ser submetida a movimentos contraditórios. Se, por um lado, seus membros iam se tornando, cada 20 vez mais livres uns em relação aos outros, por outro lado, o Estado e seus representantes passaram a se interessar cadavez mais pela família enquanto instituição. Assim, a socialização da produção, anteriormente citada, tornou-se a premissa do que viria a ser a socialização da reprodução, ou seja, o controle da vida privada pelo Estado por meio de agentes (médicos, psiquiatras, professores, orientadores infantis, funcionários da justiça de menores) que passaram a expropriar ou supervisionar certas funções da família. A partir desse momento, o Estado passou a cercar cada vez mais a família em cujos mistérios parecia querer penetrar, principalmente no que dizia respeito às famílias pobres, tidas como incapazes de desempenhar o papel que lhes cabia em relação aos filhos. Este fato não se restringiu à Europa. Como aponta Lash, em seu livro Refúgio num Mundo sem Coração (1977/1991), o mesmo aconteceu nos Estados Unidos, país no qual os principais alvos da intervenção de planejadores e políticos foram as famílias de imigrantes, vistas como obstáculos para o que se concebia como progresso social, entendido em parte como homogeneização. Segundo esses interventores, a instituição familiar, ao conservar suas tradições religiosas de origem, suas línguas e dialetos maternos, assim como seus saberes comunitários e tradições, favorecia o desenvolvimento comunitário ao mesmo tempo que dificultava e retardava o fortalecimento do Estado nacional. Mas para que a família fosse útil para a constituição deste Estado nacional forte era preciso, primeiro, que se transformasse a maneira de se entender a criança. Segundo Perrot (1950/1991), durante muito tempo a criança não passou de um pequeno adulto e o conceito de infância não existia. No Antigo Regime, por exemplo, a aristocracia entregava seus filhos às mães de leite, dando conta deles somente quando chegavam à idade adulta. A ascensão da moral burguesa mudou esse estado de coisas e a criança passou a ser vista como um ser dotado de atributos especiais, tais como susceptibilidade, vulnerabilidade e inocência, razão pela qual necessitava de um período de cuidados e proteção. Ao ganhar esse tempo, a criança deixou de ser “o filho”, para ser “o bebê”, “a criança de oito anos” e “o adolescente”. 21 Essa concepção de infância colaborou para o surgimento de uma nova idéia de família, pois, ao tentar proteger a criança de más influencias e evitar que ela fosse corrompida por adultos, criou-se outro padrão de cuidados para com ela, baseado em amor e compreensão. A nova educação dos filhos levou à intensificação dos laços emocionais entre pais e filhos, e a frouxidão do vínculo com os familiares não pertencentes ao núcleo imediato. Dessa maneira, na medida em que a família tornava-se mais nuclear, a relação entre pais e filhos ia sendo emocionalmente sobrecarregada. Tal valorização da infância acabou gerando tensões nas famílias burguesas que, para se adequarem à nova realidade, foram obrigadas a rever a posição ocupada pela mulher neste sistema familiar. Até aquele momento, a atividade feminina estava fortemente relacionada aos cuidados com a casa e à educação dos filhos. No entanto, a ingerência do Estado na esfera familiar fez com que a família se visse obrigada a mudar, pois, caso contrário, as mulheres acabariam se convertendo em parasitas, consumidoras improdutivas sob a tutela do Estado, como relata Lash (1977/1991), ao retomar o discurso de uma feminista da época, A fim de evitar que suas mulheres virassem meras peças decorativas, as famílias burguesas procuraram maneiras de torná-las úteis, passando a ser concomitantemente alvo de degradação e exaltação (LASH, 1977/1991). Por um lado, a degradação ocorreu a partir do momento em que o lar deixou de ser um centro de produção para se tornar o lugar de devoção aos filhos e, assim, as mulheres foram despojadas de muitas de suas ocupações tradicionais. Por outro lado, a exaltação manifestava-se quando, devido às novas exigências educativas da época, tornou-se necessário oferecer uma educação mais esmerada às mulheres para que elas viessem a exercer melhor suas tarefas domésticas e serem melhores companheiras de seus maridos. Essa domesticidade implicou na ampliação da educação da mulher e em uma minuciosa reforma de pensamento, por meio da qual a mulher passou a ser instada a renunciar sua sensibilidade em prol do bom senso. A domesticidade burguesa, cuja finalidade era manter as mulheres no lar, acabou provocando uma 22 desordem geral na medida em que as encorajou a terem aspirações que o casamento e a família tradicional não podiam satisfazer. Dessa forma, deu-se início ao movimento feminista. O sistema familiar burguês, que alcançou seu pleno desenvolvimento no século XIX, baseava-se no casamento de companheirismo, centrado na educação doméstica das crianças, na quase emancipação das mulheres pelo mercado de trabalho e no isolamento da família nuclear em relação ao parentesco. Nesse contexto, a sociedade em geral parecia mostrar sinais de que estava entrando em uma nova fase como mostrava alguns jornais e revistas norte-americanas do final do século XIX que relatavam o aumento do número de divórcios, a queda da natalidade entre as pessoas de melhor nível sócio-econômico, a instável posição da mulher na sociedade e a chamada Revolução Moral. Por volta do início do século XX, algumas mudanças tornaram-se evidentes: as mulheres eram cada vez mais incitadas a exigirem direitos até então exclusivos dos homens como o voto e a educação; os jovens transformaram-se em um público consumidor; e os pais foram instados a satisfazer todos os desejos de seus filhos. Essa última tarefa, sendo impossível, serviu para minar a confiança dos pais em serem capazes de prover a felicidade de seus rebentos, fazendo com que apelassem cada vez mais para as novas descobertas da tecnologia moderna, pois, aparentemente, só ela poderia proporcionar à criança em crescimento alimentação adequada, cuidados médicos apropriados e habilidades sociais necessárias para atuar no mundo moderno. Adorno e Horkheimer, no texto A família (1973), resumem os aspectos discutidos anteriormente ao salientar que a família burguesa, que, durante muito tempo, foi a instituição por meio da qual a sociedade formou os homens de que necessitava, dirigia-se para uma crise. Se é verdade que a família pôde ser o lugar do aprendizado de valores e da ideologia burguesa, tal fato estava deixando de acontecer. Durante muito tempo, a família burguesa monopolizou a ação econômica e educativa, ao mesmo tempo em que sua figura central, o pater família, funcionou como modelo para os filhos, aos quais só restava, num primeiro 23 momento, identificarem-se com ele e, num segundo, afastarem-se dele. Quando a pressão paterna não era dura demais e vinha acompanhada pela doçura materna, formavam-se homens capazes de lidar tanto com a autoridade quanto com a liberdade, aprendendo a se responsabilizarem pelos próprios sucessos e fracassos. A mesma dinâmica social que, num primeiro momento, permitiu a constituição e a reprodução da família burguesa, começou, na sociedade industrial avançada, a ameaçá-la internamente, tornando-a cada vez menos apta a preencher suas funções de instrução e educação. Na sociedade a criança descobria cada vez mais cedo a fragilidade do pai, dificultando a interiorização das exigências familiares que, apesar de todos os seus aspectos repressivos, contribuíam para a formação de um indivíduo autônomo. Ao mesmo tempo em que a criança foi condenada a descobrir a privatização da socialização, o pai foi sendo substituído por poderes coletivos, tais como a classe escolar, o time esportivo, o clube ou o Estado. Os efeitos da substituição do pai eram temidos por Adorno e Horkheimer (1973) porque os autores acreditavam que os jovens, na falta de um pai com quem pudessem se identificar poderiam se submeter a qualquer autoridade desde que essa lhes oferecesseproteção, vantagens materiais, satisfação narcísica e possibilidade de descarregar sobre outros o sadismo, em que a desorientação inconsciente e o desespero encontrassem uma cobertura. Foi o que aconteceu, segundo eles, na Alemanha nazista, primeiro país a viver a crise da família no período entre guerras. Cabe salientar aqui que, ao longo deste período, tanto o poderio industrial quanto o conhecimento tecnológico mostraram seu esplendor nos campos da morte nazista, momento em que veio à tona, segundo Bauman (1989/1996), o lado mais obscuro da sociedade judaico-cristã. Nesta época, as crueldades passaram a ser administradas de modo mais efetivo do que jamais foram anteriormente, visto que a técnica e a especialidade se tornaram valores absolutos das sociedades modernas, comprovando que criação e destruição são aspectos 24 inseparáveis daquilo que chamamos civilização. Após duas guerras mundiais, iniciou-se, na década de 50, um período que Hobsbawm (1994/2000) chamou de “Era de Ouro”, marcada pelo extraordinário avanço de pesquisas científicas que transformaram a vida cotidiana, principalmente no chamado Primeiro Mundo, mas também em outras latitudes. O pai desses anos dourados foi o “Estado do bem estar social” com políticas de pleno emprego, sistema de controle governamental e administração de economias mistas e cooperação com movimentos trabalhistas organizados. Esse Estado possibilitou que se intensificasse a industrialização e a modernização dos países ocidentais desenvolvidos e que as economias arruinadas pela guerra se recuperassem. O Estado do bem estar social teve como uma de suas principais características reforçar o que havia começado no final do século XIX: controle público sobre os pais exercido pelo saber de especialistas. Concomitantemente ao surgimento desse Estado surgiu uma nova ideologia que teve por finalidade convencer a mulheres e homens a confiarem não só na tecnologia, mas também em conselhos de especialistas externos, o que, por sua vez, acabou por minar a capacidade de as famílias proverem a si mesmas, justificando, desse modo, a contínua expansão dos serviços de saúde, educação e bem-estar. As novas modalidades de exercício médico, cada vez mais fundamentadas em métodos de rastreamento e de controle, propunham-se a designar modelos de comportamento designados como justos e naturais, abarcando desde as maneiras de comer ou arrumar a casa até as de procriar, morrer, respeitar os pais, criar os filhos ou regulamentar a relação entre os sexos. Ao mesmo tempo, a Revolução Tecnológica, baseada na crença de que tudo o que era novo era revolucionário, foi entrando na consciência do consumidor em tal medida que a novidade se tornou o principal recurso de venda para todos os produtos, desde detergentes até computadores. A crítica a respeito do controle estabelecido por especialistas e pelo Estado na socialização de crianças foi feita inicialmente por Adorno e Horkheimer (1973) e 25 continuada por Lash (1977/1991) praticamente um discípulo destes frankfurtianos. Este último autor foi um dos primeiros cientistas sociais a alertar sobre os efeitos nocivos da publicidade a respeito das profissões assistenciais que pretendeu libertar as pessoas das antigas coações, mas acabou expondo-as a novas formas de controle, mais sutis do que as anteriores. Ao se proporem obrar para libertar a vida das pessoas da repressão do Estado e da Igreja, tais profissões acabaram submetendo as pessoas ao controle médico e psiquiátrico por um lado e à manipulação publicitária, por outro. Saíram de cena o legislador e o sacerdote e entraram os médicos, que vieram ocupar a função de novos guardiões da estabilidade psíquica do indivíduo e que se propuseram a eliminar do matrimônio o irregular, o imprevisível e o incontrolável. Mais uma vez a intenção de trazer benefícios à população teve conseqüências opostas às pretendidas. Esses autores frankfurtianos, ao apontarem para os riscos de substituir a socialização familiar pelo controle do Estado, previram a crise da função paterna amplamente discutida atualmente. Segundo eles, o controle cada vez mais intenso do Estado, que se arvorou como substituto da figura paterna, acabou minando a capacidade de autodeterminação e autocontrole das famílias, solapando uma das principais fontes de coesão social para criar formas ainda mais constrangedoras do que as antigas, no que diz respeito a seu impacto sobre a liberdade individual e política. No final dos anos 60, com o fim da Era de Ouro e da morte do Estado do bem estar social, iniciou-se a ascensão de uma nova ordem e, de um novo pai, o mercado. Segundo Hobsbawm (1994/2000), tal encerramento não foi provocado pela ganância dos xeques do petróleo ligados à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) ou pelas mudanças na configuração da economia do mundo nem tampouco, mas porque a economia mundial, após a crise de 1929, não conseguiu recuperar seu antigo ritmo de crescimento. A partir desse momento, começou a se delinear um novo tipo de família, nomeada por Roudinesco (2002/2003) de contemporânea e por outros autores (citar) de pós-moderna. Esta é, de acordo com a autora, uma família em 26 desordem, baseada na união temporária de dois indivíduos em busca apenas de relações íntimas. Com isso, aumentaram consideravelmente os casos de separação, divórcio e recomposições familiares. Essa nova família foi se desenvolvendo em uma sociedade cada vez mais dominada pelas leis do mercado, que foi aos poucos se transformando no novo pai e assumindo o lugar que um dia fora do Estado. Coube ao mercado instituir uma cultura juvenil que se dispôs a curar a ferida narcísica da perda da plenitude do eu por meio do discurso da felicidade. O mercado ao substituir a família assim como o Estado para Lash, em seus livros Refúgio Num Mundo Sem Coração (1977/1991) e em suas obras seguintes, O Mínimo Eu (1987) e A Cultura do Narcisismo (1983), acabou aumentando os efeitos psíquicos e sociais da crise da família burguesa. Ele ressalta que esses novos sintomas eram previsíveis, visto que não seria possível desautorizar a instituição familiar encarregada de inculcar na criança os primeiros modos de pensar e atuar que, com o passar do tempo se transformam em hábitos, impunemente. O discurso da felicidade propagado pelo Mercado ao desmoralizar esta que foi historicamente a principal instituição responsável pela reprodução de padrões culturais, transmitindo às gerações subseqüentes normas éticas, faz com que o mundo pós-moderno enfrente novas formas de mal estar na civilização, novos sintomas, próprios das sociedades pós-modernas que podem desembocar na dissolução da comunidade tais como o desinvestimento generalizado das instituições, o culto da singularidade e o individualismo exacerbado. Talvez o parecer de Lash seja um pouco exagerado, porém é necessário reconhecermos que suas previsões, guardadas as devidas proporções, mostraram-se acertadas, no que diz respeito à inequívoca relação entre deserção do pai de família e o sofrimento contemporâneo do filho. Após essa breve pontuação histórica sobre a família, principalmente a ocidental burguesa, e antes de retomar a terceira fase, que é da família contemporânea, segundo Roudinesco de modo mais aprofundado, terminarei esse capítulo voltando a uma visão mais antropológica da família por meio de Murdock (1949). Esse autor considera universal a família moderna ou nuclear, pois as 27 quatro funções nela encontradas – sexual, econômica, reprodutiva e educativa – apresentariam-se em qualquer sociedade, sendo que nenhuma das sociedades conseguiu encontrar um substituto adequado para exercer estas funções a não ser a família. As quatro funções cumpridas pela família nuclear, portanto, são pré- requisitos universais para a sobrevivência de qualquersociedade. Foi pensando nisso que Murdock, em seu livro Estrutura Social, afirmou a universalidade das funções: “Se não se logra assegurar a primeira e a terceira (sexual e reprodutiva), a sociedade extinguir-se-ia; sem a segunda (econômica) a vida não poderia existir; quanto à quarta (educativa), sem ela a cultura desapareceria. É assim que a imensa utilidade da família nuclear e a razão de sua universalidade começam a perfilar-se com força” (1949, p. 11). As funções da família, tal qual expressas por Murdock (1949), podem ser comparadas às quatro funções da cultura descritas por Malinowski, em seu livro póstumo Uma Teoria Científica da Cultura (1970). Para ele, a primeira função da cultura é oferecer proteção aos seus membros contra fatores externos (ataque de animais, cataclismo, violência humana) por meio do lar, da municipalidade, do clã e da tribo. A segunda, a divisão sexual do trabalho, está relacionada à transformação que vai se operando na solidariedade social. A terceira função é auxiliar o crescimento dos indivíduos por meio da transmissão dos costumes, do respeito à autoridade e da ética, visto que são esses ensinamentos que preparam a criança para a vida em sociedade. Malinowski lembra que uma das funções da família é preparar os filhos para se separarem dela, possibilitando a constituição de novas famílias e, para isso, contam com a ajuda dos ritos de iniciação que existem em todas as sociedades e que têm por função ajudar o adolescente a deixar sua família de origem e sua infância para entrar no mundo dos adultos. Por fim, a quarta função a que se refere Malinowski é a higiene, que consiste, além do adestramento das normas de orientação fisiológica, em ensinar o indivíduo a separar os valores considerados sujos dos limpos. Em outras palavras, essa função expressa a consciência coletiva de uma sociedade, isto é, o conjunto de crenças e sentimentos comuns. 28 No último bloco deste capítulo, que representa a terceira fase da Roudinesco, veremos a família pós-moderna e seu mundo fast, dominado pela técnica, jovens adultos e relacionamentos virtuais. 1.4 Família contemporânea A família chamada contemporânea ou pós-moderna, fruto dos movimentos revolucionários e da contracultura da década de 60, tem como principais características a juvenilização de seus membros, a liberalização dos costumes, a perda da autoridade paterna, o fortalecimento da autoridade materna e os relacionamentos virtuais. Em 1968, jovens do mundo inteiro, de Nova Iorque a Tóquio, passando por Paris e São Paulo, atearam fogo ao planeta, como se uma palavra de ordem universal tivesse sido dada, a calçada e o paralelepípedo se tornaram os símbolos de uma geração em revolta que, como cantava Jim Morrison em We want the world and we want it now1, queria transformar o mundo no menor tempo possível. Devido ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, toda uma geração assistiu, num turbilhão de sons e imagens, a emergência dos Beatles e dos Rolling Stones, a invasão de Praga pelos tanques russos, Carlos e Smith no pódio dos Jogos Olímpicos do México, de punhos erguidos e luvas negras em sinal de protesto contra o racismo, e o rosto eternamente jovem de Che Guevara. Alimentada por essas imagens, surgiram novos atores sociais como os jovens, as mulheres e as minorias sexuais que, segundo Hobsbawm (1994/2000), acabaram criando um estilo de mobilização e contestação social que desembocou em novos padrões de comportamento, aos quais se deu o nome de contracultura e que consistiu numa verdadeira revolução cultural que afetou modos e costumes, de homens e mulheres urbanos ao supostamente libertá-los do poder regulador das grandes instituições coletivas (Estado, família, escola, igreja) em prol de um novo enquadramento social, no qual os indivíduos teriam liberdade para compor e recompor suas orientações e seus modos de vida. 1 “Nós queremos o mundo e o queremos agora” 29 O caminho para a contracultura teve seu início na década de 50, nos Estados Unidos, com a Geração Beat, formada por jovens intelectuais, em sua maioria escritores e poetas, que contestava o consumismo, o otimismo do pós- guerra americano, o anticomunismo generalizado e a falta de pensamento crítico. Esses referenciais se alastraram pelo mundo todo, influenciando consideravelmente o movimento estudantil de 1968 que, segundo alguns autores, teria sido o ápice da Geração Beat, pode ser entendida também como apenas uma de suas vertentes. Como afirma Koltai (1998), o movimento de 68 ao mesmo tempo em que tentou ressuscitar, pela última vez, o ideal revolucionário, investindo em valores públicos e sociais, os liquidou em nome do direito das pessoas à diferença, ao incitarem os indivíduos a se rebelarem contra as autoridades e limitações burocráticas, incompatíveis com o livre desenvolvimento do indivíduo. Na opinião de Lipovetsky (2002/2004), ao mesmo tempo em que o movimento de 68 ainda apresentava resquícios de um movimento do século XIX, espelhando-se em suas lutas, já anunciava o século XXI, submetendo a esperança revolucionária cultura narcísica da autonomia. Olhando para trás, tem- se a impressão de que entre essas vertentes do movimento de 68 somente as reivindicações da esfera privada se afirmaram, desembocando naquele que Lasch chamou de “homem psicológico da sociedade pós-industrial” (1977/1991). Esse sujeito narcísico conhece apenas as regras do jogo social que lhe permitem manipular os outros e se manter afastado de um verdadeiro engajamento social. Como lembra Lipovetsky, a sensibilidade política dos anos 60 cedeu lugar a uma sensibilidade terapêutica em que só o bem estar pessoal contava. Esses valores juvenis difundidos pelas economias de mercado acabaram sendo incorporados pela sociedade pós-moderna, que estabeleceu a juventude como estágio final do desenvolvimento humano, independentemente da idade cronológica da pessoa. Em outras palavras, num mundo fast, em que incessantes inovações geram a obsolescência acelerada de conhecimentos e valores, a juventude permite aos seres humanos, às mercadorias e aos bens simbólicos estarem sempre novos e adequarem-se aos estilos da moda para que possam 30 captar as mais significantes mudanças do mundo a sua volta. Tal fenômeno faz parte das discussões de Hobsbawm (1994/2000) quando discorre a respeito das relações travadas entre juventude e tecnologia avançada. A esse respeito, o autor afirma: “Qualquer que fosse a estrutura de idade da administração da IBM ou da Hitachi, os novos computadores eram projetados e os novos programas criados por pessoas na casa dos vinte anos. Mesmo quando essas máquinas e programas eram à prova de erro, a geração que não crescera com eles tinha uma aguda consciência de sua inferioridade em relação às gerações que o haviam feito. O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se menos óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos sim. Inverteram-se os papéis das gerações” (p. 320). A capacidade de adaptação do indivíduo pós-moderno é concomitante ao prolongamento da juventude que alguns autores Marguilis (1998), Martín-Barbero (1998), Urresti (1998) e Feixa (2000) chamam de “moratória social”, referindo-se ao período em que o indivíduo tem disponíveis todos os recursos para se capacitar para a vida em sociedade, postergando atitudes que antigamente definiam a entrada na vida adulta, tais como o matrimônio e a procriação. Embora concebida como um período de amadurecimento necessário à vida em sociedade, a moratória tem sido cada vez mais longa e o amadurecimento cada vez mais lento devido, em grande parte, à falta de referências simbólicas fortes e às exigências do mundo do trabalho. A conseqüência disto é que se observam atualmente jovens adultos que se recusam a adotarem comportamentoscorrespondentes à sua faixa etária, retirando-se ao mundo fantasioso da infância. Essa é a interpretação realizada por Morin (1984) ao ressaltar que ser adulto hoje em dia parece ter virado algo sem graça e pouco sedutor, pois significa assumir compromissos e responsabilidades. Em contrapartida, permanecer jovem, tanto psicologicamente quanto fisicamente, significa não envelhecer e não ter que respeitar tabus, salvaguardar a virgindade de filhas, fazer culto aos ancestrais ou transmitir ética paterna às crianças. Segundo o autor, a principal razão que leva homens e mulheres a deixarem de ser adultos é a buscar da auto-realização no amor e no bem estar da vida privada, num eterno desfrute do tempo presente. Esses jovens adultos, segundo alguns psicanalistas como Neder Bacha (2006) e Outerial, dividem-se em dois tipos: os kids adults (adultos adolescentes), adultos 31 que se recusam a amadurecer e preferem se divertir eternamente, tornando-se pais irresponsáveis e omissos; e os grups ou grown-ups (crescidos ou adultos) que Neal Pollack, em seu livro Alternadad: The true story of a family´s struggle to raise a cool kid in América (2007), define como sujeitos que adoram crianças, mas não pretendem se aniquilar para criar os filhos, como fizeram seus pai e avós. Os grups, fenômeno cultural que une gerações entre vinte e setenta anos no estilo, no comportamento e no gosto, vestem o mesmo tipo de roupas, fazem os mesmo programas e têm amigos ou amigas em comum. Os filhos costumam ser mais legais que os pais ou apenas mais jovens. A frase que melhor exemplifica os grups é “a mãe ou o pai se parece com os seus filhos ou filhas”. Em entrevista para a revista O Globo (2006), os psicanalistas José Outerial e Márcia Neder Bacha vêem como problemática a ausência de diferença geracional no relacionamento entre pais e filhos. Na tentativa de eliminar essa diferença, mães e filhas imaginam ser possível compartilhar segredos e intimidades o que, por ser impossível, só faz gerar um relacionamento doloroso e angustiante. Outerial afirma que “A intimidade sem limites e sem a clareza dos papéis, além de ser vivida intimamente como invasiva, proporciona um campo fértil para o florescimento da rivalidade entre mãe e filha. Isso poderá acabar destruindo as relações afetivas” (p. 33). Insistindo na importância de se manter a distinção entre as gerações, Outeiral chama a atenção para o fato de que a adolescência, ao avançar sobre a infância, promove a erotização precoce de crianças, tornando-as sôfregas consumidoras, o que pode levar, num futuro próximo, a uma geração de kids adults e girlies (menininhas), ou seja, adultos que abdicam de suas funções para adotar uma estética e um comportamento infantil. A respeito desse assunto, o professor Masahiro Yamada (1999), da Universidade de Tóquio, alega que ao adotar uma estética e um comportamento infantil, os jovens adultos poderão transformar-se em solteiros parasitas (parasite single), ou seja, jovens incapazes de fundarem suas próprias famílias, continuando a viver com seus pais ou com um deles, parasitando-os. O professor parece ter razão em suas reflexões, pois, cada vez mais, nas grandes metrópoles, encontramos esses tais parasitas, que já inspiraram filmes e livros. Sair da casa 32 dos pais para montar sua própria casa implica na perda de conforto, do qual esses jovens não querem abrir mão. Talvez esse grupo não tenha se dado conta de que não há ganho sem perda e que, para construir algo novo, é preciso aceitar perder alguma coisa, no caso o conforto da casa paterna. No mundo atual, no entanto, muitos optam por continuar parasitando os pais e gastar o que ganham com o próprio prazer, adquirindo bens de consumo, especialmente em uma época em que os custos para manter uma casa são altos, principalmente em capitais, onde uma pessoa pode gastar dois terços do seu salário com a estrita sobrevivência, além do esforço que implica cuidar das próprias coisas. Quanto aos pais, alguns preferem ter seus filhos em casa para protegê-los, e por acreditarem que o adiamento de uma vida independente possibilita a seus filhos saírem da casa parental em melhores condições, na esperança não confessada de que esses os ajudarão na velhice, saldando a dívida para com os pais. Outros pais não aceitam a situação descrita e enxergam esses jovens como parasitas, principais responsáveis pela recessão econômica e pelo declínio da taxa de natalidade. A juvenilização do mundo, embora tenha contribuído muito para a transformação da família e do comportamento de seus membros, não foi o único fator importante para tal mudança. Não se pode desconsiderar a parte que coube aos movimentos sociais das décadas de 60 e 70, principalmente o feminista. Com esse movimento, as mulheres, cada vez mais insatisfeitas de pertencerem ao ambiente doméstico – constituído pela maternidade e pela execução de tarefas domésticas –, passaram a reivindicar uma participação maior no mundo, desejando se realizarem individual e profissionalmente. Nessas condições, a maternidade, vista por certos grupos feministas como um empecilho para o pleno desenvolvimento da mulher, começou a ser questionada e planejada. Em um primeiro momento, esta foi adiada para depois da conclusão dos estudos e, em um segundo momento, para depois da realização profissional. Pesquisas realizadas nessa época, nos Estados Unidos, revelaram que as mulheres americanas se sentiam mais insatisfeitas em suas vidas familiares do que os seus maridos. Este sentimento de insatisfação levou um número elevado 33 de mulheres a desejarem o divórcio, como costuma acontecer em momentos de grandes transformações sociais. De tabu, o divórcio transformou-se em uma reivindicação feminina, principalmente entre as mulheres que conseguiram se inserir no mundo do trabalho, mulheres ativas, capazes de sustentarem a si mesmas e, se necessário aos filhos, por mais que essa posição de únicas provedoras lhes pesasse. Ao longo da década de 60 e 70, saiu de cena o clássico “até que a morte nos separe” e ganhou espaço um novo tipo de relação conjugal, na qual as pessoas se autorizavam a romper a promessa de se manterem juntas até a morte. O divórcio, ao perder sua nódoa de vergonha, amainou o significado que tinha até então de fracasso de um projeto, assim como os filhos de pais separados deixaram de carregar este estigma. O direito ao divórcio foi uma conquista e uma vitória que, no entanto, vem se banalizando ao se tornar a solução natural de casais que se deparam com as primeiras dificuldades da vida a dois, de modo que, em nossos dias, o casamento acaba sendo compreendido como um mero encontro temporário entre dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. Essa característica de transitoriedade vem caracterizando, cada vez mais, a família contemporânea ou pós-moderna, fruto de divórcios, separações e recomposições conjugais. O casamento contemporâneo deixou de se fundamentar na junção de dois patrimônios ou no exercício de uma atividade profissional comum. Seu fundamento atual é, como vimos, o amor que varia com o tempo, visto que esse sentimento parece ter se transformado em problema, pois a tendência dos casais é ficarem juntos apenas enquanto tudo vai bem. O sujeito de nossas sociedades liberais, com a onipotência que o caracteriza, ao procurar a satisfação e o prazer imediato, torna-se incapaz de renúncias exigidas pela constituição de uma família. O primado do “eu” sobre o “nós conjugal” desvaloriza a fidelidade e a constância em prol da auto-realização das potencialidades, colocando a existência conjugal em novos termos. Não se trata mais de o indivíduo se instalar na vida a dois, mas de vivê-la sabendo que o outro é tem a liberdade de reivindicar, a qualquer 34 momento, sua alteridade radical, deixando para
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