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DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO Intersecções entre corpo, gênero e sexualidade, raça e etnia Título Diversidade e educação: intersecções entre corpo, gênero e sexualidade, raça e etnia Jamil Cabral Sierra; Marcos Claudio Signorelli (Orgs.) EQUIPE EDITORIAL COORDENAÇÃO EDITORIAL – Jamil Cabral Sierra e Marcos Claudio Signorelli PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS – Mariana Linczuk REVISÃO DE LINGUAGEM– Maria Regina Giesen PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO – Mariana Linczuk CAPA – Luciana Ferreira Os textos aqui presentes são de inteira responsabilidade, no que se refere a seu conteúdo téorico-metodológico, de seus respectivos autores e autoras. Nem os organizadores, nem a UFPR Litoral tem responsabilidade sobre eles. Diversidade e educação: intersecções entre corpo, gênero e sexualidade, raça e etnia. / Organizadores: Jamil Cabral Sierra; Marcos Claudio Signorelli. Matinhos: UFPR Litoral, 2014. 193 p. ISBN 978-85-63839-21-3 1.Diversidade. 2. Educação. 3. Gênero. 4. Sexualidade. I. Sierra, Jamil Cabral. II. Signorelli, Marcos Claudio. CDD 370 CATALOGAÇÃO NA FONTE Fernando Cavalcanti Moreira, CRB 9/1665 Organizadores Jamil Cabral Sierra Marcos Claudio Signorelli DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO Intersecções entre corpo, gênero e sexualidade, raça e etnia PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Dilma Vana Rousseff MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO José Henrique Paim Fernandes SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E INCLUSÃO (SECADI) Macaé Maria Evaristo dos Santos UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Reitor Zaki Akel Sobrinho Vice-Reitor Rogério Andrade Mulinari Setor Litoral Diretor Valdo José Cavallet Vice-Diretor Renato Bochicchio Coordenação de Integração de Políticas de Educação a Distância - CIPEAD Coordenadora Marineli Joaquim Meier Coordenador do Curso Gênero e Diversidade na Escola Marcos Claudio Signorelli Vice-Coordenador Jamil Cabral Sierra Coordenador de Tutoria Clóvis Wanzinack Coordenador Pedagógico Daniel Canavese de Oliveira Coordenadora do Núcleo de Educação à Distância da UFPR Litoral Ana Christina Duarte Pires Apoio Administrativo Paula L. Brum Produção de Material Didático CIPEAD SUMÁRIO Apresentação........................................................................................................................... 1ª Intersecção – ESTUDOS SOBRE GÊNERO E DIVERSIDADE 1.1 ESCOLARIZAÇÃO DA SEXUALIDADE: APONTAMENTOS PARA UMA REFLEXÃO Maria Rita de Assis César....................................................................................................... 1.2 IGUALDADE DE GÊNERO E CO-EDUCAÇÃO: REFLEXÕES NECESSÁRIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA Daniela Auad.............................................................................................................................. 1.3 VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM DESAFIO PARA A EDUCAÇÃO Marcos Claudio Signorelli..................................................................................................... 1.4 BULLYING E CYBERBULLYING: FACES SILENCIOSAS DA VIOLÊNCIA Clóvis Wanzinack..................................................................................................................... 1.5 TEORIZANDO AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL Aparecida de Jesus Ferreira.................................................................................................. 2ª Intersecção – ESTUDOS SOBRE CORPO E DIVERSIDADE SEXUAL 2.1 DO GUETO À AVENIDA: 30 ANOS DE LUTA DO MOVIMENTO LGBT E A CONQUISTA PROGRAMA BRASIL SEM HOMOFOBIA Alexandre José Rossi............................................................................................................... 2.2 RELAÇÕES DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: AS “MISTURAS” E AS SEPARAÇÕES COMO FORMA DE APRENDIZAGEM Luciano Nascimento Corsino............................................................................................... 2.3 A EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL E A ESCOLA Dayana Brunetto Carlin dos Santos................................................................................... 3ª Intersecção – ESTUDOS SOBRE CORPO E DIFERENÇA 3.1 A NORMALIDADE EM SUSPEITA – OU QUANDO A DIFERENÇA JOGA NO LABIRINTO Juslaine de Fátima Abreu Nogueira................................................................................... 3.2 SOBRE VAMPIROS E OUTROS MONSTROS SEXUAIS Jamil Cabral Sierra.................................................................................................................... 3.3 ANALOGON Luciana Ferreira......................................................................................................................... 09 17 31 49 67 83 107 129 145 171 183 193 9 APRESENTAÇÃO O presente volume que a leitora e o leitor têm em mãos é resultado do empenho de um conjunto de docentes da UFPR Litoral que, já há algum tempo, esforçam-se para implementar nesse setor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, consequentemente, em toda a comunidade litorânea deste estado, inciativas de ensino, pesquisa e extensão voltadas à temática de diversidade e educação (e suas intersecções com corpo, gênero e sexualidade, raça e etnia). Tais inciativas materializam-se na forma de atividades de ensino (seja nos módulos de Fundamentos Teórico Práticos, seja nas atividades de Interação Cultural e Humanística), bem como na forma de atividades de extensão e pesquisa produzidas ao longo dos últimos anos. Parte desse grupo de docentes, por sua vez, também já produziu um curso de extensão em 2007, para membros da comunidade escolar da Rede Municipal de Matinhos/PR.1 E é, com esse mesmo esforço já empenhado anteriormente, que publicamos, agora, essa coletânea de artigos sobre a temática de “Diversidade e Educação”, particularmente - embora não exclusivamente - voltado a um novo projeto: o curso de Gênero e Diversidade na Escola (GDE). Esperamos que, ao encontrar-se com autoras/autores de distintas regiões do país, que aqui se dispuseram a contribuir, leitoras e leitores possam tramar uma inesperada relação com esses escritos. Um encontro com o outro, com o texto-outro (ou com o texto do outro) capaz de reverberar toda a potência que a leitura dessas linhas pode provocar. E, como organizadores, temos certeza de que tal provocação – a provocação tão urgente nesse nosso tempo que aí está – será fundamental nesse trabalho teórico e político de combate às formas de opressão e violência de gênero/sexuais, bem como de classe e raça/ 1Esse grupo de professores/as fazem parte do REGEDI – Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Diversidade Sexual. O REGEDI, por sua vez, já produziu um curso de extensão em 2007, para membros da comunidade escolar da Rede Municipal de Matinhos/PR. Tal ƼNjŸĠsǼŸʰ� ÞŘǼÞǼȖĶ�_Ÿ� ˆNJsʪsǼÞŘ_Ÿ�µyŘsNjŸ� Ř�� rǣOŸĶ�ʲ� �� ÞŎƼŸNjǼ�ŘOÞ�� _s� NjsƼsŘǣ�Nj� OŸŘOsÞǼŸǣ� e preconceitos” foi desenvolvido em parceria com o Grupo de Estudos de Gênero e Tecnologia (GETEC) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), com objetivo de sensibilizar docentes, diretores/as, orientadores/as e zeladores/as das escolas de Matinhos a respeito de questões de gênero, sexualidade e diversidade sexual. 10 etnia que massacram multidões de corpos que, de uma forma ou de outra, não se ajustam ao processo normalizador que se impõe em nossa contemporaneidade. É, portanto, inspirado nesse compromisso – o de combate às formas de opressão e violência do outro - que esse volume traz a público esse conjunto de textos, organizados em três intersecções. Na primeira intersecção, intitulada ESTUDOS SOBRE GÊNERO E DIVERSIDADE, encontra-se o texto Escolarização da sexualidade: DSRQWDPHQWRV�SDUD�XPD�UHÀH[mR, de Maria Rita de Assis César, em que a autora, ao fazer um retrospecto de como se constituiu, no Brasil, o processo de escolarização da sexualidade, nos ajuda a pensar as formas pelas quais a sexualidade ganhou importânciano cenário educacional brasileiro, bem como de que maneira a sexualidade se transformou em um conteúdo escolar, ganhando, inclusive, lugar em políticas públicas, como nos PCNs, por exemplo. Com base nessa constatação, a autora mostra os desdobramentos desse processo de escolarização da sexualidade no campo da educação, o que reforçou, sobremaneira, o dispositivo da sexualidade e a heterossexualidade compulsória. Logo após, temos ,JXDOGDGH�GH�JrQHUR�H�FR�HGXFDomR�� UHÀH[}HV� necessárias para a construção da democracia, de Daniela Auad, texto no qual a autora aborda, com base em sua pesquisa de doutoramento, as relações de gênero nas práticas escolares. Seu estudo teve percepção inovadora e baseou-se na distinção, inédita em nosso país, entre os termos “escola mista” e “coeducação”. A referida distinção possibilitou notar, como um dos resultados da pesquisa, que a maneira pela qual a mistura entre meninos e meninas se impõe na realidade escolar, sem ŸEĠsǼÞɚŸǣ� _sʩŘÞ_Ÿǣ� s� ǣsŎ� Njsʪsɮ�Ÿ� Ƽs_�¶ż¶ÞO�ʰ� ƼŸ_s� ÞŘʪȖsŘOÞ�Nj� Ř�� construção e no reforço de diferenças hierarquizadas entre o masculino e o feminino. Em seguida, há o texto 9LROrQFLD� GH� JrQHUR�� XP� GHVD¿R� SDUD� D� educação, de Marcos Claudio Signorelli, que faz um retrato de como vem sendo constituído, especialmente em âmbito brasileiro, os índices de violência de gênero e sexual. Meticulosamente, o autor aponta os números e dá a eles uma interpretação fundamentada com base no O�ŎƼŸ�_Ÿǣ�rǣǼȖ_Ÿǣ�_s�µyŘsNjŸ�s�ǢsɮȖ�ĶÞ_�_sʰ���ʩŎ�_s�ŎŸǣǼNj�Nj�Ř�Ÿ�ǣż� dados quantitativos, mas também uma análise qualitativa das formas de produção da violência contra a mulher e contra a população LGBT, especialmente travestis e transexuais. 11 Aproveitando o debate em torno da questão da violência, o capítulo Bullying e Cyberbullying: faces silenciosas da violência�ǼNj�ʊ��ǣ�NjsʪsɮƂsǣ� de Clóvis Wanzinack a respeito de duas problemáticas cada vez mais emergentes no cotidiano escolar e que sinalizam aspectos referentes à multiplicação de preconceitos com tudo aquilo que “soa” diferente. Tais situações podem engendrar atos de violências reais, que se materializam de forma física ou psicológica e podem ter como arena tanto ambientes escolares, quanto, com o advento das Tecnologias de Informação e Comunicação, cada vez mais também os ambientes virtuais. Fechando essa primeira parte, temos o texto 7HRUL]DQGR�DV�UHODo}HV� étnico-raciais no Brasil, de Aparecida de Jesus Ferreira. Nele, a autora analisa o chamado “mito da democracia racial” para argumentar que a ideia do Brasil como uma “democracia racial” ainda é um “mito”, já que ainda precisamos de ações que implementem políticas públicas para a igualdade de negros e afrodescendentes no sistema escolar, tanto na Educação Básica como no Ensino Universitário. De acordo com �Ƽ�NjsOÞ_�ʰ�sǣǣ��Njsʪsɮ�Ÿ�w� ÞŎƼŸNjǼ�ŘǼs�s�sǣǣsŘOÞ�Ķʰ�ƼŸNjLJȖs�sĶ��¯ŸNjŘsOs� informações sobre a complexidade das relações raciais existentes no Brasil. Na segunda intersecção, chamada ESTUDOS SOBRE CORPO E DIVERSIDADE SEXUAL, temos o texto Do gueto à avenida: 30 anos de luta do movimento LGBT e a conquista Programa Brasil sem Homofobia, de Alexandre José Rossi, em que o autor se propõe a reconstituir o processo histórico que possibilitou a criação do Programa Brasil Sem Homofobia. O autor argumenta que na década de 1980 a relação entre Movimento LGBT e Estado era marcada por interesses antagônicos e que, a partir da segunda metade da década de 1990, passou a caracterizar-se como parceria, principalmente na execução de políticas públicas voltadas para a prevenção do HIV/AIDS junto à população LGBT. Na sequência, temos 5HODo}HV� GH� JrQHUR� QD� HGXFDomR� ItVLFD� HVFRODU��DV�³PLVWXUDV´�H�DV�VHSDUDo}HV�FRPR�IRUPD�GH�DSUHQGL]DJHP, de Luciano Nascimento Corsino, em que o autor pretende tecer uma análise de como as/os docentes organizam as aulas de Educação ®âǣÞO�ʰ� OŸŘǣÞ_sNj�Ř_Ÿ˚ǣs� �� ŘsOsǣǣÞ_�_s� _s� Þ_sŘǼÞʩO�Nj� OŸŎŸ� ǣ�Ÿ� �ǣ� “misturas” e as separações entre meninas e meninos. Fundamentado sŎ� ȖŎ�� ƼsǣLJȖÞǣ�� sǼŘŸ¶Nj ʩO�ʰ� Njs�ĶÞʊ�_�� sŎ� ȖŎ�� sǣOŸĶ�� sǣǼ�_Ȗ�Ķ� _s� São Paulo, Luciano nos mostra como as formas de organização estão 12 sujeitas às oposições binárias de gênero, que decorrem, segundo ele, de três principais elementos: constituição das identidades de gênero, OŸŘǣǼNjȖYƂsǣ� _s� OŸNjƼŸǣ� ¶sŘsNjÞʩO�_Ÿǣ� s� ǣÞĶsŘOÞ�ŎsŘǼŸ� _Ÿǣ� _Þ¯sNjsŘǼsǣ� OŸŘʪÞǼŸǣ�_s�¶yŘsNjŸʳ� O próximo texto, intitulado A experiência transexual e a escola, de Dayana Brunetto, que resulta de sua pesquisa de mestrado, se propõe ��Njs�ĶÞʊ�Nj�ȖŎ��O�NjǼŸ¶Nj�ʩ��_��ǼNj�ŘǣsɮȖ�ĶÞ_�_s�ŘŸ�OŸŘǼsɮǼŸ�sǣOŸĶ�Njʳ�ƻ�Nj�� tanto, a autora nos apresenta a transexualidade como uma construção histórica da modernidade, assim como é a escola. Dessa maneira, Dayana nos oferece uma análise de narrativas de transexuais sobre a sɮƼsNjÞyŘOÞ�� sǣOŸĶ�Njʰ� EsŎ� OŸŎŸ� ȖŎ�� Njsʪsɮ�Ÿ� ǣŸENjs� �� OŸŘǣǼNjȖY�Ÿ� _�� sǣOŸĶ��Ř��ŎŸ_sNjŘÞ_�_sʰ���ʩŎ�_s�ŎŸǣǼNj�Nj�OŸŎŸ�ǣȖ�ǣ�ƼNj ǼÞO�ǣ�s�_ÞǣOȖNjǣŸǣ� foram e são engendrados em meio a relações de saber-poder (das quais faz parte a experiência transexual) para a produção de corpos dóceis, úteis e governáveis. Na terceira e última intersecção, chamada de ESTUDOS SOBRE CORPO E DIFERENÇA, temos três ensaios sobre o tema, sendo um deles constituído a partir de um trabalho de arte visual. O primeiro, chamado A normalidade em suspeita – ou quando a diferença joga no labirinto, de Juslaine de Fátima Abreu Nogueira, busca pistas no discurso literário de “A casa de Astérion”, conto de Jorge Luis Borges, para problematizar os olhares sobre a alteridade, ou seja, o outro que é lido nos mecanismos de exclusão e, fundamentalmente, o outro que tem sido discursivizado no jogo retórico da inclusão. Desse modo, a autora, ao alimentar-se da palavra literária de Borges, convoca-nos a uma experiência da subversão do olhar, algo que parece ser vital para LJȖs�ǣsĠ�ŎŸǣ�ƼNjŸɚŸO�_Ÿǣ���_sǣOŸŘʩ�Nj�_sǣǣ��ŎsǣŎÞʩO�_��NjsĶ�Y�Ÿ�OŸŎ� �� �ĶǼsNjÞ_�_sʰ� sŎ� sǣƼsOÞ�Ķ� OŸŎ� Ÿ� _sʩOÞsŘǼs�ŎsŘǼ�Ķʰ� OȖĠŸ� Nj�OÞŸOâŘÞŸ� w� sempre acionado com base em uma única espacialidade possível: a da normalidade. O segundo texto dessa interseção é Sobre vampiros e outros monstros sexuais, de Jamil Cabral Sierra, ensaio em que o autor, ao traçar uma analogia entre o universo vampiresco e o universo homossexual, dá pistas de como podemos entender o processo de construção do diferente. Recorrendo a estudos de Foucault e Derrida, o texto constrói, com base em referências que vêm da literatura e do cinema vampirescos, fundamentos para compreender as formas de constituição do horror à diferença, especialmente do horror à diferença de gênero/sexual. 13 O último trabalho, um projeto de arte visual intitulado Analogon, de Luciana Ferreira, procura compor, a partir da técnica de colagem sobre pintura, um quadro imagético que tematiza os limites do corpo, suas dobras e curvas, suas imposições e intersecções, bem como explora a constituição da ideia de monstruosidade justamente para, de seu interior, pensar formas de subversão das noções de norma/anormal. É esse, portanto, o horizonte que está à espera de sua leitura. ȕŎ��ĶsÞǼȖNj��LJȖs�_sǣsĠ�ŎŸǣʰ�OŸŎ��ʩŘOŸʰ�ǣsNj�ƼNjŸɚsÞǼŸǣ��s�OŸŘ¯NjŸŘǼ�ǼÞɚ�ʰ� de modo a constituir outras possibilidades de olhar para os fenômenos que envolvem a temática de Gênero, Diversidade e Educação. Boa leitura! Os organizadores. ESTUDOS SOBRE GÊNERO E DIVERSIDADE 1ª Intersecção 17 ESCOLARIZAÇÃO DA SEXUALIDADE: APONTAMENTOS PARA UMA REFLEXÃO¹ Maria Rita de Assis César 1 INTRODUÇÃO A escolarização da sexualidade no Brasil não é uma particularidade das últimas décadas, ao contrário, a educação sexual constituiu uma preocupação que remonta às primeiras décadas do século passado. Nos anos 20 e 30 do século XX, a educação sexual era uma preocupação para médicos, intelectuais, professores e professoras que povoavam o universo educacional brasileiro naquela época. Em 1933, foi fundado, no Rio de Janeiro, o Círculo Brasileiro de Educação Sexual,que produziu o Boletim até o ano de 1939 (VIDAL, 2002). Ao contrário daquilo que se habituou a pensar a respeito da ocultação ǣŸENjs�Ÿ�ǣsɮŸ�s��ǣ�ƼNj ǼÞO�ǣ�ǣsɮȖ�Þǣʰ�_sǣ_s�Ÿ�ʩŘ�Ķ�_Ÿ�ǣwOȖĶŸ�ɭəÝÝÝ�Ÿ�ǣsɮŸ�Ġ � era objeto de discussões entre médicos e educadores que defendiam a presença de uma educação, tanto para a higiene sexual dos jovens, como para o desempenho das identidades de gênero. Inclusive, já existia um debate entre aqueles/as que defendiam uma educação sexual baseada em preceitos morais e outros que defendiam uma educação sexual que sɮƼĶÞO�ǣǣs�OÞsŘǼÞʩO�ŎsŘǼs��ǣ�¯ȖŘYƂsǣ�ʩǣÞŸĶż¶ÞO�ǣʰ�OŸŎ�Þ_sÞ�ǣ�O�ĶO�_�ǣ� no positivismo. Desse modo, os saberes da ciência e da psicologia eram mobilizados para que crianças e jovens pudessem ser informados sobre ǣsŘǼÞŎsŘǼŸǣʰ�Njs�YƂsǣ�sŘ_żONjÞŘŸ˚ʩǣÞŸĶż¶ÞO�ǣ�sʰ�ǣŸENjsǼȖ_Ÿʰ���NjsǣƼsÞǼŸ�_Ÿ� futuro e dos procedimentos sexuais para uma vida adulta saudável e feliz (CÉSAR, 2009) No Brasil, o Círculo Brasileiro de Educação Sexual reproduzia as ideias que circulavam na Europa e nos Estados Unidos no período sŘǼNjs�Ÿ�ʩŘ�Ķ�_Ÿ�ǣwOȖĶŸ�ɭÝɭ�s��ǣ�ƼNjÞŎsÞNj�ǣ�_wO�_�ǣ�_Ÿ�ǣwOȖĶŸ�ɭɭʳ�^Ȗ�ǣ� preocupações eram centrais naquele momento: a higiene, que dizia respeito aos cuidados com o próprio corpo, e a moral e o eugenismo, 1Este texto possui algumas partes em versão atualizada, expandida e revisada do texto anteriormente publicado nos Cadernos Temáticos – Sexualidade, da SEED – PR. (PARANÁ, 2009). 18 que consistiam em um debate importante para a ciência nesse período. O eugenismo preocupava-se com as questões relativas à descendência, à “raça” e à transmissão de características indesejáveis que, por sua vez, produziria indivíduos “inferiores”, enfraquecendo toda uma população. Nessa perspectiva, o eugenismo era o saber que dava suporte ao “novo racismo” que supostamente tinha as suas bases na OÞyŘOÞ�ʳ� rŎEŸNj�� ÌŸȖɚsǣǣs� ʩĶżǣŸ¯Ÿǣ� s� Ƽs_�¶Ÿ¶Ÿǣ� LJȖs� OŸŎE�ǼÞ�Ŏ� Ÿ� eugenismo e vislumbravam suas consequências nefastas, a maior parte dos intelectuais que defendiam a educação sexual da juventude tinha por pressuposto o higienismo e o eugenismo. No ano de 1922, o importante reformador educacional brasileiro, Fernando de Azevedo, respondeu a um inquérito promovido pelo Instituto de Higiene da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, sobre educação sexual. Naquela ocasião, o intelectual destacava a importância do ensino da matéria para o ‘interesse moral e higiênico do LQGLYtGXR¶ e para o µLQWHUHVVH�GD�UDoD¶ (MARQUES, 1994). Nascia, então, o interesse da educação nacional pela educação sexual como objeto de ensino nas escolas brasileiras. Nos primeiros anos da década de 1960, antes da ditadura militar, o Brasil vivia um clima de renovação pedagógica. E foi justamente nesse período que o tema da educação sexual retornou para o discurso pedagógico. Nessa segunda onda da educação sexual brasileira, escolas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte organizaram programas para os seus alunos. Nas escolas paulistas destacaram- se as experiências desenvolvidas tanto na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo quanto no Colégio Vocacional e nos Colégios Pluricurriculares.�rǣǣ�ǣ�sɮƼsNjÞyŘOÞ�ǣ�sǣƼsOâʩO�ǣ�_s�s_ȖO�Y�Ÿ� sexual e todas as demais experiências pedagógicas originadas nessas instituições foram reprimidas e suprimidas pela ditadura militar. Naquele período, o interesse crescente pela educação sexual entre as/ os educadoras/es brasileiros levou a deputada federal Júlia Steimbruck, em 1968, a apresentar um projeto de lei propondo a introdução da educação sexual obrigatória nas escolas primárias e secundárias do país (WEREBE, 1998). Entretanto, as objeções ao projeto de lei, elaboradas pelos membros da comissão designada para a sua apreciação, tinham um caráter moralista e repressor que compatibilizava com a própria ditadura militar. No início dessa era moralista e ditatorial, em 1965, uma portaria do secretário de Estados dos Negócios da Educação do Estado de São Paulo proibiu professores do ensino secundário, em especial os de Biologia e de Sociologia, de exporem nas escolas temas sobre a sexualidade e sobre a contracepção (WEREBE, 1998). 19 Como a ditadura, impôs um regime de controle e moralização dos costumes, especialmente decorrente da aliança entre os militares e o majoritário grupo conservador da Igreja Católica. Assim, a educação ǣsɮȖ�Ķ� ¯ŸÞ� _sʩŘÞǼÞɚ�ŎsŘǼs� E�ŘÞ_�� _s� LJȖ�ĶLJȖsNj� _ÞǣOȖǣǣ�Ÿ� Ƽs_�¶ż¶ÞO�� por parte do Estado, e toda e qualquer iniciativa escolar suprimida com rigor. Todavia, as iniciativas que conseguiam resistir e burlar o controle tornaram-se experiências de resistência e, nas décadas seguintes, a educação sexual foi tomada como um dos marcos educacionais das lutas pela democratização do país. Assim, podemos observar uma mudança de lugar dos discursos sobre a sexualidade e a educação sexual no Brasil: nas primeiras décadas do século XX, como projeto positivista de modernização da sociedade, com bases higiênicas e eugênicas e, posteriormente, sob o ethos da luta pela democratização, sob a égide dos movimentos sobre os direitos das mulheres. Entre as décadas de 1970 e 1980, nas lutas contra a ditadura e especialmente no decorrer do processo de redemocratização, as experiências e projetos de educação sexual foram fortemente ligados a intelectuais feministas. Estas iniciativas partiam de uma crítica à hierarquia de gênero que, por sua vez, suprimia os direitos das mulheres de gerirem seus próprios corpos. Entre as principais intelectuais que escreveram e desenvolveram projetos sobre a educação sexual é importante destacar os trabalhos de Carmem Barroso e Cristina Brusquini. Essas autoras, desde o início dos anos de 1970, já realizavam experiências de educação sexual e estudos sobre a condição feminina no Brasil, iniciando uma linhagem de estudos que se desenvolveu a partir dos anos de 1980 (BARROSO, 1980, 1982; BRUSQUINI; BARROSO, 1983). 2 SEXUALIDADE, ESCOLA E OS PCNS Com base em diferentes perspectivas, desde o início do século XX, a relação entre sexualidade e escola foi um dado bem estabelecido. Entretanto, seria interessante analisar melhor a relação entre a escola e o “sexo bem educado”, mesmo que o conceito de “sexo bem educado” tenha se transformado ao longo do século XX. Para realizar essa indagação seria necessário investigar o papel atribuído à escola, além dos processos de escolarização dos corpos de crianças e jovens nos últimos duzentos anos. Esta análise seria necessária para então entendermos o transcurso do processo de escolarização dos indivíduos e dos conhecimentos que nos informam sobre as transformações dos saberes gerais em disciplinas escolares. Hoje, na presença de uma história da educação marcada por descontinuidades históricas que 20 demonstra a difícil construção da institucionalização do ensino ao longo _Ÿ�ǣwOȖĶŸ�ɭÝɭʰ�ʩO��Ŏ�Þǣ� ¯ OÞĶ�sŘǼsŘ_sNj�Ÿ�O�Nj ǼsNj��NjǼÞʩOÞ�Ķ�_s�ǼŸ_Ÿǣ�Ÿǣ� elementos que compõem o universo escolar (DUSSEL; CARUSO, 2003). Se tomarmos essa história da educação que demonstra a organização da instituição escolar fundamentada nos processos disciplinadores que, por sua vez, produziram a modernidade urbana e industrial, a escola ocupa o lugar privilegiado do processo de disciplinarização dos corpos ÞŘ¯�ŘǼÞǣʳ�ŗŸ�ʩŘ�Ķ�_Ÿ�ǣwOȖĶŸ�ɭəÝÝÝʰ�Ÿ�ʩĶżǣŸ¯Ÿ��ĶsŎ�Ÿ�rŎŎ�ŘȖsĶ�ħ�ŘǼʰ�ƼŸNj� ocasião de suas preocupações acerca da preparação de professores Ƽ�Nj���ǼȖ�NjsŎ�Ř�ǣ�sǣOŸĶ�ǣʰ�sŎ�ȖŎ�OȖNjǣŸ�_s�ʩĶŸǣŸʩ��ƼNjŸ¯sNjÞ��ĶÞYƂsǣ�ǣŸENjs� ��Ƽs_�¶Ÿ¶Þ�ʳ�ŗsǣǣ�ǣ��ȖĶ�ǣʰ�Ÿ�ʩĶżǣŸ¯Ÿ�ƼNjŸOĶ�Ŏ�ɚ��LJȖs�Ÿ�Ƽ�ƼsĶ�_��sǣOŸĶ�� era fazer com que crianças se habituassem a permanecer sentadas e �ǼsŘǼ�ǣ��ǣ�ŸNj_sŘǣ�_Ÿ�ƼNjŸ¯sǣǣŸNjʳ��ĶwŎ�_ÞǣǣŸʰ�ħ�ŘǼ�_ÞʊÞ��LJȖs���¯�ĶǼ��_s� disciplina era muito pior que a falta de cultura (VEIGA-NETO, 2000). Ao proferir estas, que seriam as primeiras aulas sobre a pedagogia na ŎŸ_sNjŘÞ_�_sʰ�ħ�ŘǼ�_sʩŘÞ��ȖŎ�Ƽ�ƼsĶ�Ƽ�Nj����ÞŘǣǼÞǼȖÞY�Ÿ�sǣOŸĶ�Njʰ� ÞǣǼŸ�wʰ� ensinar crianças a serem disciplinadas. Se relacionarmos, então, a escolarização a disciplinarizaçãode corpos infantis, a educação do sexo encontra o seu lugar na escola na própria conformação da instituição escolar. A história da educação, ao longo dos séculos XIX e XX, cada vez mais demonstra as experiências escolares do aprendizado corporal, por meio dos dispositivos disciplinares, nos quais as regras de higiene e saúde física, mental e sexual concorrem para a formação de corpos saudáveis e disciplinados. Assim, o “sexo bem educado” se apresenta como parte fundamental desse processo, mesmo que este não seja abordado sob a rubrica _s�ȖŎ��_ÞǣOÞƼĶÞŘ��sǣƼsOâʩO�ʰ�ƼŸÞǣ��� Njs¶ȖĶ�Y�Ÿ�_Ÿ�ǣsɮŸ�s�_�ǣ�ƼNj ǼÞO�ǣ� sexuais entre crianças e jovens nas escolas e colégios foi uma tônica na conformação da pedagogia moderna (COSTA, 1983). A instituição escolar se transformou ao longo do século XX. Ora conservadora, ora revolucionária, ora progressista, ora tradicionalista. Entretanto, a partir dos anos de 1970, na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos pelos direitos civis, as lutas feministas, os movimentos gays e lésbicos e as reivindicações étnico-raciais produziram suas marcas no discurso sobre a escola. As análises sobre as instituições escolares apontavam-na como “aparelho ideológico do estado”, como “lugar da reprodução social”, além de perceberem as metodologias de ensino como meras operações depositórias de conhecimentos, entre outras críticas fundamentais (SILVA, 1999). Assim, a escola não poderia mais se manter incólume diante de tantas críticas. 21 Percebia-se, principalmente, que o modelo escolar estava em crise e esta crise não dizia respeito somente à escola, pois aquilo que ǣs� _sʪ�¶Nj�Nj�� sNj�� �� ȖŎ�� ONjÞǣs� _��ŎŸ_sNjŘÞ_�_sʳ�ŗŸ� DNj�ǣÞĶʰ� �� ONjÞǣs� _�� educação tomava contornos ainda mais sérios, na medida em que o processo de consolidação da modernidade educacional não se constituíra plenamente, vide ainda no presente as remanescentes taxas de analfabetismo e os nove milhões de jovens, em idade de ¯NjsLJȖsŘǼ�NjsŎ�Ÿ�sŘǣÞŘŸ�Ŏw_ÞŸʰ�¯ŸNj��_��sǣOŸĶ�ʰ��ĶwŎ�_�ǣ�ÞŘǣÞ¶ŘÞʩO�ŘǼsǣ� taxas de escolarização superior. Voltemos à questão sobre o ensino ou a escolarização da sexualidade. Em resposta à crise, a partir de 1996, surge no Brasil os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Assim, o governo federal pretendia resolver todos os problemas relativos à educação no Brasil. Inspirado pela reforma espanhola, o governo brasileiro tomava a concepção dos temas transversais e instituía a educação sexual ou orientação sexual, como foi denominado, como um dos temas a serem trabalhados transversalmente ao currículo. O fascículo sobre o tema transversal Orientação Sexual, publicado sŎ�ˠ˨˨˦ʰ� OŸŘǣŸĶÞ_ŸȖ�_sʩŘÞǼÞɚ�ŎsŘǼs� �� sǣOŸĶ�NjÞʊ�Y�Ÿ�_�� ǣsɮȖ�ĶÞ_�_sʳ� A partir de então os debates se dividiram entre aquelas/es que defendiam orientação/educação sexual como uma disciplina, como garantia de abordagens dentro das iniciativas curriculares; e aquelas/es que a defendiam como tema transversal, pois assim poderia habitar as múltiplas abordagens disciplinares. Todavia, esse debate, que não será aqui desenvolvido, poderá fornecer algumas pistas para pensarmos sobre a pergunta primeira, sobre o lugar da sexualidade na escola. Partiremos, então, do dado, pois se espera que a escola realize uma educação/orientação sexual, salvo casos isolados de frentes religiosas e ultraconsevadoras. Tomemos uma vez mais o sexo, a sexualidade e a educação/orientação sexual como um dado dentro do universo escolar. ^sǣǣs�ŎŸ_Ÿʰ� ɚ�ŎŸǣʰ� �� Ƽ�NjǼÞNj� _�LJȖÞʰ� Njs�ĶÞʊ�Nj� ȖŎ�� Njsʪsɮ�Ÿ� �OsNjO�� _Ÿ� campo de questionamentos da sexualidade. 3 O SEXO REI ŷ�ʩĶżǣŸ¯Ÿ�¯Nj�ŘOyǣ�ōÞOÌsĶ�®ŸȖO�ȖĶǼ�ʹˠ˨ˡ˥�˛�ˠ˨˧ˣʺ�ƼNjŸ_ȖʊÞȖ�ȖŎ��ŸENj�� em três volumes, intitulada História da Sexualidade, entre 1976 e 1984. Em 1976, publicou o primeiro volume que recebeu o subtítulo de A vontade de saber (FOUCAULT, 1984). Os leitores que buscavam maior compreensão acerca da história do sexo e das práticas sexuais através 22 dos tempos, na tentativa de entenderem o binômio entre a repressão sexual e a liberação do sexo nos anos setenta, encontravam dentre as teses do autor uma percepção da sexualidade como uma criação discursivo-institucional, cuja função seria o controle dos indivíduos e das populações. Assim, o autor separava o sexo da sexualidade, e demonstrava que o sexo seria um ponto de injunção fundamental das práticas de controle populacional do século XIX, e que o nome dado a esse dispositivo de controle era sexualidade. ƻŸNj� ŎsÞŸ� _s� ȖŎ�� ÌÞǣǼŸNjÞŸ¶Nj�ʩ�� ŎȖÞǼŸ� NjsʩŘ�_�ʰ� sǣǣs� �ȖǼŸNj� demonstrou a criação e o desenvolvimento de uma maquinaria de OŸŘǼNjŸĶs� _Ÿ� ǣsɮŸ� _Ÿǣ� ÞŘ_Þɚâ_ȖŸǣʰ� ƼŸNj�ŎsÞŸ� _�� _sʩŘÞY�Ÿ� _Ÿǣ� ĶȖ¶�Njsǣ� sǣƼsOâʩOŸǣʰ�_�ǣ� ¯�Ķ�ǣ�s�_�ǣ�ƼNj ǼÞO�ǣ�_Ÿ�ǣsɮŸʳ�®ŸNj�Ŏ�_sŎŸŘǣǼNj�_�ǣ��ǣ� demarcações em torno das práticas sexuais que, mediante um controle rígido, gerado pelos saberes institucionalizados como a medicina, a psiquiatria, a pedagogia e psicologia, demarcaram os territórios e as subjetividades, entre a legitimidade e a anormalidade. Em um processo de estabelecimento de fronteiras, a sexualidade foi o instrumento dessa separação que, por sua vez, criou as delimitações entre uma prática sexual bem educada e as outras, que deveriam ŸOȖƼ�Nj� ȖŎ� ĶȖ¶�Nj� ÞŘ_sʩŘÞ_Ÿʰ� ŸȖ� _sŎ�NjO�_Ÿ� ƼsĶ�� sɮOĶȖǣ�Ÿʳ� ŷ� ǣsɮŸ� bem educado, ou normatizado, isto é, as práticas heterossexuais, monogâmicas, consolidadas pelo matrimônio e reprodutivas, eram assistidas pelos olhares e ouvidos atentos de médicos e psiquiatras, que ƼŸ_Þ�Ŏ��Ǽw�ŎsǣŎŸ�ƼNjsǣONjsɚsNj�Ŏ�Þǣ�ǣsɮŸ�s���ÞŘǼsŘǣÞʩO�Y�Ÿ�_Ÿ�ƼNj�ʊsNjʳ� As práticas outras deveriam ocupar o lugar das margens e também serem esquadrinhadas por médicos e terapeutas para produzirem ǣ�EsNjsǣ�s�_sʩŘÞNjsŎ��ǣ�OŸŘʩ¶ȖNj�YƂsǣ�_sǣǣsǣ�ŸȖǼNjŸǣ�_��ǣsɮȖ�ĶÞ_�_sʰ�Ÿ� homossexual, a histérica, o onanista, etc. Assim, o conceito de sexualidade, tal como foi elaborado no século XIX, ao tratar das práticas políticas das populações, tendo como função Ÿ�OȖÞ_�_Ÿ�Ƽ�Nj�� OŸŎ�ȖŎ��ƼŸƼȖĶ�Y�Ÿ�sǣƼsOâʩO�ʰ� sĶ�EŸNjŸȖ��ǣ�ƼŸĶâǼÞO�ǣ� de saúde, habitação, casamentos, a urbanização das cidades e, em OŸŘǼNj�Ƽ�NjǼÞ_�ʰ� ǼȖ_Ÿ��LJȖÞĶŸ�LJȖs�Ř�Ÿ�OŸNjNjsǣƼŸŘ_Þ����_sʩŘÞY�Ÿ�_s�ȖŎ�� população forte e saudável foi relegado às práticas de exclusão. Desse modo, vemos nascer um conceito de sexualidade, sendo o único que pertence a nossa história, como a justa medida de separação entre normalidade e anormalidade. Em se tratando da nossa história ocidental, as práticas de exclusão são inumeráveis e se deram em ŘŸŎs� _Ÿ� _ÞǣOȖNjǣŸ� OÞsŘǼâʩOŸ� s� ÞŘǣǼÞǼȖOÞŸŘ�Ķʰ� OŸŎŸ� _sŎŸŘǣǼNj�_Ÿ� ƼŸNj� 23 Michel Foucault e outros autores que realizaram pesquisas posteriores. Foucault, na mesma História da Sexualidade, dizia que talvez haveria um tempo em que deixaríamos de lado o dispositivo da sexualidade e passaríamos a nos indagar tendo em vista uma perspectiva de corpos e prazeres, abandonando esse dispositivo de nomeação dos sujeitos sexuais e de exclusão. No entanto, não se pode dizer que o dispositivo da sexualidade tenha sido abandonado, pois três décadas após os seus escritos, todavia, vemos alguns deslocamentos dessa ideia, isto é, talvez não exista mais uma preocupação com a masturbação das crianças, entretanto, percebemos uma verdadeira obsessão com seu corpo e sua saúde. No decorrer das décadas de 1980 e nas décadas posteriores, a discussão sobre a educação sexual nas escolas foi se centrando na tentativa de elaboração das práticas pedagógicas que se distanciassem _�� ƼsNjǣƼsOǼÞɚ�� _�� EÞŸĶŸ¶Þ�� s� _�� ʩǣÞŸĶŸ¶Þ�� _Ÿǣ� żNj¶�Ÿǣ� s� �Ƽ�NjsĶÌŸǣʳ� Todavia, muitas das práticas se resumiam às aulas de ciências, mas sǣƼsOÞʩO�ŎsŘǼs� ŘŸ� OŸŘǼsȚ_Ÿ� _�� �ŘǼÞ¶�� ˦̭� ǣwNjÞsʰ� LJȖ�Ř_Ÿ� �� ¶Nj�_s� OȖNjNjÞOȖĶ�Nj�_sʩŘÞȖ�Ÿ�OŸŘǼsȚ_Ÿ�OŸŎŸ�Ÿ�OŸNjƼŸ�ÌȖŎ�ŘŸʳ��Ƽżǣ�Ÿ�sǣǼȖ_Ÿ� _Ÿǣ� �Ƽ�NjsĶÌŸǣ� OÞNjOȖĶ�ǼżNjÞŸʰ� NjsǣƼÞNj�ǼżNjÞŸʰ� _Þ¶sǣǼÞɚŸʰ� ŘŸ� ʩŘ�Ķ� _Ÿ� �ŘŸ� letivo, o currículo de ciências dedicava-se ao estudo dos “aparelhos reprodutores”, masculino e feminino. Nesse momento, se aproveitava para mostrar imagens de órgãos genitais deformados por enfermidades ˆɚsŘwNjs�ǣˇʳ��ǣǣÞŎʰ�_sǣʩĶ�ɚ�Ŏ�ŘŸŎsǣ�OŸŎŸ�ǣâʩĶÞǣʰ�¶ŸŘŸNjNjwÞ�ʰ�O�ŘONjŸ�_ȖNjŸ�s�ŎŸĶsʰ�̂ ONjÞǣǼ��_s�¶�ĶŸˇʰ�sŘʩŎʰ�ȖŎ��ÞŘʩŘÞ_�_s�_s�ÞŎ�¶sŘǣ�LJȖs��ǣǣŸOÞ�ɚ�� a prática sexual às enfermidades. Dentre as primeiras iniciativas nas escolas brasileiras, as “caixinhas de dúvidas”, já existentes desde os �ŘŸǣ�_s�ˠ˨ˤ˟�ŘŸǣ�rǣǼ�_Ÿǣ�ȕŘÞ_Ÿǣ�s�Ř��rȖNjŸƼ�ʰ� ǣs�ʩʊsNj�Ŏ�ƼNjsǣsŘǼsǣ� nos processos de escolarização da sexualidade. Depositadas as dúvidas, estas seriam sanadas por meio da mais pura língua da ciência. A partir da segunda metade da década de 1980, o Estado brasileiro, em virtude das pressões advindas das organizações não governamentais que desenvolviam importantes projetos de prevenção do HIV/AIDS, começou a se preocupar com a contaminação de jovens em idade escolar e apoiou iniciativas de educação sexual nas escolas. Além do HIV/AIDS, a gravidez na adolescência era também um mote para os projetos. Os métodos contraceptivos, o uso da “camisinha”, a “hora certa” para a primeira relação sexual, ou o “exercício da sexualidade responsável”, foram os temas encaminhados pelos projetos escolares (XAVIER FILHA, 2009). 24 Quase um século depois da primeira iniciativa de um programa de educação sexual nas escolas brasileiras, o “sexo bem educado” não mais pertencia ao universo do esclarecimento positivista, mas ocupava outros lugares como a responsabilidade, a saúde e o bem viver. No cenário educacional contemporâneo a escolarização da sexualidade tomou rumos diversos, como a psicologia do desenvolvimento, a sociologia das representações sociais, a própria ʩǣÞŸĶŸ¶Þ��_��ǣ�Ț_sʰ�sŘǼNjs��ǣ�Ŏ�Þǣ�_Þ¯sNjsŘǼsǣ��EŸNj_�¶sŘǣ�s�OŸŎEÞŘ�YƂsǣʰ� como por exemplo, a exótica parceria entre prevenção de drogas e a sexualidade, que representa uma ligação bastante comum nos projetos escolares. Uma vez mais vou reportar à história e ao conceito de sexualidade Ǽ�Ķ� OŸŎŸ�_sʩŘÞȖ�ōÞOÌsĶ� ®ŸȖO�ȖĶǼʰ� ƼŸÞǣ� ƼsŘǣŸ� ǣsNj� sǣǣs� ȖŎ� ÌŸNjÞʊŸŘǼs� importante para que pensemos sobre a escolarização da sexualidade. Desse ponto de vista, a educação/orientação sexual se apresenta como um dispositivo de controle, pois é justamente na instituição escolar que se instauraram os dispositivos disciplinares sobre os corpos de crianças e jovens. Para Guacira Lopes Louro (1999), a escola, junto com outras instâncias sociais, é uma entre as múltiplas instituições que exercitam uma pedagogia da sexualidade e do gênero. Embora os PCNs tenham se apresentado como um referencial ʪsɮâɚsĶ�Ƽ�Nj��¯ŸŎsŘǼ�Nj���sĶ�EŸNj�Y�Ÿ�_s�ƼNjŸƼŸǣǼ�ǣʰ�ƼŸ_sŘ_Ÿ�ŸȖ�Ř�Ÿ�ǣsNj� adotado pelas escolas, esse material teve um impacto muito grande na educação brasileira. Foram publicados muitos livros sobre os temas transversais e a sexualidade, inúmeros cursos e palestras assolaram o país demarcando uma posição importante ocupada pelas políticas de governo. Embora em muitos estados os PCNs estejam em desuso, inclusive com os estados realizando propostas próprias de diretrizes e currículos, a marca dos PCNs e dos temas transversais permanece no imaginário de professoras e professores. NŸŎŸ� �ʩNjŎ�� ËsĶsŘ�� �ĶǼŎ�Ř� ʹˡ˟˟ˠʺʰ� Ǽ�ŎEwŎ� �ŎƼ�Nj�_�� ƼsĶŸ� referencial foucaultiano, em sua análise os PCNs provocam uma incitação ao discurso sobre o sexo na escola, isto é, uma verdadeira explosão discursiva. Dentro dos pressupostos dos temas transversais, “a orientação sexual deve impregnar toda a área educativa” (p.127) Por meio da incitação ao discurso do sexo, aprendemos com Foucault que se instaura os mecanismos de controle sobre os corpos dos indivíduos, exercido não dentro de um sistema de punições e proibições, mas 25 sim por meio de mecanismos que produzem sujeitos e seus corpos sexuados, ou exercem um controle sobre uma forma ideal de viver a sexualidade. As análises realizadas sobre os PCNs demonstram que estes possuem uma abordagem preventiva. Prevenir as práticas sexuais de “risco” seria a tônica desta forma ideal de sexualidade. A partir desse ponto importante é possível traçarmos os limites entre o controle sobre os corpos e o sexo e as formas de resistir ao controle. 4 OS LUGARES DA CRÍTICA É importante lembrarmos que qualquer decisão teórica e epistemológica é também política. Em se tratando da escolarização da sexualidade é muito importante que se analise as implicações das ƼŸĶâǼÞO�ǣ�_s�ǣsɮȖ�ĶÞ_�_s�Ř�ǣ�ÞŘǣǼÞǼȖÞYƂsǣ�sŎ�¶sNj�Ķʰ�s�ŘŸ�O�ǣŸ�sǣƼsOâʩOŸʰ� na escola. Lembremos também que o dispositivo da sexualidade, ao produzir os controles sobre os corpos e populações, instaurou um regime de heterossexualidade compulsória, produzindo o ‘outro’ da sexualidade ou as sexualidade ‘fora da norma’. A heterossexualidade compulsória é um conceito a partir do qual Judith Butler (1999) analisou as relações de poder entre homens e mulheres e homossexualidade e heterossexualidade nas relações sociais. Contemporaneamente, após realizadas todas as operações e problematizações sobre o dispositivo da sexualidade, se encontrarmos um lugar para a ‘sexualidade’ na instituição escolar, isto será a partir de uma perspectiva crítica radical (pós-estruturalista). Nesse sentido, w� ÞŎƼŸNjǼ�ŘǼs� LJȖs� ǼsŘÌ�ŎŸǣ� _sŎ�NjO�_Ÿ� ȖŎ� O�ŎƼŸ� sǣƼsOâʩOŸ� _s� abordagem na instituição escolar, isto é, as perspectivas analíticas NjsǣƼŸŘǣ ɚsÞǣ� ƼsĶ�� _sʩŘÞY�Ÿ� _s� ȖŎ� O�ŎƼŸ� _s� ǼsŎ�ǣ� s� ƼNjŸEĶsŎ�ǣ� que problematizem a presença da heterossexualidade como norma, a hierarquia de gênero e os múltiplos sujeitos sexuais. É importante ressaltar que, como um tema transversal, a sexualidade tornou-se “hipersaturada”, na medida em que poderia aparecer em todos os lugares e todos os momentos e, principalmente, falar-se-ia o tempo todo e de todos os modos. Todavia, é importante lembrar que o ˆ¯�Ķ�ǼżNjÞŸˇ�¯ŸÞ���Ŏ�ŘsÞNj��Ŏ�Þǣ�sʩOÞsŘǼs�_s�OŸŘʩNjŎ�Nj��ǣ�ŘŸNjŎ�ǣ�s�Njs¶Nj�ǣ� do dispositivo da sexualidade. Recusando as possibilidades majoritárias sobre as formas de escolarização da sexualidade, abre-se a perspectiva de produzir outros lugares. Além das implicações conhecidas, é importante ressaltar que 26 a presença da sexualidade na escola pode também ser uma estratégia _s��Y�Ÿ�ƼŸĶâǼÞO�� OŸŘǼNj��ŎȖÞǼ�ǣ� OŸÞǣ�ǣ�LJȖs�ʩO�Nj�Ŏ�sǣǼ�EsĶsOÞ_�ǣ�ƼsĶŸ� dispositivo da sexualidade. Além do encontro com as perspectivas pós- estruturalistas dos estudos de gênero e da sexualidade, as teorizações queer são muito profícuas para a denúncia das normatizações, das violências contra os múltiplos sujeitos sexuais e a localização e reconhecimento de modos de vida outros e outras sexualidades além _��ŘŸNjŎ�ʳ�^sǣǣs�ŎŸ_Ÿʰ�NjsOȖǣ�Nj�Ÿǣ�ĶȖ¶�Njsǣ�_sʩŘÞ_Ÿǣ�Ƽ�Nj��Ÿǣ�¶yŘsNjŸǣ� e as sexualidades, desde uma perspectiva masculina e heterossexual, ǣÞ¶ŘÞʩO��Ǽ�ŎEwŎ�NjsOŸŘǣǼNjȖÞNj�Ÿǣ�ǣÞ¶ŘÞʩO�_Ÿǣ�_Ÿǣ�OŸNjƼŸǣʰ�_Ÿǣ�_sǣsĠŸǣ�s� prazeres. Também partindo da perspectiva dos estudos pós-estruturalistas e das teorizações queer e, sobretudo, radicalizando os questionamentos, entende-se que uma cultura organizada a partir da heterossexualidade compulsória será sempre responsável também por uma “heteronormatividade” curricular, isto é, a percepção de que o currículo possui uma matriz heterossexual. Assim, a teoria queer de currículo não trata da simples incorporação do outro, pois esta seria uma ação originária das “políticas de tolerância” que assumem a existência do EÞŘžŎÞŸ�ŘŸNjŎ�Ķˀ�ŘŸNjŎ�Ķʰ� Ƽ�OÞʩO�Ř_Ÿ��� �ĶǼsNjÞ_�_s� ʹNrǢ�NJʰ� ˡ˟ˠˠʺʳ��Ÿ� contrário disso, a teoria queer questiona as condições de possibilidade de um conhecimento. Ao tratar da teoria queer, Guacira Lopes Louro (2004) diz que “[...] há limites para o conhecimento: nessa perspectiva, parece importante indagar o que ou quanto um dado grupo suporta conhecer” (p.65). Os limites do discurso do sexo são marcados por sua concepção naturalizada, a-histórica e consequentemente imutável. Nessa ƼsNjǣƼsOǼÞɚ�� Ÿ� ǣsɮŸ� sǣǼ � OŸŘʩŘ�_Ÿ� �� ǣȖ�� ƼsNjOsƼY�Ÿ� EÞŸĶż¶ÞO�ʰ� delimitando uma fronteira entre os sujeitos, masculino/feminino, heterossexual/homossexual e normal/anormal. Contra isso, a teoria queer de currículo e outras teorizações também baseadas nas teorias pós-estruturalistas trazem à tona uma discussão sobre os limites desse modelo de construçãode conhecimento, demonstrando que o sexo, corpo e o próprio gênero são construções culturais, determinadas pelos limites do pensamento ocidental moderno. Assim, um trabalho com a sexualidade ou uma educação sexual pode ser pensado em primeiro lugar como uma disposição política por parte de professoras e professores, pois esta implica, segundo Deborah Britzman (1999), em uma capacidade para a liberdade. Nesta 27 ƼsNjǣƼsOǼÞɚ�ʰ� DNjÞǼʊŎ�Ř� �ʩNjŎ�� LJȖs� �� ǣsɮȖ�ĶÞ_�_s� _sɚsNjÞ�� ǣsNj� ǼŸŎ�_�� como prática de liberdade na medida em que, realizada a crítica ao modelo heteronormativo e gênero e sexualidade, os próprios limites do pensamento são elididos. ƻ�Nj�� ʩŘ�ĶÞʊ�Njʰ� ȖŎ�� ɚsʊ� Ŏ�Þǣ� sɚŸO�Ř_Ÿ� Ÿ� ƼsŘǣ�ŎsŘǼŸ� _s� ōÞOÌsĶ� Foucault sobre a crítica da sexualidade, tomando-a como dispositivo de controle de corpos e populações, Foucault propõe que pensemos em corpo e prazeres. Desse modo, após uma análise exaustiva do dispositivo da sexualidade, Foucault pensou outras práticas sexuais e sociais, assim como culturas erótico-afetivas que resistem aos códigos morais e sexuais do dispositivo da sexualidade, no interior de um projeto ético do cuidado si e da estética da existência. Nessa perspectiva, do ponto de vista dos projetos de escolarização da sexualidade, faz-se importante pensar sobre a possibilidade da presença de abordagens, tanto crítica do dispositivo da sexualidade, como também estéticas, demonstrando outros modos de vida e culturas sociais e sexuais. Cabe ainda indagar sobre a possibilidade da instituição escolar suportar práticas não normatizadas da sexualidade, dos desejos e dos afetos. REFERÊNCIAS ALTMAN, Helena. Orientação sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Revista de Estudos Feministas, ano 9, 2. sem., 2001. BARROSO, Carmem. Pesquisa sobre educação sexual e democracia. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 15, 1980. BARROSO, Carmem. Educação Sexual. Debate Aberto. Petrópolis: Vozes, 1982. BRITZMAN, Deborah. Curiosidade, sexualidade e currículo. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado. Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. BRUSQUINI, Cristina; BARROSO, Carmem. 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UFMS, 2009. 29 SOBRE A AUTORA Maria Rita de Assis César possui graduação em Ciências Biológicas (1988), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (1998), doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (2004) com estágio de pesquisa (Doutorado Sanduíche) na Universidade de Barcelona/Espanha. Pós-doutorado em ®ÞĶŸǣŸʩ�� NŸŘǼsŎƼŸNj�Řs�� ʹōÞOÌsĶ� ®ŸȖO�ȖĶǼʺ� Ř�� ȕŘÞɚsNjǣÞ_�_s� _s� ƻ�NjÞǣ� XII (2011-2012) sob a supervisão do Prof. Dr. Frédéric Gros. Bolsista Produtividade de Pesquisa – CNPQ/PQ 2. Atualmente é Professora Adjunta do Setor de Educação na Universidade Federal do Paraná - UFPR e professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) - PPGE/UFPR. Coordenadora do Laboratório de investigação em Corpo, Gênero e Subjetividade na Educação (UFPR/CNPq) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (UFPR/CNPq) e. Vice-coordenadora do GT 23 - Gênero, Sexualidade e Educação da ANPEd (2011-2015). Membro do Conselho Editorial da Educar em Revista (ISSN 0104-4060) e da Editora da UFPR. Experiência na área de Educação (Ensino) com ênfase nos estudos sobre corpo, gênero, sexualidade e subjetividade; atuando principalmente nos seguintes temas: poder, biopolítica, governamentalidade e estética da existência (M. Foucault); pós-estruturalismo; teorias de gênero; feminismo e teoria queer. 31 IGUALDADE DE GÊNERO E CO-EDUCAÇÃO: REFLEXÕES NECESSÁRIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA¹ Daniela Auad O tradicional sistema educacional apresenta diariamente, a todas s� ǼŸ_Ÿǣʰ�ȖŎ�_sǣ�ʩŸ�ŘŸ�LJȖs�ǣs� Njs¯sNjs��Ÿ� ¯ŸŎsŘǼŸ�_�ǣ�_sǣÞ¶Ȗ�Ķ_�_sǣ� de gênero na escola. Estas desigualdades ferem os princípios básicos de uma sociedade que se deseja democrática. A partir dessa assertiva, o presente texto noticia pesquisa na qual a escola é percebida como um espaço especialmente marcado pelas relações de gênero. Embora diversas publicações2 Ƽ�NjǼ�Ŏ� _sǣǣ�� OŸŘǣǼ�Ǽ�Y�Ÿʰ� Ř�Ÿ� ǣs� ɚsNjÞʩO�ʰ� sŎ� nosso país, acúmulo considerável de obras de referência tratando exclusivamente das relações de gênero nas práticas escolares no Ensino Fundamental. Por outro lado, a maioria das políticas educacionais ignora a escola que se constrói determinando e sendo determinada pelas relações de gênero. Uma possível explicação para esse fenômeno, como aponta Tomaz Tadeu da Silva, seria a existência de uma tradição crítica em educação no Brasil, rigidamente apegada a esquemas fechados e estáticos de análise, indiferente ao reconhecimento e incorporação da importância de novos atores sociais3. Essa tradição crítica revela-se incapaz de se apropriar de “novas” categorias, como gênero, raça-etnia e geração. Como consequência disso, há a tendência a se desconsiderar tudo aquilo que extrapola as relações de classe, de dominação e exploração sócio-econômica. ¹O presente texto é uma adaptação do trabalho “Relações de gênero nas práticas escolares e a construção de um projeto de co-educação”, de autoria de Daniela Auad, apresentado na 27ª Reunião Anual da ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), realizadaem nov/2004 em Caxambu - MG. ²Há amplo leque de publicações de variadas abrangências e localidades, no Brasil e no Exterior. Dentre as muitas abordagens possíveis, há de se destacar, no território nacional, alguns estudos tradicionais, como os seguintes: Cristina BRUSCHINI e Tina AMADO, Estudos sobre mulher e educação: algumas questões sobre o magistério, Cadernos de Pesquisa; Fúlvia ROSEMBERG e Tina AMADO, Mulheres na escola, Cadernos de Pesquisa; Tomaz Tadeu da SILVA, Territórios contestados: O currículo e os novos mapas políticos e culturais; Guacira Lopes LOURO, Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós- estruturalista; Guacira Lopes LOURO (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. ³Tomaz Tadeu da SILVA, Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais, p.3. 32 Na produção dos estudos educacionais, portanto, parece não se OŸŘǣÞ_sNj�Nj�Ÿ�ǣsɮŸ�_Ÿǣ�Ƽ�NjǼÞOÞƼ�ŘǼsǣ�_Ÿ�OŸǼÞ_Þ�ŘŸ�sǣOŸĶ�Nj�s�Ÿǣ�ǣÞ¶ŘÞʩO�_Ÿǣ� de gênero que constituem tal cotidiano. Da mesma maneira, pode não estar sendo percebido o modo como a escola é mais do que uma mera ˆNjsƼNjŸ_ȖǼŸNj�ˇʰ�ǣsŎ�OŸŘʪÞǼŸǣ�s�ƼNjŸEĶsŎ�ǣʰ�_s�ȖŎ��_sǼsNjŎÞŘ�_��ɚÞǣ�Ÿ� do que seja tradicionalmente masculino e feminino. Alunas e alunos não são vítimas passivas. Elas e eles resistem, contestam e podem apropriar-se diferentemente do corpo de conhecimentos com os quais entram em contato na escola, formal e informalmente. Nesse sentido, a escola é produtora de diferenças, distinções e desigualdades. A escola que a sociedade ocidental moderna herdou separa adultos de crianças, ricos de pobres e meninos de meninas. Herdamos, e agora de muitas maneiras mantemos, uma importante instância de fabricação de meninos e meninas, homens e mulheres. O trabalho de conformação que tem início na família encontra eco e reforço na escola, a qual ensina maneiras próprias de se movimentar, de se comportar, de se expressar e, até mesmo, maneiras de 'preferir'. Guacira Lopes Louro destaca, contudo, que os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. “Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens — reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente". 4 Essa perspectiva elucida que os sujeitos não são assim tão ‘sujeitados” sʰ� sŎ� ƼsLJȖsŘ�ǣ� s� OŸǼÞ_Þ�Ř�ǣ� NjsOȖǣ�ǣ� s� �ʩNjŎ�YƂsǣʰ� Ÿǣ� ˄Ř�Ÿǣ˅� ɚ�Ÿ� ǣs� mostrando contidos nos gestos e nas falas daqueles que resistem5. Por um lado, a escola, na sociedade ocidental em que vivemos, legitima e transmite modelos masculinos e femininos tradicionais. Há um conjunto de atividades e acontecimentos escolares condizentes com as relações de gênero predominantes, tradicionais e bipolares em vigência na nossa sociedade. Por outro lado, essa mesma escola também reformula os modelos masculinos e femininos tradicionais. Na escola, há também um conjunto de atividades e acontecimentos motivadores de novos e alternativos arranjos e exercícios acerca do masculino e do feminino. Tais arranjos e exercícios são diferentes daqueles socialmente esperados e em vigência. 4Guacira Lopes LOURO, Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós- estruturalista, p. 61. 5Flávia SCHILLING, Estudos sobre Resistência, p.4/5. 33 Essas assertivas, reveladoras do lado “passivo” e do lado “reativo” das relações de gênero na escola, são a base sobre a qual se assentaram os pressupostos centrais da investigação narrada no presente texto, assim como os seus objetivos, metodologia do trabalho e conclusões do estudo. 1 A INVESTIGAÇÃO E SEUS FUNDAMENTOS Um dos pressupostos centrais da investigação é que, embora as escolas brasileiras sejam mistas, não temos, em nosso país, co- educação. Trata-se de assertiva elaborada a partir do diálogo, por mim estabelecido, entre publicações sobre as temáticas “Educação e Relações de Gênero”, “Educação e Democracia”, e, ainda, “Educação e Direitos Humanos”. Em seu texto Educação em Direitos Humanos: de que se trata?, Maria Victoria Benevides faz distinção entre os termos “educação para a democracia” e “educação democrática”. A partir disso, foi possível demarcar em que diferem os termos “co-educação” e “escola mista”. A educação democrática corresponde ao processo educacional permeado por regras democráticas — igualdade diante das normas e do uso da palavra — durante o seu desenvolvimento. Já a educação para a (e na) democracia, de maior profundidade e abrangência, ocupa- se da formação dos sujeitos para a vivência de valores republicanos e democráticos, tornando-os cônscios de sua dignidade e a de seus semelhantes, de modo a fomentar a solidariedade. A educação para a democracia consiste ainda na Cidadania Ativa, ou seja, na formação para a participação na vida pública como governante ou cidadão comum6. Somou-se à distinção realizada por Benevides a leitura do livro La PL[LWp�j�O¶pFROH�SULPDLUH, de Claude Zaidman7. A união dos referenciais de Benevides e Zaidman auxiliou-me a construir a seguinte assertiva: o fato de as meninas e os meninos freqüentarem juntos a escola não garante que haja co-educação. Ou seja, na escola não estão garantidas sequer as regras democráticas tradicionais, no sentido da igualdade diante das normas, igual uso da palavra, direito à escolhas e à participação. 6Maria Victoria BENEVIDES, Educação para a Democracia, Lua Nova, p.228. 7Claude ZAIDMAN, La mixité à l’école primaire. A autora da obra é Maître de Conférences, na disciplina de Sociologia, na Universidade Paris VII. 34 Assim, escola mista e co-educação são termos que podem ser diferenciados, apesar de serem utilizados como sinônimos. Proponho tal distinção, inédita em nosso país, ao longo da escrita deste trabalho OŸŎ���ʩŘ�ĶÞ_�_s�_s�ƼŸǼsŘOÞ�ĶÞʊ�Nj�Ÿ�_sE�Ǽs�ǣŸENjs�s_ȖO�Y�Ÿ�s�NjsĶ�YƂsǣ� de gênero. A maneira pela qual a ‘mistura’ entre meninos e meninas ǣs�ÞŎƼƂs�Ř��Njs�ĶÞ_�_s�sǣOŸĶ�Njʰ�ǣsŎ�ŸEĠsǼÞɚŸǣ�_sʩŘÞ_Ÿǣ�s�ǣsŎ�Njsʪsɮ�Ÿ� Ƽs_�¶ż¶ÞO�ʰ�ƼŸ_s�ÞŘʪȖsŘOÞ�Nj�Ř��OŸŘǣǼNjȖY�Ÿ�s�ŘŸ�Njs¯ŸNjYŸ�_s�NjsĶ�YƂsǣ�_s� gênero desiguais na realidade escolar e, também, a partir dela. A ‘mistura’ de meninas e meninos no ambiente escolar não equivaleria, desta forma, ao ideal de co-educação. Para que este fosse levado a termo, a escola mista teria de ser pensada, questionada e analisada a partir das relações de gênero e das relações entre os sexos que estão em jogo cotidianamente. Sendo assim, conclui-se que pode revelar- ǣs� sǣǼwNjÞĶ� �� OŸsɮÞǣǼyŘOÞ�� sŘǼNjs� Ÿǣ� ǣsɮŸǣ� ǣs� Ř�Ÿ� ÌŸȖɚsNj� ȖŎ�� Njsʪsɮ�Ÿ� pedagógica a esse respeito. Essa coexistência não será sinônimo de término de desigualdades se não for considerado o contexto social de separação em vigor, e ainda largamente dominante, no tocante aos gêneros masculino e feminino. Nesse sentido, compreende-se a co-educação como necessária e possível, mesmo que não aplicada de fato ainda. Tal situação conduziu- Ŏs� �Ÿ� OŸŘOsÞǼŸ� _s� ˃Þ_sÞ�� ƼNj ǼÞOŸ˚Njs¶ȖĶ�ǼÞɚ�˃ʰ� _�� ʩĶżǣŸ¯�� ÌȚض�Nj�ʰ� radicada nos EUA, Agnes Heller. Tal conceito foi utilizado por Beatriz Bastos Teixeira, em sua tese de doutorado, para referir-se à educação para a democracia: [...] é uma idéia que regula a ação humana, ou seja, não é existente no sentido em que o são os objetos, nem está submetida à causalidade; ao mesmo tempo tem 'realidade objetiva' na medida em que regula as ações humanas inseridas no mundo causal, temporal e fenomênico.8 Ou seja, a “ideia prático-regulativa” trata-se de ideia que não existe ainda em fato, do modo como é descrita discursivamente, mas pode vir a existir, até porque é isso que se deseja. Assim como a educação para a democracia, a co-educação pode ser uma “ideia prático-regulativa”. A co-educação pode ser entendida como um modo de gerenciar as 8Beatriz Bastos TEIXEIRA, Por uma escola democrática, p.24. 35 relações de gênero na escola, de maneira a questionar e reconstruir as ideias sobre o feminino e sobre o masculino. E existem mais comparações possíveis. A diferenciação estabelecida, por Maria Victoria Benevides, entre educação democrática e educaçãopara a democracia pode ser transposta para distinguir escola mista e co- educação. Pode haver educação democrática sem que esta seja guiada pelo ideal de educação para democracia. Assim como pode haver — e este é o pressuposto central do qual partiu meu estudo — escola mista sem haver, em exercício e em funcionamento, uma política de co-educação. Nessa perspectiva, não há co-educação sem escola mista, mas pode haver escola mista sem existir co-educação. A escola mista é um meio e um pressuposto para haver co-educação, Ŏ�ǣ�Ř�Ÿ�w�ǣȖʩOÞsŘǼs�Ƽ�Nj��LJȖs�sǣǼ��ŸOŸNjNj�ʳ�rŎ�ȖŎ��sǣOŸĶ��ŎÞǣǼ�ʰ���OŸ˚ educação pode se desenvolver, mas isto não acontecerá sem medidas explicitamente guiadas por parte das professoras e amparo de políticas ƼȚEĶÞO�ǣ�OȖĠŸ�ŸEĠsǼŸ�ǣsĠ��Ÿ�ʩŎ�_��_sǣÞ¶Ȗ�Ķ_�_s�_s�¶yŘsNjŸʰ�ŘŸ��ŎEÞǼŸ� educacional. A co-educação, assim como a educação para a democracia, só existirá a partir de um conjunto de ações adequadas e sistematicamente voltadas para a sua existência e manutenção. Figura, neste aspecto, o enorme valor das práticas pedagógicas para levar a bom termo tal ideal. Nessas práticas pedagógicas, os sujeitos são professoras, professores, alunos e alunas. Ao considerar esses pressupostos, remonta-se, no âmbito do ideal de co-educação, ao paradoxo da democracia. A democracia não existe sem uma educação apropriada, sem a formação de cidadãos democráticos. Contudo, para que tal formação aconteça, são necessárias educadoras, cuja formação se dará concomitantemente ao desenvolvimento de práticas democráticas9. Desta forma, tanto a educação para a democracia quanto a co-educação têm como fator imprescindível para o seu alcance �� ¯ŸNjŎ�Y�Ÿ� _s� ƼNjŸ¯sǣǣŸNj�ǣʳ� ǻNj�Ǽ�˚ǣs� _s� ¯ŸNjŎ�Y�Ÿ� _s� ƼNjŸʩǣǣÞŸŘ�Þǣ� comprometidas com a concretização de ações educacionais e práticas pedagógicas igualitárias e democráticas. 9Tal paradoxo é apontado por Maria Victoria BENEVIDES, Educação para a Democracia, Lua Nova, p.235. 36 v� ƼŸǣǣâɚsĶʰ� ƼŸNjǼ�ŘǼŸʰ� �ʩNjŎ�Nj� LJȖs� não há educação para a democracia sem co-educação. Ainda que esta seja uma “ideia prático- regulativa”, apenas a sua busca pode tornar a escola uma instituição mais comprometida com o término das desigualdades. Estou, portanto, convicta de que, no Brasil, as escolas mistas, lamentavelmente, não correspondem à vigência da co-educação. Minha convicção assenta-se sob algumas premissas que podem ser assim resumidas: ˒� �� _ÞǣǼÞŘY�Ÿ� sŘǼNjs� Ÿǣ� ǼsNjŎŸǣ� sǣOŸĶ��ŎÞǣǼ�� s� OŸ˚s_ȖO�Y�Ÿ� w� ƼsĶ�� primeira vez proposta por mim em minha pesquisa e neste trabalho, OŸŎ���ʩŘ�ĶÞ_�_s�_s�¯ŸNjǼ�ĶsOsNj�Ÿ�_sE�Ǽs�ǣŸENjs�s_ȖO�Y�Ÿ�s�NjsĶ�YƂsǣ� de gênero; ˒� ŗ�Ÿ� Ì � OŸ˚s_ȖO�Y�Ÿ� ǣsŎ� sǣOŸĶ��ŎÞǣǼ�ʰ�Ŏ�ǣ� ƼŸ_s� Ì�ɚsNj� sǣOŸĶ�� mista sem que haja co-educação; ˒� �� OŸ˚s_ȖO�Y�Ÿ� ǣż� sɮÞǣǼÞNj � �� Ƽ�NjǼÞNj� _s� ȖŎ� OŸŘĠȖŘǼŸ� _s� �YƂsǣ� adequadas e sistematicamente voltadas para a sua existência e manutenção; ˒� ŗ�Ÿ� Ì�ɚsNj � ǼNj�Řǣ¯ŸNjŎ�Y�Ÿ� ˜� ŘŸ� ǣsŘǼÞ_Ÿ� _s� s¯sǼÞɚ�ŎsŘǼs� democratizar a rede de escolas mistas — sem a vivência da co- educação. 2 METODOLOGIA E OBJETIVOS DA PESQUISA A partir dos pressupostos centrais da pesquisa, destaco que o objetivo principal da investigação foi conhecer as relações de gênero nas práticas escolares. Esse objetivo principal se desdobrou e se compôs por um conjunto de objetivos delineados em sua função. ÝǣǣŸ� ǣÞ¶ŘÞʩO�� _ÞʊsNj� LJȖs� OŸŘÌsOsNj� �ǣ� NjsĶ�YƂsǣ� _s� ¶yŘsNjŸ� Ř�ǣ� ƼNj ǼÞO�ǣ� escolares implicou em: ˒�NŸŘÌsOsNj�OŸŎŸ�ǣs�sɮƼNjsǣǣ�Ŏ��ǣ�NjsĶ�YƂsǣ�_s�¶yŘsNjŸ�sŎ��ǼÞɚÞ_�_sǣ� rotineiras, e também incomuns, da escola; ˒�NŸŘÌsOsNj�LJȖ�Ķ�ȖǣŸ�w�¯sÞǼŸ�_�ǣ�NjsĶ�YƂsǣ�_s�¶yŘsNjŸ�Ƽ�Nj��ŸNj¶�ŘÞʊ�Nj�Ÿ� trabalho na escola; ˒�NŸŘÌsOsNj�OŸŎŸ�ǣs�sɮƼNjsǣǣ�� ʹŸȖ�Ř�Ÿʺ���_sǣÞ¶Ȗ�Ķ_�_s�_s�¶yŘsNjŸ� na escola; 37 ˒� ǢsĶsOÞŸŘ�Nj� s� ǣÞǣǼsŎ�ǼÞʊ�Nj� EÞEĶÞŸ¶Nj�ʩ�� sǣƼsOâʩO�ʰ� Ř�OÞŸŘ�Ķ� s� _Ÿ� exterior, composta por estudos e pesquisas sobre relações de gênero e educação escolar; ˒� rĶȖOÞ_�Njʰ� �� Ƽ�NjǼÞNj� _Ÿ� corpus� EÞEĶÞŸ¶Nj ʩOŸʰ� OŸŎŸ� sɮÞǣǼsŎ� E�ǣsǣ� teóricas e empíricas de saber acumulado que tornem o tema em causa uma questão sociológica no campo da educação; ˒�NŸŘÌsOsNj��ǣ�_Þ¯sNjsŘǼsǣ�s�Ř�Ÿ�OŸŘǣsŘǣȖ�Þǣ�ƼŸǣÞYƂsǣ�_s�ƼsǣLJȖÞǣ�_ŸNj�ǣ� de vários países, sobre o debate, realizado mundialmente, acerca das escolas mistas ou separadas por sexo. Vale notar que trata-se de polêmica acerca da qual, até o momento, não se teve notícia de maneira sistematizada no Brasil; ˒� ®ŸNjŘsOsNj� OŸŘÌsOÞŎsŘǼŸ� Ƽ�Nj�� ȖǼÞĶÞʊ�Y�Ÿ� sŎ� OȖNjǣŸǣ� _s� ®ŸNjŎ�Y�Ÿ� _s�ƻNjŸ¯sǣǣŸNj�ǣʰ���ʩŎ�_s�ǣsŘǣÞEÞĶÞʊ�Nj��ǣ�s_ȖO�_ŸNj�ǣ�Ƽ�Nj���ǣ�NjsĶ�YƂsǣ� sociais de gênero em vigência na escola e em nossa sociedade; ˒� rʰ� ʩŘ�ĶŎsŘǼsʰ� ǣȖEǣÞ_Þ�Nj� ƼŸĶâǼÞO�ǣ� ƼȚEĶÞO�ǣ� s_ȖO�OÞŸŘ�Þǣ� LJȖs� promovam a igual valorização do feminino e do masculino, em nossa sociedade. Para atingir esses objetivos, o estudo delineou-se em dois eixos: 1. O eixo campo, constituído pela observação das práticas escolares, nas séries ou ciclos iniciais de uma escola de Ensino Fundamental. 2. O HL[R� ELEOLRJUi¿FRʰ� OŸNjNjsǣƼŸŘ_sŘǼs� �� ƼsǣLJȖÞǣ�� _s� EÞEĶÞŸ¶Nj�ʩ�� sobre os temas “Educação Escolar e Relações de Gênero”, “Co- educação” e “Mixité”. ŷ� sǣǼȖ_Ÿ� _s� DÞEĶÞŸ¶Nj�ʩ�� ǣŸENjs� r_ȖO�Y�Ÿ� s� NJsĶ�YƂsǣ� _s� µyŘsNjŸʰ� com obras latino-americanas (inclusas nesta categoria as produções brasileiras), com obras francesas e anglo-saxãs, dentre outras contribuições, cumpriu o papel de guiar o meu olhar na pesquisa de campo. A partir de um conjunto de autores10ʰ� Þ_sŘǼÞʩLJȖsÞ� OŸŎŸ� Ÿǣ� 10ğȖǣǼ��rʉƻrĵrǻ��s�rʳ�NJŷNħrɟrĵĵʳ�ƻsǣLJȖÞǣ��ƻ�NjǼÞOÞƼ�ŘǼsʱ�NĶÞ¯¯ŸNj_�µrrNJǻʉʰ���ÝŘǼsNjƼNjsǼ�Y�Ÿ� _�ǣ�NȖĶǼȖNj�ǣʱ�NJŸEsNjǼ�Dŷµ^�ŗ�s�Ǣ�NjÞ�DÝħĵrŗʰ�ÝŘɚsǣǼÞ¶�Y�Ÿ�LJȖ�ĶÞǼ�ǼÞɚ��sŎ�s_ȖO�Y�Ÿʲ�ȖŎ�� introdução à teoria e aos métodos; Claudia FONSECA, Quando cada caso NAO é um caso: ƼsǣLJȖÞǣ��sǼŘŸ¶Nj ʩO��s�s_ȖO�Y�Ÿʰ�NJsɚÞǣǼ��DNj�ǣÞĶsÞNj��_s�r_ȖO�Y�Ÿʳ 38 métodos, que de antemão eu havia decidido adotar, faziam a pesquisa inscrever-se no campo das investigações qualitativas e de inspiração sǼŘŸ¶Nj ʩO�ʳ�ƻsNjŎ�ŘsOÞ�_ȖNj�ŘǼs�ˡ��ŘŸǣ�OŸŎŸ�ŸEǣsNjɚ�_ŸNj��_�ǣ�ƼNj ǼÞO�ǣ� nos pátios e nas salas de aula, em uma escola púbica de uma grande cidade brasileira. Centrei minhas observações nas 2ª, 3a e 4a séries do rŘǣÞŘŸ�®ȖŘ_�ŎsŘǼ�Ķʳ��ĶwŎ�_ÞǣǣŸʰ�ȖŎ��_�ǣ�ƼNjÞŎsÞNj�ǣ��ǼÞɚÞ_�_sǣ�LJȖs�ʩʊ� na Escola do Caminho11 foi participar das reuniões com as professoras, com a coordenadora e com a diretora. O objetivo das reuniões era explicar quais eram os meus objetivos, como seriam as observações e qual era o tema de meu estudo12. Para guiar minhas observações e transformá-las em um corpo de dados inteligível, estabeleci alguns princípios, sob a forma de “passos” a serem seguidos: 1. Observava as diversas situações com as quais me envolvia durante �ǣ�ÌŸNj�ǣ�sŎ�LJȖs�ʩO�ɚ��Ř��sǣOŸĶ�ʰ�Ř��ǣ�Ķ��_s��ȖĶ��s�ŘŸ�Ƽ ǼÞŸʱ 2. Escrevia os acontecimentos, incluindo comentários sobre os ǣsŘǼÞŎsŘǼŸǣ�LJȖs�sŘɚŸĶɚÞ�Ŏ���OsŘ�ʰ��ĶwŎ�_s�ÞŘOĶȖÞNj�_sǼ�ĶÌsǣ�sǣƼsOâʩOŸǣ� de comportamentos verbais e não-verbais; ˢʳ�NJsɚÞ���ǣ�ŘŸǼ�ǣ�_s�O�ŎƼŸʰ�Þ_sŘǼÞʩO�Ř_Ÿ�Ƽ�_NjƂsǣ�sŎ�ǣsȖǣ�_�_Ÿǣʱ� ˣʳ�®ŸNjŎȖĶ�ɚ���ʩNjŎ�YƂsǣ�E�ǣs�_�ǣ�ŘŸǣ�Ƽ�_NjƂsǣ�sŘOŸŘǼNj�_Ÿǣʱ� 5. Lia textos selecionados e escrevia resenhas com comentários que relacionassem os conteúdos dos textos às notas de campo; 11ŗŸŎs� ʩOǼâOÞŸ� OŸŎ� Ÿ� LJȖ�Ķ� ˆNjsE�ǼÞʊsÞˇ� �� ȖŘÞ_�_s� sǣOŸĶ�Nj� LJȖs� ǣsNjɚÞȖ� _s� ǣs_s� Ƽ�Nj�� �� pesquisa de campo. 12Dessas reuniões surgiu o pedido de um curso sobre Educação e Relações de Gênero. A minha entrada nas classes e a realização de minhas observações despertou nas professoras, coordenadora e diretora o interesse pelo tema. Para o curso, elaborei um conjunto de conteúdos e dinâmicas. Tais conteúdos e dinâmicas transformaram-se, ao longo de 2002, em um livro, publicado em 2003, sobre “Feminismo, Relações de Gênero e Educação”. Tal produção trata-se de esforço pessoal em oferecer material atualizado e acessível sobre o Movimento Feminista e a categoria gênero, o que penso ser uma lacuna na área de formação de professoras. 39 Mais do que um apanhado de transcrições, o resultado dessa prática foi conseguir uma "descrição densa"13, o que pode ser assemelhado �� ȖŎ�� ˆŎÞONjŸ�ŘĶÞǣs� sǼŘŸ¶Nj ʩO�ˇ14ʳ� ƻNjsŸOȖƼsÞ˚Ŏs� sŎ� Þ_sŘǼÞʩO�Nj� Ÿ� ǣÞ¶ŘÞʩO�_Ÿ�_�ǣ�NjsĶ�YƂsǣ�ǣŸOÞ�Þǣ�_s�¶yŘsNjŸ�Ř�ǣ�ƼNj ǼÞO�ǣ�sǣOŸĶ�Njsǣʳ�rʰ�ǣs� por um lado, a escola era a cena imediata na qual essas relações se Ŏ�ŘÞ¯sǣǼ�ɚ�Ŏ�s�¶�ŘÌ�ɚ�Ŏ�ǣÞ¶ŘÞʩO�_Ÿʰ�ƼŸNj�ŸȖǼNjŸʰ�Ǽ�ŎEwŎ�̄ ŸÞ�_sǣǼ�O�_�� a relação entre a escola e o contexto social maior em que esta se insere. A pesquisa foi feita em uma única unidade escolar. Concordo com ƼsNjOsƼYƂsǣ�OŸŎŸ���_s�NĶ�Ȗ_Þ��®ŸŘǣsO��LJȖ�Ř_Ÿ�sĶ���ʩNjŎ��LJȖs�ˆ_�_Ÿǣ� tirados do estudo qualitativo de um certo segmento da vida social podem dar ensejo a modelos abstratos"15. Segundo Fonseca, esses ŎŸ_sĶŸǣ� sɮƼĶÞO�ǼÞɚŸǣ� ǣsŎƼNjs� ǣsNj�Ÿ� ȖŎ�� ǣÞŎƼĶÞʩO�Y�Ÿ� ¶NjŸǣǣsÞNj�� _�� realidade e não há como prever de antemão que serão a “chave de compreensão” da realidade. Contudo, os modelos servem para serem utilizados como hipóteses; para servirem de alternativa; para abrir o leque de interpretações possíveis, e não para criar novas fórmulas dogmáticas. Nessa perspetiva, os modelos revelam como é importante considerar o social para contextualizar histórias individuais, assim como é possível chegar às generalizações a partir de dados particulares. Tal noção torna representativa a realidade depreendida em apenas uma escola. Desta forma, produzi uma narrativa na qual tentei não reforçar a polaridade entre particular/universal e local/geral. Um estudo no qual o processo de coleta de dados e de construção de assertivas foi guiado preponderantemente pelas questões que surgiam a partir dos dados sŎƼâNjÞOŸǣʰ� Ǽ�ŘǼŸ�ŸEǣsNjɚ�_Ÿǣ�sŎ�O�ŎƼŸʰ�LJȖ�ŘǼŸ� ĶÞ_Ÿǣ�Ř��EÞEĶÞŸ¶Nj�ʩ�ʳ� Tal protagonismo dos dois eixos da pesquisa — o eixo campo e o sÞɮŸ� EÞEĶÞŸ¶Nj ʩOŸ�˜�sɚÞ_sŘOÞ�� ǣÞŎwǼNjÞO�� OŸŘǼNjÞEȖÞY�Ÿ�_�� sǣOŸĶ�� s� _�� EÞEĶÞŸ¶Nj�ʩ��OŸŎŸ�ˆĶŸO�Þǣˇ�_s�ƼNjŸ_ȖY�Ÿ�_�ǣ�NjsʪsɮƂsǣ���Ƽ�NjǼÞNj�_Ÿǣ�LJȖ�Þǣ� o estudo resultou. 13Clifford GEERTZ, A Interpretação das Culturas. 14N�NjŎsŘ� ĵȚOÞ��ō�ǻǻŷǢʰ� �� �EŸNj_�¶sŎ� sǼŘŸ¶Nj ʩO�� Ř�� ÞŘɚsǣǼÞ¶�Y�Ÿ� OÞsŘǼâʩO�ʰ� NJsɚÞǣǼ�� Espaço. 15NĶ�Ȗ_Þ��®ŷŗǢrN�ʰ�džȖ�Ř_Ÿ�O�_��O�ǣŸ�ŗ�ŷ�w�ȖŎ�O�ǣŸʲ�ƼsǣLJȖÞǣ��sǼŘŸ¶Nj ʩO��s�s_ȖO�Y�Ÿʰ� Revista Brasileira de Educação, p.76. 40 3 RESULTADOS DO ESTUDO Das observações na escola e como uma das conclusões do estudo, destaco que não existe, em nosso país, uma relação planejada e direta entre as escolas mistas que temos e um ideal de co-educação. A escola mista seria condição para trilhar o desejável percurso rumo à co- educação. O que pode comprovar tal assertiva são as práticas escolares ainda polarizadas e hierarquizadas no que se refere às relações de gênero, por mim observadas e a seguir descritas: ˒� ȕǼÞĶÞʊ�Y�Ÿ� _�ǣ� _Þ¯sNjsŘY�ǣ� _s� OŸŎƼŸNjǼ�ŎsŘǼŸ� sŘǼNjs� ŎsŘÞŘ�ǣ� e meninos, como se fossem dados essenciais, para facilitar a condução da disciplina na classe e no pátio. Tal prática se mostrava, ƼŸNj� sɮsŎƼĶŸʰ� Ř�� ŎŸǼÞɚ�Y�Ÿ� _Ÿǣ� ¶NjȖƼŸǣ� _s� �ʩŘÞ_�_s� ŘŸ� Ƽ ǼÞŸʰ� tendo como critério a separação por sexo entre as crianças, e na organização das salas de aula em colunas compostas por duplas de meninas e de meninos; ˒�ōsŘŸNj�ǼŸĶsNj�ŘOÞ��_��ÞŘ_ÞǣOÞƼĶÞŘ��sŎ�¶NjȖƼŸǣ�_s�ŎsŘÞŘ�ǣ�s��Ƽ�NjsŘǼs� percepção de que meninos, sendo indisciplinados em grupo, estavam exercendo seu “papel” e sua independência na escola, embora fossem geralmente repreendidos. Nesse sentido, a despeito da formação de grupos, as professoras eram mais atenciosas com os meninos e mais severas quanto à disciplina das meninas. Tal estratégia disciplinar redundava em interações pedagógicas menos estimulantes para as meninas. Elas, por participarem de uma dinâmica relacional dominada pelos meninos, poderiam aprender que suas contribuições têm pouco valor e que a melhor solução consiste em se retrair. As meninas pareciam pensar, portanto, que sua melhor contribuição seria auxiliar a professora na manutenção da ordem da classe, ao executarem todas as demandas da mestra. Os meninos, ao contrário, seriam impelidos a “se exibirem” de diferentes maneiras, o que pode se mostrar contraditório com a tradicional imagem do quieto e tranqüilo bom aluno. Exatamente por essa razão, ao menino não indisciplinado ou muito calado poderia ser atribuído algum traço patológico; ˒� �ƼNjsǣsŘǼ�Y�Ÿ� sɮsŎƼĶ�Nj� _s� O�_sNjŘŸǣ� s� _sɚsNjsǣ� ƼŸNj� Ƽ�NjǼs� _�ǣ� meninas, a partir de diferentes apreciações e demandas endereçadas às meninas e aos meninos. O papel de “boa aluna que ajuda os colegas” também era uma dessas demandas e correspondia à ¶Nj�ǼÞʩO�Y�Ÿ�Ƽ�Nj���ǣ�ŎsŘÞŘ�ǣʳ�rĶ�ǣ��ض�NjÞ�ɚ�Ŏ��Ķ¶ȖŎ�ƼŸ_sNj�OŸŎ�ÞǣǣŸ� 41 ao se relacionarem com as professoras e com as demais crianças. Esse fenômeno em sala de aula pode ser percebido como reforço à tradicional socialização feminina e como um modo de perpetuar uma determinada divisão sexual do trabalho; ˒�ŷOȖƼ�Y�Ÿ�_Ÿ�sǣƼ�YŸ�ǣŸŘŸNjŸ�ƼsĶŸǣ�ŎsŘÞŘŸǣ�_sŘǼNjŸ�_��ǣ�Ķ��_s��ȖĶ�� e constante focalização de atenção, por parte da professora, em relação a eles. Tal fator demonstrava, ao lado de outros aspectos, diferenças de interação entre professora/aluno e professora/aluna. Vale notar que interação não corresponde necessariamente à aprovação da professora em relação à atitude dos meninos. Muitas vezes, a interação professora/aluno era maior até pela grande quantidade de vezes em que a professora tinha que “chamar a �ǼsŘY�Ÿˇ�_Ÿǣ�ŎsŘÞŘŸǣʰ�ȖŎ�ʪ�¶Nj�ŘǼs�ǣÞŘ�Ķ�_s�NjsƼNjŸɚ�Y�Ÿʰ�ƼŸNj�Ƽ�NjǼs� da educadora, quanto à atitude do aluno; ˒� ƻsNjOsƼY�Ÿ� _Ÿǣ� ŎsŘÞŘŸǣ� OŸŎ� ǼsŘ_yŘOÞ�� Ŏ�ÞŸNj� �� _ŸŎÞŘ�Nj� Ÿǣ� grandes espaços. Tal traço foi coletado no recreio a partir de dois dados: (1) a existência de jogos mistos com reforço de polaridade e hierarquia entre o masculino e o feminino, como “Beijo, abraço, aperto de mão”, “Menino pega Menina” e “Menina pega Menino”; e (2) a presença dos meninos em todas as atividades em que era necessário e possível correr e expressar-se com o corpo de modo amplo; ˒� ŷOȖƼ�Y�Ÿ� _Þ¯sNjsŘOÞ�_�� _s� Ƽ ǼÞŸǣ� s� LJȖ�_Nj�� ƼsĶŸǣ� ŎsŘÞŘŸǣ� s� meninas. Isso ocorria no recreio, quando os meninos ocupavam dois pátios e uma quadra para jogarem futebol. Quanto às meninas, estas ocupavam os cantos laterais do pátio, ao pularem elástico, corda e ao conversarem. Existiam jogos mistos, mas vale notar que os meninos sempre estavam em todos os jogos de movimento, ao passo que as únicas atividades do recreio que não implicavam corrida e amplos movimentos, como passear e conversar, eram desempenhadas apenas por meninas. Não observei nenhuma atividade de pátio, na hora do recreio ou na hora da entrada, na qual apenas as meninas ocupassem espaços amplos das quadras, como é o caso do futebol para os meninos. Assim, ocorria a separação em grupos de meninos e meninas nos jogos na escola, como se os próprios jogos agissem como práticas que ensinassem meninas e meninos que há jogos barulhentos e agitados a serem realizados pelos meninos, e jogos discretos e limitados no espaço a serem realizados pelas meninas. Denomino esse tipo de prática como aprendizado da separação, que pôde ser observado em vários exemplos na Escola do Caminho. 42 Todos esses indícios que partem das práticas escolares comprovam a questão inicialmente formulada: embora as escolas brasileiras sejam mistas e isso seja uma das premissas da existência da co-educação, a mistura dos sexos não enseja “naturalmente” práticas e políticas públicas co-educativas. A comprovação dessa ideia pode tanto ser parte da análise das desigualdades de gênero nas práticas escolares quanto pode motivar práticas, ações e diretrizes de políticas públicas promotoras da transformação da realidade escolar. Nesse caso, transformar a realidade escolar seria criar um contexto igualitário para meninas e meninos. Para tornar isso possível, Marina Subirats Martori, Professora e pesquisadora da Universidade de Barcelona, destaca que agentes da mudança na direção da co-educação precisam estar em órgãos governamentais (como secretarias e coordenadorias especiais), em sindicatos e em organizações não governamentais. A responsabilidade desses “agentes da co-educação” seria a de trabalhar para a transformação, sobretudo quando elesse dedicassem a atividades como analisar práticas e situações, traçar objetivos, estabelecer metodologias _s� ǼNj�E�ĶÌŸ� sʰ� Ǽ�ŎEwŎʰ� _sʩŘÞNj� Ǽ�Njs¯�ǣʳ� rŘǼNjs� sǣǣ�ǣ� Ǽ�Njs¯�ǣʰ� sǣǼ � �� formação de pessoal, a produção de material, o estímulo às pesquisas. E citando a professora e pesquisadora francesa Nadine Plateau: Como se vê, um projeto de co-educação é ambicioso. Ele supõe uma transformação profunda das expectativas, comportamentos e práticas da escola e uma quase revolução dos saberes docentes. Entretanto, ele não me parece utópico se realizado inicialmente em pequena escala, em nível local, na classe, este laboratório ŸŘ_s� �� ƼNjŸ¯sǣǣŸNj�� s� Ÿ� ƼNjŸ¯sǣǣŸNj� ƼŸ_sŎ� _sʩŘÞNj� as regras do jogo. Nós podemos criar condições de aprendizagem que garantam a igualdade das relações de sexo e encorajam a solidariedade e o respeito ao outro. Nós podemos fazer com que meninos e meninas aprendam a viver juntos na classe, compreender esse microcosmo, situar-se nele a partir de suas experiências individuais e OŸĶsǼÞɚ�ǣ� sʰ� sŘʩŎʰ� ONjÞ ˚ĶŸ� ĠȖŘǼŸǣʳ16 (tradução de minha autoria) 16Nadine PLATEAU, Un parcours inachevé: la mixité scolaire, Chronique Féministe, p.12. 43 O tom ambicioso percebido por Plateau em relação à co-educação não se encerra nas transformações que esse conjunto de estratégias educativas prevê em relação às práticas escolares e aos saberes docentes. O caráter ambicioso — ou o caráter de “ideal prático-regulativo”17 — do projeto co-educativo proposto por Nadine Plateau também repousa na esperança de integrar a crítica feminista à educação e às diferentes disciplinas. Acredito que se trata de ideal aglutinador de professoras, feministas, estudiosas de gênero e pesquisadoras na área de educação, em prol de objetivo comum: a promoção de políticas públicas de Þ¶Ȗ�Ķ_�_sʰ�ŘŸ��ŎEÞǼŸ�_�ǣ�LJȖ�Þǣ�ʩ¶ȖNjs���OŸŘǣǼNjȖY�Ÿ�_s�ȖŎ��sǣOŸĶ��LJȖs� não seja tão marcada pelas desigualdades sociais. ŗ�� ŎsǣŎ�� _ÞNjsY�Ÿ� _Ÿ� LJȖs� �ʩNjŎ�� ƻĶ�Ǽs�Ȗʰ� ŗsĶĶɴ� ǢǼNjŸŎLJȖÞǣǼ� documenta como, em vários países estudados por ela, está claramente colocada a relação entre o que a autora chama de “políticas públicas de gênero” e o Movimento Feminista18. A autora apresenta as políticas públicas educacionais de gênero em países como o Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Sri Lanka e Argentina. De acordo com Nelly Stromquist, essas políticas têm como determinantes, na sua elaboração e implementação, as Conferências Internacionais sobre Desenvolvimento e sobre a Mulher, nas quais a educação surge como fator importante. Também são determinantes das políticas os ʩŘ�ŘOÞ�ŎsŘǼŸǣ� ÞŘǼsNjŘ�OÞŸŘ�Þǣ� Njs�ĶÞʊ�_Ÿǣ� ƼŸNj� ŸNj¶�ŘÞǣŎŸǣ� OŸŎŸ� �ǣ� Nações Unidas e a atuação, em todas as esferas, de Organizações Não Governamentais e de grupos acadêmicos. Estes e aquelas são, segundo a abordagem de Marina Subirats Martori, “agentes da mudança na direção da co-educação”19. Nesse sentido, Stromquist relata que é possível aprender com as feministas a dupla estratégia de pressionar o Estado e desenvolver, paralelamente, um trabalho com grupos e ONGs. Percebo tal aprendizado positivamente, como “aproveitar o melhor” tanto do Estado quanto das ONGs. Apesar de o Estado abrir a possibilidade para uma atuação mais abrangente, ele se apresenta relutante no engajamento em ações de 17Conceito advindo da obra de Agnes Heller e já citado ao longo do texto. 18Nelly P. STROMQUIST, Políticas públicas de Estado e eqüidade de gênero: perspectivas comparativas. Revista Brasileira de Educação , p.28. 19Marina SUBIRATS MARTORI, Educación de la mujeres: de la marginalidad a la coeducación: propuesta para una metodologia de cambio educativo, p.30. 44 20O conceito de Cidadania Ativa é objeto do livro de Maria Victoria BENEVIDES, A Cidadania Ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. transformações substanciais. Em contrapartida, apesar de as mulheres em ONGs serem muito propensas às transformações, seu trabalho w� _s� sǣO�Ķ�� ŎÞONjŸƼŸĶâǼÞO�� � s� � ĶÞŎÞǼ�_Ÿ� ¶sŸ¶Nj ʩO�� s� ŘȖŎsNjÞO�ŎsŘǼsʳ� Stromquist salienta que as diferenças sociais entre os grupos de mulheres — mulheres pobres, de classe média e "feministas de nível �O�_yŎÞOŸ˃�˜��ǼsNjÞ�Ŏ�Ƽ�ƼsĶ�ǣÞ¶ŘÞʩO�ǼÞɚŸ�Ř��OŸĶsǼÞɚ��Ǽ�Njs¯��_s��ɚ�ĶÞ�Nj��� realidade e analisar programas já existentes. Acrescento aos grupos de mulheres a tarefa de formular e implementar políticas públicas novas e co-educativas. Essas políticas seriam elaboradas em parceria com orgãos do Estado e com todas as pessoas ligadas à educação, como alunas, professores, professoras e alunos, e com as demais esferas da sociedade civil. Esse caráter aglutinador de vários setores evitaria que a participação das mulheres ligadas ao Movimento se reduzisse apenas à observação da realidade; afastaria a imagem do Estado como a única ÞŘǣǼ�ŘOÞ��_s�ƼŸ_sNj�LJȖs�ÞNjÞ��ƼsŘǣ�Nj�s�_sʩŘÞNj��ǣ�ƼŸĶâǼÞO�ǣʱ�s��ǣ�ƼNjŸ¯sǣǣŸNj�ǣ� não restaria apenas, junto com seus alunos e alunas, a execução dessas políticas. Deste modo, os escritos de Nelly Stromquist, dentre muitos outros méritos, demonstram algo em que acredito: não cabe a uma pesquisadora ou apenas a uma pesquisa ou publicação traçar uma política de co-educação “pronta e acabada”. Isso seria, além de ƼNjsǼsŘǣÞŸǣŸʰ�ÞŘsʩOÞsŘǼsʰ�ƼŸÞǣ�sǣǼ�NjÞ��_ÞǣǼ�ŘǼs�_��OŸĶsǼÞɚÞ_�_s�̃ �̄ ŸNjŎ�_�� por professoras, professores, alunas, alunos, diretoras, coordenadoras, agentes escolares, feministas e pesquisadoras — para quem e por quem tal política dever ser pensada. Nenhum livro, tese ou relatório, ÞǣŸĶ�_�ŎsŘǼsʰ�ƼŸ_sNj � ǼNj�ʊsNj�ȖŎ�OŸŘĠȖŘǼŸ�_sʩŘÞǼÞɚŸ�_s�Ŏs_Þ_�ǣ�Ƽ�Nj�� tornar a escola melhor, seja no que tange às relações de gênero, seja no que se refere a quaisquer outros fatores que precisem ser questionados e recriados. Devido a essa certeza, não me aventurei na inglória missão de, ao longo do estudo realizado, apresentar uma política pública de co-educação. Contudo, estou certa de que as considerações traçadas por mim podem servir de fomento para processos de construção de políticas públicas de co-educação. Nesses processos, caberá, igualmente, a todas as interessadas e interessados, a tarefa de participar e pressionar os orgãos competentes do Estado, para que tais políticas OŸŘǼsŎ�OŸŎ��ƼŸÞŸ�ÞŘǣǼÞǼȖOÞŸŘ�Ķ�s�Ŏ�ǼsNjÞ�Ķʳ�NJsʩNjŸ˚Ŏsʰ�ƼŸNjǼ�ŘǼŸʰ���ȖŎ�� tarefa conjunta do Estado e da Cidadania Ativa.20 45 Nessa direção, percebo certa conjuntura no sistema de ensino brasileiro na qual alunas, alunos, professoras, agentes escolares, diretoras, coordenadoras e pesquisadoras podem estar na fronteira entre, de um lado, as práticas escolares nas quais as relações de gênero ainda são hierárquicas e polarizadas e, de outro, a possibilidade de construção de um projeto de co-educação. Travar o debate sobre essas práticas pode ser um modo de cruzar tal fronteira e implementar a co-educação no Brasil. Reitero que, ao utilizar o termo “co-educação”, NjsʩNjŸ˚Ŏs���ȖŎ�ŎŸ_Ÿ�˜��ŎƼĶŸ�s�ƼsNjOsEÞ_Ÿ�ŘŸ� ÞŘǼsNjÞŸNj�_s�ȖŎ�� ʹŸȖ� como uma) política educacional — de gerenciar as relações de gênero na escola, de maneira a questionar e reconstruir as ideias sobre o feminino e sobre o masculino. O desenrolar desse debate sobre as práticas escolares e a construção de um projeto de co-educação só será possível mediante a existência de um claro desejo de atribuir igual valor ao feminino e ao masculino, vistos como elementos não necessariamente opostos ou essenciais. Se professoras, feministas e pesquisadoras não assumirem essa igual valorização como prática, bandeira de luta e tema de estudo, talvez os aligeirados textos jornalísticos e os best-sellers sobre “como devemos educar, diferentemente, meninas e meninos” cuidem disso por nós. REFERÊNCIAS AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006. ______. Relações de gênero nas práticas escolares: da escola mista ao ideal de co- educação, 2004. 232p. Tese (Doutorado em Educação: Sociologia da Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. ______. Feminismo: que história