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Escoamento Superficial 8-1 Manual de Hidrologia 8 ESCOAMENTO SUPERFICIAL 8.1 O PROCESSO FÍSICO DO ESCOAMENTO SUPERFICIAL Designa-se por escoamento superficial o escoamento que ocorre sobre a superfície do terreno ou na camada do solo superficial. Este escoamento tem inicialmente características laminares (pequena altura de água sobre uma grande superfície de terreno) tendendo depois a concentrar-se em linhas de água cada vez mais bem definidas e com percursos estáveis. Como já se viu anteriormente, quando ocorre precipitação esta começa por infiltrar-se no solo. À medida que a precipitação prossegue, a capacidade de infiltração do solo vai diminuindo exponencialmente até que passa a ser inferior à intensidade da precipitação. A água que não se infiltra começa por preencher as pequenas depressões do terreno (armazenamento em depressões, “depression storage”) donde irá mais tarde evaporar ou infiltrar-se. Quando esta capacidade de armazenamento se esgota, começa a formar-se uma lâmina de água com alguns milímetros de altura que, por acção da gravidade, começa a escoar-se com velocidades relativamente baixas (10 a 500 m/hora). Este escoamento designa-se por escoamento superficial laminar (“overland flow”). À medida que ele se vai concentrando (em linhas de água, ribeiros, rios), deixa de ter características laminares e passa a ser um escoamento unidimensional, com maiores velocidade e alturas de água. À medida que a precipitação prossegue, ela transforma-se quase totalmente em escoamento superficial laminar em virtude do estado de saturação do solo. Aumenta a espessura da lâmina de água que funciona como um armazenamento que mantém o escoamento superficial por um curto período de tempo após a cessação da precipitação (inclui-se aqui também o efeito do armazenamento na própria rede hidrográfica) – armazenamento superficial, “surface detention”. Para além, do escoamento superficial laminar e do armazenamento superficial, também contribuem para o escoamento superficial em linhas de água duas outras componentes: o escoamento sub-superficial ou hipodérmico; e o escoamento subterrâneo. O escoamento sub-superficial surge em áreas de solo permeável mas com declive apreciável que faz com que a água infiltrada percole através do solo em direcção paralela à superfície; ou em áreas permeáveis que têm subjacente um estrato impermeável a pequena profundidade. Tratando-se de escoamento através do solo, a velocidade é mais baixa do que a do escoamento superficial laminar. Finalmente, a água infiltrada que atinge o nível freático constitui a recarga do aquífero, elevando o nível freático ou a carga piezométrica. Se o aquífero é interceptado por uma linha de água, ele escoa para essa linha de água um caudal superior ao anterior à recarga. As figuras 8.1 a 8.4 ilustram estes conceitos. Na figura 8.1, i(t) é a intensidade de precipitação e f(t) é a capacidade de infiltração que vai decrescendo com o tempo, tendendo para um valor constante. Nem toda a precipitação que excede a capacidade de infiltração origina escoamento superficial: a área a sombreado escuro corresponde a precipitação que preenche o armazenamento em depressões. A parte a tracejado corresponde à precipitação útil que origina o escoamento superficial. Escoamento Superficial 8-2 Manual de Hidrologia Escoamento Superficial 8-3 Manual de Hidrologia Em termos da utilização da água superficial, o maior interesse reside nos caudais que se escoam nas linhas de água permanentes, embora o escoamento superficial laminar tenha também importância para diversos problemas (simulação hidrológica, rega por gravidade, erosões). 8.2 MEDIÇÃO DE CAUDAL O escoamento superficial exprime-se como um caudal ou um volume. O caudal é normalmente expresso em m3/s (ou em l/s para caudais muito pequenos). O volume de escoamento num dado período de tempo T é dado por V = ∫T Q dt O volume expressa-se normalmente em m3, utilizando-se 103 m3 ou 106 m3 quando se trata de grandes volumes escoados. Designa-se por caudal específico o caudal por unidade de área de bacia de drenagem da secção onde o caudal é observado. Existem diversos processos para a medição do caudal numa dada secção dum rio ou dum canal. Os que se utilizam em Moçambique são o método da secção – velocidade e o método estrutural. Para além destes, podem referir-se ainda o método da diluição e o método de ultra- sons. 8.2.1 Método da secção-velocidade O método consiste em determinar a área da secção da vazão e as velocidades num certo número de pontos dessa secção de vazão de forma a poder fazer-se uma aproximação numérica do integral que define o caudal que atravessa a secção Q = ∫A v dA Este é o método normalmente mais utilizado, não apenas em Moçambique mas em todo o Mundo. Na prática, o método da secção-velocidade consiste na execução dos seguintes passos (veja-se a figura 8.5): a) mede-se a largura superficial L da secção transversal b) divide-se essa largura L em n faixas iguais de largura l = L/n , sendo nmin ≅ 15-20 e lmax ≅ 10-20 m, procurando-se que o caudal em cada faixa não seja superior a 10% do caudal total Q c) faz-se o levantamento da secção medindo as alturas de água h1, h2, .... hn-1 (ho = hn = 0) d) determina-se a velocidade média em cada uma das verticais 1 a n-1 pelo processo que será explicado mais adiante Escoamento Superficial 8-4 Manual de Hidrologia e) obtem-se o caudal qi em cada faixa multiplicando a área da faixa pela velocidade média vi na respectiva vertical f) o caudal total é dado por Q = ∑ qi Figura 8.5 – Medição de caudal Utilizam-se diversas expressões para a aproximação numérica do integral Q = ∫A vdA. 1ª) qi – caudal que passa entre as verticais i -1 e i i = 1, n ho = hn = vo = vn = 0 Esta fórmula é considerada a mais precisa para o cálculo do caudal mas é pouco utilizada. 2ª) A seguinte fórmula dá normalmente resultados com boa precisão i = 1, n-1 ho = hn = 0 As duas seguintes fórmulas dão aproximações menos rigorosas: ([ ]iiiiiiiii vhvhvhvh lq 1111 )26 −−−− +++= ∑ = = n i qiQ 1 ( )11 24 −− ++= iiiii hhhv lq ∑= i iqQ Escoamento Superficial 8-5 Manual de Hidrologia 3ª) Fórmula de HERSCHY qi = l vi hi i = 1, n-1 4ª) Fórmula de LENCASTRE i = 1, n ho = hn = vo = vn = 0 Normalmente, as diferenças nos resultados são muito pequenas pelo que se podem usar as fórmulas mais simples. 8.2.2 Medição de velocidade Para a utilização das fórmulas anteriormente referidas há que se fazer a determinação da velocidade média em cada vertical. Com efeito, a distribuição develocidades numa secção transversal está longe de ser uniforme – em termos genéricos pode dizer-se que a velocidade pontual cresce com o afastamento em relação ao leito e às margens, como se pode ver na figura 8.6. Figura 8.6 – Distribuição de velocidade numa secção transversal Embora se pudesse esperar que a velocidade pontual máxima se registasse num ponto da superfície livre da água, medições rigorosas têm mostrado que ela se regista um pouco abaixo da superfície livre, por causa da tensão tangencial criada pela resistência do ar ao escoamento. Assim, em cada vertical existe um perfil de velocidades como o da figura 8.7, em que a velocidade cresce desde junto ao leito até um valor máximo próximo da superfície. O aumento da velocidade é rápido junto ao leito e lento junto à superfície. i i qQ ∑= ) 2 () 2 ( 11 −− ++ = iiiii hhvv lq i i qQ ∑= Escoamento Superficial 8-6 Manual de Hidrologia Teóricamente, para se obter a velocidade média em cada vertical teria de se traçar o perfil de velocidades a partir da determinação das velocidades pontuais num certo número de pontos; e obter o valor médio v. Como, no entanto, a determinação de cada velocidade pontual é um processo trabalhoso e moroso, procurou-se minimizar esse trabalho, fazendo medições de velocidade apenas em 1 ou 2 pontos em cada vertical. Para isso, admite-se que o perfil de velocidades segue uma lei parabólica, hipótese que tem uma base teórica e uma boa correspondência com os dados de observação. y = b v2 yav = maxmax hav = vhahhvÁrea max2 3 maxmaxmax 3 2 3 2 === max2 1 max 3 2 3 2 vahv == Pode-se determinar o valor de y0 tal que vyv =)( 0 maxmax0max0 44.09 4 3 2 hhyhaya ==⇒= Se se medir a velocidade a uma profundidade de (1-0.44) hmax = 0.56 hmax ≅ 0.6 hmax, o valor obtido é igual à velocidade média. Por vezes, opta-se por obter a velocidade média a partir das medições das velocidades em 2 pontos, a profundidade 0.2 hmax e 0.8 hmax. Com efeito, A média das duas velocidades é praticamente igual à velocidade média. A medição da velocidade pontual é feita com um aparelho chamado molinete. O molinete é um instrumento provido duma hélice ou duma roda de copos cuja rotação é proporcional à velocidade do escoamento, figura 8.8. maxmaxmax 894.08.0)2.0( hahahv == maxmaxmax 447.02.0)8.0( hahahv == Figura 8.7 – Perfil de velocidades Escoamento Superficial 8-7 Manual de Hidrologia Para medir a velocidade num certo ponto da secção transversal, basta colocar o molinete nesse ponto e medir o número de rotações efectuado em certo tempo. Convém que o intervalo do tempo não seja muito curto, nunca inferior a 1 minuto. A velocidade é dada por: v = a + b·n em que v – velocidade pontual, m/s n – nº de rotações medido, rpm a,b – parâmetros cujos valores são fornecidos pelo fabricante ou resultados do processo de calibração. Os parâmetros a, b devem ser periodicamente aferidos (p.ex, uma vez por ano) visto que o próprio funcionamento em condições normalmente turbulentas de escoamento altera os seus valores. Essa aferição exige uma estrutura de calibração onde se segue um processo inverso do da medição: a velocidade é conhecida e os parâmetros a e b não são. Para isso, é preciso dispôr dum bom canal de calibração de molinetes. Neste canal move-se um carro cuja velocidade é rigorosamente controlada por equipamento electrónico. O molinete a calibrar está solidário com o carro. A água no canal está parada pelo que a velocidade medida pelo molinete é a velocidade do movimento do carro. O carro pode deslocar-se a uma velocidade pré-fixada (normalmente entre 0.1 e 10 m/s). Fixando uma certa velocidade, regista-se o número n de rpm dado pelo molinete; repete-se o processo para vários valores de velocidade. Finalmente os parâmetros a e b são obtidos a partir da recta de regressão linear simples de v sobre n. Figura 8.8 – Molinetes de hélices e de copos Escoamento Superficial 8-8 Manual de Hidrologia Um outro processo para medição da velocidade é a utilização de flutuadores. Como o próprio nome indica, flutuador é qualquer objecto que flutua e que se desloca com a corrente. Este processo de medição é pouco rigoroso e só se utiliza: • para medições expeditas quando o rigor não é muito importante • quando não se disponha dum molinete • quando não haja condições para medir com molinete (p.exº durante uma cheia) O flutuador mede a velocidade na superfície livre (y = hmax). Embora teoricamente se tenha estabelecido que toma-se na prática sup75.0 vv = visto vsup ser na realidade inferior a vmax devido à tensão tangencial criada pela resistência do ar. Para se fazer uma medição com flutuador, escolhem-se duas secções num troço recto do rio ou canal e a uma distância L entre si; lança-se o flutuador a montante da primeira secção e mede-se o tempo t que ele leva a percorrer a distância L. Ter-se-á então A medição de velocidades pode fazer-se • a vau: este processo é bastante prático quando o escoamento se processa com pequenas alturas e baixas velocidades, não devendo ser utilizado se a altura do escoamento for superior a 1 metro • de barco: este processo torna-se bastante mais moroso pela necessidade de posicionar o barco na posição correcta para cada medição de velocidade pontual • a partir de um teleférico: para secções largas e sujeitas a cheias de rios importantes pode ser vantajosa a instalação dum teleférico do qual se suspende o molinete. Este processo é expedito, preciso e funciona durante as cheias (o que não acontece com os dois métodos anteriores) mas o investimento inicial necessário é alto. • A partir duma ponte: as pontes são secções privilegiadas de medição, podendo esta ser feita com rapidez e rigor mesmo durante cheias. Durante as cheias o escoamento é fortemente turbulento pelo que convém medir a velocidade em vários pontos em cada vertical de forma a que os perfis de velocidades fiquem bem definidos. supmax 3 2 3 2 vvv ≅= t Lve t Lv 75.0sup == − Escoamento Superficial 8-9 Manual de Hidrologia 8.2.3 Método estrutural para a medição de caudal O método estrutural para a medição de caudal toma esse nome porque assenta na utilização duma estrutura hidráulica, como o descarregador duma barragem ou um canal Parshall, em que há uma relação fixa entre altura e caudal, obtida teoricamente ou por modelo reduzido em laboratório (p. exº o LEM obteve essa relação para o descarregador situado em Goba através de ensaios em modelo reduzido). Além do canal Parshall e dos descarregadores de barragens e açudes (descarregadores de soleira espessa) também se utilizam por vezes descarregadores de soleira delgada, os quais são construídos especificamente para a medição de caudais. Constituem condições para a utilização do método estrutural: - que se disponha duma estrutura permanente e estável- que a estrutura não modifique senão localmente as condições de escoamento - que a estrutura tenha altura suficiente para não ser afectada pelas condições do escoamento a jusante - que a estrutura tenha uma forma adequada para permitir que as medições se façam com boa precisão. Na figura 8.9, o descarregador triangular permite melhor precisão que o rectangular na medição de caudais pequenos. Como se disse atrás, o método estrutural utiliza a relação biunívoca entre caudal e altura do escoamento através da estrutura para obter o caudal a partir duma simples medição da altura: h → Q = f (h). A relação Q = f (h) pode ser estabelecida teoricamente para as estruturas com formas estudadas e por via laboratorial, utilizando modelos reduzidos, nos outros casos. Por exemplo, para um descarregador onde o escoamento se processa sem afogamento tem-se: em que µ é o coeficiente de vazão, B o comprimento equivalente do descarregador e h a altura de água acima da soleira lida a alguma distância (para montante) do descarregador. Nos casos mais correntes, µ varia entre 0.40 e 0.55 o que faz com que µ√2g esteja entre 1.8 e 2.5. 2/32 hgBQ µ= Figura 8.9 – Estruturas descarregadoras para medição de caudal Escoamento Superficial 8-10 Manual de Hidrologia No caso dum canal Parshall, ter-se-ia Q = (µ + η B) h ξ O método estrutural apresenta algumas limitações: - devido ao seu custo, só se instalam estruturas destinadas especificamente à medição em secções relativamente apertadas o que exclui os troços terminais dos rios onde as secções são habitualmente muito largas; - os custos de instalação são elevados (construção da estrutura) em comparação com o método da secção-velocidade, embora os custos de operação sejam mais baixos; - frequentemente, a relação Q = f (h) deixa de ser válida durante as cheias (afogamento do descarregador). De qualquer forma, sempre que uma estrutura esteja disponível (como é o caso dos descarregadores das barragens) ela deve ser aproveitada para a medição de caudais. Em Moçambique, para além da utilização dos descarregadores das grandes barragens (Pequenos Libombos, Corumana, Massingir, Cahora Bassa), foram montados descarregadores para medição de caudais (p. exº em Goba e Movene) e canais Parshall (p. exº no rio Bobole, próximo de Marracuene). 8.2.4 Método da diluição para a medição de caudal O método da diluição tem uma utilização restrita e não tem sido aplicado em Moçambique. Ele consiste na injecção dum caudal constante q duma solução muito concentrada dum determinado produto químico (inexistente ou com pequena concentração na água em condições naturais) numa secção a montante e na medição da concentração desse produto a jusante, após se completar o processo de difusão. O cálculo do caudal Q é feito considerando que a concentração inicial do produto químico era ci, a concentração final medida a jusante era cf e co era a concentração natural do produto na água. Então, a equação da continuidade aplicada ao produto permite escrever. Isto implica que ci deve ser bastante alto para que cf seja claramente superior a co. Os traçadores mais utilizados são o dicromado de potássio que é vermelho (a intensidade do vermelho é proporcional à concentração); o cloreto de sódio; e elementos radioactivos (luminóforos – as amostras de água recolhidas a montante e a jusante e sujeitas emitiem radiação luminosa proporcional à concentração). of fi foi cc cc qQcQqcQcq − − =→+=+ )( Escoamento Superficial 8-11 Manual de Hidrologia O método da diluição apresenta sérias limitações: - ci tem de ser elevado o que implica bastantes custos (instalação de injecção, material) - tem de se manter a injecção durante bastante tempo para garantir o estabelecimento de regime permanente - os traçadores utilizados apresentam impactos ambientais negativos (cor, radiação) e são caros. Tal não é o caso do cloreto de sódio mas este tem a desvantagem de existir em concentrações relativamente elevadas na água, dando resultados pouco precisos. É possível aplicar o método sem se ter regime permanente mas tal obriga a aceitar hipóteses sobre o processo de difusão, introduzindo uma fonte adicional de erro no cálculo do caudal. 8.2.5 Método dos ultra-sons para medição de caudal O método dos ultra-sons permite determinar a velocidade (média) a uma dada profundidade y. Fazendo essa determinação para diversos valores de y, o caudal é obtido somando os caudais parciais obtidos através dos produtos das velocidades pelas respectivas áreas de influência. Este método está ainda numa fase que se pode considerar experimental e a sua utilização presente está limitada a canais artificiais com fundo horizontal, secção simétrica não erodível e sem vegetação e num alinhamento rectilíneo. Tem custos elevados de investimento e de O&M. A velocidade da água a uma certa profundidade y é determinada a partir dos tempos de propagação de impulsos sonoros através da água emitidos e recebidos por emissores e reflectores de som colocados nas paredes do canal, figura 8.10. Quando há escoamento, a velocidade de propagação do som na água no sentido de 1 para 2 difere da velocidade no sentido de 2 para 1. Designando por c a velocidade de propagação do som na água parada, chega-se às seguintes expressões em função da composição de velocidades: ⎟⎟ ⎠ ⎞ ⎜⎜ ⎝ ⎛ −=→ − = + = 21 21 11 cos2coscos tt LV Vc Lt Vc Lt θθθ Este método nunca foi utilizado em Moçambique. Figura 8.10 – Medição de caudal com ultra-sons Escoamento Superficial 8-12 Manual de Hidrologia 8.3 CURVA DE VAZÃO O conhecimento das disponibilidades de recursos hídricos superficiais exige a determinação diária do caudal que atravessa uma dada secção transversal dum rio. Em períodos em que o caudal pode variar bastante ao longo dum dia, como acontece durante as cheias, torna-se necessário dispôr de mais do que um registo diário do caudal, frequentemente requerendo-se 3, 4 ou mesmo 6 medições diárias. Com a excepção do método estrutural (que, como se viu, está limitado às situações pouco frequentes em que se dispõe duma estrutura descarregadora), os restantes métodos de medição de caudal (secção-velocidade, diluição) exigem pessoal especializado a nível médio (hidrometrista) e cada medição demora horas. Não é portanto viável medir diariamente caudais nas muitas secções dos rios do país em que tal seria necessário. Procura-se então estabelecer em cada secção de interesse uma relação entre o caudal Q que passa na secção e a altura do escoamento h, relação que é, em certas condições, biunívoca. Designa-se por curva de vazão a função Q (h) que permite obter o caudal a partir da correspondente altura do escoamento. Note-se que a utilização do método estrutural exige o estabelecimento da relação Q = Q (h). Uma vez definida a curva de vazão, o problema da medição de caudal transforma-se num problema bastante mais simples que é o da medição do nível da água do rio - medição que pode ser feita por uma pessoa bastante menos qualificada que um hidrometrista. Mede-se então diariamente (ou várias vezes por dia durante as cheias) o nível no rio,obtendo-se a altura do escoamento; a função Q (h) determina os correspondentes valores de caudal. 8.3.1 Estabelecimento duma curva de vazão O estabelecimento da curva de vazão numa dada secção dum rio é feito a partir duma série de medições de caudal, feitas ao longo dum ano hidrológico. As medições devem ser executadas em períodos onde se verifiquem diferentes alturas do escoamento, desde alturas muito reduzidas em época de estiagem até alturas elevadas durante cheias, cobrindo assim uma grande gama de caudais. Ao conjunto de pares (Q, h) resultante dessas medições ajusta-se uma expressão geral do tipo Q = a (h – ho)b em que a, b – parâmetros de ajustamento ho – leitura da escala hidrométrica que corresponde a caudal nulo, chamado zero da escala Esta função Q (h) de tipo exponencial corresponde bastante bem às observações de campo. Os parâmetros a e b são obtidos com relativa facilidade por meio de regressão linear trabalhando no espaço logarítmico. ln Q = ln a + b ln (h-h0) que é a equação duma recta em espaço logarítmico. Escoamento Superficial 8-13 Manual de Hidrologia Caso a secção de medição e o troço do rio imediatamente a montante e a jusante sejam estáveis (não sofrendo processos de erosão e deposição de sedimentos) a mesma curva de vazão pode manter-se válida para vários anos hidrológicos. No entanto, é preciso que se façam medições de caudal em cada ano hidrológico que permitam verificar se a curva de vazão ainda continua a ser válida. Não é demais salientar a importância de se medirem caudais tão altos quanto possível e da necessidade de rigor na execução das medições. A utilização da curva de vazão para o cálculo de caudais a partir da medição de alturas de escoamento não levanta nenhumas dificuldades quando essas alturas (e portanto os correspondentes caudais) não excedem os máximos valores das medições utilizadas para derivar a curva de vazão; no entanto, a extrapolação da curva de vazão para além dos valores medidos (que é necessária nas situações de cheias) colocam algumas dificuldades. 8.3.2 Extrapolação da curva de vazão para caudais altos (cheias) É muito difícil medir caudais durante cheias: a medição é perigosa por causa da grande altura e velocidade do escoamento, além de dificuldades agravadas de acesso à secção de medição. A curva de vazão estabelecida para uma determinada gama de caudais não deve ser extrapolada para um caudal muito superior ao máximo caudal medido, por um lado porque podem verificar-se mudanças bruscas na forma da secção, figura 8.12; por outro, porque haver grandes modificações na rugosidade do leito, sobretudo quando o escoamento ultravaza o leito menor, figura 8.13. Figura 8.11 – Estabelecimento de uma curva de vazão Escoamento Superficial 8-14 Manual de Hidrologia Diversas vias têm sido propostas para estender a curva de vazão para caudais e alturas superiores aos máximos medidos. Apresentam-se de seguida algumas dessas vias. 1º Processo) Para o domínio da curva de vazão em que há medições de caudal, determinam-se as funções U(h) e R(h). A conjunção destas duas curvas permite determinar a função U(R), representada aproximadamente por uma recta em papel log-log. Verifica-se que esta relação U(R) em papel log-log se mantém aproximadamente linear para caudais altos. Então, conhecido o nível h da cheia, pode-se determinar o correspondente raio hidráulico R, e daí U = U(R) e Q = UA. Infelizmente, a relação U(R) não se mantém linear no espaço logarítmico quando a secção inclui a planície de inundação. 2º Processo) Consiste essencialmente em utilizar a fórmula de Manning- Strickler Q = Ks A R2/3 J1/2 Neste processo aceita-se como aproximação suficiente que J = Jo. No caso de haver inundação das margens, a secção é dividida em partes, obtendo-se uma rugosidade equivalente neq. O valor de Ks é calibrado para os mais altos valores de Q medidos. 3º Processo) Consiste em estimar o caudal duma cheia real a partir das marcas deixadas pela cheia em árvores, casas, etc. Tomam-se 2 secções distanciadas de pelo menos 75 vezes a profundidade média do escoamento. A capacidade de vazão (“conveyance”) duma secção é dada por 3 2 3 21 ARKAR n K s== utilizando-se neq em vez de n quando há inundação das margens. Figura 8.12 – Mudança brusca de secção Figura 8.13 – Alteração da rugosidade Escoamento Superficial 8-15 Manual de Hidrologia O caudal da cheia é obtido pela seguinte expressão sendo L a distância entre secções, r = 0 ou 0.5 conforme se tenha uma contracção ou uma expansão do escoamento e hi, Ai, Ki são a altura do escoamento, a área e a capacidade de vazão da secção i 4º Processo) Método de RIGGS – proposto em 1970, trata-se duma fórmula semi-empírica obtida por regressão linear múltipla a partir de dados de inúmeras cheias em todo o Mundo. O caudal é calculado através de. log Q = 0.191 + 1.33 log A + 0.05 log Jw – 0.056 (log Jw)2 com Q – m3/s; A – m2; Jw – inclinação da superfície da água. Assim, conhecido o nível atingido por uma cheia, é fácil obter A e Jw e daí o caudal máximo da cheia. 8.3.3 Medição de alturas hidrométricas Com o estabelecimento da curva de vazão, o problema da medição regular (diária ou mais frequente) do caudal fica reduzido ao da medição em períodos correspondentes da altura do escoamento ou altura hidrométrica. A medição da altura hidrométrica num rio ou curso de água é feita habitualmente com recurso a escalas. As escalas são réguas graduadas que se colocam por troços verticais, figura 8.14, de forma a permitir uma fácil leitura do nível da água no rio, donde se obtém a altura do escoamento (por subtracção do “zero” da escala). Por vezes, a escala é colocada inclinada sobre a margem, alterando-se a graduação de forma a fazer-se uma leitura directa considerando essa inclinação. )1(1 2 2 1 2 2 2 2 2 1 2 21 2 r A A gA K L K K hh KQ − ⎥ ⎥ ⎦ ⎤ ⎢ ⎢ ⎣ ⎡ ⎟⎟ ⎠ ⎞ ⎜⎜ ⎝ ⎛ −+ − = Figura 8.14 – Escalas hidrométricas Escoamento Superficial 8-16 Manual de Hidrologia Instalada a escala e determinado o seu “zero”, o leitor faz uma leitura diária a uma hora fixa e, em período de cheias, várias leituras por dia. Para se obter um registo contínuo de caudais, sobretudo durante as cheias, pode-se instalar em secção de rios importantes um limnígrafo, aparelho que faz um registo contínuo de níveis, figura 8.15 Com o avanço da tecnologia e principalmente da electrónica digital, têm sido propostos aparelhos registadores de nível, de funcionamento contínuo, baseados em medição da pressão. Tais aparelhos estão mergulhados no fundo do leito e ligados por um cabo eléctrico a um registador digital. A este registador está associado um barómetro para medição da pressão atmosférica. Tem-se então pleito = γh + patm → h = (pleito - patm) /γO registador digital armazena os valores de h (que ele próprio calcula) em intervalos de tempo fixo, p. ex. 5 minutos. Os registos, sendo digitais, podem depois ser transferidos directamente para computador, evitando o processo de transcrição que é sempre fonte de erros. 8.4 ESCOLHA DUMA ESTAÇÃO HIDROMÉTRICA Designa-se por estação hidrométrica a instalação numa dada secção dum rio para se proceder à medição de alturas do escoamento e caudais e onde, em princípio, ficará estabelecida uma curva de vazão. Figura 8.15 – Limnígrafo Escoamento Superficial 8-17 Manual de Hidrologia A escolha duma secção para implantar uma estação hidrométrica deve ser bastante criteriosa. Em condições ideais, tal secção deve obedecer cumulativamente às seguintes condições: a – deve situar-se na parte média dum troço rectilíneo do rio, com um comprimento mínimo de 3 vezes a largura da secção e inclinação constante; b – ser estável (sem erosão nem sedimentação acentuada); c – não ser afectada por regolfo, marés, confluências; d – não ter vegetação; e – o escoamento deve processar-se num leito bem definido; f – o local deve ser sempre acessível, mesmo com mau tempo e durante cheias; g – deve haver possibilidade de recrutar localmente um observador/leitor. Como é óbvio, estas características raramente se conjugam na totalidade. Por exemplo, é frequente haver vegetação nos taludes da secção e o acesso nem sempre ser fácil (sobretudo se se pensar nas áreas rurais de Moçambique). 8.5 ESTIMATIVA DE ESCOAMENTOS QUANDO NÃO HÁ MEDIÇÕES DE CAUDAL É frequente a situação em que, sendo necessário conhecer os escoamentos numa determinada secção dum rio, não existem medições de caudal ou elas são muito escassas. Podem adoptar-se diversos processos para estimar esses escoamentos, de acordo com a informação disponível. O problema coloca-se igualmente para preenchimento de falhas em séries de registos de escoamento. 8.5.1 Método da proporcionalidade das áreas Por vezes, não se dispõe de dados de escoamento numa dada secção dum rio (onde, por exemplo, se quer construir uma pequena barragem ou localizar uma toma de água) mas eles existem numa outra secção do rio, não muito afastada, a montante ou jusante. Nessas condições, poderá admitir-se que o caudal específico (caudal por unidade de área, Q/A) é o mesmo nas duas secções. Esta relação mostra-se válida quando as duas secções têm as mesmas características fisiográficas e de precipitação. Se, por exemplo, a precipitação ponderada sobre as bacias das secções 1 e 2 é bastante diferente, deverá modificar-se a expressão acima para entrar em conta com esta variação: 2 2 1 1 2 2 1 1 Q A AQ A Q A Q =→= 2 2 1 2 1 1 22 2 11 1 Q P P A AQ PA Q PA Q =→= Escoamento Superficial 8-18 Manual de Hidrologia Note-se que esta última expressão corresponde a considerar que o coeficiente de escoamento é o mesmo nas duas bacias drenantes, entendendo-se como coeficiente de escoamento a relação entre o volume precipitado e o volume escoado. 8.5.2 Escoamento afluentes a albufeiras Os escoamentos afluentes a albufeiras são normalmente obtidos através do balanço hídrico da albufeira. Em Moçambique, isso é feito nas barragens de Cahora Bassa, Chicamba, Pequenos Libombos, Corumana e Massingir. Nestas duas últimas, é mesmo o processo mais expedito visto que os regolfos das albufeiras atingem a fronteira com a África do Sul. A equação geral do balanço hídrico em albufeiras é: St+1 = St + I∆t - O∆t + P∆t - E∆t em que St – volume armazenado no instante t ∆t - intervalo de tempo entre t e t + 1 I – escoamento afluente durante ∆t O – descarga da barragem durante ∆t P – volume precipitado na albufeira durante ∆t E – volume evaporado da albufeira durante ∆t Nas albufeiras existem registos (diários) dos volumes armazenados (normalmente, registam- se alturas de água na albufeira e transformam-se em volumes através da curva de volumes armazenados); descargas (descargas de fundo, toma de água, circuito para central hidroeléctrica, descarregador de cheias); precipitação e evaporação. A única incógnita da equação do balanço hídrico é então, o escoamento afluente. 8.5.3 Estimativa de escoamentos utilizando a fórmula de Turc A fórmula de Turc é uma fórmula semi-empírica que poderá ser utilizada caso não se disponha de nenhumas medições de caudal na bacia em estudo. A fórmula escreve-se: DE = P – R em que DE é o défice de escoamento, P a precipitação ponderada sobre a bacia drenante e R o escoamento superficial na secção de referência da bacia, sendo todas as variáveis expressas como alturas anuais, em mm. Turc apresentou a seguinte expressão para o cálculo de DE: 2 2 9.0 L P PDE + = Escoamento Superficial 8-19 Manual de Hidrologia em que L é o poder evaporante da atmosfera. Ainda segundo Turc: L = 300 + 25T + 0.05 T3 onde T é a temperatura média anual na bacia, em oC. Assim, a partir dos valores anuais de T e P, pode-se calcular facilmente L e DE e daí obter a série de valores anuais de escoamento R. Para se obter de forma expedita a série de escoamentos mensais a partir da série de escoamentos anuais R, pode-se utilizar o seguinte processo: • escolher uma bacia próxima (bacia B) com características fisiográficas e climáticas similares e onde haja registos de escoamentos no período em causa da bacia em estudo (bacia A); • determinar na bacia B para cada ano a percentagem do escoamento anual que ocorre em cada mês; • utilizar essas mesmas percentagens na bacia A. 8.5.4 Método do balanço hídrico sequencial Em pequenas bacias hidrográficas, com relevo pouco acentuado e solos permeáveis com grande capacidade de infiltração, pode-se utilizar-se o método do balanço hídrico sequencial, proposto por Thornthwaite e Mather. A equação do balanço hídrico num dado intervalo de tempo escreve-se: P - ETe - ∆Ss = R + ∆S + G + ∆Sg onde P é a precipitação, ETe é a evapotranspiração efectiva, ∆Ss é a variação da quantidade de água armazenada no solo, R é o escoamento superficial, ∆S é a variação da quantidade de água armazenada à superfície, G é o escoamento subterrâneo e ∆Sg é a variação da quantidade de água do armazenamento subterrâneo. Após um episódio de precipitação suficiente para saturar o solo, este começa a drenar. Depois dum período de tempo suficientemente longo, a drenagem cessa e uma certa quantidade de água permanece na camada superior do solo, sendo a acção da gravidade contrariada pelos efeitos de capilaridade e absorção. Designa-se por capacidade de campo, nr, a relação adimensional entre o volume de água vr que fica retido contra a acção da gravidade e o volume total do solo vt. t r r v v n = Escoamento Superficial 8-20 Manual de Hidrologia Nas condições de capacidade de campo, a tensão da água no solo é relativamente baixa, da ordem de 0.1 a 0.3 atmosferas. Àmedida que a quantidade de água armazenada diminui, a tensão aumenta. Quando a tensão atinge o valor de aproximadamente 15 atmosferas, as plantas já não conseguem criar sucção suficiente para retirar água do solo, atingindo-se o ponto de emurchecimento, a partir do qual as plantas morrem. O ponto de emurchecimento é caracterizado pelo parâmetro adimendional no que é a relação entre o volume de água ainda existente no solo e o volume total de solo. A capacidade útil de armazenamento de água no solo é então definida pelo parâmetro adimensional nu = nr - no . Se se multiplicar nu pela espessura da camada de solo, o valor vem expresso como uma altura. O método do balanço hídrico sequencial pressupõe o conhecimento dos valores de precipitação P, da evapotranspiração potencial ETp e da capacidade útil nu, sendo normalente aplicado numa base diária ou mensal. O método considera que, em cada intervalo de tempo, se pode registar um superavit hídrico, SH, ou um défice hídrico, DH. Haverá superavit hídrico se, nesse período, se tiver P ≥ ETp. SH = P - (ETp + ∆Ss ), sendo ∆Ss ≥ o Haverá défice hídrico num período se P < ETp. DH = ETp - ETe = ETp - (P - ∆Ss) sendo, neste caso, ∆Ss negativo. Durante períodos com superavit hídrico (períodos húmidos), ∆Ss = P - ETp até que Ss iguale nu, correspondendo ao limite superior da capacidade de armazenamento no solo. Nos períodos com défice hídrico (períodos secos), o solo vai perdendo água por evapotranspiração. O método de Thornthwaite-Mather apresenta as seguintes equações: un L us enS = t o o v v n = [ ] 0)()()( 1 <−= ∑ = LjETjPiL i j p )1( )( −−=∆ iSenS s n iL us u Escoamento Superficial 8-21 Manual de Hidrologia sendo i para o período em estudo e j os períodos secos anteriores. O escoamento superficial R é determinado admitindo que o escoamento subterrâneo G é nulo e a seguinte fórmula empírica: Ri = 0.5 [ SHi + ( S + Sg)i-1 ] O balanço hídrico sequencial deve começar a ser aplicado no fim do período de estiagem quando se pode admitir que os armazenamentos de água são nulos. O método tem como base a hipótese de que o “input” precipitação irá, em primeiro lugar, satisfazer o consumo de evapotranspiração e o armazenamento de água no solo. Isso só é válido quando se tem precipitações cuja intensidade não excede a capacidade de infiltração nos solos, o que nem sempre acontece nos climas tropicais. 8.6 PREENCHIMENTO DE FALHAS E EXTENSÃO DE SÉRIES DE ESCOAMENTO Com bastante frequência, os registos de escoamento numa dada secção apresentam falhas. Existem diversos métodos para se preencherem falhas, apresentando-se alguns de fácil aplicação. 8.6.1 Regressão linear a partir de precipitações anuais Nas bacias hidrográficas, a correlação entre a série de precipitações ponderadas anuais Pi e a série dos escoamentos anuais virgens (i.e., não afectados por abstracções de água ou por albufeiras de regularização) Ri é normalmente elevada. Pode então estabelecer-se a equação de regressão de Ri sobre Pi para os anos em que não há falhas: R = a + b P em que a, b são os parâmetros da regressão. A equação pode depois ser utilizada para determinar os escoamentos anuais nos anos com falhas a partir das precipitações anuais nesses anos. Com os escoamentos anuais, pode-se fazer a estimação dos escoamentos mensais nos meses com falhas, utilizando-se, por exemplo, para esses meses as percentagens do escoamento anual correspondentes a um ano médio. Como as séries de precipitação são, geralmente, mais extensas que as séries de escoamento, o mesmo método pode ser usado para fazer a extensão das séries de escoamento. No entanto, nesse caso a equação deve ser acrescida duma componente aleatória para que se mantenha a variância da série de escoamentos. Escoamento Superficial 8-22 Manual de Hidrologia 8.6.2 Regressão linear a partir de outra série de escoamentos Caso noutra bacia hidrográfica, com características fisiográficas e climáticas similares, se disponha duma série de escoamentos sem falhas e mais longa, pode-se também fazer o preenchimento de falhas e a extensão da série de escoamentos na bacia em estudo por regressão linear a partir da série de escoamento da outra bacia. RA = a + b RB É necessário começar por verificar se o coeficiente de correlação entre as duas séries é suficientemente alto para a regressão produzir resultados com significado. 8.7 VALORES CARACTERÍSTICOS DE CAUDAL E ESCOAMENTO 8.7.1 Séries cronológicas de caudais e escoamento Cada estação hidrométrica produz uma série cronológica de caudais, calculados por um dos processos indicados anteriormente. A representação gráfica duma série cronológica de caudais designa-se por hidrograma. Poderá haver um valor diário, vários valores por dia ou um registo contínuo de limnigrafo. Uma primeira série que se estabelece é a do caudal médio diário ou, simplesmente, caudal diário. É uma série com 365N valores, sendo N o número de anos com medições. A média dos caudais diários dum mês dá o caudal médio mensal ou, apenas, caudal mensal, definindo-se assim a correspondente série cronológica, com 12N valores. A média dos caudais diários dum ano hidrológico dá o caudal médio anual ou, só, caudal anual, permitindo obter a respectiva série cronológica, com N valores. Para além destas três séries cronológicas de caudais, há duas outras com interesse para as aplicações de Hidrologia: • caudal máximo anual • caudal mínimo anual ambas com N valores. A partir dos registos de caudais, obtêm-se as séries cronológicas de escoamentos diários, mensais e anuais. O escoamento diário é o volume correspondente ao caudal diário a escoar- se durante 24 horas; o escoamento mensal é a soma dos escoamentos diários desse mês; e o escoamento anual é a soma dos escoamentos mensais desse ano hidrológico. As séries cronológicas de caudais e escoamentos ilustram bem a variabilidade natural dos rios, reflectindo a influência do clima (regime de precipitação, evaporação e evapotranspiração) e das características fisiográficas da bacia drenante (área, froma, relevo, geologia, solos, vegetação). Escoamento Superficial 8-23 Manual de Hidrologia Rios de bacias com grandes áreas ou com aquíferos importantes apresentam normalmente um regime de escoamento mais regular que rios de bacias pequenas e não alimentados por água subterrânea. A figura 8.16 apresenta hidrogramas de escoamentos mensais de algumas estações hidrométricas na bacia do rio Malema onde são bem visíveis as influências do regime de precipitações (época húmida, época seca) e de características das bacias (altitude). Neste exemplo, a altitude é um factor mais importante que a área da bacia visto que a precipitação é, sobretudo, de origem orográfica: nas cabeceiras, zona de altitude elevada, a precipitação anual média é de cerca de 2,000 mm ao passo que na bacia intermédia e no Baixo Malema ela ronda os 900 mm. 8.7.2 Curva de duração Para além das séries cronológicas, um bom processo de caracterizar o regime de escoamento dum rio é o de traçar a curva de duração dos caudais diários. Dispondo-se dumasérie cronológica de N anos, ou seja, 365N valores de caudais diários, a curva de duração obtém-se pelo seguinte processo: • a série de caudais diários é ordenada por ordem decrescente, sendo Q1 o valor máximo registado e Q365N o valor mínimo; • para um caudal Qi o número médio de dias por ano em que esse caudal é igualado ou excedido é i/N Coutagne propôs uma expressão genérica para as curvas de duração: sendo n um parâmetro de ajustamento e t o número médio de dias por ano em que Qt é igualado ou excedido. A figura 8.17 representa a curva de duração dos caudais médios diários do rio Mondego em Coimbra em 1970-71 (extraído de Lencastre e Franco 1984), apresentando a forma característica das curvas de duração que é uma exponencial negativa. Sobrepôs-se a curva teórica de Coutagne. n t tnQQQQ ) 365 365()1()( 365365 − +−+= Escoamento Superficial 8-24 Manual de Hidrologia Figura 8.16 – Escoamentos mensais em estações hidrométricas na bacia do rio Malema Escoamento Superficial 8-25 Manual de Hidrologia 8.7.3 Valores característicos Dispondo das séries cronológicas e da curva de duração, é possível fazer análises estatísticas que permitam determinar certos valores característicos que sintetizem os valores médios e a variabilidade dos caudais e escoamentos. Os valores característicos habitualmente mais requeridos são: a) caudais diários médios (365 valores) b) caudais mensais médios (12) c) caudal anual médio (1) d) escoamentos diários médios (365) e) escoamentos mensais médios (12) f) escoamento anual médio (1) g) desvios padrão de b, c, e, f h) caudal característico máximo = Q10 (da curva de duração) i) caudal característico mediano = Q182.5 (idem) j) caudal característico mínimo = Q355 (idem) Figura 8.17 – Curva de duração de caudais diários do rio Mondego em Coimbra Escoamento Superficial 8-26 Manual de Hidrologia Atendendo à forma da curva de duração, o caudal anual médio é sempre superior ao caudal característico mediano, sendo essa diferença tanto maior quanto mais irregular for o regime de escoamento do rio. 8.8 HIDROGRAMA DO ESCOAMENTO SUPERFICIAL 8.8.1 Componentes O caudal que se regista numa dada secção dum rio resulta de 4 componentes correspondentes aos processos que, a partir da precipitação, conduzem a água até ao rio. Essas componentes são: • escoamento directo – resulta da precipitação útil sobre a bacia, cessa algum tempo após o fim da precipitação: • escoamento de base – resulta da alimentação do rio por água subterrânea, pode continuar por longos períodos em que não há precipitação; • escoamento intermédio ou sub-superficial – resultante da água que se escoa na camada superficial do solo, cessa com pouco atraso em relação ao escoamento directo; • escoamento resultante da precipitação sobre a rede hidrográfica – cessa rapidamente após o fim da precipitação. Na generalidade dos casos de bacias de média e grande dimensão, o escoamento intermédio tem pouca importância. O mesmo acontece com a última componente se a bacia drenante não tiver áreas importantes de lagos e pântanos. Assim, em primeira análise, pode-se considerar que um hidrograma de caudais diários resulta da sobreposição do escoamento directo com o escoamento de base. Em períodos sem precipitação, em que o aquífero interceptado pelo rio não está a receber recarga, o nível (em aquíferos freáticos) ou a carga (em aquíferos confinados) vai decrescendo e, consequentemente, diminui o caudal com que o aquífero alimenta o rio. Este efeito é traduzido por uma exponencial negativa do tipo tt eQQ α−⋅= 0 em que Qt é o caudal no instante t, Qo é o caudal no início do período considerado e α um coeficiente característico do aquífero e da sua interacção com o rio. Esta equação é designada como curva de esgotamento. Aplicando logaritmos, esta equação escreve-se: ln Qt = ln Qo - αt ou seja, representa uma recta. Desta forma, se se traçar o hidrograma dos caudais em papel semi-logarítmico, aqueles períodos em que apenas existe escoamento de base aparecem no gráfico como troços rectos de inclinação - α , paralelas entre si. Escoamento Superficial 8-27 Manual de Hidrologia 8.8.2 Separação das componentes do hidrograma A separação das componentes principais dum hidrograma (escoamento directo e escoamento de base) tem interesse, sobretudo, para o estudo de cheias, como se verá no capítulo dedicado a esse tópico. A figura 8.18 ilustra um processo relativamente expedito para se fazer essa separação das componentes. O processo consiste em representar o hidrograma em papel semi-logarítmico o que permite definir as curvas de esgotamento antes e após o escoamento directo. Estendendo para trás a segunda curva de esgotamento (até ao ponto de inflexão da curva) e ligando à primeira curva de esgotamento obtém-se o hidrograma do escoamento de base. Como o ponto de inflexão está próximo da cessação do escoamento directo, não se comete um grande erro se se ligar as duas curvas de esgotamento. Conhecido o hidrograma do escoamento de base e desenhando-o no espaço normal, o hidrograma do escoamento directo é obtido por diferença. Figura 8.18 – Separação das componentes do hidrograma Escoamento Superficial 8-28 Manual de Hidrologia 8.8.3 Forma do hidrograma O hidrograma resultante da precipitação numa bacia tem uma forma bastante característica, representada na figura 8.19. É um hidrograma assimétrico, com assimetria positiva. O troço AB do hidrograma é designado como curva de crescimento, desde o ponto A, que marca o início da subida do hidrograma, até o ponto B, que corresponde ao caudal de pico ou caudal de ponta. O troço BD chama-se curva de decrescimento, sendo o ponto D o que marca o fim do escoamento directo (C, ponto de inflexão) e do escoamento resultante da precipitação sobre a rede hidrográfica. A partir de D, tem-se apenas escoamento de base, pelo que o troço DE representa a curva de esgotamento. tr é a duração da precipitação útil. tl é o tempo de reposta (“time lag”), tempo que decorre entre o centro de gravidade da precipitação útil e o pico do hidrograma. tc é o tempo de concentração, tempo necessário para que a gota de água caída na secção cinematicamente mais distante chegue à secção de saída. È uma característica importante da bacia para o estudo de cheias. te é o tempo de esvaziamento, normalmente pequeno, corresponde ao escoamnto do volume armazenado na rede hidrográfica. tp é o tempo para o pico, corresponde à curva de crescimento. td é o tempo de decrescimento, corresponde à respectiva curva. tb é o tempo base do hidrograma. Dafigura, tira-se imediatamente que ecrdpb l r p tttttt t t t ++=+= += 2 Figura 8.19 – Forma e características do hidrograma Escoamento Superficial 8-29 Manual de Hidrologia Diversos factores influenciam a forma do hidrograma, sobretudo as características da precipitação e da bacia drenante. A precipitação influi obviamente no caudal de ponta e também na curva de crescimento, através da sua intensidade e duração, distribuição na bacia e direcção da propagação da chuva. Entre as características da bacia, têm particular importância a área, a forma da bacia, a rede hidrográfica, o declive dos terrenos e das linhas de água, os armazenamentos naturais e artificiais, a geologia, os solos e a cobertura superficial. Os hidrogramas dos escoamentos podem sofrer modificações profundas por acção do Homem, sobretudo através das abstracções de água, das albufeiras de regularização e da alteração da cobertura superficial. As abstracções de água para utilizações diversas afectam principalmente os caudais de estiagem e alteram, portanto, as curvas de esgotamento. As albufeiras de regularização alteram profundamente o regime de escoamento natural, principalmente aumentando os caudais de estiagem e alterando-os para valores que procuram atender às utilizações a jusante. As alterações da cobertura superficial podem representar impactos muito significativos na bacia. Merecem referência especial a floresta plantada, o abate das florestas naturais e a urbanização. A floresta plantada significa que, numa grande área da bacia, um certo coberto vegetal foi substituído por outro. A floresta plantada vai dar origem a: • maior intercepção da precipitação • maior infiltração da água precipitada, maior recarga de aquíferos • maior evapotranspiração, visto que habitualmente a floresta plantada é composta por espécies de crescimento rápido como o eucalipto Consequentemente, o escoamento directo diminui, reduzindo-se assim o caudal de ponta das cheias de pequena e média dimensão. A irregularidade do escoamento diminui. Por outro lado, a floresta faz com que a velocidade do escoamento laminar seja baixa, diminuindo o seu potencial de erosão. O abate das florestas naturais, que se vem processando a ritmos elevados em quase todos os países do Terceiro Mundo (e Moçambique não é excepção), seja para utilização como combustível doméstico seja para abertura de novas áreas agrícolas, tem os resultados opostos: menor infiltração, menor recarga de aquíferos, maiores caudais de ponta nas pequenas e médias cheias e, principalmente, maior facilidade de erosão. A urbanização pode também ter um impacto forte quando abrange uma percentagem significativa da área da bacia. A urbanização traduz-se pela transformação da cobertura natural (vegetal), que permitia a infiltração e oferecia grande resistência ao escoamento laminar (diminuindo-lhe a velocidade), por áreas impermeáveis, em que toda a precipitação se transforma em escoamento directo, aumentando desta forma o caudal de ponta e o volume da Escoamento Superficial 8-30 Manual de Hidrologia cheia, diminuindo o tempo de resposta e criando um grande potencial de erosão sempre que o escoamento encontre zonas menos resistentes à erosão. Estes efeitos – aumento do caudal de ponta, erosão – estão a tornar-se bem visíveis em algumas das principais cidades de Moçambique como Maputo, Nampula, Nacala e Pemba. Escoamento Superficial 8-31 Manual de Hidrologia EXERCÍCIOS Exemplo 1) Numa secção transversal dum rio, fez-se o seu levantamento e mediram-se as velocidade médias nas respectivas verticais, conforme se apresenta na tabela seguinte x(m) 0 3 6 9 12 15 18 21 24 27 30 33 36 h(m) 0 0.3 0.7 1.0 1.4 2.1 2.4 3.0 1.6 1.5 1.4 0.6 0 v(m/s) 0.1 0.3 0.6 0.8 1.1 1.2 1.5 1.0 1.0 0.9 0.4 a) desenhe a secção transversal b) calcule o caudal na secção, utilizando as 4 formulas propostas. Admitindo que a 1ª aproximação dá a resposta correcta, determine os erros relativos das outras 3 fórmulas. Exemplo 2) Admita que o perfil de velocidade numa vertical se ajusta a uma parábola do 3º grau. Indique a que profundidade a velocidade pontual iguala a velocidade média. Exemplo 3) A concentração natural de cloreto de sódio num rio era de 50mg/l. Supondo que o máximo caudal injectável duma solução concentrada de cloreto de sódio era de 25 l/s, que cf devia ser pelo menos igual a 2 co e que se pretendia medir caudais na ordem de 0.5 – 2 m3/s, qual seria a concentração da solução a injectar? Exemplo 4) Numa secção cujo zero da escala é ho 0.115 m, obtiveram-se ao longo dum ano hidrológico os seguintes resultados de medições de caudal. h (m) 0.272 0.303 0.334 0.393 0.402 0.463 0.548 0.580 Q(m3/s) 2.463 2.923 3.841 5.410 5.883 7.376 11.321 11.825 h (m) 0.626 0.739 0.796 1.041 1.526 2.010 3.265 3.340 Q(m3/s) 14.102 19.790 21.204 36.242 67.327 110.783 227.60 236.60 Obtenha uma expressão analítica para a curva de vazão. Exemplo 5) Determine o caudal médio que entrou na barragem da Corumana num período de 24 horas em que se registaram os seguintes dados: • área da albufeira – 12 km2 • níveis no início e no fim do período – 105.2 m e 105.6 m • precipitação – nula • evaporação medida em tina classe A (USWB) – 6 mm • descarga da barragem – 14 m3/s durante 16 horas Exemplo 6) Utilizando a fórmula de Turc, estime os escoamentos anuais na bacia do rio Infulene, na região de Maputo, nos anos 1981/82 a 1984/85. As temperaturas anuais médias e as precipitações anuais para os anos em causa podem ser obtidas no INAM. Escoamento Superficial 8-32 Manual de Hidrologia Exemplo 7) Calcule os escoamentos mensais num dado ano numa pequena bacia hidrográfica, utilizando o método do balanço hídrico sequencial (Thornthwaite-Mather), com os seguintes dados: nu = 100 mm P (Out-Set): 87/105/142/132/95/132/76/79/38/13/18/48 mm ETp (Out-Set): 62/29/18/22/34/68/96/135/146/169/142/91 mm Exemplo 8) Numa pequena bacia hidrográfica, dispõe-se das seguintes séries de valores anuais de precipitação ponderada e de escoamentos. Ano 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 P (mm) 1,162 1,069 957 1,058 1,108 1,155 805 936 921 732 R (mm) - - - - - - - - 223 150 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 858 1,094 1,027 1,139 1,298 972 1,212 1,354 876 965 234 272 291 240 197 217 - 312 205 182 a) utilizando os anos comuns, calcule o coeficiente de correlação e estabeleça a regressão linear dos escoamentos sobre as precipitações. b) utilize a regressão linear para preencher a falha da série de escoamentos (ano 17) c) utilize a regressão linear para estender a série de escoamentos para os anos 1-8 d) calcule as médias e os desvios padrão da série de escoamentos antes e depois de estendê- la. Comente os resultados. Exemplo 9) Obtenha na DNA a série de caudais diários da estação E 400 (Namparro). Determine a curva de duração e os correspondentes caudais característicosmáximo, mediano e mínimo. Exemplo 10) Compare qualitativamente os hidrogramas que se obteriam numa bacia hidrográfica se uma chuva forte progredisse de montante para jusante ou de jusante para montante.
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