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www.un i su l . b r capa_roxa.pdf 1 07/06/2016 10:50:14 UnisulVirtual Palhoça, 2016 Estudos Socioculturais Universidade Sul de Santa Catarina completo.indb 1 09/06/2016 09:00:14 Créditos Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul Reitor Sebastião Salésio Herdt Vice-Reitor Mauri Luiz Heerdt Pró-Reitor de Ensino, de Pesquisa e de Extensão Mauri Luiz Heerdt Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional Luciano Rodrigues Marcelino Pró-Reitor de Operações e Serviços Acadêmicos Valter Alves Schmitz Neto Diretor do Campus Universitário de Tubarão Heitor Wensing Júnior Diretor do Campus Universitário da Grande Florianópolis Hércules Nunes de Araújo Diretor do Campus Universitário UnisulVirtual Fabiano Ceretta Campus Universitário UnisulVirtual Diretor Fabiano Ceretta Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Ciências Sociais, Direito, Negócios e Serviços Amanda Pizzolo (coordenadora) Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Educação, Humanidades e Artes Felipe Felisbino (coordenador) Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Produção, Construção e Agroindústria Anelise Leal Vieira Cubas (coordenadora) Unidade de Articulação Acadêmica (UnA) – Saúde e Bem-estar Social Aureo dos Santos (coordenador) Gerente de Operações e Serviços Acadêmicos Moacir Heerdt Gerente de Ensino, Pesquisa e Extensão Roberto Iunskovski Gerente de Desenho, Desenvolvimento e Produção de Recursos Didáticos Márcia Loch Gerente de Prospecção Mercadológica Eliza Bianchini Dallanhol completo.indb 2 09/06/2016 09:00:14 Livro didático UnisulVirtual Palhoça, 2016 Designer instrucional Marina Melhado Gomes da Silva Isabel Zoldan da Veiga Rambo Estudos Socioculturais Cláudio Damaceno Paz Elvis Dieni Bardini Jaci Rocha Gonçalves Tade-Ane de Amorim completo.indb 3 09/06/2016 09:00:14 Livro Didático Copyright © UnisulVirtual 2016 Professora conteudista Cláudio Damaceno Paz Elvis Dieni Bardini Jaci Rocha Gonçalves Tade-Ane De Amorim Designer instrucional Marina Melhado Gomes da Silva Isabel Zoldan da Veiga Rambo Projeto gráfico e capa Equipe UnisulVirtual Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul E84 Estudos socioculturais : livro didático / [conteudistas] Cláudio Damaceno Paz, Elvis Dieni Bardini, Jaci Rocha Gonçalves, Tade-Ane de Amorim ; design instrucional [Marina Melhado Gomes da Silva], Isabel Zoldan da Veiga Rambo. – Palhoça : UnisulVirtual, 2016. XX p. : il. ; 28 cm. Inclui bibliografia. 1. Ciências sociais. 2. Cultura – Aspectos sociais. 3. Sociedades. I. Paz, Cláudio Damaceno. II. Bardini, Elvis Dieni. III. Gonçalves, Jaci Rocha. IV. Amorim, Tade-Ane. V. Silva, Marina Melhado Gomes da. VI. Rambo, Isabel Zoldan da Veiga. VII. Título. CDD (21. ed.) 301 Diagramador Josué Lange Revisor Perpétua Guimarães Prudêncio Diane Dal Mago completo.indb 4 09/06/2016 09:00:14 Sumário Capítulo 1 Cidadania e Direitos Humanos 9 Capítulo 2 Identidade e culturas 23 Capítulo 3 Sociedade: teorias clássicas e contemporâneas 43 Capítulo 4 Práticas culturais e processos midiáticos 53 Considerações Finais | 67 Referências | 69 Sobre o Professor Conteudista | 73 completo.indb 5 09/06/2016 09:00:14 completo.indb 6 09/06/2016 09:00:14 Introdução Caro(a) estudante, Você inicia agora o estudo da Unidade de aprendizagem Estudos socioculturais, com o intuito de procurar compreender a dinâmica e a diversidade das sociedades humanas, para agir responsavelmente nos diferentes contextos sociais. Nesse sentido, nosso objetivo é que você tenha elementos para analisar e compreender contextos diversos, estabelecendo diálogos com diferenças socioculturais. Os conteúdos aqui reunidos, além dos demais materiais disponíveis nos tópicos de estudo do Espaço Virtual de Aprendizagem seguem uma temática, bem como uma abordagem relacionada à sociedade e à cultura. Especificamente, por meio de quatro roteiros de estudo, você estuda teorias clássicas e contemporâneas relativas à sociedade; a questão do Estado e da cidadania, da ética e dos direitos humanos; acerca da cultura e da identidade; das práticas culturais e dos processos midiáticos. Este livro e os demais materiais disponíveis não têm pretensão de esgotar assuntos tão complexos, mas tão somente se pretende desenvolver uma abordagem didática, sistemática e parcial. Procure ampliar seus conhecimentos sobre as temáticas abordadas, consultando os textos originais dos pensadores citados, dicionários e outras obras, sempre que considerar pertinente. Desejamos-lhes boa aprendizagem! completo.indb 7 09/06/2016 09:00:14 completo.indb 8 09/06/2016 09:00:14 9 Capítulo 1 Cidadania e Direitos Humanos Cidadania como conquista de direitos Cláudio Damaceno Paz A vida em sociedade constitui um imperativo, pois as interações entre os humanos e com o meio em que estão inseridos não são escolha, mas necessárias para a potencialização das suas capacidades. Porém, pela divergência de interesses, essas relações tendem a se tornar conflituosas. Em decorrência, para viabilizar suas existências, os humanos têm desenvolvido mecanismos que viabilizem a resolução de conflitos. Diversos são os meios criados e utilizados para disciplinar as condutas na busca da harmonia social, entre eles podemos destacar o Direito. É o Direito que deve garantir os interesses de cada um e impedir que uns sejam prejudicados pelos outros. A pessoa que tem um direito violado está sofrendo uma perda de alguma espécie. E quando uma pessoa que teve um direito ofendido não reage, isso pode encorajar a ofensa de outros direitos seus, pois sua passividade leva à conclusão de que ela não pode ou não quer defender-se. (DALLARI, 1985). A caminho do trabalho, no dia 1º de dezembro de 1955, uma costureira negra, de 42 anos, Rosa Parks (1913-2005), moradora de Montgomery, capital do Alabama, nos EUA, tomou um ônibus, sentou-se numa poltrona situada ao meio para frente do veículo de transporte coletivo. Minutos depois, o motorista exigiu que ela e outros três trabalhadores negros cedessem seus lugares para passageiros brancos, os quais embarcaram no ponto seguinte. Rosa Parks negou-se a cumprir a ordem do motorista. Foi, então, retirada do ônibus, detida e levada para a prisão. Em decorrência do seu ato, Rosa Parks enfrentou ameaças de morte, humilhações e teve até de se mudar de estado por não conseguir arranjar emprego no Alabama. completo.indb 9 09/06/2016 09:00:14 10 Capítulo 1 No entanto, a atitude de resistência pacífica de Rosa Parks deflagrou uma série de protestos contra a discriminação racial nos EUA. Trabalhadores negros recusaram-se a embarcar em ônibus enquanto estivesse em vigor, no estado do Alabama, a lei discriminatória que impunha aos negros ocuparem os lugares do fundo dos transportes coletivos, enquanto aos brancos eram reservados os lugares dianteiros. Durante os protestos, era comum encontrar grupos de trabalhadores negros dirigindo-se a pé para o trabalho, acenando e cantando nas ruas, enquanto eram xingados pelos brancos. O exemplo emblemático de Rosa Parks e os avanços ocorridos nos EUA em relação aos direitos civis nas décadas subsequentes demonstram que os direitos nascem das lutas dos seres humanos contra as formas de opressão. No entanto, são conquistas gradativas que se configuram no processo histórico. Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de umavez por todas. (BOBBIO, 1992, p.5). Compreender os direitos humanos como conquista e construção humana ao longo da história afirma o protagonismo das pessoas na luta pelos direitos a serem positivados como direitos fundamentais. Ressalta-se que as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimos. Segundo a sua origem e significado, poderíamos distingui-los da seguinte maneira: direitos do homem [humanos] são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; [...] os direitos fundamentais seriam [são] os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. (CANOTILHO, 1998). Partindo do pressuposto de que os direitos humanos resultam de conquistas que se materializam no processo histórico, pela ação humana, evidencia-se a importância das Revoluções Liberais (Inglesa, Americana e Francesa) para a emancipação dos indivíduos e das coletividades no contexto de construção da modernidade e da criação dos direitos. No processo da Revolução Inglesa, em 1689, o Parlamento inglês apresentou à monarquia uma declaração de direitos (Bill of Rights), que assegurava aos indivíduos os direitos de liberdade, de segurança e de propriedade, como garantia frente ao poder soberano – e arbitrário – do Estado absolutista. A Bill of Rights impunha limites ao poder real ao deslocar para o Parlamento as competências de legislar e criar tributos. Ao mesmo tempo, instituía a separação de poderes para evitar o autoritarismo do poder absolutista do monarca. completo.indb 10 09/06/2016 09:00:14 11 Estudos Socioculturais No entanto, ao consentir em manter a imposição de uma religião oficial, a anglicana, – estabelecida pelo rei Henrique VIII – muitos ingleses, sem a liberdade de professar e manifestar sua crença religiosa, distinta da oficial, viram-se constrangidos a migrar para terras distantes, temerosos de perseguições. Para os puritanos (calvinistas ingleses), a América consistiu em alternativa para viver em liberdade, conforme suas crenças. Depois de estabelecidos na “nova Canaã”, como denominavam a América do Norte, os agora colonos americanos foram constrangidos, em 1765, pelas imposições fiscais da autoridade metropolitana – que contrariava o estabelecido na Bill of Rights – a recolher uma série de impostos para cobrir o déficit da Coroa que havia se envolvido na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) contra a França. Em 1773, na cidade de Boston, ocorreu a The Boston Tea Party. Colonos que viviam do comércio, por se sentirem prejudicados com a Lei do Chá, disfarçaram- se de índios peles-vermelhas, assaltaram os navios da companhia de transporte, que estavam ancorados no porto de Boston, lançando o carregamento de chá no mar. A reação inglesa foi imediata e mesmo violenta. Em 1774, os rebelados criaram um exército comum entre as colônias, demonstrando a fragilidade das suas relações com a metrópole inglesa, fato que abriu caminho para a independência. Em 1776 foi elaborada a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, afirmando que todos os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história. (COMPARATO, 2003). A referida Declaração de Direitos, que abriu caminho para a independência dos EUA, ocorrida em 4 de julho de 1776, proclamada na Filadélfia, positivada na Constituição da República dos Estados Unidos da América em 1787, afirmou que o governo tem de buscar a felicidade do povo, definiu a separação de poderes, estabeleceu o direito dos cidadãos à participação política, à liberdade de imprensa e a livre escolha da religião, conforme a consciência individual. No entanto, a pátria da liberdade manteve a mácula da escravidão que deixou a herança da segregação racial. A prática da escravidão foi abolida nos Estados Unidos da América em 1863, com a Declaração de Emancipação promulgada pelo presidente Abraham Lincoln, no contexto de uma guerra civil, a Guerra da Secessão. No entanto, a discriminação racial, mesmo com a abolição, assumiu na cultura estadunidense um caráter segregacionista, que deu origem a inúmeras ações afirmativas e reações violentas. completo.indb 11 09/06/2016 09:00:14 12 Capítulo 1 Em virtude das manifestações decorrentes do protesto pacífico de Rosa Parks, em 13 de novembro de 1956, a Suprema Corte aboliu a segregação racial nos transportes coletivos de Montgomery, tornando também ilegal essa discriminação racial em todo o território dos EUA. Em 21 de dezembro de 1956, o ativista negro Martin Luther King e o sacerdote branco Glen Smiley entraram juntos num ônibus e ocuparam lugares na primeira fila. Martin Luther King organizou e liderou marchas que reivindicavam para os negros o direito ao voto, o fim da segregação e das discriminações, bem como a conquista de outros direitos civis básicos. A maior parte desses direitos foi, mais tarde, agregada à constituição estadunidense, com a aprovação da Lei de Direitos Civis (1964) e da Lei de Direitos Eleitorais (1965). Em 4 de abril de 1968 Martin Luther King foi assassinado em Memphis, no Tennessee. Em 20 de janeiro de 2009 Barack Obama tomou posse da presidência dos Estados Unidos como primeiro negro eleito para o comando executivo do mais influente Estado-nação do mundo: Neste dia, estamos reunidos porque escolhemos a esperança acima do medo, a unidade de objetivos acima do conflito e da discórdia. Neste dia, vimos proclamar o fim dos sentimentos mesquinhos e das falsas promessas, das recriminações e dos dogmas desgastados que por tanto tempo estrangularam nossa política. (OBAMA, 2009). A sociedade organizada com justiça é aquela em que os encargos e os benefícios são partilhados entre todos, pois os direitos, para além da sua criação histórica e positivação jurídica, precisam constituir-se em prática social. A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) consistiu numa ação pioneira na luta pelos direitos humanos ao reivindicar direitos políticos e justiça social, porém, apresentava, na época, como referido, caráter seletivo. No entanto, foi a Declaração dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Nacional francesa, no contexto revolucionário, em 1789, que exerceu grande influência sobre os movimentos emancipacionistas e libertários na modernidade, pelo seu caráter de universalidade. A França quer ser exemplar, não para ensinar, mas porque é a história dela, é sua mensagem. Exemplar para as liberdades fundamentais: é a sua luta, é também sua honra. Esta é a razão pela qual a França vai continuar a realizar todas essas lutas: para a abolição da pena de morte, pelos direitos das mulheres à igualdade e dignidade, para a descriminalização universal da homossexualidade, que não deve ser reconhecida como um crime, mas, pelo contrário, reconhecida como uma orientação. completo.indb 12 09/06/2016 09:00:14 13 Estudos Socioculturais [...]. Todos os países membros [da ONU] têm a obrigação de garantir a segurança de seus cidadãos, e se um país adere a esta obrigação, então é imperativo que nós, nas Nações Unidas, facilitemos os meios necessários para fazer essa garantia. Estas são as questões que a França vai levar e defender nas Nações Unidas. Digo isso com seriedade. Quando há paralisia e inação, então a injustiça e a intolerância podem encontrar o seu lugar. (HOLLANDE, 2012). Os revolucionários franceses de 1789 iniciaram a Declaração de Direitos do Homem afirmando, no artigo primeiro, que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, e no artigo quarto enfatizam que A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aquelesque asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. Outro aspecto relevante da Declaração de Direitos criada pelos franceses está explicitado no artigo dezesseis, nos seguintes termos: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.” (DALARI, 1985, p. 53-54). O século XX foi marcado por duas grandes guerras de proporções mundiais. Na origem dessas guerras está o choque entre interesses imperialistas das potências capitalistas e seus asseclas. A ambição pelo poder e pela riqueza, somada ao desprezo aos direitos humanos, explicam os horrores gerados pelos referidos conflitos, materializados em privações das liberdades e das garantias individuais e sociais, crises de desabastecimento, bombardeios, destruição, terror e mortes físicas e psicológicas. O trauma causado pelas referidas guerras impeliu as lideranças mundiais à criação e consolidação de uma organização (ONU) com o propósito de: assegurar, por meios pacíficos, a manutenção da paz internacional; lutar pela defesa dos direitos humanos; estabelecer relações amistosas entre as nações, com base no princípio de autodeterminação dos povos; gerar mecanismos de cooperação entre os países na busca de solução para os problemas internacionais de ordem econômica, social, cultural e humanitária; e constituir-se em centro de convergência das ações dos Estados-nação na luta por objetivos comuns. Para que fosse permanentemente relembrado o valor da pessoa humana e para estabelecer o mínimo necessário que todos os países e todas as pessoas devem respeitar, a ONU encarregou um grupo de pessoas muito respeitadas, entre as quais havia filósofos, juristas, cineastas, políticos, historiadores, de várias partes do mundo, para redigir uma nova Declaração de Direitos. completo.indb 13 09/06/2016 09:00:14 14 Capítulo 1 Esses estudiosos reuniram-se, pediram a opinião de muitas outras pessoas e prepararam um documento que proclama os Direitos Humanos, os quais devem ser considerados fundamentais. (DALLARI, 1985, p. 51 e 52). Os autores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, evitaram redigir uma mera carta de intenções. Nos artigos da referida declaração foram incluídas exigências que devem ser atendidas para que a dignidade humana seja respeitada. O artigo terceiro, por exemplo, lembra que “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Em decorrência, no artigo quarto está expressamente ordenado que “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.” A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi assinada por países do mundo inteiro, inclusive pelo Brasil, valendo como um compromisso moral desses países. É necessário que o maior número possível de pessoas conheça a Declaração, para cobrar de seus governos o respeito ao compromisso assumido. (DALLARI, 1985, p. 52). Leia na íntegra os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/index.html#deconu A ênfase da referida Declaração está na internacionalização dos direitos humanos, fixando-o no contexto internacional dos direitos fundamentais, ensejando a prevalência desse no ordenamento jurídico dos Estados signatários do referido documento e daqueles que se integram à comunidade das nações unidas como filiados da ONU. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, criado em 2006, em substituição à Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, criticada pela tolerância com Estados cujas ações constituíam desrespeito aos direitos humanos, tem como objetivo combater as violações aos direitos humanos em todo o mundo. O Brasil, membro da ONU, signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, define na Constituição Federal, promulgada em 1988, os direitos fundamentais no título II, Dos Direitos e Garantias fundamentais. O capítulo I dos Direitos Individuais e Coletivos é constituído pelo artigo 5º, com 78 incisos, alinhados com o referido documento da ONU. No caput deste artigo lê-se: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...].” completo.indb 14 09/06/2016 09:00:14 15 Estudos Socioculturais A dificuldade da concretização dos direitos humanos, entre outros fatores, reside na adoção, pelos Estados-nação, de políticas seletivas, dando prioridade a alguns direitos e postergando a positivação de outros. Ressalta-se que os direitos humanos foram sendo positivados de maneira gradativa. Estudiosos do tema, para fins didáticos, sem desconsiderar o princípio estrutural de indivisibilidade, apontam para quatro gerações de direitos que foram sendo criados e incorporados às constituições dos Estados-nação ao longo do processo histórico-social na modernidade. Na escala evolutiva dos direitos, legislados ao longo dos séculos XIX e XX, há quatro gerações sucessivas de direitos fundamentais: • Os direitos de primeira geração: Os direitos de liberdade foram os primeiros a constar dos instrumentos normativos constitucionais, a saber: os direitos civis e políticos. Os direitos de liberdade têm por titular o indivíduo. Os direitos de liberdade fazem ressaltar, na ordem dos valores políticos, a nítida separação entre a Sociedade e o Estado, e a submissão do segundo à primeira. Essa geração de direitos corresponde aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade, como, por exemplo: vida, dignidade, honra, liberdade. Basicamente, a Constituição de 1988 os prevê no art. 5º, tão significativo para todos os brasileiros. • Os direitos de segunda geração: decorrem dos efeitos provocados pelas transformações econômicas e sociais gerados pela industrialização e urbanização. São os direitos sociais vinculados aos econômicos, bem como os direitos coletivos e os de coletividades. Nasceram em decorrência das lutas dos trabalhadores e estão articulados ao princípio da igualdade. A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas deu lugar a que se buscasse outra dimensão dos direitos fundamentais, aquela que se assenta sobre a fraternidade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade. • Os direitos de terceira geração: tendem a cristalizar-se enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou determinada sociedade, pois seu destinatário primeiro é o gênero humano e sua existencialidade concreta. Emergiram da reflexão sobre temas referentes à autodeterminação dos povos, incluindo o direito ao desenvolvimento, à paz, à dignidade humana, o combate às diferentes formas de discriminação, bem como a necessidade de universalizar o acesso aos bens necessários para a vida digna, ao meio ambiente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade. completo.indb 15 09/06/2016 09:00:15 16 Capítulo 1 • Os direitos de quarta geração: constituem-se no direito à democracia, à informação, à defesa da vida, à proteção da intimidade, o direito à diferença e o respeito ao pluralismo num mundo multicultural. (Texto adaptado de palestra proferida por Paulo Bonavides, quando do aniversário de quinze anos da Constituição Federal do Brasil, promulgada em outubro de 1988.). Considerando este resumo, você, caro aluno(a), pode alargar sua compreensão sobre os Direitos Humanos e sua positivação na legislação brasileira. São muitas as possibilidadespara aprofundar estudos nesta área. Selecionamos no EVA para vocês o texto do autor SARMENTO, Jorge. AS GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS DA EFETIVIDADE. Leia e destaque alguns avanços e possibilidades de efetividade dos Direitos Humanos na vida dos brasileiros. Apesar de inúmeras dificuldades produzidas historicamente, o Brasil tem buscado, em meio às desigualdades econômicas e sociais, promover ações destinadas à emancipação dos indivíduos na busca e efetivação dos direitos fundamentais. A discussão dos direitos humanos e as ações políticas e práticas empreendidas por meio de programas governamentais e iniciativas da sociedade civil tem criado condições objetivas para a promoção da cidadania e o respeito aos direitos humanos. No entanto, ainda existem brasileiros sem acesso aos meios que os assegurem usufruir dos direitos fundamentais. Direitos humanos como prática social 1 Valéria Rodineia Zanette Em tempos de pluralidade de valores, como é o caso da contemporaneidade, é bastante complexo estabelecer conteúdos gerais a que todos devem seguir, mesmo que esses conteúdos sejam os direitos humanos. Ocorre que tais direitos conseguem até se fazer presentes nos ordenamentos jurídicos de muitos Estados. Prova disso é o fato de um grande número deles terem assinado a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas a verdade é que, no cotidiano das pessoas, os direitos humanos, muitas vezes, estão ausentes ou inexistem. 1 Extraído de: ZANETTE, V.R. Schulze. Desafios da cidadania e dos direitos humanos na contemporaneidade. In: Ética, cidadania e direitos humanos. Livro digital, 5ª ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2012. completo.indb 16 09/06/2016 09:00:15 17 Estudos Socioculturais É consenso, entre muitos autores que tratam do tema dos direitos humanos, que a democracia e o Estado de direito são elementos indispensáveis para a realização desses direitos. No entanto, como já deve ser de seu conhecimento, existe mais de um tipo de Estado de Direito, bem como mais de um tipo de democracia. Qual Estado e qual sistema democrático praticam melhor os direitos humanos? Aliás, algum desses pode realizar tais direitos? Como uma resposta à própria evolução histórica, podemos observar que muito se tem evoluído na garantia dos direitos humanos, no próprio entendimento do que eles são e de sua importância na sociedade mundial e brasileira. Tendo feito essa análise dos direitos humanos até o presente, cabe agora pensar: quais são os desafios dos direitos humanos, hoje? E amanhã? Mais ainda: pode- se afirmar que os direitos humanos são efetivamente garantidos no Brasil? E no mundo? A resposta mais rápida e fácil a ser dada é que, evidentemente, os direitos humanos não são garantidos de maneira efetiva como um todo; e nem para todos, como podemos ver a seguir. No passado, o Brasil vivia em um Estado escravagista, em que o negro africano não merecia direitos porque não era visto como pessoa, mas sim como propriedade. Para ter direitos, tinha-se que preencher requisitos importantes como: o sexo, a cor da pele, a classe social, as relações de poder, a religião etc. O que vemos atualmente é um Brasil bastante evoluído, mas distante, muito distante, de ser chamado de um país alheio às discriminações. O que falar das inúmeras leis que tentam garantir um tratamento digno aos homossexuais, que, no fundo, ainda enfrentam, diariamente, situações discriminatórias? E, no caso da mulher que os relatórios estatísticos de violência revelam a grave desigualdade de gênero? E da diferença salarial entre homens e mulheres? E o nordestino que escuta diariamente piadinhas de sua origem? E, pior ainda, daqueles que, pelo simples fato de serem pobres, são taxados de marginais? Tais circunstâncias são corriqueiras e fazem parte do cotidiano de todos nós, de forma tão natural que nem parece uma verdadeira afronta aos direitos humanos. A conscientização de todos em relação a isso é um processo demorado. De qualquer forma, o Brasil tem trabalhado bastante na elaboração de um sistema normativo que prima pelos direitos fundamentais, assim como na ratificação e engajamento aos direitos humanos no plano internacional. Sendo assim, o que falta então? O problema está no cumprimento das normas jurídicas criadas, sejam elas de direitos humanos ou fundamentais. Bem como assevera Norberto Bobbio (1992, apud PIOVESAN, p. 110), o problema dos direitos humanos hoje: “não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”. completo.indb 17 09/06/2016 09:00:15 18 Capítulo 1 Uma constatação negativa é que ainda temos trabalho escravo em todas as regiões do país, como descreve Breton (2002, p. 25): Hoje em dia as coisas são um pouco mais sutis. Você não possui a pessoa, você apenas a usa por quanto tempo precisar dela. É a escravidão por dívida. Funciona assim: oferecem um emprego para o cara, dão um adiantamento, e ele começa a trabalhar. Quando chega o dia do pagamento, ele descobre que está endividado. Tem de descontar o adiantamento, o pagamento do transporte e o que deve na cantina – alimentos, ferramentas e remédios – a dívida não termina nunca. Com isso, as pessoas trabalham, horas a fio, no meio do nada, correndo risco de vida e, ao final, o que recebem é muito pouco. A boa notícia é que a Justiça Federal está condenando fazendeiros por terem submetido trabalhadores a condições semelhantes à escravidão: pessoas que vivem sem remuneração, presas a relações de dívidas forjadas e as mais variadas condições degradantes de trabalho, expostas a existência de alojamentos precários, instalações sanitárias em péssimo estado de conservação, não fornecimento de água potável, não fornecimento de equipamentos de proteção individual, entre outras. São muitas as situações sendo superadas pela ação dos órgãos que combatem o trabalho análogo a escravo. Outro exemplo são as ações afirmativas, como o sistema de cotas nas universidades. Esse sistema foi criado com o intuito de promover a igualdade material, já que as pessoas negras, constantemente, formam um número muito inferior nas universidades. Isso pode ser justificado como uma consequência das desigualdades econômicas, pois as pessoas negras não têm acesso a uma educação fundamental de qualidade, precisam trabalhar para seu próprio sustento e de sua família, ficando impossibilitadas de competir, em grau de igualdade, com os outros com melhores condições e preparo. Nesse contexto, [...] o Estado abandona sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente na busca de concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais. (GOMES, 2001, p. 20). Mesmo parecendo um caminho simples, muitos brasileiros, na verdade, são contra esse tipo de ação. Não conseguem entender que tudo isso faz parte de um círculo vicioso e que, se não forem promovidas ações discriminatórias positivas em favor dos desprivilegiados, possivelmente o caminho ainda será mais longo para se alcançar a igualdade. O caso do acesso ao ensino superior ilustra, bem, isso. completo.indb 18 09/06/2016 09:00:15 19 Estudos Socioculturais Uma das principais argumentações contra o “sistema de cotas” era que, mesmo conseguindo entrar na universidade, os cotistas acabariam por desistir, ou mesmo que isso acabaria por prejudicar o próprio andamento do curso, já que esses não conseguiriam acompanhar os outros estudantes em decorrência do déficit no ensino médio. No entanto, pesquisas produzidas, por exemplo, Mandelli (2010), destacam o fato de que, mesmo vindo de um ensino médio defasado, o esforço dos cotistas é tamanho que apresentam bom desempenho acadêmico. As mulheres também são objeto desse tipo de ação, como é o caso de se destinar a elas um número decadeiras no executivo. Essa ação afirmativa em benefício das mulheres também é uma forma de promover o tratamento igualitário entre homens e mulheres, possibilitando-se que ambos tenham acesso na administração do nosso país. Mas, certamente, há alguns passos importantes a serem dados nessa busca da igualdade entre homens e mulheres, já que, infelizmente, a mulher ainda recebe salários inferiores (mesmo exercendo a mesma função), ocupa menos cargos de chefia (mesmo quando apresenta alto grau de instrução), entre outras situações corriqueiras a serem conquistadas pelo gênero feminino. A violência doméstica e familiar contra a mulher é uma das evidências mais graves das desigualdades de gênero. Considerando isso e verificando a elevação dos índices de violência e a frágil segurança pública a que o povo brasileiro tem sido remetido, seu direito está longe de ter a proteção necessária. A vida e a boa convivência social são essenciais para a humanidade e compete a todos nós, sociedade e organizações do Estado, zelarmos pela sobrevivência saudável e sustentável, nossa e do meio ambiente. Outro elemento que contribui para o direito à vida saudável é o acesso à saúde. O Brasil conta com um sistema único de saúde (SUS) reconhecido internacionalmente pela sua cobertura e universalização do acesso, no entanto, ele não possibilita atendimento satisfatório. Além da falta de atendimento, os profissionais da saúde regularmente protestam por “melhores condições de trabalho”. No concernente ao saneamento básico, a realidade evidencia que metade dos domicílios brasileiros não possuem qualquer ligação com a rede coletora de esgoto, sendo que quanto mais pobre a região, maior o descaso. Também está entre os basilares dos direitos civis o direito de “não ter o lar violado”. Isso vai depender de uma série de circunstâncias para que realmente seja respeitado, tais como: o bairro em que mora, o tipo de policial que está em atividade e, até mesmo, o momento histórico. Tudo isso pode ser comprovado se nos lembrarmos das invasões que ocorrerem nas favelas dos grandes centros, em que absolutamente todos os “barracos” são invadidos, mesmo ali morando pessoas de bem. Essas acabaram pagando por estarem no lugar e no momento errado. completo.indb 19 09/06/2016 09:00:15 20 Capítulo 1 Muitas pessoas constroem suas moradas em áreas de risco, de preservação ambiental, em lugares que geram perigos à vida. A violação do direito à moradia/ habitação é constante. Acompanhamos diariamente despejos forçados sem cumprir as determinações internacionais de realojar essas pessoas, pois, na prática, elas são retiradas por meio de força policial (que nada mais é do que o braço do próprio Estado). Irresponsabilidades pessoais, privadas e do Estado gerando insegurança às famílias, regiões, cidades, pela falta de condições de um habitar seguro. Os direitos humanos são a melhor forma de se defender e garantir a liberdade pública, assim como de se proporcionarem as condições mínimas para uma existência digna. E, para isso, conta-se com os poderes executivo, legislativo e judiciário, voltados para o fortalecimento da democracia e da paz social. O poder judiciário é o último guardião dos direitos humanos, isso porque é a ele que o indivíduo, provado de seu direito, vai buscar guarida. E, por isso, é tão importante que todos esses poderes estejam preparados para tamanha responsabilidade: a de garantir os direitos humanos fundamentais. A busca pela efetividade dos direitos humanos – principalmente dos direitos econômicos, sociais e culturais – passa pela efetivação de políticas públicas e pela responsabilidade de todas as instâncias e poderes. Muito ainda precisa ser feito, principalmente visando à busca da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, porque o desrespeito aos direitos civis e políticos e a ausência dos direitos econômico-sociais remete a preconceitos, exclusão e desigualdades evidentes. Aqueles em situação de maior vulnerabilidade social são os mais atingidos. São aqueles que vivem em locais com precárias condições de vida, sem instrução, sem segurança, às margens da sociedade, os mais suscetíveis à violência da criminalidade comum, são vítimas de balas perdidas, de violência na escola, de doenças relacionadas à falta de saneamento básico, entre outras violações. Essas desigualdades ficam ainda mais evidentes quando relacionadas às minorias, porque, por mais que sejam promovidas leis com o intuito de promover a igualdade, ainda enfrentam grandes obstáculos, diariamente. Vejamos o caso das mulheres, das crianças e dos idosos. As mulheres, como já dito, ainda estão num processo intenso de busca de valorização. Profissionalmente, precisam provar que são tão capazes quanto os homens para merecerem respeito, quando em muitas circunstâncias são muito mais capacitadas. Em casa, nem todas mantêm relações de respeito e igualdade na divisão das responsabilidades. completo.indb 20 09/06/2016 09:00:15 21 Estudos Socioculturais As crianças ainda são as que mais sofrem as vicissitudes da miséria e da violência, já que, por si só, não possuem maturidade para lutarem pela sua própria subsistência e proteção. E, quando acontece de lutarem, a falta de estrutura sempre leva a caminhos bastante tortuosos, que o digam as crianças de rua nas cidades brasileiras, entregues ao abandono, aos vícios, aos abusos. Os idosos também têm sido objeto de legitimação, na tentativa de a sociedade ou os órgãos públicos promover-lhes certa qualidade de vida quando chegam à terceira idade. O fato é que a realidade ainda está distante de acompanhar as normas. Constatam-se abandonos, descasos, fragilidades, violências tanto por parte das famílias quanto por parte do Estado. Quanto aos direitos políticos, esses não são amplamente assegurados quando o povo não tem um mínimo de instrução para entender a importância de seus atos e de suas escolhas, quando prevalece nas práticas dos gestores públicos práticas de manobras conduzidas pelos interesses pessoais, políticos partidários, de grupos privilegiados acima dos interesses coletivos e da república. Podem ser citados muitos outros direitos que são violados diariamente em nosso país, os quais são resultados de muitos fatores, entre eles deve ser ressaltada a falta de informação e até de educação da população quanto aos seus direitos humanos. A importância de nos percebermos como sujeitos transformadores da vida, dos ambientes de convivência, do local onde moramos, da cidade, do país. A paz, a solidariedade, a sustentabilidade a democracia são pilares de uma sociedade que todos precisamos visualizar e ajudar a construir. Muito já avançamos, precisamos continuar nos colocando como protagonistas da vida e da história. Existem muitas iniciativas que evidenciam a responsabilidade do Estado e da sociedade com os Direitos Humanos, veja algumas iniciativas no site da Secretaria de Direitos Humanos: http://www.sdh.gov.br e no site da Secretaria de Políticas para Mulheres: http://www.spm.gov.br. Os links estão disponíveis no EVA. Assim, entendemos que: não basta a incorporação dos direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro se esse não for do conhecimento de todos. Faz- se necessária a promoção da educação para os direitos humanos, a fim de que a população em geral possa conhecê-los para então buscá-los, respeitá-los e vivenciá-los. completo.indb 21 09/06/2016 09:00:15 22 completo.indb 22 09/06/2016 09:00:15 23 Capítulo 2 Identidade e culturas Jaci Rocha Gonçalves Identidade, ethos cultural e relações pluralistas As teorias clássicas da sociologia mostram um macro-olhar sobre a realidade dos grupos humanos e de suas organizações. É da placenta da sociologia que nasce a antropologia social ou também chamadaAntropologia cultural. Essa ciência auxilia os profissionais de todas as áreas a elaborarem um olhar atento para a miudeza, para o micro das sociedades humanas que, muitas vezes, passa despercebido aos profissionais em sua área específica de conhecimento. É como se buscássemos o constitutivo próprio do humano, dando-lhe identidade entre os seres da criação, ou seja, configurando-lhe um jeito-de-ser, um ethos cultural capaz de gerar respostas diferentes para necessidades iguais. Foi o que aconteceu recentemente com um aluno de ciências contábeis da UNISUL, ao auxiliar uma comunidade mbyá-guarani na atualização da personalidade jurídica criada para a aldeia. Foram dois anos de troca de saberes. No período de visitação e observação, o acadêmico passou por vários estágios, até que descobriu naquele povo a existência de uma etno-matemática. Fez a experiência de estranhamento 1, questionando o porquê havia apenas aprendido a matemática greco-romana e arábica. Pesquisou, então, no TCC, intitulado Contador pluralista: ensaio de contabilidade com os mbyá-guarani das aldeias Ka´akupé e kuri´y sobre a etno-matemática guarani. A banca lhe deu nota em guarani. Foi outra surpresa. Os docentes mostraram ao formando a importância de fortalecer esse olhar antropológico-cultural de pesquisador pluralista de ciências contábeis. 2 Portanto, o encontro com o diferente cultural pode revelar nossa identidade, nosso jeito de ser eternos aprendizes. 1 Segundo Laplantine (2005, p. 3) “estranhamento (depaysement) é essa experiência de perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo.” 2 Consulte o TCC de SILVA JUNIOR, Ivo. O contador pluralista (…) no blog Revitalizandoculturas: blogspot.com.br completo.indb 23 09/06/2016 09:00:15 24 Capítulo 2 Quanto à construção identitária pessoal, podemos utilizar a análise filológica dos termos antropologia e cultura, seguindo o que dizem alguns filósofos, como Leonardo Boff (2001). Eles nos advertem que palavras como antropologia e cultura “estão grávidas de significados existenciais porque reúnem infindáveis experiências, positivas e negativas, de busca, de encontro, de certeza, de perplexidade e de mergulho no ser. Com os dados da filologia, podemos desentranhar sentidos das palavras com suas riquezas escondidas.” (BOFF, 2001, p. 83). Para nossa identidade, interessa-os a análise do significado de antropologia. Vem do grego Άντθρωπος (ánthropos), que significa humano. Desse termo podemos deduzir o que os antigos pensavam de si mesmos, e dos seres humanos. De fato, Άντθρωπος (ánthropos) é composto pelo prefixo Άν, que quer dizer, todo aquele que (com ideia de desejo, possibilidade, que afirma ou interroga de maneira suave). A outra parte vem do verbo Τρέφω (tréfo), que significa crescer. Portanto, os antigos davam o nome de ánthropos ao ser humano enquanto ser que cresce se desenvolve, é bem nutrido, educado, tem força e está disposto. É o oposto de átrofos, ser que está impedido de crescer, ou seja, definha, atrofia. Assim, ánthropos é o humano enquanto ser que inclusive enfrenta o átrophos, a atrofia. É como a origem do termo “humano”, em português. Vem do latim homo, do substantivo húmus que significa terra fértil. Assim, húmus=homo=humano; portanto, os humanos nascem para ser como o húmus, terra fértil. Como se vê pela filologia, os sentidos de homo e de ánthropos se encontram, embora elaborados em lugares e culturas diferentes. Em ambas as culturas, o humano é visto como ser que cresce, ser bem nutrido, ser que previne e supera atrofias. Cabe, pois, a todo profissional, o direito e dever de construir uma visão, um olhar antropológico-cultural pluralista de dualidade sobre o humano como ser holístico e diverso. Tanto nas pesquisas interativas das ciências biológicas, ciências sociais, tecnológicas como na saúde. De um lado, aprender a arte da inteireza de ser e, de outro, capacitar-se a ver a diversidade como um constitutivo do universo, da biodiversidade e, sobretudo, do humano. Porque só ao humano é dado, como ser consciente, ter um viver pluralista, multicultural. Na verdade, o pluralismo, acrescenta à pluralidade sua aceitação consciente e procurada. A pessoa pluralista opta pelo diálogo. O diálogo abre horizontes e supõe corações abertos. Quem tudo sabe, não dialoga; só ensina. Quem se considera melhor, não dialoga, só julga. É a atitude da humildade (parecer-se com o HUMUS) que nos convida à opção pelo diferente. (GONÇALVES, 1995). Nesse modo-de-ser humano, de ser ánthropos, é determinante a inteligência relacional. completo.indb 24 09/06/2016 09:00:15 25 Estudos Socioculturais Para uma performance eficiente, deve investir no cuidado adequado das relações culturais consigo, com o outro e o mundo; daí, sua saúde ético-ontológica (HEIDEGGER apud GONÇALVES-IUNSKOVISKI, 2015). A primeira relação do sujeito é com o seu ethos cultural, ou seja, o modo particular de viver e de habitar eticamente o mundo que uma comunidade tem ao fazer sua história. Consequentemente, passa a ser também fundamental a endoculturação, ou seja, o processo de cultivo do ethos cultural por meio de uma sadia interação de quem valoriza seu contexto vital. Endoculturação sublinha a relação positiva do sujeito ao interno de sua cultura semelhante à socialização - do vocabulário sociológico e psicológico (AZEVEDO, 1986, p. 413). Esse cuidado endocultural é importante não só para cada pessoa mas, sobretudo, para agregar valor a toda pessoa estudiosa, como nós, denominada pelo filósofo italiano Antonio Gramsci, como pessoa intelectual orgânica. Optando pela formação universitária, o indivíduo resolveu construir um perfil crítico-criativo e solidário-pluralista na sociedade em que vive. É uma postura saudável para nutrir o ethos pessoal e sociocultural na convivência com o outro diferente, possibilitando também viver uma adequada aculturação. Essa relação designa todo processo de transformações que se verificam numa pessoa ou grupo pelo contato com uma cultura que não é a sua ou pela interação de duas ou mais culturas distintas, sem perder sua identidade. A pesquisa antropológica, sem nunca se substituir aos projetos e às decisões dos próprios atores sociais deve propor instrumentos que os ajudem a reagir ao “choque da aculturação, isto é, ao risco de um desenvolvimento conflituoso, levando à violência negadora das particularidades econômicas, sociais e culturais de um povo.” (LAPLANTINE, 1997). O mesmo autor pede atenção para outras duas urgências que fazem a nossa diferença identitária pessoal e comunitária, sobretudo, enquanto intelectuais orgânicos pluralistas. A primeira urgência é a preservação dos patrimônios culturais locais ameaçados. Lutamos contra o tempo para que a transcrição dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os últimos depositários das tradições ainda estão vivos. A segunda urgência é promover a restituição aos habitantes das diversas regiões nas quais trabalhamos, do seu próprio saber e saber-fazer. (LAPLANTINE apud GONÇALVES, 2016a, p. 49). A Constituição Brasileira de 1988 (arts 215-216) pede resposta a essas urgências. Essas urgências pedem ruptura com a concepção assimétrica da pesquisa, ou seja, baseada apenas na captação unilateral de informações sem se importar com a reciprocidade entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, dispostos a não perder formas originais e únicas de pensamento e de atividades. Essas urgências se acentuam no Brasil com relação não só aos povos originários mas também aos afro e de descendência euro-asiáticas. completo.indb 25 09/06/2016 09:00:15 26 Capítulo 2 Darcy Ribeiro (2006) resume essas urgências na sentido de “negar as negações”seculares e, na mesma proporção, fortalecer as afirmações das ricas diferenças de saberes e fazeres próprias dos trópicos. Podemos concluir essa reflexão sobre as relações com o diferente cultural, analisando relações etnocêntricas tão comuns na construção histórica de nossa identidade de povo brasileiro. Existente na humanidade, essas relações etnocêntricas tomaram contornos mundiais nos últimos 600 anos de modernidade, ou seja, a partir das Grandes Navegações e da invenção da prensa. Seguiu-se uma dupla ideologia pendular entre fascínio e recusa da alteridade originária ameríndia e africana. Elas resultaram em complexas relações crônicas de negação de identidades que ainda repercutem em nosso cotidiano atual. Somos refratários da intolerância, fruto do chamado etnocentrismo ou transculturação. É uma relação de possível ou efetiva transferência unilateral e, eventualmente, impositiva, de sentidos e valores, de símbolos, padrões e instituições, de uma cultura específica para outras culturas. Transculturação, nesta acepção, conota, de algum modo, uma postura etnocêntrica e/ou dominante da cultura emissora, autossuficiente na consciência da própria superioridade cultural. A cultura que assim opera, afetando as outras profundamente, tende, contudo, a não se deixar influenciar por elas. (AZEVEDO, 1986, p. 413). As conseqüências das relações etnocêntricas ao longo da história de ontem e de hoje são caóticas. A colonização certamente não foi a única, mas, a mais marcante. Como exemplos de visão eurocêntrica pode-se transcrever a opinião de Cornelius de Pauw (1774), sobre os índios da América do Norte. Diz ele que os americanos têm “temperamento tão úmido quanto o ar e a terra onde vegetam”, isso explica que eles não têm nenhum desejo se xual. Em suma, são “infelizes que suportam todo o peso da vida agreste na escuridão das florestas; parecem mais animais do que vegetais”. (PAUW, 1774, apud LAPLANTINE, 2005, p. 43). Hegel em Introdução à Filosofia da História (1830) se horroriza com os povos extra- europeus: os originários das Américas e da Ásia e, sobretudo, da África do interior pertencem a uma infra-humanidade: “Ele cai”, escreve Hegel, “para o nível de uma coisa, de um objeto sem valor”. (Idem, p. 47). Esta visão transculturadora, etnocêntrica deixou marcas de etnocídios históricos como no México entre 1532-1568 de mais de 14 milhões de mortos e que tem sido objeto de estudiosos, como Enrique Dussel (1986). completo.indb 26 09/06/2016 09:00:15 27 Estudos Socioculturais Abordamos fatos e causas dos etnocídios a partir do Diário de Bordo de Colombo; também ele, o comandante, entre a admiração religiosa e a violência que você pode aprofundar. (GONÇALVES, 2016a, p.41-45). Seguiu-se um interminável genocídio ou etnocídio feito pelos conquistadores, como o lembrado acima no México. Dussel (1986) comenta que se fizesse a busca estatística do mesmo fenômeno de extermínio e genocídio na América do Norte, o horror seria, provavelmente, bem maior. No Brasil, os atos praticados pela colonização desde 1500 aos 900 povos originários sustentaram um genocídio com extinção paulatina: dos cinco milhões, hoje restam 350 mil originários e cerca de 250 etnias. De acordo com os números referidos pelo etnógrafo Francisco Dias Tano, os Bandeirantes, nas ofensivas entre 1636-1638 às vinte e cinco reduções indígenas dos Sete Povos das Missões, transformaram em escravos e/ou mataram trezentos mil índios. Sete Povos das Missões é o nome que se deu ao conjunto de sete aldeamentos indígenas fundado pelos Jesuítas espanhóis no Continente do Rio Grande de São Pedro, atual Rio Grande do Sul, composto pelas reduções de São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio. Outro horror legalizado pela jurídica eurocêntrica transculturadora na história brasileira foi com os africanos forçados a trabalharem aqui como escravos desde 1550. Gonçalves (1995, p. 76) mostra que essa coisificação legalizada de pessoas teve sua garantia jurídica pela Lei do Padroado português. As Constituições da Bahia de 1707 restringem os direitos à cidadania do originário, do judeu, do negro e das pessoas com deficiência. Eles não poderiam ter acesso às ordens sacras, por exemplo. No Título LIII, art. 224, as alíneas determinam esses impedimentos. (GONÇALVES, 2016a, p. 41-45). Na Guerra do Paraguai (1860-1870) acontece mais um genocídio negro-guarani oficial. Junto aos 75% dos guarani do Paraguai mortos para completar no genocídio indígena de 1750-1763, cem anos antes, a Guerra do Paraguai matou 40% da população negra brasileira, cerca de um milhão de negros. Foi a primeira vez na História do Brasil que os negros diminuíram em números proporcionais e absolutos em relação à população branca. Em 1800 havia um milhão de negros no país; em 1860, 2,5 milhões; em 1872, apenas 1,5 milhão. Um verdadeiro processo de arianização ou embrancamento do Império. (GONÇALVES, 1995, p. 59). completo.indb 27 09/06/2016 09:00:15 28 Capítulo 2 Os estudos sobre a negritude e o escravismo no Brasil foram muito prejudicados pelo decreto do Ministro Rui Barbosa, em 1890. Ele ordenou a destruição de todos os documentos relacionados com a escravidão. Além dos documentos destruídos e desaparecidos, há os que permanecem sepultados nos arquivos. (GONÇALVES, 2016a, p. 52-53). Nesse contexto histórico marcado pela transculturação, você tem conhecimento, é claro, das reações desses povos afrodescendentes. Cada vez mais conhecidos, os quilombos estiveram presentes por todo o território nacional; os negros também estiveram presentes nas confrarias. Ainda pouco estudadas, estão vivas a resistência estética do samba e de suas escolas, as terapias e medicinas religiosas do terreiro; as artes e sabedorias da capoeira. Hoje, os movimentos políticos de afrodescendentes pós 1975 têm protagonizado um processo de negação das negações de identidade e, com os povos originários, vão além: procuram a afirmação de sua rica diversidade. Os movimentos de afirmações internacionais seguem pelo mesmo caminho desde a década de 1960, na política, com Martin Luther King nos EUA, Léopold Senghor no Senegal e Mandela na África do Sul. Além disso, políticas de reparação com afirmações estéticas na diáspora africana contribuíram para a Declaração do Direito Universal à Diversidade Cultural, pela ONU em Durban, setembro de 2001, na África do Sul. Após 53 anos, finalmente se obedece ao sonho plantado no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A própria criação de etnos-filosofias tem respondido às sabedorias do norte do Equador com uma nova assertiva aos cartesianos, por exemplo. Isso vem bem resumido pelo pensador Eboussi Boulaga, quando afirma que na identidade africana, em personagens como Muntu da obra La crisi Du Muntu, vale o Eu penso, logo, existo! de Descartes, mas, sobretudo, o Eu Danço, então, e vivo! das sabedorias ancestrais africanas. Diante desse percurso, vale retomar os sonhos das possíveis e necessárias relações adequadas com o diferente cultural, superando conceitos de raça e de distinção dos humanos por características físicas. O que nos identifica é o cultural de nosso ethos, cuja riqueza constitui-se pela diversidade de respostas para necessidades iguais. Esse nosso ethos cultural merece que nos eduquemos a uma visão pluralista e multicultural para um bem viver mais justo e feliz. completo.indb 28 09/06/2016 09:00:15 29 Estudos Socioculturais O cultural no humano: conceitos, escolas antropológicas e métodos essenciais Ser cultural é o natural do humano. Aprofundamos agora o ser cultural como o natural e específico modo de ser do humano. Esse jeito de ser característico que nos possibilita gerar respostasdiferentes para necessidades iguais demanda uma cuidadosa análise dos conceitos sobre o cultural no ánthropos. Como constata o pai do Estruturalismo Claude Lévi-Strauss: “pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão à variação cultural.” (LÉVI- STRAUSS apud LAPLANTINE, 2005, p. 9) Por isso, é preciso aprofundar o difícil conceito de cultura, como explica Eagleton (2005, p. 9) “cultura é considerada uma das duas ou três palavras mais complexas de nossa língua”. Achar uma definição única é algo impossível, pois sua própria diversidade de interação, representação e interpretação, dificultam e pluralizam seu conceito. Mais uma vez, com apoio da filologia, (BOSI, 2015), podemos ver como a palavra cultura se formou em nossa língua. Vem do verbo latino colere conjugado no presente do indicativo colo (eu cultivo a terra) e no particípio passado cultus (aquilo que foi cultivado e tornado culto no rito religioso). Do particípio futuro culturus se extraem os adjetivos culturus, a, um (o que ainda vai ser cultivado). Três palavras que na língua latina amarram o presente, passado e futuro. Portanto, culturus tem raiz em colo (presente) e em cultus (passado). (GONÇALVES, 2016b, p. 5) O antropólogo brasileiro Roberto Damatta (GONÇALVES, 2016b, p. 37) explica ser fundamental para o olhar antropológico-cultural “estranhar aquilo que nos parece familiar, para assim descobrir o exótico que está congelado dentro de nós pela reificação, ou seja, a redução à coisa natural do que, na verdade, é cultural, bem como pelos mecanismos de legitimação.” Importa, pois, fazer constantes incursões sobre essa busca cada vez mais consciente do cultural em nós, como a nossa forma de ser com DNA característico entre as demais espécies. Sobre a teoria da cultura, muita reflexão se tem produzido desde que em 1871, Edward B. Tylor (1871, vol. I, p. 1) descreveu cultura como “o conjunto complexo, a totalidade de conhecimentos, crenças, artes, leis, moral, costumes e qualquer capacidade e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade.” Hoje, aceita por todos os estudiosos do ramo. completo.indb 29 09/06/2016 09:00:15 30 Capítulo 2 Vale também lembrar que o cultural, próprio do humano, é dinâmico. Clifford Geertz acentua o aspecto da transformação que o ser humano, consciente e livremente, realiza na natureza, tanto na própria quanto na alheia, visando ao seu aperfeiçoamento. Por isso diz que a cultura “não é um complexo de comportamentos concretos mas um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores chamam programa) para governar o comportamento”. No entanto, C. Klukhohon e A. L. Kroeber recenseando 164 definições de cultura, entre cerca de 300 citadas na sua obra, reconhecem que “a cultura entendida como ‘totalidade compreensiva’ de toda a vida do grupo social, é algo que ‘atualmente é aceita com universalidade’”. (KLUKHOHON-KROEBER, 1972, p. 88) Você pode ter agora uma visão geral das escolas ocidentais mais conhecidas que se sucederam, objetivando estudar o cultural no humano nesses cerca de 215 anos de buscas de sistematização dos estudos sobre o cultural no ánthropos. O primeiro laboratório da nascente ciência antropológica foi a Escola do Evolucionismo Social de matriz inglesa, berço das ciências da natureza. Na Midiateca do EVA, você pode estudar sobre Teorias da Cultura, de autoria da profª Dra. Maria Terezinha da Silva Sacramento. A socióloga dialoga com pensadores expoentes de várias escolas de antropologia cultural e da sociologia sobre conceitos, métodos, problemas e prospectivas das questões culturais dos brasileiros e outros povos. A partir de agora, seguem adaptadas as sinopses bem elaboradas do antropólogo Dr. Vagner Gonçalves da Silva, para facilitação de seus estudos. Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves da. Antropologia. Disponível em: http://www.fflch. usp.br/da/vagner/antropo.html> Acesso em: 14 maio 2016. Quadro 1.1 - Escola do Evolucionismo Social Escola/Paradigma Evolucionismo Social Período Século XIX Características Sistematização do conhecimento acumulado sobre os “povos primitivos”. Predomínio do trabalho de gabinete. Método comparativo das variações culturais. Método Comparativo ou Etnológico. completo.indb 30 09/06/2016 09:00:15 31 Estudos Socioculturais Temas e Conceitos Unidade psíquica do homem. Evolução das sociedades das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”. Busca das origens (Perspectiva diacrônica). Estudos de Parentesco /Religião /Organização Social. Direitos do Matriarcado. Substituição gradativa do conceito de raça pelo de cultura. Primeira definição e conceito de cultura. Alguns representantes e obras de referência Maine (“Ancient Law” - 1861). Herbert Spencer (“Princípios de Biologia” - 1864). Edward Burnet Tylor (“A Cultura Primitiva” - 1871). Lewis Henry Morgan (“A Sociedade Antiga” - 1877). James Frazer (“O Ramo de Ouro” - 1890). Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887). (“Mother Right: an investigation of the religious and juridical character of matriarchy in the Ancient World” - 1861) e Adolf Bastian (1826-1905) Controversen in der Ethnologie, 1893. Fonte: SILVA, 2016. As escolas de antropologia vão nascendo como filhas de discussões abertas. Seu primeiro objeto é estudar as populações que não pertencem à civilização ocidental. Demonstram que todos os seres humanos descendiam de um único ancestral comum e pertenciam a uma única espécie. A crítica posterior é a acentuação progressionista que eleva o modo de ser do povo europeu sobre as outras sociedades. (GONÇALVES, 2016b, p. 8-15) A Escola Sociológica Francesa reúne os primeiros críticos ao pensar evolucionista da Antropologia biológica ou física a partir da jovem ciência da sociologia. Quadro 1.2 - Escola Sociológica Francesa Escola/Paradigma Escola Sociológica Francesa Período Século XIX Características Definição dos fenômenos sociais como objetos de investigação sócio-antropológica. Definição das regras do método sociológico. Método genealógico – desenvolve o estudo do parentesco e suas implicações sociais. Interesse e pesquisa de campo de sociedades distantes. completo.indb 31 09/06/2016 09:00:15 32 Capítulo 2 Temas e conceitos Representações coletivas. Solidariedade orgânica e mecânica. Formas primitivas de classificação (totemismo) e teoria do conhecimento. Busca pelo fato social total (biológico + psicológico + sociológico). A troca e a reciprocidade como fundamento da vida social (dar, receber, retribuir). Trabalhar minúcias. Alguns representantes e obras de referência Émile Durkheim: “Regras do método sociológico”- 1895; “Algumas formas primitivas de classificação” - c/ Marcel Mauss - 1901; “As formas elementares da vida religiosa” - 1912. Marcel Mauss: “Esboço de uma teoria geral da magia” - c/ Henri Hubert - 1902-1903; “Ensaio sobre a dádiva” - 1923- 1924; “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de eu”- 1938); “Manual de Etnografia” - 1930. Fonte: Silva, 2016. É tradição desses pesquisadores/as estudarem as sociedades não ocidentais deixando o gabinete e viajando em busca do humano não europeu: eles confirmam que a variação cultural constitui a experiência social humana. Claude Lévi-Strauss (1993) destacou que foi Émile Durkheim o primeiro a introduzir nas ciências do homem a exigência de olhar as especificidades. Dessa forma, a Antropologia se diferencia da Sociologia, pois, à Antropologia importa focar o minucioso, valorizar o micro. À Sociologia, interessa o macrossocial. Coube a Marcel Mauss, discípulo e sobrinho de Durkheim, mostrar essa importância do minucioso. Para ele é possível observar e anotar, de forma sistemática, o repertório de respostasde cada povo na elaboração de suas respostas diferentes a necessidades iguais entre os humanos. Mauss demonstra, por exemplo, no Ensaio sobre a dádiva, que “toda representação é relação – isto é, funda-se sobre a união de uma dualidade de contrários” (LANNA, 2000, p. 175). É a dádiva que produz alianças, tanto matrimoniais como políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como nos sacrifícios, entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade). Exemplo brasileiro típico é o cunhadismo, apontado pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1995). O cunhadismo, semelhante ao fenômeno observado por Mauss, é a instituição social do milenar uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade ameríndia e no Brasil pré-cabraliano. (GONÇALVES, 2016b, p. 18). Para esses cientistas, primeiros antropólogos, o aspecto sociológico constitui todos os seres vivos, mas o cultural é percebido como exclusivo do ánthropos. À nossa ciência cabe interessar-se pelo cultural como específico do humano. (GONÇALVES, 2016b, p. 14) completo.indb 32 09/06/2016 09:00:15 33 Estudos Socioculturais A Escola Funcionalista contribui com a visão de totalidade e o funcionamento por sistemas observados. Voltamos ao outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, berço das ciências da natureza nos tempos do Empirismo. Quadro 1.3 - Escola Funcionalista Escola/Paradigma Escola Funcionalista Período Século XX - anos 20 Características Modelo de etnografia clássica (Monografia). Ênfase no trabalho de campo (Observação participante). Sistematização do conhecimento acumulado sobre uma cultura. Método Funcionalista – desenvolve o estudo das culturas a partir de sua funcionalidade dentro de um universo cultural mais amplo. Temas e conceitos Cultura como totalidade. Interesse pelas Instituições e suas funções para a manutenção da totalidade cultural. Ênfase na Sincronia x Diacronia. Síntese integrada. Unidade na diversidade. Alguns representantes e obras de referência Bronislaw Malinowski (“Argonautas do Pacífico Ocidental” -1922). Radcliffe Brown (“Estrutura e função na sociedade primitiva” - 1952-; e “Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento”, org. c/ Daryll Forde - 1950). Evans- Pritchard (“Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande” - 1937; “Os Nuer” - 1940). Raymond Firth (“Nós, os Tikopia” - 1936; “Elementos de organização social - 1951). Max Glukman (“Ordem e rebelião na África tribal”- 1963). Victor Turner (“Ruptura e continuidade em uma sociedade africana” - 1957; “O processo ritual” - 1969). Edmund Leach - (“Sistemas políticos da Alta Birmânia” - 1954). Fonte: Silva, 2016. É o antropólogo polonês naturalizado inglês Bronislaw Malinowski (1884-1942) quem se sobressai nessa ótica britânica do estudo da organização dos sistemas sociais. A Escola Funcionalista mantém o método da etnografia clássica de estudo sistemático, a monografia, e afirma a importância da ênfase ao trabalho de campo com a observação participante na pesquisa antropológico-cultural. Como os franceses, esses cientistas do ánthropos se desalojam: enfrentam os mares e vão residir e conviver com povos distantes. Malinowski atrai a atenção sobre a antropologia quando publica Os Argonautas do Pacífico Ocidental, em 1922. É o primeiro a viver com as populações que estudava e a recolher materiais de seus idiomas. Radicalizou essa compreensão por dentro, para isso, procurou romper ao máximo os contatos com o mundo europeu. completo.indb 33 09/06/2016 09:00:15 34 Capítulo 2 Malinoviski representa a postura cientificamente rigorosa em arriscar-se a compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é nossa. Hoje, todos os etnólogos estão convencidos de que as sociedades diferentes da nossa são humanas tanto quanto a nossa. Os homens e mulheres que nelas vivem são adultos e se comportam de forma apenas diferente da nossa; não são primitivos, autômatos e atrasados (em todos os sentidos dos termos), que pararam em uma época distante e vivem presos a tradições estúpidas. Mas pensar assim nos anos 20 era uma postura revolucionária adotada por Malinowski. Optando por observar e analisar essa coerência interna em cada sociedade, Malinowski elabora a teoria do funcionalismo que tira seu modelo das ciências da natureza. Assim, os padrões culturais determinariam o surgimento do estatuto, que é o liame entre as intuições. Neste processo de análise da realidade, Malinowski vê como fundamentais três procedimentos metodológicos: 1) a observação de todos os costumes dos nativos; 2) a apreensão das narrativas orais; e 3) a utilização do método estatístico. Ele mostra também como ponto essencial na observação do comportamento dos nativos é estar atento aos imponderáveis da vida real, ou seja, os elementos não abarcados pela análise estatística e que, na verdade, são a carne e o sangue da arquitetura teórica de toda pesquisa científica. (GONÇALVES, 2016b, p. 26). Importa agora que aprofundemos os métodos e técnicas da ciência antropológico-cultural e que significa, antes de tudo, ouvir Franz Uri Boas (1858-1942), conhecido como o Pai da Antropologia Americana e fundador da Escola Culturalista. Boas teve como alunas e colegas Ruth Benedict, Edward Sapir, Alfred Louis Kroeber, Robert Lowie, Melville Jean Herskovits, Paul Radin e como obra A formação da antropologia americana 1883-1911: antologia. Franz Boas, físico, geógrafo e historiador muito contribuiu com sua escola à crítica do Método Comparativo ou Etnológico e seus reducionismos. Sugeriu o acréscimo de certa dose do que chamou de relativização. O relativismo inclui que os resultados obtidos na etnografia passem pelo crivo dos estudos históricos das culturas, das condições psicológicas e dos ambientes onde se desenvolvem essas culturas. Por essa relativização, Franz Boas abre os olhos para os perigos de falsas interpretações das teorias deterministas do fenômeno cultural. Fruto das críticas de Franz Boas e de sua escola a esse possível comportamento reducionista de generalização foi o contraponto da necessidade de analisar os elementos culturais em seu contexto de conjunto, já que o vício comum era inferir-se a uma totalidade a partir de uma parcela mínima da cultura. Boas acreditava que a comparação deveria ser restrita a um pequeno território. completo.indb 34 09/06/2016 09:00:15 35 Estudos Socioculturais Dessa forma, passou a ser um importante crítico do evolucionismo e do funcionalismo por causa do excesso de uso do Método Comparativo para dedução de indícios culturais. Por isso, alertava para o fato de que fenômenos iguais podem ter causas e sentidos diferentes: “cada máscara é única,” sua célebre frase. Depois que Franz Boas convidou os antropólogos americanos formados em sua Escola Culturalista a observar cada fenômeno como resultante de acontecimentos históricos, estes estudiosos passaram a “elaborar conceitos definidos para o estudo dos fatos da difusão cultural, sem deixarem, no entanto, de continuar a acumular uma massa impressionante de dados” (MERCIER, 2000, p. 56). Como as escolas anteriores, evolucionista e funcionalista, Boas valoriza, na Antropologia Cultural, o seu modo característico de olhar o microssociológico. Para ele, tudo deve ser anotado com descrição minuciosa e devem ser colhidas todas as versões. Cada cultura é uma unidade autônoma e um costume só tem significado frente ao contexto no qual se insere. No entanto, é na Escola do Estruturalismo de Claude Lévi-Strauss que podemos clarear melhor os métodos e técnicas para uma adequada aproximação científico-cultural.Claude Lévi-Strauss (1908-2009), com sua mulher, Dina Dreifruss, deixou marcas profundas na fundação da disciplina de Antropologia Cultural no Brasil enquanto participante do grupo de docentes franceses criador da USP (Universidade de São Paulo) (GONÇALVES, 2016b, p. 51). Sua escola traz a visão da busca das regras estruturantes das culturas presentes na mente humana, sintetizando muitas contribuições de escolas anteriores, visando a dar autonomia à nossa ciência da Antropologia Cultural. Quadro 1.4 - Escola Estruturalista Escola/Paradigma Escola do Estruturalismo Período Século XX - anos 40 Características Busca das regras estruturantes das culturas presentes na mente humana. Teoria do parentesco/Lógica do mito/ Classificação primitiva. Distinção natureza x cultura. Temas e Conceitos Princípios de organização da mente humana: pares de oposição e códigos binários. Reciprocidade. completo.indb 35 09/06/2016 09:00:15 36 Capítulo 2 Alguns representantes e obras de referência Claude Lévi-Strauss: “As estruturas elementares do parentesco” - 1949. “Tristes Trópicos”- 1955. “Antropologia estrutural” – 1958. “Pensamento selvagem” - 1962. “O cru e o cozido” – 1964. “O homem nu” – 1971 - Saudades do Brasil. “Antropologia estrutural dois” – 1973. Lévi-Bruhl, Marcel Griaule, Dieux d’Eau, Germaine Dieterlen e Le Renard Pâle. Fonte: Silva, 2016. Alguns a consideram uma “super teoria”, mas também sofreu críticas e questionamentos principalmente em relação à utilização dos modelos, pois ao observar as relações sociais se utiliza de modelos que podem explicar todos os fatos observados. Por isso, o estruturalismo pode ser considerado tanto como uma linha de análise antropológica quanto um método de análise. Marconi (1992, p. 277) cita esses pontos importantes do estruturalismo: 1. Visão sincrônica e sistêmica da cultura. 2. Visão globalizante do fenômeno cultural (o conhecimento do todo leva à compreensão das partes). 3. Adoção das noções de estrutura social e relações sociais. 4. Utilização de modelos na análise cultural. 5. Unidade de análise: estruturas mentais inconscientes. 6. Compreensão ampla da realidade cultural. Laplantine (2005, p. 25) resume a visão de Lévi-strauss sobre o Método antropológico-cultural. São três etapas: 1. ETNOGRAFIA: É a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por aproximações sucessivas. Esses fenômenos podem ser recolhidos tomando- se notas, mas também por gravação sonora, fotográfica ou cinematográfica. 2. ETNOLOGIA: Consiste no primeiro nível de abstração: através da analise dos materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da sociedade que se estuda. 3. ANTROPOLOGIA: Consiste num segundo nível de abstração: construir modelos que permitam comparar as sociedades entre si. (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE 2005, p. 25). completo.indb 36 09/06/2016 09:00:15 37 Estudos Socioculturais Você pode aprofundar também sobre os métodos e técnicas aplicáveis em sua área de conhecimento profissional, porque são frutos da interdisciplinaridade. A técnica de pesquisa trata-se, sinteticamente, de um modo de conseguir os dados sem nenhuma intermediação de outros registros, sejam eles os dos historiadores, viajantes, missionários, médicos, assistentes sociais ou funcionários do governo que estiveram antes na região ou grupo em pesquisa. Nenhuma técnica dispensa a da Observação Participante pelo profissional responsável. Observe, no quadro que segue, algumas técnicas de vários métodos de ciências afins do estudo sobre o humano e com as quais podemos interagir: Quadro 1.5 - Métodos e Técnicas com interface para a ciência da Antropologia Cultural Método Histórico: procura investigar acontecimentos passados, a fim de compreender aspectos ou modos de vida do presente. Para isso, usa coleta de documentos materiais e imateriais; Método Monográfico ou Estudo de Caso: desenvolve estudo aprofundado de determinado caso ou grupo humano em todos os seus aspectos; Método Funcionalista: desenvolve o estudo das culturas a partir de sua funcionalidade dentro de um universo cultural mais amplo. Técnica Estatística: os dados coletados são transformados em termos quantitativos e dispostos em tabelas, quadros e gráficos para uma análise posterior; Técnica da Genealogia: desenvolve o estudo do parentesco e de suas implicações sociais. Técnica da observação: sistemática e participante. Técnica da entrevista: dirigida e livre. Fonte: Adaptação do Autor, 2016. A Antropologia Cultural, nesse sentido, vem diversificando seus temas de abordagem e se aproximando cada vez mais da Linguística, da Psicologia, da História, da Sociologia como vimos mencionando até aqui. A análise antropológico-cultural nessas etapas tripartites propostas por Lévi-Strauss deve levar em consideração os dados históricos, os fatos econômicos, os conflitos políticos e o todo que constitui esse complexo fenômeno do cultural no humano. Por isso, nossa análise não pode se desprender do diálogo científico interdisciplinar. completo.indb 37 09/06/2016 09:00:15 38 Capítulo 2 Desafios para a saúde cultural planetária e brasileira Nossos estudos sobre identidade e culturas propõem como essencial, para o bem viver humano individual e planetário, um adequado tratamento da relação com o cultural para que o ánthropos aconteça em cada pessoa de forma consciente e lhe garanta reprodução e qualidade de vida sustentável. E o desafio maior está indicado e mapeado na própria filologia do sentido de cultural. Você lembra que a palavra cultura está ligada ao particípio futuro latino do verbo colere (cultivar), ou seja, culturus = o que vai ser trabalhado e cultivado. É, pois, um termo que une passado e presente. Cultura supõe, sobretudo, uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro = dimensão de projeto (jectus = jogado, arremessado; pro = para frente). O sonho de convivência adequado entre diferentes culturas é constatável há milênios. Exemplo claro está no histórico diciodeontológico de leis e mandamentos nas culturas conhecidas no Oriente e Ocidente. Eles aparecem como respostas teimosas de esperança na organização do material caótico deixado por situações crônicas de histórico de guerras e de invasões, apontando para o convívio impossível com o diferente cultural. A mais recente carta de esperança vai completar 70 anos. É a resposta às tragédias de crueldade indescritível imposta a milhões de vítimas nas duas guerras mundiais do século XX: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. Os autores aprofundam essa difícil implantação e vivência ética dos Direitos Humanos e da natureza. Aqui o nosso foco são os direitos culturais e socioambientais. Tudo o que vimos refletindo já mostra a complexidade, a escassez de pesquisa e a urgência de dedicação ao estudo, em vista de saudáveis relações entre culturas diferentes vistas como riqueza e não como ameaças. O sonho da realização dos direitos culturais já está definido no Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948: “1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.” A implementação do Artigo 27 dá um primeiro passo no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), tratado multilateral que só foi adotado pela ONU em 16 de dezembro de 1966, e em vigor dez anos depois,
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