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Mariza Peirano A teoria vivida e outros ensaios de antropologia <3- ^ Jorge ZAHAR Editor Rio de Janeiro «fMXClBV aui«k« - îffl» 2- A antropologia at home1 Em poucos anos, talvez possamos fazer um balanço da antropologia do século XX como caracterizada por um longo e complexo movimento, com implicações teóricas e políticas, que substituiu o ideal de um encontro radical com a alteridade pela pesquisa “em casa”, “a t hom e". Mas, no cenário internacio nal, “hom e” terá, como sempre, muitos sentidos, e a antropologia manterá, na sua concepção paradigmática, um objetivo sociogenético relacionado à diferença e sua compreensão. Em alguns casos, a diferença será o caminho para o universa lismo teórico v ia comparação; em outros, ela aparecerá como denúncia do exo tismo ou negação do seu apelo. Este capítulo examina distintos momentos e contextos em que um projeto de se desenvolver a antropologia a t hom e tornou- se uma questão candente. (A expressão “antropologia em casa”, correspondente ao an th rop o lo gy a t h om e , não é usada entre nós, já que, contrariamente aos cânones tradicionais, desenvolver uma antropologia no Brasil foi consagrada- mente um projeto feito em casa.) O problema Até recentemente, a idéia de uma antropologia em casa era um paradoxo e uma contradição em termos. Durante o século XX, a distância entre os etnólogos e aqueles que eles pesquisavam - um dia conhecidos como “informantes” - foi progressivamente diminuindo: dos Trobriandeses para os Azande, desses gru pos para os Bororo via Kwakiutl, no meio do novecentos a comunidade acadê mica havia descoberto que era a abordagem, e não o objeto, que havia sempre 37 A teoria vivida definido a perspectiva antropológica. Lévi-Strauss (1962) desempenhou um papel fundamental nessa mudança, ao imprimir um sentido horizontal às práti cas sociais e às crenças em qualquer latitude, com Firth e Dj amour (1956) e Schneider (1968) atestando sua validade no campo dos estudos de parentesco. A percepção do elemento político presente na procura pela alteridade radical levou antropólogos “indígenas” a entrar em cena durante os anos 1970 (Fahim, 1982), e, nos 1980, Geertz (1983) pôde proclamar que “somos todos nativos”. Mas restrições da geração mais velha atestavam, mesmo naquele momento, que a mudança de além-mar em direção aos corredores dos departamentos univer sitários não seria fácil; pesquisar em casa era visto por muitos como uma tarefa difícil e melhor indicada para pesquisadores que haviam ganhado experiência em outros contextos (Dumont, 1986). Desde o início, antropólogos originários de antigos sítios antropológicos foram poupados da procura por alteridade, contanto que seu treinamento tivesse sido feito com os mentores apropriados. Assim, Malinowski deu sua aprovação para Hsiao-Tung Fei publicar sua monografia sobre os camponeses chineses, enfatizando que, se o autoconhecimento era o mais difícil de alcançar, então “uma antropologia de seu próprio povo era a mais árdua, mas também a mais valiosa, conquista de um pesquisador de campo”.2 A aprovação que Radcliffe- Brown e Evans-Pritchard deram ao estudo realizado por Srinivas (1952) sobre os Coorgs da índia também sugere que o cânone podia ser desenvolvido a des peito de práticas consensuais. O ideal da pesquisa além-mar, contudo, conti nuou sendo o objetivo a ser alcançado. Décadas mais tarde, e como parte de uma tradição que havia questionado firmemente a necessidade de pesquisa de campo externa, Saberwal (1982b) nota que, para muitos, a pesquisa de campo na índia era vista como uma experiência leve, soft, já que realizada principalmente nos limites da língua, casta e região de origem do pesquisador. No caso dos pesquisadores dos centros metropolitanos, que só recente mente passaram a aceitar que eles também são nativos, o impulso de trazer a antropologia para casa tem tido várias motivações. Alguns explicam esse movi mento como uma das demandas inevitáveis do mundo moderno (Jackson, 1987a); para outros, ele emerge do propósito de transformar a antropologia em crítica cultural (Marcus & Fischer, 1986). Nos Estados Unidos, em particular, quando a antropologia volta para casa ela é reapropriada como elemento do campo dos “stud ies' (culturais, feministas, de ciência e tecnologia), vistos como parte de áreas “antidisciplinares” (Marcus, 1995b), atestando, assim, a afinidade inerente entre antropologia e exotismo. Qualquer que seja o caso, uma linhagem que justifique a empreitada está sempre presente, seja de Raymond Firth e Max A antropologia at home Gluckman (Jackson, 1987b), ou de Margaret Mead e Ruth Benedict (Marcus &Fischer 1986, para Mead; Geertz, 1988, para Benedict). Nos anos 1940 e 1950, em lugares nos quais a antropologia foi ratificada localmente pelas ciências sociais (por exemplo, Brasil e índia), sobretudo como parte de movimentos em direção à modernização, um diálogo franco com agen das políticas nacionais tornou-se inevitável, reproduzindo padrões europeus canônicos do fim do século XVIII e início doXIX (E. Becker, 1971). Nesses contex tos, a alteridade, freqüentemente, tem sido comprometida e aspectos interessados do conhecimento (à Weber) são muitas vezes explicitados. Essa característica “interessada”, com freqüência, torna alguns observadores cegos para a procura constante de excelência teórica, vista como fundamental, e que resulta em um diá logo triangular: com antropólogos e sociólogos locais, com as tradições metropo litanas de conhecimento (presentes e passadas) e com os objetos de pesquisa. Neste ensaio, procuro examinar alguns dos componentes indéxicos do termo home na expressão “anthropology a th om e”. Primeiro, focalizo o momento e o con texto em que o projeto de desenvolver uma antropologia em casa se tornou um objetivo apropriado. Focalizo minha atenção nos centros socialmente legítimos da produção acadêmica - isto é, segundo Gerholm &Hannerz (1982b), os luga res da “antropologia internacional” —, nos quais o ideal de um longo período de pesquisa de campo além-mar foi inicialmente estabelecido. Esse projeto inclui a Europa e os Estados Unidos. (Estou assumindo que os Estados Unidos, hoje, têm um papel socialmente equivalente ao da Inglaterra durante a primeira metade do século XX, ou da França nos momentos áureos do estruturalismo.) Mudo de perspectiva no final, quando procuro estabelecer uma ponte com o próximo capítulo, ao explicitar de forma concisa algumas características da antro pologia no Brasil. Procuro apontar para a configuração de diferentes projetos que, embora não exclusivos, podem ser distinguidos como tentativas de formulação de uma alteridade radical, um estudo do “contato” com a alteridade, outro sobre alte ridade próxima, ou uma radicalização de um “nós”. Após indicar uma variedade de noções de alteridade, concluo com um alerta sobre a comunicação entre antropó logos no contexto de uma disciplina que, embora mantendo uma história teórica minimamente partilhada, convive, ela própria, com manifestações plurais. Antropologia at home No ambiente de uma nova consciência nos centros de produção “internacional”, preocupações individuais com o futuro da antropologia nos anos 1960 deram A teoria vivida lugar, na década de 1970, a análises mais sociológicas, denunciando as relações políticas que haviam sido sempre um traço da pesquisa de campo de cunho etno gráfico. Logo, a idéia de uma antropologia a t hom e fez seu début na Europa, ao passo que nos Estados Unidos a antropologia transformou-se em “studies”, na interseção de vários experimentos das humanidades. São esses movimentos que examino agora em mais detalhe. Antecedentes: preocupações no centro Nos anos 1960, dois pequenos trabalhos escritos por antropólogos de grande prestígio expressavam sentimentos paradoxais sobre o futuro da antropologia. Exatamente na ocasião em que a disciplina havia ganhado m om en tum , seu objeto corria o risco de extinguir-se. Na França,Lévi-Strauss (1961) alertava para o fato de que a antropologia poderia se tornar uma ciência sem objeto, em razão do desaparecimento físico de populações inteiras depois do contato, ou devido à rejeição aos estudos antropológicos pelas novas nações independentes. A antropologia sobreviveria? Para Lévi-Strauss, aquela era uma chance única para que antropólogos se tornassem cientes, se não o haviam feito antes, de que a disciplinajamais se definira como o estudo de primitivos em termos absolutos, mas, sim, tinha sido concebida como uma certa relação entre observador e obser vado. Desse modo, à medida que o mundo se tornava menor e a civilização oci dental adquiria características cada vez mais expansionistas e complexas - em todos os lugares renascendo como criou la—, as diferenças simplesmente estariam mais perto do observador. Não era necessário receio nem pânico. Nada indicava que uma crise da antropologia despontava no horizonte. Para Goody (1966, p. 574), “o estudo individual de sociedades não-compli- cadas” não era mais possível já que primitivos se tornaram parte de redes sociais complexas e amplas nos países do “Terceiro Mundo”.3 A antropologia encon trava-se em uma encruzilhada, em que tanto poderia se tornar uma arqueologia social, um ramo da sociologia histórica baseado na “preservação da tradição”, como poderia transformar-se em sociologia comparada. Sugerindo uma “des colonização das ciências sociais”, Goody enfatizava que, na Inglaterra, a distin ção entre sociologia e antropologia social era basicamente xenofóbica: a socio logia era o estudo de sociedades complexas, a antropologia social, de sociedades simples, mas nas novas nações africanas, as “culturas alheias” eram “nossa socio logia” (1966, p.576). O otimismo de Lévi-Strauss e a proposta de Goody no sentido de um ajuste disciplinar nos anos 1960 devem ser vistos, retrospectivamente, no contexto de um prestígio indisputável da disciplina. Latour (1996) caracterizou o etnógrafo A antropologia at home daquele período como um rei Midas antitético, “amaldiçoado com o poder de transformar tudo o que tocava em poeira” (1996, p. 5). Mas aquela década tam bém foi testemunha do repensar a antropologia de Leach (1961), da legitimação do estudo de sociedades complexas (Banton, 1966), da experiência de Firth e Djamour (1956) e Schneider (1968) fazendo incursões no estudo de suas pró prias sociedades via parentesco, e da publicação dos diários de Malinowski. Só o último episódio provocou muita disputa (Darnell, 1974) e, em um artigo publi cado inicialmente em 1968, nos Estados Unidos, Stocking (1974c) relembra que a pesquisa antropológica era um fenômeno histórico, insinuando assim que poderia bem ser temporário e passageiro. Relações de poder e auto-reflexão Naturalmente, em 1965, Hallowell (1974) já havia estabelecido que a antropo logia deveria ser examinada também como “um problema antropológico”. Logo depois, Hymes (1974) propôs a reinvenção da antropologia, em texto hoje clássico. Retrospectivamente, a idéia de centrar as perguntas nas condições que produziram a antropologia no Ocidente provou ser a base de muitos dos projetos de auto-reflexão que se seguiram. Conferências internacionais com aspecto de rituais coletivos de expiação marcaram os anos 1960, e redundaram na edição de vários livros que se tornaram bastante conhecidos. A publicação freqüente de perfis de vertentes nacionais da antropologia também se mostrou comum em revistas especializadas - em alguns casos, esses periódicos chega ram a editar números especiais sobre esses tópicos. • Conferências dos anos 1970. A nthropology £sf the C olon ia lE ncounter (Asad, 1973a) transformou-se na publicação clássica do período, resultado de uma confe rência realizada sob os auspícios da Universidade de Hull, em 1972. Tratava-se de uma denúncia direta de que a antropologia (“funcionalista”) britânica estava baseada em uma relação de poder entre o Ocidente e o chamado Terceiro Mundo. A antro pologia havia emergido como uma disciplina específica no início da era colonial, tor nara-se uma profissão acadêmica próspera ao seu término e, durante todo esse período, devotara-se a descrições e análises “desenvolvidas por europeus, para uma audiência européia, de sociedades não-européias dominadas por poderes euro peus”.4 Tal situação desigual só seria ultrapassada por suas contradições internas. As contribuições de Diamond (1980a) e Fahim (1982) surgiram de con ferências patrocinadas pela W enner-Gren Foundation for Anthropological Research. Abertamente marxista, Diamond aludia a tradições nacionais ape nas para repudiá-las; para ele, a antropologia, em termos profissionais, era um A teoria vivida tipo de difusão por dominação, significando que “um antropólogo indiano ou africano, treinado nessa técnica ocidental, não se porta como um indiano ou africano quando age como um antropólogo__[E]le vive e pensa como um aca dêmico europeu”.5 Nesse sentido, Diamond posicionava-se de forma diferente daqueles que, como Crick, tentavam encorajar antropólogos de outras culturas a desenvolver “tradições próprias, examinando a si próprios de maneira que não se restrinjam a um pálido reflexo do nosso interesse nelas, mas também nos fa zendo objeto de sua especulação”. Nessa atmosfera, quando Fahim (1982) reuniu em um simpósio diversos antropólogos de várias regiões não-ocidentais (o próprio organizador tendo ori gem egípcia), o termo indigenous an thropology foi proposto como um conceito de trabalho para se referir à prática da antropologia no país, sociedade e/ou grupo étnico do pesquisador.6 Do ponto de vista do organizador, a reunião atin giu seu objetivo ao substituir a polêmica “Ocidente versu s não-Ocidente” por um diálogo construtivo, ao mesmo tempo em que mudava o foco da disciplina (Fahim ôcHelmer, 1982). Madan (1982a; 1982b) recebeu crédito especial de Fahim pela maneira como defendeu a idéia de que a discussão não deveria se referir nem onde nem p o r quem a antropologia se desenvolvia, apenas substi tuindo um ator por outro, mas, sim, à mudança necessária e urgente na perspec tiva da disciplina. Considerando a antropologia um tipo de conhecimento e uma forma de consciência que surge do encontro de culturas na mente do pesquisa dor, ela nos permitiria compreender a nós mesmos em relação aos outros, tor nando-se uma forma intensificada de autoconsciência. • Antropologia da antropologia. Uma segunda perspectiva em relação a dife rentes contextos da antropologia pode ser detectada no desafio que alguns antropólogos enfrentaram ao olhar a disciplina com um olhar antropológico (assim, seguindo a orientação de Hallowell, 1974). Em 1976, McGrane (1989) procurou examinar a situação paradoxal de que a disciplina vê tudo (exceto a si própria) como fenômeno cultural. Para tal, fez uma apreciação da cosmografia européia dos séculos XVI ao XIX .7 Peirano (1981) contrastou a posição clássica lévi-straussiana sobre a questão da reversibilidade do conhecimento antropoló gico com a de Dumont (1978), que assegurava não haver simetria entre o pólo moderno no qual a antropologia se sustenta e o pólo não-moderno (frustrando, assim, a idéia de uma multiplicidade de antropologias). Na tese, exploro a varia bilidade de questões antropológicas em diferentes contextos socioculturais, e o Brasil é utilizado como ponto de partida para examinar a relação entre ciência social e ideologia de nation -build ing. A antropologia at home Também inserida no contexto de preocupação com uma “antropologia da antropologia” estava a coletânea de Gerholm ÔcHannerz (1982a), que, sem se afligirem com a origem ocidental ou não dos contribuintes, convidaram antro pólogos de diferentes partes do mundo (incluindo índia, Polônia, Sudão, Canadá, Brasil e Suécia) para discutir o nascimento de antropologias nacionais. Distinguindo entre um continente próspero da disciplina desenvolvida na Grã- Bretanha, Estados Unidos e França (istoé, uma “antropologia internacional”) e “um arquipélago de ilhas maiores e menores” na periferia (Gerholm ÔcHannerz, 1982b, p. 6), os organizadores questionaram a estrutura das relações centro- periferia e suas desigualdades; confrontaram a variedade de limites disciplina res; olharam as origens, treinamento e carreiras dos antropólogos e se pergunta ram: é possível que a antropologia, sendo uma interpretação das culturas, seja moldada pela cultura? Diamond (1980a) e Bourdieu (1969) foram menciona dos como inspiração e estímulo e, como no livro de Fahim, aqui foram as impli cações da contribuição de Saberwal (1982b) que receberam atenção especial dos editores. Stocking Jr. (1982) fechou o número especial com “uma visão de centro” que, tomando como mote O. Velho (1982), sublinhava a questão dos “privilégios do subdesenvolvimento”, ao mesmo tempo distinguindo entre antropologia de “construção de império” (em p ire-b u ild in g ) e de “construção da nação” (n a tion -b u ild in g ), aludindo, assim, à questão da reversibilidade do co nhecimento antropológico sugerida por Peirano (1981).8 Desenvolvendo a antropologia “ at hom e” Explícito nos próprios títulos dos livros, desenvolver a antropologia a th om e tor- nou-se uma tarefa legítima para Messerschmidt (1981) e Jackson (1987a). Mas hom e, para eles, compreendia basicamente os Estados Unidos e a Europa. Que a área do mediterrâneo, por exemplo, permanecesse não estudada por antropó logos em casa — e, se estudada, a literatura produzida poderia ser ignorada - é uma idéia que está presente em Gilmore (1982), na qual o autor revela sua esco lha explícita de resenhar apenas trabalhos publicados em inglês. Em Messerschmidt (1981), os sujeitos de pesquisa eram aqueles próximos aos etnógrafos nos Estados Unidos e no Canadá: parentes, idosos de uma grande cidade, um escritório de burocracia, uma companhia mineradora. Oferecendo uma bibliografia extensa, o editor propunha que o termo in sid er an thropology revelava conotações menos negativas do que, por exemplo, os termos “indigenous” ou “n a t i v e (O mesmo termo foi também sugerido por Madan, 1982b.) Jackson (1987a) foi mais adiante e reuniu antropólogos da Grã-Bretanha, Suécia, Dinamarca, Zimbábue, Israel e França, sob os auspícios da Associação de A teoria vivida Antropólogos Sociais da Inglaterra. Mais uma vez, hom e era a Europa (ou, suges tivamente, a Africa) e a pesquisa não-européia deveria constituir uma categoria específica. Jackson (1987b) perguntou-se por que havia terminado a relação estreita entre antropologia, folclore e arqueologia que existiu previamente na Inglaterra, e suspeitava - comparando a antropologia com a sociologia - de que a diferença entre as duas disciplinas residia na proximidade (da sociologia) e na repulsa (da antropologia) à sociedade moderna. Para Jackson, antropólogos eram folcloristas do exótico (1987b, p. 8). Apesar de a pesquisa além-mar continuar tendo um lugar de destaque, a pesquisa a t hom e tinha chegado para ficar. Para alguns dos colaboradores da coletânea, hom e era sempre um lugar transiente, mas, onde quer que estivessem (Strathern, 1987), era preciso proceder a uma fenome- nologia da idéia de “distância remota” (Ardener, 1987). Okely (1987) enfatizava que a idéia de a t hom e diminuíra em termos territoriais na era pós-colonial; Dragadze (1987) comentava o fato de o antropólogo soviético ser um historiador, não um sociólogo; e Mascarenhas-Keyes (1987) discutia o processo mediante o qual um antropólogo nativo se transformava em um “nativo múltiplo”. • Nos Estados Unidos. O projeto de trazer a antropologia para casa nos Estados Unidos surgiu com grande legitimidade social e sucesso com o nome de cultural critique. Inspirando-se na proposta interpretativa de Geertz, o pós-modernismo “pegou” como magia poderosa. Passado um tempo, perdeu-se a afinidade entre a idéia de cultural critique e a proposta de trazer a antropologia para casa, mas esta pode ser recuperada neste trecho, por exemplo: “Na verdade, acreditamos que a moderna formulação da antropologia cultural depende, para sua plena realização, da recuperação da função crítica em casa [athome\ em conjunto com a atual trans formação de sua tradicional função descritiva alhures [abroad]”.9 “Home”e “abroad” continuavam a representar lugares distintos, mas, ao denunciarem o exotismo, Marcus &Fischer enfatizavam uma metamorfose em processo: os etnógrafos esta vam se distanciando da antropologia convencional e se movendo em direção à experimentação e aos cultural studies. O termo “post-anthropology" foi insinuado por Clifford & Marcus (1986), explicitando ou enfatizando novas linhagens intelec tuais, seja pela escola de sociologia urbana de Chicago (Clifford, 1986), seja por Margaret Mead nos Estados Unidos e Raymond Williams na Inglaterra (Marcus &Fischer, 1986). Nesse contexto, sugeriu-se até o termo “antropologia repatriada”. Para Clifford (1986), a nova experimentação estava sendo desenvolvida em trabalhos como os de Latour e Woolgar (1979), sobre biólogos em labora tório, Marcus (1983), sobre ricos dinásticos, Crapanzano (1980), sobre novos retratos etnográficos, todos eles abrindo caminho para seus sucessores, tais A antropologia at home como Traweek (1988), sobre físicos, Fischer & Abedi (1990), sobre diálogos pós-modernos através das culturas, e os questionamentos de conceitos clássicos tais como “etnografia” (Thomas, 1991) e “cultura” (Abu-Lughod 1991). Para alguns, a antropologia a t hom e, ou repatriada, identificava-se como “American cu lture studies”: “As fronteiras entre ‘estrangeiro’, além-mar’, exótico’, ou mesmo ‘primitivo’ ou ‘não-letrado’ e ‘a t home' ou ‘na nossa cultura’ estão desaparecendo à medida que a cultura mundial se torna mais uniforme, em um nível, e mais diversa, em outro”.10 Paralelamente a esses desenvolvimentos, Stocking Jr. (1983a; 1983b) lan çou a bem-sucedida série HOA (H istory ofA nthropology), explicando no ensaio introdutório que os temas preocupantes relativos à identidade que a disciplina enfrentou no início dos anos 1980 haviam mobilizado antropólogos voltados para a história da antropologia. Naquele momento, o diagnóstico de Stocking Jr. era familiar: “Com o retraimento do guarda-chuva do poder europeu, que por tanto tempo protegeu sua entrada no campo colonial, antropólogos viram cada vez mais dificuldade em ganhar acesso (e, mais eticamente problemático, estudar) os ‘outros’ não-europeus que tradicionalmente despertaram a im agi nação antropológica” (1983b, p. 4). Conferências e congressos continuaram a produzir publicações bem rece bidas pelos profissionais (por exemplo, Fox, 1991), e o lançamento de novos periódicos (por exemplo, C ultu ra l A nthropo logy , em 1986, e, alguns anos depois, em 1988, Public Culture) sinalizou novas arenas para a experimentação e o redesenho das disciplinas existentes: “Uma fonte de transformação é a do puro poder e influência de idéias das margens para o centro dominante. Outra fonte simultânea vem das vozes dissonantes situadas no campo do [discurso] oficial” (Marcus, 1991, p.564). Nesse meio-tempo, D ia lectica lA n th ropo logy (1985) dedicava parte de um de seus números à discussão das “vertentes nacionais”, que incluía a antropologia feita na França, Grã-Bretanha, União Soviética e Alemanha. Naturalmente que Said (1978) tinha sido uma referência central desde o momento de sua publicação, e temas sobre colonialismo continuavam a ser ana lisados (por exemplo,Thomas, 1994), com conexões próximas à literatura sobre gênero e feminismo (por exemplo, Dirks et alii 1994; Behar & Gordon, 1995; Lamphere et alli 1997). Antropologia pós-exótica? Uma mudança de orientação, das preocupações com a escrita antropológica para a atenção aos lugares e audiências, marcou a década de 1990. Strathern (1995) A teoria vivida examina os contextos mutantes nos quais se desenvolvem diferentes formas de conhecimento (o que inclui osantropólogos) como um prelúdio ao questiona mento dos pressupostos sobre perspectivas locais e globais. (Nesse meio-tempo, a Associação Européia dos Antropólogos Sociais é fundada, em 1990, e dois anos depois lança a revista Social A nthropology.) Quase sim ultaneam ente, dois livros sobre “lugares antropológicos” (lo ca tion s) foram publicados: Clifford (1997) examina caminhos (routes) como práticas espaciais da antropologia, notando que a pesquisa de campo se tem fun dado na distinção entre uma base em casa e um lugar externo de descobertas. Contudo, noções de “a t hom e e além-mar, internalidades e externalidades, cam pos e metrópoles são cada vez mais desafiadas por vertentes pós-exóticas e des colonizadas”.11 Agora, campos de pesquisa precisam ser negociados - e porque não há uma fórmula narrativa ou uma maneira de escrever inerentemente ade - quada a uma “política do lugar”, a distância antropológica às vezes é reconstruída de forma confusa e relativa. Gupta & Ferguson (1997a; 1997b) também reco nhecem que a antropologia se desenvolveu como um corpo de conhecimentos baseado na especialização regional. A separação espacial entre “o campo” e home leva os autores a examinarem o pesquisador como um objeto antropológico. É possível perceber aqui o que Ahmad (1992) denunciou como “migração pós- moderna”, mas, de qualquer forma os autores sentem necessidade de propor soluções. Clifford (1997) sugere que a pesquisa de campo tradicional, certa mente, manterá seu prestígio, mas a disciplina poderá também “ficar mais pró xima às antropologias nacionais’ que muitos países europeus e não-ocidentais desenvolvem, com visitas curtas e repetidas tornando-se norma e a pesquisa de vários anos, totalmente financiada, uma raridade”.12 Gupta & Ferguson tam bém vêem soluções alternativas possíveis para a pesquisa de campo em tradições “nacionais” fortes e antigas como as do México, Brasil, Alemanha, Rússia ou índia (1997b, p.27), sugerindo que antropólogos façam a passagem necessária da idéia de “sítios espaciais” para a de “locações políticas”, seguindo, assim, a lite ratura feminista contemporânea. Tais alternativas tornaram-se inspiração paraMoore (1996), que examinou práticas e discursos como conjuntos de “s itu a ted k n ow led ges ' (cf. Haraway, 1988), todos, simultaneamente, locais e globais. Para a organizadora do livro, o futuro do conhecimento antropológico deveria ser antecipado como resultado de um desafio colocado por acadêmicos do Terceiro Mundo, por movimentos negros e feministas. A questão das audiências tornou-se um outro tópico. Quase duas décadas depois da tentativa malsucedida de Michael Fischer, de incluir uma introdução A antropologia at home para iranianos e outra para norte-americanos (em Fischer, 1980), a preocupação com o público que consome literatura antropológica finalmente surgiu na Europa (Driessen, 1993) e nos Estados Unidos (Brettell, 1993), em um contexto de questionamentos relacionados à “política da etnografia”. O reconhecimento de que as audiências variam levou Marcus (1993a; 1993b), na introdução ao pri meiro número de Late E ditions, a propor que os diferentes volumes da série tinham como objetivo atingir “g loba lly -m ind ed U.S. academics" , procurando um espaço entre a antropologia e os cu ltura l studies. Seu propósito era evocar tanto um sentido de familiaridade quanto de estranhamento nos leitores educados nas universidades norte-americanas (Marcus, 1993b, p.5). As questões sobre público, locação, política e teoria estiveram presentes no número especial de Public Culture devotado à discussão de Ahmad (1992), mas apenas para revelar a disparidade de interpretações sobre o status da teoria, incluindo o desacordo sobre o campo da “política da teoria” (Appadurai et al, 1993; Ahmad, 1993). Outra tentativa de discussão internacional foi lançada por Borofsky (1994), em uma publicação coletiva que resultou de uma sessão orga nizada no encontro anual da American Anthropological Association de 1989. O livro incluía depoimentos individuais sobre as “raízes intelectuais” dos auto res colaboradores. O projeto teve continuidade em 1996, a partir de outra sessão em encontro similar, em que o título “How others see us: American cultural anthropology as the observed rather than the observer” indicava um exercício na direção da reversibilidade do conhecimento antropológico (a despeito do fato de os “outros”, com poucas exceções, virem da Europa e dos Estados Unidos). Entre as etnografias a t hom e, gostaria de singularizar um livro, o de Rabinow (1996), sobre a invenção da reação em cadeia da polimerase (conhe cida como PCR, ou p o lym era se cha in rea ction ). As razões para elegê-lo são variadas: primeiro, pela motivação antropológica clássica que expressa (“Fre qüentemente me senti intrigado, embora cético, pelo conhecimento miraculoso que se tornou possível pelas novas tecnologias que supostamente conduziriam a uma nova era”). Em segundo lugar, o livro desperta interesse por sua estrutura canônica, exatamente no contexto pós-moderno no qual se vê inscrito: os dois primeiros capítulos apresentam a ecologia da invenção, o terceiro focaliza o pro cesso que culminou na invenção, enquanto os dois últimos demonstram que uma idéia tem pouco valor se não é posta em ação. Em terceiro lugar, o livro é inovador pela atitude de fazer tanto entrevistados quanto leitores colaborarem no texto: no estilo de Late Editions, transcrições de conversas com cientistas, téc nicos e homens de negócios estão presentes. Finalmente, apesar de protestos de antidisciplinaridade, o livro reforça a idéia de que, mesmo a t hom e, o etnólogo A teoria vivida precisa aprender outra língua (nesse caso, a da biologia molecular), durante um longo período de socialização, e, como sempre, enfrentar o problema de quem tem a autoridade e a responsabilidade de representar a experiência e o conheci mento.13 O lato de o livro não ser encontrado nas prateleiras de antropologia nas livrarias norte-americanas, mas nas estantes de ciência, reforça, por exclusão, a associação duradoura entre a antropologia e o exotismo.14 De outro ponto de vista Até o momento, focalizei trabalhos que sugerem um movimento complexo, mas relativamente regular, em que os antropólogos dos centros metropolitanos foram, ao longo do último século, trazendo a antropologia de além-mar para casa e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para que antigos “nativos” desenvolves sem sua própria antropologia. Neste momento, abro um parêntese para indicar uma voz dissonante no que diz respeito ao último tópico e que, indiretamente, atinge a antropologia que se faz no Brasil. Observando o caso da Grécia a partir de depoimentos dos próprios antro pólogos locais, Kuper (1994) critica o que denomina “etnografia nativista”—um caso extremo de antropologia athom e. Segundo ele, a etnografia nativista, geral mente, tem como fonte de inspiração o trabalho de Edward Said e o discurso pós-moderno reflexivo, assumindo uma postura controvertida: primeiro, que apenas nativos compreendem nativos e, segundo, que o nativo deve ser o juiz da etnografia, até mesmo seu censor. Kuper é crítico desta posição, mas sua pro posta não é menos controvertida: defendendo alguns etnógrafos que nomeia individualmente, e sancionando diferentes tradições de pesquisa etnográfica, ele sugere uma alternativa “cosmopolita” para a antropologia. O que é esta “alternativa cosmopolita”? Para Kuper, etnógrafos cosmopoli tas devem ter como interlocutores internalizados apenas outros antropólogos (e não, por exemplo, estrangeiros curiosos ou voyeu rs de gabinete; também não deveriam ter como interlocutores os nativos ou a comunidade nativa de experts, isto é, cientistas sociais, especialistas em planejamento e intelectuais locais). Para o autor, sua antropologia cosmopolita seria uma ciência social irmã da sociologia e da história social, sem vínculos com nenhum programa político. Aqui, proponhoque essa noção de antropologia cosmopolita seja contras tada com o projeto multicentrado dos antropólogos indianos (Uberoi, 1968; 1983, M adan, 1994; Das, 1995a). M uito antes de as preocupações com a antropologia a t hom e surgirem, a índ ia ofereceu ao mundo acadêmico longas A antropologia at home discussões sobre o estudo o fo n e s ow n society (Srinivas, 1955,1966,1979; Uberoi, 1968,Béteille&M adan, 1975;Madan, 1982a, 1982b; Das, 1995a), diretamente vinculadas à questão atual das audiências e dos públicos para a escrita antro pológica. Se os antropólogos, em geral, não aproveitaram como poderiam essa extensa produção, a questão é outra (ver Capítulo 1). A índia também foi cená rio do renascimento único de um periódico internacional, C ontribu tion s to Indian Sociology, depois que seus fundadores, Louis Dumont e David Pocock, decidiram encerrar a publicação na Europa após uma década de existência.15 Os debates desenvolvidos na seção “For a Sociology of índia” - o título do primeiro artigo publicado pelos editores (Dumont & Pocock 1957) - , depois transfor mada em seção regular da revista, revelaram ser este um fórum de discussão teó rica, acadêmica, política e até pedagógica, ímpar, envolvendo especialistas de várias orientações. Se o desenvolvimento da ciência, assim como a paixão que desperta, pode ser apreciado nos debates intelectuais e acadêmicos (Latour, 1989), então esse fórum de trinta anos tem uma história das mais interessantes para contar. Autores que adotam posição semelhante à de Kuper (1994) ficam impedidos de apreciá-la.16 Ao adotarem uma perspectiva universalista sem se situar no centro, os antropólogos indianos estão cientes de seus múltiplos interlocutores. Madan (1982b, p.266) menciona dois tipos de conexões triangulares: (a) a relação entre o antropólogo de dentro, o de fora e o grupo estudado, e (b) a relação entre o antropólogo, o agente financiador da pesquisa e o grupo estudado. Das (1995a) também aponta para três tipos de diálogo dentro da literatura antropológica produzida na índia: (a) com as tradições ocidentais acadêmicas na disciplina, (b) com o sociólogo e antropólogo indiano, e (c) com o “informante”, cuja voz está presente quer como informação obtida no campo, quer como textos escritos da tradição. Nesse sentido, a antropologia na Índia avalia e refina, ao mesmo tempo, o discurso antropológico e o conhecimento sobre sua própria sociedade. Nesse contexto, é interessante relembrar que antropólogos estrangeiros que trabalha ram na índ ia também se engajaram em diálogos com especialistas locais, e alguns desses debates influenciaram profundamente ambos os lados. Bons exemplos a citar são o diálogo ininterrupto, enquanto seus autores viveram, entre Dumont e Srinivas, as reações de Dumont ao filósofo indiano A.K. Saran (Srinivas, 1955,1966, Dumont, 1970, 1980; Saran, 1962) e o debate entre os historiadores dos suba ltern stud ies com Dumont (Guha & Spivak, 1988), in cluindo a recepção e a influência dos últimos na Europa e alhures. Mas, publi cadas na Europa, as contribuições de Dumont não explicitavam essa interlo- cução no período que se estende dos anos 1960 aos 1980 - ao contrário, ela só A teoria vivida surgia como sub texto. Na produção contemporânea dos historiadores dos subal- tern studies os diálogos são mais visíveis. Alteridade no Brasil Deixando o “continente internacional” e aproximando-nos de mais uma das “ilhas”do mundo antropológico (Gerholm ÔcHannerz, 1982b), chegamos, via índia, ao Brasil. Destaco um aspecto fundamental: uma característica marcante da antropologia que se faz na índia é que os cientistas sociais têm por objetivo oferecer alternativas às questões ocidentais. Mas eles estão cientes de que per guntas ocidentais pré-direcionam seus esforços, até mesmo sua contestação - o Ocidente é um interlocutor poderoso e internalizado. Já no Brasil, a imagem de um diálogo inevitável com os centros de produ ção intelectual está sempre presente, mas o tom é diferente: antropólogos brasi leiros imaginam-se como parte do Ocidente, mesmo que, em aspectos impor tantes, eles não sejam. Como uma das ciências sociais, a antropologia no Brasil encontra seu nicho intelectual na interseção de várias correntes: primeiro, as ver tentes contemporâneas ou canônicas do conhecimento acadêmico ocidental; segundo, um sentido de responsabilidade social em relação ao grupo estu dado; e, terceiro, a linhagem de pensamento social desenvolvida no país pelo menos desde os anos 1930 (que, naturalmente, inclui empréstimos intelectuais e engajamentos políticos anteriores). No contexto dessa configuração complexa, a teoria é o caminho nobre para diálogos intelectuais existentes ou virtuais, e o engajamento social é um compo nente poderoso da identidade do cientista social (ver, por exemplo, Cândido, 1958; Peirano, 1981; Bomeny et al., 1991; Schwartzman, 1991; H. Becker, 1992; Reis, 1996). Onde a teoria tem tamanho poder ideológico, a comunicação torna-se mais complexa pelo fato de o português ser a língua de discussão inte lectual (escrita e oral) e o inglês e o francês, as línguas de formação. Uma apre ciação rápida sobre o que se faz como antropologia no Brasil não revela, por tanto, grandes surpresas em termos de produção intelectual - contanto que se saiba bem o português. No entanto, exatamente porque o diálogo intelectual, no mais das vezes, se desenvolve com interlocutores ausentes, respostas alternati vas às preocupações correntes do “continente”, tais como etnicidade, pluralismo cultural e social, raça, identidade nacional etc. são rotineiras. (Foi nesse contexto que Arantes (1991) ironicamente caracterizou o meio intelectual brasileiro como um “tanque de decantação na periferia”.) A antropologia at home Algo como uma certa singularidade surge quando se procura por traços coletivos. Oposto aos Estados Unidos e à Europa de hoje, o ponto crítico no Brasil não se resume nem ao exotismo nem à culpa associada a ele. A relação com o exotismo tomou caminho diferente no Brasil. A noção durkheimiana de dife rença, mais que o exotismo, chamou a atenção dos antropólogos onde e quando eles encontraram um “outro”, sancionando, assim, a idéia de que a influência francesa foi bem mais forte que a herança germânica. Por outro lado, devido ao fato de a inclinação geral ser, ao mesmo tempo, teórica e política e, portanto, congenial aos valores e responsabilidades de construção da nação, a alteridade tem sido recorrentemente encontrada dentro dos limites do país (para as exce ções, ver G. Velho 1995; Peirano 2000) e, de maneira freqüente, relacionada à procura de uma singularidade “brasileira” (DaMatta, 1984; ver Fry 1995a para a questão explícita). A maneira como a alteridade tem sido concebida no Brasil pelos antropó logos será o objeto do próximo capítulo. Aqui, apenas antecipo que identificarei quatro tipos ideais relacionados à adaptação local da noção de exotismo que marcou o momento sociogenético da disciplina. São eles: “alteridade máxima”, “contato com a alteridade”, “alteridade próxima” e “nós como outros”. Sendo tipos ideais weberianos, eles não são empiricamente discretos nem mutuamente excludentes: cortando um con tinuum sobre a preocupação com a alteridade, muitos autores adotam mais de uma perspectiva ou as combinam em diferentes momentos de suas carreiras - todos são, contudo, reconhecidos legitimamente como antropólogos, mas, curiosamente, nenhum se sente desenvolvendo anthro- p o lo g y a t home. Aliás, sugiro que, no caso brasileiro, a antropologia além-mar é que poderá vir a ser a categoria marcada. Conclusão A institucionalização das ciências sociais no momento em que se alavanca o processo de construção da nação (na tion -bu ild in g ) é um fenômeno conhecido (E. Becker, 1971, para França e Estados Unidos; Saberwal, 1982a, para a índia), tanto quanto o paradoxo de uma ciência social crítica sobrevivendo contra os interesses das elitesque a criaram. No Brasil dos anos 1930, uma ciência social foi adotada com o objetivo de prover uma abordagem científica para se desenhar o futuro do novo país. Acreditava-se que, no tempo devido, a ciência social iria substituir o ensaio social, que havia sido, no Brasil, até então, “mais que a filo sofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida espiritual”.17 Assim, A teoria vivida dos anos 1930 aos 1950, enquanto a ciência social maturava uma sociologia “feita-no-Brasil” - que se tornou hegemônica durante as duas décadas seguin tes —, o estudo canônico dos grupos indígenas era a regra a ser seguida. Na década de 1960, esses trabalhos começaram a dividir a cena com uma nova tendência de analisar o contato como “fricção interétnica” e, imediatamente depois, nos anos 1970, com camponeses e estudos urbanos. Ao longo dessas décadas, a pouca dis tinção entre as disciplinas havia acompanhado o engajamento social e a ambi ção por padrões de excelência acadêmica, a “diferença” sendo encontrada perto ou, pelo menos, não muito longe de casa. Há algum tempo, Perry Anderson (1968) sugeriu que uma antropologia britânica exuberante foi o resultado da exportação do pensamento social crítico para os povos que subjugou na primeira metade do novecentos. Anderson tam bém lembrou que a sociologia que a Inglaterra deixou de desenvolver em casa deu lugar a uma antropologia próspera. Mais recentemente, Fischer (1988) afir mou que os antropólogos norte-americanos não desempenham o mesmo papel social que ele percebeu entre os antropólogos brasileiros, como intelectuais públicos, não porque aos norte-americanos falte engajamento, mas devido à perda de bifocalidade, capaz de ser treinada simultaneamente a t hom e e abroad na cultura norte-americana, sobretudo no processo de se transformar e ser trans formada pela sociedade global, trazendo, assim, à tona o tema dos intercâmbios e empréstimos intelectuais.18 M inha intenção, neste capítulo, foi ampliar e estender essas discussões sobre os componentes das noções de a t hom e e abroad, apontando para algumas dificuldades que são inerentes aos diálogos intelectuais. De forma significativa, a justaposição efetiva entre a experiência da “antropologia internacional” e expe riências como a nossa (como se elas fossem inteiramente distintas) indica que, com grande freqüência, os autores encontram-se somente no final de livros e de artigos, sem interlocução substantiva no texto, apenas lado a lado, na seção de referências bibliográficas. As implicações desse fenômeno merecem maior atenção da nossa parte. 3 A alteridade em contexto: o caso do Brasil1 J e por muito tempo a antropologia foi definida pelo exotismo do seu objeto de estudo e pela distância que separava o pesquisador do seu grupo de pesquisa, hoje essa situação mudou. A antropologia não se resume a um objeto, ela se interessa pela diferença. A idéia de que a alteridade é um aspecto fundante da antropologia, sem o qual a disciplina não reconhece a si própria, é um dos argumentos centrais deste capítulo. O Brasil é o caso etnográfico privilegiado. Chamo a atenção para o fato de que, no contexto brasileiro, as exigências relativas às diferenças adquiri ram, desde cedo, contornos específicos. Uma alteridade radical - no caso, a in dígena - , vigente até os anos 1950, nas décadas seguintes passou a conviver com alteridades “amenizadas”, situação na qual os antropólogos faziam pesquisas sobre o contato com as populações indígenas, depois com camponeses, che gando mais tarde aos contextos urbanos. Mais recentemente, nos anos 1980, os antropólogos passaram a dirigir sua reflexão para a própria produção socioló gica, tornando-se este um caso de alteridade mínima. No ambiente da antropo logia no Brasil, nos últimos trinta anos, a alteridade deslizou , territorial e ideolo gicamente, em um processo dominado pela incorporação de novas temáticas e ampliação do universo pesquisado. O exemplo brasileiro revela, assim, que a diferença cultural pode assumir, ■para os próprios antropólogos, uma pluralidade de noções: se em termos canônicos ela seria tão radical que idealmente estaria além-mar, ao aculturar-se em outras latitudes a alteridade (européia) traduziu-se em diferenças relativas e não neces sariamente exóticas. Juntas ou separadas, essas diferenças podem ser culturais, 53 A teoria vivida sociais, econômicas, políticas, religiosas e até territoriais. Assim sendo, o processo que nos centros metropolitanos levou um século para se desenvolver, isto é, tra zer a disciplina para casa, no Brasil não demorou mais que três décadas. Mesmo que, hoje, entre nós existam prioridades intelectuais e/ou empíricas, assim como modismos (teóricos ou de objetos/sujeitos), não há propriamente restrições em relação a essa multiplicidade de “alteridades”. Na última década, a presença de um mínimo de especialidades, entre elas temáticas indígenas, camponesas, urbanas, afro-brasileiras e outras, vem sendo reputada como uma exigência para o estabe lecimento, na universidade, de um departamento de excelência.2 O foco central deste capítulo recai nas três últimas décadas do desenvolvi mento da antropologia no Brasil, mas não se restringe a esse período. Adoto, na verdade, uma estratégia de contrastes, quer históricos, quer etnográficos, e incluo, com esse propósito, casos comparativos ao longo do texto, como os da índia e dos Estados Unidos.3 Tenho como objetivo apresentar uma configura ção típico-ideal para a antropologia desenvolvida no Brasil. Procuro indicar, ao focalizar a produção da comunidade brasileira de antropólogos, em que medida - apesar de rotulada por muitos como “periférica” - ela oferece uma oportunidade para se detectar elementos fundantes nos próprios centros metropolitanos, além de evidenciar em que sentido a disciplina, aqui, tanto acompanha as experiên cias desenvolvidas em outros contextos quanto difere delas. Esse é, portanto, mais um ângulo de visão do que se pode chamar uma antropologia no plural. Orientação geral Neste capítulo, levo em consideração que uma disciplina pode ter o mesmo nome em diversos momentos sem que tenha necessariamente idêntico con teúdo ou igual objetivo. Desse modo, denominar um tipo de conhecimento de “antropologia” em momentos e contextos distintos não significa que se está designando o mesmo fenômeno. Segundo, parto do suposto de que não é possível falar sobre a história de uma disciplina sem levar em conta o desenvolvimento de áreas vizinhas - quer sejam elas modelos ou rivais da primeira. Assim, por exemplo, investigar o crescimento da antropologia no Brasil depois dos anos 1950 exige que se examine as demais ciências sociais (pelo menos a sociologia e a ciência política); para uma avaliação antes dos anos 1950, é preciso levar em conta a literatura.4 Terceiro, mesmo quando se define um enfoque dominante, este nem sempre é medrado apenas por especialistas da área. Isso denota que, conscientemente ou não, a antropologia pode ser feita por não-antropólogos. A alteridade em contexto Finalmente, uma disciplina acadêmica revela sua provável configuração no diá logo com as idéias e os valores dominantes de uma sociedade. No caso brasileiro, as ciências sociais foram reconhecidas socialmente quando o país passou a se conceber legitimamente como parte do mundo moderno, aderindo ao preceito iluminista de estarem comprometidas com a vida nacional no seu conjunto.5 Essa orientação nos remete, de imediato, a uma questão central: externamente à disciplina, tem sido com a sociologia que a antropologia vem dialogando desde a institucionalização das ciências sociais, na década de 1930; já internamente, esse diálogo é vivido como uma dicotomia entre a etnologia indígena fe i ta no B rasile as investigações antropológicas sobre o Brasil. Na década de 1950, tendo a sociologia se tornado hegemônica entre as ciências sociais - e concebida como uma aborda gem que combinava excelência teóricacom engajamento político —, à antropologia restou a opção de se manter nos parâmetros dos estudos de sociedades indígenas, como até então, ou integrar-se no projeto sociológico dominante. Quando Florestan Fernandes transferiu suas preocupações dosTupinambá para as relações raciais, esse movimento representou mais que uma guinada na direção da Escola de Chicago, e mais que a admissão de que osTupinambá só serviram para a formação de seu autor. Naquele momento, a excelência acadêmica definiu-se como parâ metro e a temática nacional estabeleceu-se como projeto; teoria e política passavam a fazer parte da agenda das ciências sociais no país.6 É quando, então, o rótulo antro pologia se expande em pelo menos duas direções: ele serve para designar a inves tigação etnológica canônica em busca da alteridade radical, mas passa igualmente a indicar uma sublinhagem que, definindo-se também como antropologia, dia loga com a sociologia hegemônica. Tenho em mente, no segundo caso, os estudos sobre “fricção interétnica”,7 que viam o contato com grupos indígenas como um indicador sociológico para se estudar a sociedade nacional — isto é, seu processo expansionista e sua luta pelo desenvolvimento.8 Essa ampliação dos limites da dis ciplina persiste, em um quadro no qual convivem, no mesmo meio acadêmico, uma antropologia f e i t a no Brasil e uma antropologia do Brasil.9 Para além da pes quisa indígena propriamente dita, uma antropologia feita no/do Brasil é uma aspi ração comum. Exotismo e tipo ideal Aqui, considero o exotismo a diferença-limite da apreensão antropológica. Da perspectiva do tema clássico dos tabus, o exotismo é a alteridade mais distante, remota e, ainda assim, passível de apreensão em um determinado universo. É A teoria vivida certo que noções mais ou menos explícitas de distância (territorial, cultural, social) estão sempre presentes, mas a alteridade, como diferen ça ou como exo tism o , diverge: se todo exotismo é um tipo de diferença, nem toda diferença é exótica. Por outro lado, a ênfase na diferença tem como dimensão intrínseca a comparação; já a ênfase no exotismo dispensa contrastes. Contudo, o exotismo na antropologia não é uma realidade histórica pura e, muito menos, uma “realidade autêntica” no sentido weberiano. Trata-se, sim, de um elemento relevante para a construção de um tipo ideal, em relação ao qual se podem medir exemplos empíricos a fim de esclarecer alguns de seus traços essenciais. Reforço essa proposta observando que, nas últimas décadas, um grupo de antropólogos vem questionando como indesejável exatamente a dimensão exótica da antropologia (por exemplo, Thomas, 1991). M as, na medida em que essas críticas não levam em conta o significado contextuai do exotismo e, portanto, a ele não se oferecem alternativas se não sua erradicação, fica enfatizado, às avessas, seu papel fundante e a evidência de que, sem uma noção de diferença, a antropologia desaparece.10 E preciso notar, porém, que, em termos empíricos, a antropologia nunca se definiu simplesmente pelo exotismo, embora até o meio do século XX ela se con siderasse um ramo dos estudos sociológicos devotado primordialmente às socie dades primitivas (Evans-Pritchard, 1951). Logo a seguir, contudo, Lévi-Strauss (1961) lembrou que o caráter específico da antropologia não estava no seu objeto empírico, mas, sim, naquela dimensão de diferen ça que sempre havia estado pre sente no estudo dos povos primitivos - se, até então, esses desvios diferenciais só eram apreendidos quando se comparavam civilizações distintas e longínquas, agora eles poderiam ser notados dentro do próprio mundo ocidental, no momento em que o Ocidente se tornava uma grande “aldeia crioula”. (No entanto, quando Lévi-Strauss veio ao Brasil nos anos 1930, seu horizonte de pesquisa era o exotismo. Castro Faria menciona que a designação de “expedição” era coerente com a preocupação de Lévi-Strauss em fotografar e documentar o que encontrava para, posteriormente, mostrar o material em Paris; Peixoto (1998) indica o papel fundamental dessa exposição na carreira do autor.) Esse estímulo nunca foi dominante no Brasil.11 O fato de as pesquisas indí genas serem realizadas em território nacional indica menos problemas de recur sos financeiros — um argumento a se considerar — e mais a escolha de um objeto de estudo que se apresenta ou se mistura com uma preocupação com diferenças que são culturais e/ou sociais, ratificando a idéia de que, no Brasil, a influência durkheimiana se sobrepôs à germânica. Pode-se, naturalmente, argumentar que os grupos indígenas representaram o “exotismo possível” no Brasil, mas a alteri- A alteridade em contexto dade não sendo predominantemente radical, prevaleceu a exigência de rigor teó rico combinado à força moral que define a ciência social como comprometida e transformadora. (Durkheim explicitamente negava o interesse pelo mero exó tico e afirmava que a sociologia “não busca conhecer formas extintas de civiliza ção com o objetivo único de conhecê-las e reconstituí-las”, como também “não procura estudar a religião mais simples pelo simples prazer de contar suas extra vagâncias e singularidades”. Para ele, a sociologia tem por objeto explicar uma realidade atual e próxima, “capaz portanto de afetar nossas idéias e nossos atos” [1996, p.v-vi; ênfases minhas].) Retornando ao ponto crítico dos anos 1950, compreende-se, então, por que, no momento em que era vitorioso na sua proposta de forjar uma sociologia feita no Brasil, Florestan Fernandes (1961) criticou tão duramente o empirismo da antropologia e seu descaso com questões de fundo teórico. Por outro lado, fica também esclarecido por que só recentemente a antropologia no Brasil retomou os Tupinambá como modelo;12 por que pouco existe na antropologia contem porânea que evidencie uma conexão direta com a linha de pesquisas indígenas que se desenvolveu na década de 1950 na USP - como uma associação imediata entre antropologia e exotismo poderia supor;13 por que as descendências inte lectuais dos etnólogos alemães do século XIX não se tornaram regra geral (como em Schaden 1955a; Baldus, 1954, por exemplo);14 e, finalmente, por que a dis puta histórica entre uma vertente antropológica canônica e outra sociológica encontrou sua resolução na noção de antropologia como ciên cia s o c i a l Como tal, ela se insere em um quadro geral em que conhecimento e comprometimento político estão unidos em uma configuração única, situação distinta da que se pode encontrar, por exemplo, nas “humanidades” e nos f o u r f ie ld s norte-ameri- canos - nos quais a antropologia social ou cultural dialogam com a arqueologia, a lingüística e a antropologia física/biológica ou ainda na distinção etno logia/sociologia de outras vertentes européias.16 Se as disciplinas vizinhas dife rem, são igualmente distintas as perguntas que elas se fazem. O caso do Brasil Se a noção de diferença é definidora da antropologia, a questão é saber onde ela se aninhou no caso brasileiro. Proponho que nos últimos trinta anos a alteridade deslizou de um pólo onde ela é (ou pretende ser) radical a outro, onde nós mes mos, cientistas sociais, somos o outro. Dessa perspectiva, podemos identificar quatro tipos ideais: (a) a alteridade radical; (b ) o contato com a alteridade; A teoria vivida (c) a alteridade próxima; {d) a alteridade mínima. Esses tipos não são excluden- tes e, ao longo de suas carreiras acadêmicas, antropólogos transitam por vários deles. Em termos cronológicos, nota-se uma certa seqüência: o projeto de se pes quisar a alteridade radical antecipa o estudo do contato; a este se segue a antro pologia em casa, até que se atinge a investigação da própria produção socioló gica no país. Esse é o momento em que fronteiras nacionais são ultrapassadas e se retorna à alteridade radical, agora modificada. (Esclareço que, no que se segue, não faço citações exaustivas dos casos indicados, mas apenas menciono alguns trabalhospara sinalizar diferenças temáticas e de abordagem. Com os autores cujos trabalhos são citados, desculpo-me pelas ausências inevitáveis.) Alteridade radical A procura canônica pela alteridade pode ser ilustrada, no Brasil, em termos de distância (geográfica ou ideológica), de duas maneiras: em primeiro lugar, no estudo de populações indígenas; em segundo, no objetivo mais recente de ultra passar os limites territoriais do país. Em ambos os casos, em termos comparati vos com a “antropologia internacional” (cf. Capítulo 2), a alteridade radical não é extrema. Vejamos a primeira situação. Hoje, iniciantes no campo podem discernir algumas antinomias: Tupi ou Jê; parentesco ou cosmologia; Amazônia e Brasil Central ou Xingu; história ou etnografia; economia política ou cosmologia des critiva (ver Viveiros de Castro, 1995b). Como em qualquer antinomia, as opções empíricas disponíveis estão muito além. Mas, nesse contexto, a pesquisa tupi, tendo praticamente desaparecido da cena etnológica no Brasil durante os anos 1960 e início dos 1970 (contudo, cf. Laraia, 1986), fez sua reentrada nas duas últimas décadas (Viveiros de Castro, 1986; 1992; Lima, 1995; Fausto, 1997; 2001; ver, também, Muller, 1990; Magalhães, 1994). Por sua vez, essas pesqui sas induziram a um interesse sistemático pelo parentesco, que, embora seja a área clássica da antropologia, nos padrões locais se configurou como novidade.17 Antes da década de 1980, os Jê haviam sido o grupo mais bem estudado do Brasil: depois dos trabalhos clássicos de Nimuendajú, os Jê atraíram a atenção de Lévi-Strauss (por exemplo, 1956; 1960) e, seguindo-se, o Projeto Harvard- Central Brazil (Maybury-Lewis, 1967; 1979).18 Em pouco tempo, os resultados desse ambicioso programa de pesquisa tornaram-se a principal fonte de apoio às teses estruturalistas. Para uma geração de antropólogos que desenvolveram sua carreira no Brasil, essa experiência de campo foi fundamental (ver, por exemplo, A alteridade em contexto DaMatta, 1976a; Melatti, 1970; 1978). Nas décadas seguintes, pesquisas sobre os Jê tiveram continuidade, embora não se colocasse mais a questão da hegemonia.19 Este rápido apanhado mostra que as pesquisas vêm sendo realizadas em ter ritório brasileiro. Embora para os especialistas seja fortuito que os grupos indí genas estejam situados no Brasil, o fato é que existem implicações políticas e ideológicas nessa localização. Para o objetivo deste ensaio, uma delas indica não ser o exotismo a principal motivação para a pesquisa, mas a diferença (social, cul tural, cosmológica) entre eles e nós. Mas, tratando-se da linha de pesquisa que corresponde às preocupações mais tradicionais da antropologia, é esta a área na qual debates com a comunidade “internacional” são mais freqüentes (para um debate entre etnólogos franceses e brasileiros, cf. Viveiros de Castro, 1994 e Copet-Rougier & H éritier-Augé, 1993; ver, também, Viveiros de Castro, 2003.) Fica, então, a pergunta: nossa diferença será o exotismo alheio?20 Há o segundo caso, em que a alteridade radical é buscada fora do país. Essas pesquisas são recentes e indicam que os antropólogos brasileiros não ficam res tritos ao território nacional.21 Mas aqui ainda se mantém algum vínculo com o Brasil, sendo possível identificar três direções. Uma nos leva aos Estados Unidos, que se tornaram uma espécie de “alteridade paradigmática” para estu dos comparativos. Essa prática remonta ao estudo clássico sobre preconceito racial de Oracy Nogueira (1986), mas atinge as análises sobre hierarquia e indi vidualismo de Roberto DaMatta (1973a; 1980). Desenvolvimentos posteriores são, por exemplo, L. Cardoso de Oliveira (2002) e Kant de Lima (1991; 1995a; 1995b). Nesse contexto, um tópico emergente é o estudo de imigrantes brasilei ros e portugueses (G. Ribeiro, 1998; Bianco, 2001). Uma segunda direção leva-nos às ex-colônias portuguesas e ao interesse etnográfico que elas despertam. Fry (1999; 2002; 2005) compara experiências coloniais com base nos casos do Brasil, Estados Unidos, Moçambique e Zimbábue;Trajano Filho (1993; 1998; 2003) examina os projetos nacionais de uma sociedade cr iou la , tendo como referências Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. De uma perspectiva similar, Dias (2002; 2004) desenvolve estudos sobre Cabo Verde. A antropologia feita em Portugal instigou uma curiosidade antes inexistente, como indicam congressos e conferências nos dois países, ates tando mais uma vez seus vínculos históricos, lingüísticos e ideológicos. A litera tura recente inclui C. Bastos et alii (2002), G. Velho (1999), além da publicação de um número de E tnográ fica (Almeida & Leal, 2000), que reúne artigos de antropólogos brasileiros, e o comentário de Pina Cabral (2004) ao volume sobre o campo da antropologia no Brasil. A teoria vivida Uma terceira frente pode ser detectada nas investigações que não implicam necessárias comparações com o Brasil,22 e na recente pesquisa inter e supra nacional: Góes Filho (2003) examina rituais da Organização das Nações Unidas; Leite Lopes (2004) focaliza movimentos de preservação do meio ambiente; K. Silva (2004) analisa as práticas da ONU na formação do Estado- nação no Timor-Leste; e, ainda no Timor-Leste, Simião (2005) focaliza a cons trução da categoria “violência domestika” no contexto dos valores modernos. Contato com a alteridade Se a alteridade radical gerou estudos sobre grupos indígenas, as análises que foca lizam a relação da sociedade nacional com grupos indígenas constituem o segundo tipo, que denomino de “contato com a alteridade”. Hoje, uma literatura considerável é herdeira direta das preocupações indigenistas que, por muito tempo, foram geralmente explicitadas somente em artigos publicados à parte da obra principal dos etnólogos (por exemplo, Baldus, 1939; Schaden, 1955b; cf. Peirano, 1981, Capítulo 4). A transformação dessas preocupações em tópicos legi timamente acadêmicos se deu nas décadas de 1950 e 1960: Darcy Ribeiro (1957; 1962) centrou o tema no indigenismo, que, mais tarde, recebeu o polimento teó rico de Roberto Cardoso de Oliveira com a noção de “fricção interétnica”. Considerada por muitos uma inovação teórica da antropologia feita no Brasil, essa concepção apareceu como bricolagem de preocupações indigenistas e inspiração sociológica, revelando “uma situação na qual dois grupos são diale- ticamente unidos por meio de seus interesses opostos”.23 Esse conceito foi pro posto em um contexto no qual teorias de contato, tanto britânicas (Malinowski) quanto norte-americanas (Redfield, Linton e Herskovitz), se haviam provado inadequadas. Roberto Cardoso substituiu-as pelo somatório singular que com binou a preocupação indigenista de Darcy Ribeiro, a sociologia de Florestan Fernandes e os trabalhos de Balandier- tornando-se um dos casos típicos de des cendência intelectual a somar inspiração “local” com empréstimos “externos”.24 Em termos de reprodução acadêmica, esses estudos tiveram longa duração e foram centrais na consolidação de vários programas de mestrado e doutorado.25 No entanto, lembro que, quando a noção de fricção interétnica foi proposta, uma cena peculiar se desenvolvia: dividindo o mesmo espaço institucional e, mais importante, freqüentemente envolvendo os mesmos pesquisadores (Laraia ôcD aM atta, 1967; DaM atta, 1976a; 1976b; M elatti, 1967), muitos estudos foram realizados nos quais, de um lado, se examinavam os sistemas sociais indígenas (cf. o Projeto Harvard-Central Brazil, já mencionado) e, de outro, se analisava o contato interétnico. Para essa primeira geração de antropó A alteridade em contexto logos formados no Museu Nacional, o estudo do contato interétnico não foi, portanto, exclusivista.26 Nos anos 1980, os estudos sobre o contato tiveram um novo impulso. Oliveira Filho (1987; 1988) expandiu as preocupações interétnicas, passando a incluir dimensões históricas. Um conjunto de pesquisas se seguiu sobre políticas indigenistas, a demarcaçãode terras indígenas, o papel dos militares nas fron teiras, a idéia de territoria lização e o processo de mão dupla dela decorrente, o exame dos “índios misturados” do Nordeste e os direitos dos índios (Oliveira Filho, 1998; 1999a; 1999b). M ais recentemente, Souza Lima (1995; 2002a; 2002b) investiga o indigenismo como um conjunto de ideais relativos à inserção de povos indígenas em sociedades pertencentes a Estados nacionais. Em parti cular, Souza Lima & Barroso-Hoffman (2002) focalizam a associação entre a antropologia e o Estado em relação à política indígena, confrontando o paradoxo de que políticas sociais freqüentemente criam e mantêm desigualdades sociais. Junto a essas frentes de investigação, ver Baines (1991) para a relação entre grupos indígenas e a Funai; para a legislação indígena e as condições dos índios sul-americanos, ver Carneiro da Cunha (1992; 1993), S. Santos (1982; 1989). Depois de uma trajetória no terreno da etnologia clássica (Ramos, 1990), ver Ramos (1995) para uma avaliação da etnografia Yanomami em um contexto de crise social e Ramos (1998) para um estudo abrangente sobre o lugar do indige nismo na ideologia nacional. Aqui, faço uma pausa para mencionar, sem, no entanto, elaborar, o estudo antropológico do campesinato - tão relevante que mereceria trabalho à parte. Indico apenas que, durante os anos 1970, a preocupação com o contato avançou sobre o tema das fronteiras de expansão, tornando tópicos antropológicos legí timos aqueles relacionados ao colonialismo interno, camponeses e desenvolvi mento do capitalismo (Otávio Velho, 1972; 1976). Ao mesmo tempo, estudos sobre camponeses adquiriram status temático independente, na medida em que tanto antropólogos quando sociólogos se dedicaram a eles.27 Uma vez que a alte ridade deslizou territorialmente, ela fechou o círculo e alcançou, de volta, as peri ferias das grandes cidades (Leite Lopes, 1976). Alteridade próxima Desde os anos 1970, antropólogos no Brasil fazem pesquisa nas grandes cida des. Como a socialização acadêmica ocorre nos cursos de ciências sociais, ao longo das últimas décadas a antropologia tornou-se contraponto à sociologia. No desenrolar do autoritarismo político dos anos 1960, a disciplina era vista por muitos como uma alternativa aos desafios (marxistas) vindos da sociologia, em A teoria vivida um diálogo silencioso que persiste desde então. A atração ora se dá por seus aspectos qualitativos, ora pelo desafio de compreender dimensões do ethos nacional. Registre-se, portanto, a diferença marcante da antropologia que se faz nos Estados Unidos. Curiosamente, lá, de onde vem a maioria das influências contemporâneas, somente na década de 1990 se tornou apropriado estudar fenômenos próximos aos pesquisadores.28 No estudo da alteridade próxima, a opção teórica tem sido a via predileta para alcançar o objeto de estudo. No Brasil, teoria não é apenas abordagem, mas afir mação política também. Assim, por exemplo, uma combinação do interacionismo simbólico da Escola de Sociologia de Chicago com a antropologia social britânica dos anos 1960 abriu para Gilberto Velho (1975; 1981; 1986; 1994) a possibilidade de pesquisar temas urbanos sensíveis. Esses incluíram estilos de vida da classe média, hábitos culturais do psiquismo, consumo de drogas e violência.29 Nesse contexto, deu-se a primeira pesquisa de campo no país vista como plenamente “urbana” nos termos da antropologia atual, e teve como exemplo o estudo de um edifício no bairro de Copacabana, o então conhecido “Barata Ribeiro 200” (Gilberto Velho, 1972). Essa linha se expandiu para, mais tarde, incluir setores populares, velhice, gênero, prostituição, parentesco e família, música, política. O objetivo dominante do projeto tem sido desvendar os valores urbanos; nesse sen tido, as pesquisas não apenas situam os fenômenos na cidade, mas procuram ana lisar, na trilha deixada por Simmel, as condições de sociabilidade nas metrópoles. A produção dessa linha é numerosa e de grande amplitude.30 Roberto DaMatta (1973a; 1980) também encontrou no estruturalismo a via legítima para dar início à sua pesquisa sobre o carnaval; a horizontalidade conferida a cada sociedade por essa abordagem teórica permitiu fazer, sem trau mas, a ponte entre o estudo de sociedades indígenas e a sociedade nacional. Mais tarde, a pesquisa ampliou-se para um exame abrangente do ethos nacional - tendo naturalmente como predecessor o trabalho monumental de Gilberto Freyre. Desde os anos 1980, o autor privilegia temas nacionais, depois de haver participado dos dois grandes projetos indígenas que marcaram a década de 1960 - tanto o Harvard-Central Brazil quanto o vinculado ao estudo da fricção interét- nica. DaMatta (1973a) é o ponto de transição, reunindo uma análise canônica de um mito apinayé, um conto de Edgar Allan Poe e o primeiro exame sobre o caráter de com munitas do Carnaval - que, mais tarde, seria expandido nos livros conhecidos das décadas de 1980 e 1990 (DaMatta, 1984; 1985; 1991). Ver, tam bém, DaMatta &H ess (1995).31 Noto que, nos casos previamente citados, a propriedade e a relevância de se desenvolver uma antropologia no meio urbano nunca foram seriamente ques- A alteridade em contexto tionadas. Depois de uma rápida discussão sobre a natureza da pesquisa de campo em geral, que incluiu a disposição do etnólogo para sofrer de “an thropologica l blues", e o tema da familiaridade, tanto perto quanto distante de casa (DaMatta, 1973b; 1981; G. Velho 1978), a questão foi resolvida antes dos anos 1980. Ver G. Velho & Kuschnir (2003) para reflexões recentes sobre o trabalho antropo lógico em pesquisas urbanas. No período que tem início na década de 1960, outros tópicos haviam emer gido, primeiro relacionados à integração social de populações e, mais tarde, a direitos de minorias. Muitas vezes, esses temas combinavam sociologia e antro pologia, reafirmando e dando validade histórica a autores como Cândido (1958), que nunca aceitou distinguir, de forma radical, as ciências sociais umas das outras. Imigração, relações raciais, gênero, messianismo, cultos afro-brasi- leiros, crime, cidadania são alguns dos tópicos dessa série de investigações.32 Festas urbanas e rurais foram tema de pesquisa desde o início das ciências sociais no Brasil (cf. o clássico Cândido, 1964a), porém vêm adquirindo mais vitalidade recentemente, quiçá na trilha das análises sobre carnaval. Ver M agnani (1984), Cavalcanti (1994), M ello e Souza (1994), J. Silva (2001), Chaves (2003). Diretamente focalizados na política como domínio nativo são os vários estudos que resultam do projeto “Antropologia da Política” (NuAP 1998) como, por exemplo, Teixeira (1998), Bezerra (1999), Chaves (2000), Borges (2004), Comerford (2004), Barreira (1998), Heredia et alii (2002), Kuschnir (1999).33 Alteridade mínima Confirmando que as ciências sociais no Brasil têm um profundo débito com Durkheim - que propôs que outras formas de civilização deveriam ser buscadas para explicar o que está próximo a nós - , a partir dos anos 1980, antropólogos desenvolveram uma série de estudos sobre as ciências sociais no país, grande parte com o propósito mais amplo de compreender a ciência como manifesta ção da modernidade. Tópicos de estudo variam de biografias de cientistas sociais brasileiros, memórias pessoais a clássicos da teoria sociológica, como, por exem plo, Castro Faria (1993; 1998; 2002). Ver Corrêa (1982; 1987; 2003), para uma historiografia da disciplina no país; M iceli (1999), para um projeto comparativo entre as ciências sociais. Para os clássicos das ciências sociais, ver, por exemplo, R. Cardoso de Oliveira (1991) e Goldman (1994) para Lévy-Bruhl; Grynszpan (1999), para Mosca e Pareto. Ver Neiburg (1997), para a antropologia na Argentina. Sobre autores no Brasil, ver Peixoto (1998; 2000), respectivamente, para a carreira de Lévi-Strauss e para uma comparação entre Roger Bastide e A teoria vivida Gilberto Freyre; Pontes(1998), para um estudo sobre o grupo paulista Clima; Castro Santos (2003), para uma comparação entre a obra de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Pontes et alii (2004) apresenta depoimentos recen tes sobre experiências na antropologia. A publicação de diários etnográficos vem se afirmando; ver, por exemplo, D. Ribeiro (1996), Castro Faria (2001), R. Cardoso de Oliveira (2002). O interesse que os cientistas sociais manifestam em assuntos educacionais é discutido em Bomeny (2001a); especialmente para a trajetória de Darcy Ribeiro, ver Bomeny (2001b). Em Travassos (1997), encontramos uma comparação entre os dilemas da modernização enfrentados por Mário de Andrade no Brasil, e Béla Bartok na Hungria, e para uma investigação entre cientistas e a questão racial no Brasil, ver Schwarcz (1996; 2001). Para uma bibliografia sobre a antropologia no país até os anos 1980, ver Melatti (1984), e para uma apreciação do campo da dis ciplina nos dias de hoje, verTrajano Filho &. Ribeiro (2004). Um programa de pesquisa com o objetivo de estudar diferentes estilos de antropologia foi inaugurado em Cardoso de Oliveira & Ruben (1995), com a proposta de focalizar experiências nacionais diversas, incluindo Austrália, Argentina, Canadá e Catalunha. Um novo projeto sobre a relação entre perspec tivas antropológicas e processos de construção do Estado está desenvolvido em L’Estoile et alii (2002). No final dos anos 1970, iniciei um projeto que tinha como objetivo analisar a própria disciplina de uma perspectiva antropológica. A partir de uma proposta de Dumont (1978), de que a antropologia se define por uma hierarquia de valo res em que o universalismo engloba o holismo, questionei o tipo de antropolo gia que se fazia no Brasil, tendo como casos de controle a França e a Alemanha. A relação entre ciência social e ideologia de na tion -bu ild in g foi um ponto cen tral da pesquisa (Peirano, 1981). Esse estudo teve prosseguimento com a obser vação do caso indiano, e resultou na proposta de uma “antropologia no plural” (Peirano, 1992a). A triangulação Brasil, índia e Estados Unidos teve continui dade em Peirano (1991; 1998; 1999). O exame da relação entre ciência social e ideologia nacional foi refinado em Vilhena (1997) que, comparando folcloristas e sociólogos vis-à-vis a ideo logia dominante entre 1947 e 1964 no país, desvenda o lugar dos intelectuais ligados a valores regionais e a disputa dos folcloristas para sobreviver em um meio no qual a sociologia se tornava hegemônica. A psicanálise tem se mos trado um campo de saber fértil para a antropologia. Uma apropriação desse campo vem sendo feita por uma linha de pesquisa sólida (ver Duarte, 1989; 1990; 1996; 2000). Finalmente, várias reflexões sobre o ensino da antropologia A alteridade em contexto são encontradas em Bomeny et alii (1991); Pessanha & Villas Boas (1995); Peirano (1995c). Em suma, nos estudos em que a alteridade é mínima, isto é, está localizada na própria atividade intelectual dos cientistas sociais, nota-se um traço mar cante: a maioria deles examina temas abrangentes relacionados a tradições inte lectuais ocidentais, mas, publicados em português, têm uma audiência limitada. Surge, então, a questão crucial sobre o público desses trabalhos: abrangentes e exaustivos, fazem eles sentido se a audiência externa é restrita? Ou, por que se dialoga com as fontes de scholarship se os debates estão afastados pela própria lín gua de enunciação? Retornamos, assim, aos Tupinambá de Florestan Fernan des, quando o rigor teórico serviu mais para legitimar o autor como cientista social no Brasil do que para favorecer um efetivo diálogo com especialistas da área. Aqui, a velha questão permanece: o vínculo com o mundo intelectual mais amplo se dá apenas por efeito ilocucionário e a “alteridade mínima” esconde uma proposta, não realizada, de alteridade máxima, porque teórica. Conclusão A institucionalização das ciências sociais como parte do processo de na tion - bu ild in g é fenômeno conhecido, tanto quanto o paradoxo da existência de uma ciência social crítica sobrevivendo aos interesses das elites que a criaram. Nesses momentos, a nova ciência social não é especializada porque o projeto de constru ção nacional é ideologicamente mais abrangente que as disciplinas acadêmicas. Em outras palavras, a alteridade raramente é descompromissada e os aspectos “interessados”, no sentido weberiano, são muitas vezes explícitos. A antropolo gia e a sociologia separam-se, em um processo ao mesmo tempo político, insti tucional e conceituai, no qual e quando se favorecem especializações - o que geralmente acontece quando o desenrolar da construção nacional avança histo ricamente. E esse quadro que abriga o diálogo triangular composto, de um lado, com colegas antropólogos e sociólogos da mesma comunidade nacional; de outro, com as tradições metropolitanas de conhecimento (passadas e presentes) e, de outro ainda, com os sujeitos da pesquisa. No Brasil dos anos 1930, a ciência social foi adotada para prover uma abor dagem científica ao projeto de uma nova nação. Acreditava-se então que no devido tempo a ciência social iria substituir o ensaio socioliterário que havia ocu pado aqui, “mais que a filosofia ou as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito”.34 Assim, dos anos 1930 aos 1950, por sociologia entendia-se o A teoria vivida leque das ciências sociais que hoje concebemos como independentes, mas ges- tava-se uma sociologia fe i ta -n o -B ra s i l - que, na verdade, tornou-se hegemônica nas décadas seguintes. Paralelamente, estudos etnológicos de grupos indígenas representavam o modelo canônico para a antropologia, que logo passa a se apro priar de temas vistos como sociológicos - só que agora sob o olhar da d iferen ça , social e/ou cultural. De qualquer forma, sociológicos ou antropológicos, os temas empíricos eram encontrados dentro das fronteiras nacionais; se a dimen são política da ciência social estava presente, igualmente era inquestionável o desafio de refinamento teórico (ver Fernandes, 1958). Nesse contexto, consideramo-nos interlocutores legítimos de autores reco nhecidos da tradição ocidental, em um processo no qual o isolamento do portu guês tem afinidade com o papel reservado ao cientista social no país, direcionado às questões políticas nacionais. Estamos sempre, mais ou menos confortavel mente, em casa. Assim se justificam, de um lado, os limites estratégicos que, como vimos, informam a escolha da alteridade; de outro, o fato paradoxal de que, quando procuramos diferenças, muitas vezes acabamos por encontrar uma suposta singularidade (que é “brasileira”). É preciso reconhecer, no entanto, um aspecto sociológico positivo: esse processo complexo de lealdades intelectuais e políticas, o labirinto de caminhos dentro do universo possível, assim como o quadro variado de interlocutores (presentes e ausentes) ao longo do tempo, con tribuíram para a consolidação de uma comunidade acadêmica efetiva. Com essa nota positiva, encerro procurando resumir alguns pontos. • Em termos de exotismo. A diferença, quer social ou cultural, mais que o exo tismo, chama a atenção dos antropólogos quando estes procuram a alteridade no Brasil. Esta característica talvez explique por que, em crise em lugares onde o exotismo marcou a antropologia, aqui os praticantes da disciplina partilham um horizonte otimista. • Em termos políticos. Presente sempre que uma ciência social se desenvolve, a dimensão política é direcionada para um tipo específico de ideário de constru ção nacional no Brasil, no qual diferenças devem ser respeitadas e uma singula ridade nacional esclarecida. • Em termos teóricos. Parte do Ocidente, mas não falando uma língua interna cional, a dimensão teórica aqui assume um papel crítico como o caminho nobre para a modernidade. A dimensão política da teoria é um aspecto familiar e, nesse contexto, com freqüência, objetos de estudo decorrem
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