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Salma - Foucault, mestre do cuidado

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l.
Capítulo 11
DR PROMESSR À
EMBRIAGUEZ: A PROPÓSITO
DR LEITURA FOUCAULTIANA 00
RLCIBíRDE5 DE PLATROl
1. o texto de Platão no curso de Foucault
Comecemos por situar o diálogo de Platão Alcibíades no curso
de Foucault "A hermenêutica do sujeito". Na primeira hora da
primeira aula (6 de janeiro de 1982), Foucault estabelece uma
aproximação inicial de Platão, e o texto então abordado é a
Apologia de Sócrates. Mas no total das 24 horas (em doze aulas)
que compõem o curso é à leitura do Alcibíades que estão atri-
buídos, explicitamente, o lugar e o privilégio de um ponto de .
partida. Introdução, ponto de referência ou de demarcação,
em todo caso um marco", é assim que Foucault posiciona este
texto que, lido e detidamente analisado nas primeiras aulas,
reaparecerá ao longo de todo o curso, como um fio que o
1. Conferência de encerramento do Colóquio Internacional Michel
Foucault - Vinte Anos Depois, Campinas, Unicamp, 2004. Publicado em
Margareth RAGo,Alfredo VEIGA-NETO(org.), Figuras de Foucault, Belo Horizonte,
Autêntica, '2008, p. 239-252.
2. Cf. HS, p. 65, 163, 164, 197, 400, 421, 436, 443-444; ed. br., p. 85,
209,210,253,507,533,552,560-561.
123
percorre e alinhava. Por isto mesmo, para quem acompanha
o desenvolvimento do curso, durante o qual uma pluralidade
de pensadores é trazida ao cenário (Epicteto, Epicuro, Marco
Aurélio, Musonius Rufus, Filodemo, Fílon de Alexandria,
Plutarco, Sêneca, entre tantos outros), não surpreende que na
última aula Foucault proponha: "[...] gostaria de voltar breve-
mente ao texto que nos serviu de referência durante todo este
ano, a saber, o Alcibíades de Platão'".
A pergunta que nos vem à mente, Foucault mesmo a formu-
la: "por que tomar o diálogo do Alcibíades, a que, ordinariamente,
os comentadores não atribuem uma importância tão grande na
obra de Platão? Por que tomá-lo como marco não apenas para
falar de Platão como ainda para colocar em perspectiva, afinal,
todo um plano da filosofia antigaê'".
A resposta que ele nos dá diz respeito à situação do Alcibíades
em relação à obra de Platão em geral e, nela, ao tema do cuidado
de si em particular.
Não cabe aqui abordar os muitos e controversos aspectos
concernentes à situação do diálogo Alcibíades no contexto
da obra platônica, mas dois deles merecem ao menos ser
mencionados.
Primeiro, a posição que, a partir do século II, a tradição
neoplatônica atribui ao Alcibíades: "à frente das obras de Platão",
"lugar primeiro, inicial", "espécie de portal da filosofia", "in-
trodução, primeira e solene na filosofia", "Alcibíades iniciador",
eis o que Foucault evoca (remetendo principalmente a Prodo
e Olirnpiodoro)".
3. HS, p. 436; ed. br., p. 532 (aula de 24 de março, primeira hora).
4. HS, p. 163; ed. br., p. 209-210.
5. HS, p. 154-168; p. 182; ed. br. p. 209-214, 233. J.-F. Pradeau assim
descreve o que ele chama de "privilégio escolar incomparável": "Durante onze
séculos o estudo da filosofia platônica recebeu como introdução a leitura do
Alcibíades. Aprendia-se Platão começando pelo Alcibíades" (cf J.-F. PRADEAU,
24 I Foucault. mestre do cuidado
l
o outro aspecto diz respeito a complexas questões históricas
acerca de sua datação, de seu lugar na classificação nas obras de
Platão e de sua autenticidade", Estas questões são mencionadas
por Foucault durante suas lições. Muitas vezes apenas as no-
meia" ("diálogo de Platão cuja data envolve tantas incertezas'").
Aborda-as mais longamente em uma aula, a segunda hora da
aula de 13 de janeiro". Ratifica o reconhecimento de sua auten-
ticidade (posta em dúvida no século XIX por Scheleirrnacher'")
e, ao mesmo tempo, considera-o "cronologicamente estranho",
pois, apresentando características dos diferentes períodos dos
escritos platônicos, é um texto que "parece atravessar, de certo
modo, toda a obra de Platão"!',
"Introduction" a Platon, Alcibiade. Traduction inédite par Chantal Marboeuf
e J.-F,Pradeau, Introducion, notes, bibliographie et index par ]ean-François
Pradeau, Paris,Flammarion, '2000, P: 22), Marie-Laurence Desclos também
afirma que para os antigos o Alcibíades era considerado "o diálogo introdutó-
rio à filosofia platônica" (cf Marie-Laurence DEscLOs, "lntroduction" a Platon,
Alcibiade. Texte établi et traduit par Maurice Croiset, revu par Marie-Laurence
Desclos, Introduction et notes de Marie-Laurence Desclos, Paris, Les Belles
Lettres, 2002, p, XXVI),
6, Apenas para indicar algumas referências: PRADEAU(op. cit.) não o
considera um diálogo socrático ou de juventude, localizando-o no mesmo
grupo constituído por Eutidemo, Mênon e Górgias, contemporâneo deste
último e antes de Banquete, Fédon e República (considerados diálogos da
maturidade); portanto, no grupo que Marie-Laurence Desclos denomina
"grupo intermediário", após os "diálogos socráticos" ou da juventude, antes
dos "diálogos da maturidade" e dos "diálogos da velhice" (M,-L. Desci.os,
op, cit., p, XXI-XXII),
7, Por exemplo, HS, p, 33, 36, 37, 43-46,400; ed. br., p, 43, 45-46, 47,
55,58,507,
8, HS, p, 400; ed. br. p, 507.
9. HS, p, 71-73; ed. br, p, 91-93,
10, CE. HS, p, 77, nota 22; ed. br., p, 100, CE. também PRADEAU,op, cit.,
p, 24-29, Ver o texto de F. D, E, SCHELEIRMACHER,recentemente traduzido
para o português: Introdução aos diálogos de Platão, trad. Georg Otte, rev. técn.
e notas Fernando Rey Puente, Belo Horizonte Ed, UFMG, 2002,
11. HS, p, 73; ed, br., p. 93,
Da promessa à embriaguez I 25
De modo geral, o que aqui nos importa realçar é que esta
"situação" do Alcibíades no contexto das obras de Platão explica,
em certa medida, o privilégio de ponto de partida que Foucault
lhe confere no contexto de seu curso. Em síntese, diz ele: "[00']
o que me interessa e acho muito fascinante neste diálogo é
que, no fundo, nele vemos o traçado de todo um percurso da
filosofia de Platão, desde a interrogação socrática até o que
aparece como elementos muito próximos do último PIa tão ou
mesmo do neoplaronismo=",
Mas se, por um lado, a escolha de Foucault encontra respal-
do na relação do Alcibíades com a trajetória de toda a filosofia
de Platão até sua posteridade no neoplatonismo, por outro,
no interior desta trajetória, é o tema do cuidado de si (e, com
ele, o do conhecimento de si) que, de modo particular, confirma
a escolha. Segundo Foucault, entre os textos de Platão este diá-
logo apresenta "a primeira grande teoria do cuidado de si"!',
"a única teoria global do cuidado de si", sua "primeira grande
emergência teórica'?", sua "teoria completa?", "sua primeira
formação histórica e sisternática+". Em síntese, eis o que ele
escreve: "Parece-me que Platão ou o momento platônico, e
particularmente o texto do Alcibíades, traz o testemunho de um
destes momentos em que é feita a reorganização progressiva de
toda a velha tecnologia do eu'"? Além disso, é a partir deste
diálogo que se compreendem os posteriores desdobramentos
históricos da noção de cuidado de si, isto é, "todo um conjunto de
deslocamentos, de reativações, de organização e reorganização
destas técnicas naquilo que viria a ser a grande cultura de si na
12. HS, p. 73; ed. br., p. 93.
13. HS, p. 32; 33; ed. br., p. 41; 42.
14. HS, p. 46; ed. br., p. 58.
15. HS, p. 65; ed. br., p. 84.
16. HS, p. 237; ed. br., p. 301.
17. HS, p. 50; ed. br., p. 64.
26 I Foucault. mestre do cuidado
época helenística e rornana'i'", Em pouc~s palavras, o Alcibíades
abre "perspectivas históricas"!", das quais pode ser considerado
como que "marco histórico e chave de intehgibilidade'?".
2. Perfil do personagem-título e resumo do diálogo
Alcibíades (450-404) é um personagem histórico que per-
tence a uma geração anterior à de Platão (428/427-347/346).
De família aristocrata, perdeu precocemente os pais e teve por
tutor ninguém menos que Péricles. Para um delineamento de
seu perfil, reproduzimos trechos de um conciso retrato feito
por Pradeau: "Alcibíades é um dos personagens mais famosos
da vida política ateniense do século V". Sua celebridade deveu-
se "tanto ao seu papel político, incluindo traições e fracassos
pelos quais foi culpabilizado, quantoà sua personalidade bem
incomum: elegante e debochado, de uma beleza excepcional,
empreendedor e excessivo, ele é o jovem ambicioso e desmedido
que acompanha a queda do império areniense?'. Ou então a
18. HS, p. 49; ed. br., p. 63. Reconsriruamos outras passagens. A partir
dele é que se consrrói a hisrória do cuidado de si, "de suas peripécias, de sua
elaboração filosófica no pensamento grego, helenísrico e romano" (p. 7:); ed.
br., p. 93). No Alcibíades reconhece-se "um desses episódios essenciais" na
hisrória do cuidado de si, com "efeitos consideráveis durante a civilização
grega helenísrica e romana" (p. 66; ed. br., p. 85). Nele encontramos aquela
característica de Piarão que é "uma sobreposição dinâmica", "um apelo
recíproco" entre cuidado de si e conhecimento de si, que "será reencontrado em
roda a hisrória do pensamento grego, helenístico c romano, evidentemente
com equilíbrios diferentes, diferentes relações, rônicas diferentemente atri-
buídas a um ou a outro, distribuição dos momentos entre conhecimento
de si e cuidado de si rambém diferentes nos diversos tipos de pensamentos"
(p. 67-68; ed. br., p. 87).
19. HS, p. 76; ed. br., p. 98.
20. HS, p. 84; ed. br., p. 107.
21. J.-F. PRADEAU, op. cir., p. 15.
Da promessa à embriaguez I 27
descrição de Marie-Laurence Desclos (reproduzindo algumas
expressões de biógrafos de Alcibíades, como Plutarco e Isócrates):
"Paralelamente a seus sucessos políticos, suas vitórias nos
Jogos, também seu 'fausto insolente', 'seus dotes ao Estado',
'sua magnanimidade sem igual para com a cidade' dele fazem
um personagem que causa fascínio ou indignação"22. Cortejado
pelos homens adultos atenienses, a quem quase sempre des-
prezava, Alcibíades "não é simplesmente um dos privilegiados
jovens atenienses que Sócrates havia se dedicado a formar: é o
mais querido entre eles, aquele que Sócrates arnava'<',
O personagem aparece no cenário de três diálogos de Platão.
No Protágoras, ele tem a idade aproximada de 15 anos e a cena
se passa por volta do ano 435 a.c. No Banquete tem mais ou
menos 35 anos e a cena ocorre por volta do ano 416 a.c. No
diálogo que leva seu nome, a cena se passa perto do ano 432
a.c., às vésperas do início da Guerra do Peloponeso (431-404).
Com idade de 18 a 20 anos, o jovem Alcibíades está no final
da adolescência, limiar da idade adulta. Idade crítica, escreve
Foucault, "quando se sai das mãos dos pedagogos e se está
para entrar no período da atividade política"!", quando o jovem
deixa de ser "objeto de desejo erótico, momento em que deve
ingressar na vida e exercer seu poder, um poder ativo+". É aí
que se localiza a data dramática do diálogo, isto é, a data em
que se passa a cena relatada por Platão. Por um lado, Alcibíades
já não é assediado por seus cortejadores e, por outro, cultiva
ambições políticas. Só então é que Sócrates, pela primeira vez,
lhe dirige a palavra.
22. M.-L. DEscLOs, op. cir., p. IX.
23. ].-F. PRADEAU,op. cir., p. 20.
24. HS, p. 38; ver também p. 34; 45; ed. br., p. 49; ver também
p. 43; 58.
25. HS, p. 84; ed. br., p. 107.
28 I Foucault. mestre do cuidado
Façamos um breve resumo do diálogo, seguindo de perto
as orientações das aulas de Poucaulr". O diálogo é por ele or-
ganizado em duas metades, das quais a segunda é desdobrada
em duas.
A primeira metade (trabalhada na segunda hora da aula
de 6 de janeiro) começa com a evidenciaçao dos privilégios do
jovem Alcibíades - bem-nascido, belo, rico, ele tem em mente
transformar seus privilégios de status em competência política,
em governo dos outros. Sócrates faz aparecer então as deficiên-
cias de Alcibíades, comparando-o a seus rivais, os espartanos e os
persas, de quem a riqueza é maior e a educação mais consistente.
Tem lugar então a primeira referência à inscrição do templo de
Delfos, o famoso "conhece-te a ti mesmo", que neste contexto
inicial não passa de um "conselho de prudência'f", um preceito,
não ainda um conceito: "Vamos, meu caro amigo, creia-me, creia
nas palavras inscritas em Delfos: 'Conhece-te a ti mesmo' [00.]"28.
Mais grave porém que a inferioridade em riqueza e educação é
que, para superá-Ia, Alcibíades não dispõe de uma certa "téhbne",
26. No total das 24 horas (em doze aulas) do curso, a análise mais
detida do Alcibíades é realizada em quatro horas: na segunda hora da aula
de 6 de janeiro; na primeira e na segunda horas da aula de 13 de janeiro; na
primeira hora da aula de 3 de fevereiro. Porém, como já foi dito, a remissão
ao diálogo atravessa todo o curso. Esta recorrência dá lugar, algumas vezes,
a densas sínteses do texto todo, entre as quais há duas, nas duas aulas finais,
que a nosso ver são especialmente esclarecedoras: p. 400-401 (primeira hora
da aula de 17 de março) e p. 436-437 (primeira hora da aula de 24 de março);
ed. br., p. 507-508, 552-554.
27. HS, p. 36, 53, 66; ed. br., p. 46, 67, 85.
28. PLATÃO,Alcibíades 124b. Para a reprodução de passagens, faremos
uso de uma ou outra das seguintes traduções francesas: PLATON,Oeuvres
completes, trad. et notes par Léon Robin avec Ia collaborarion de M.-j. Moreau,
Paris, Bibliotheque de Ia Pléiade, p. 233; Ibid., trad. Chantal Marboeuf et
j.-F. Pradeau, Paris, Flammarion, 22000, p. 145; Ibid., trad. Maurice Croiser,
introd, et notes de Marie-Laurence Desclos, Paris, Les Belles Lertres, 2002,
p. 77-79; Ibid., introd., rrad., notes et cornrnentaire Jacques Cazeaux, Paris,
Classiques de Ia Philosophie, 1998. _
Da promessa à embriaguez I 29
não tem um certo "saber'?". Instigado por Sócrates a definir em
que consiste uma cidade bem governada, Alcibíades acaba por
defini-Ia como aquela em que há concórdia entre os cidadãos,
mas, reinterrogado, sequer sabe ele o que é a concórdia. Mais
grave ainda: ele não sabe que não sabe. Constatada esta "vil" ou
"inglória" situação, esta "vergonhosa ignorância", a "ignorância
da ignorância"?'; é declarada a incontornável necessidade de que
Alcibíades cuide de si mesmo. Eis a passagem: "Não te preocupes.
Se isto te tivesse ocorrido aos cinquenta anos, ser-te-ia difícil
remediar tomando cuidado de ti mesmo; estás, ao contrário,
justamente na idade em que se deve aperceber-se disto"!',
As práticas do cuidado de si são, conforme insiste Foucault,
muito anteriores a Platão ou a Sócrates: "que a verdade não
possa ser atingida sem certa prática ou certo conjunto de
práticas totalmente especificadas que transformam o modo de
ser do sujeito, modificam-no tal como está posto, qualificam-
no transfigurando-o é um tema pré-filosófico que deu lugar
a numerosos procedimentos mais ou menos ritualizados":",
Agora, porém, o cuidado de si é incorporado ao âmbito da refle-
xão filosófica. E neste contexto vincula-se ao exercício da ação
política (governar-se para bem governar os outros), à superação
das deficiências da ação educativa e amorosa, à necessidade de
vencer a ignorância (duplamente, em relação ao que não se sabe
e à ignorância de que se ignoraj".
29. HS, p. 36-37; ver também, p. 429; ed. br., 46-47; ver também p. 543.
30. PLATÃO,Alcibíades 127d. A tradução de L. Robin (Pleiade) traz "vil
situação" (p. 238); a de Chantal Marboeuf e ] .-F. Pradeau traz "o mais vergo-
nhoso estado" (p. 160); a de M. Croiset traz "vergonhosa ignorância" (p. 95);
a de]. Cazeaux traz "uma situação inglória" (p. 97).
31. PLATÃO,Alcibíades 127e; rrad. L. Robin, p. 238; trad. Marboeuf e
Pradeau, p. 160; rrad. Croiset, p. 95; rrad. Cazeaux, p. 97.
32. HS, p. 46; ed. br., p. 59.
33. Cf. HS, p. 43-45, retomado às p. 73-75; ed. br., p. 55-57, retomado
às p. 94-96.
30 I Foucault. mestre do cuidado
Começa então a outra metade do texto, analisado em seu
desdobramento em duas questões: primeiro, o que é o eu de
que se deve cuidar (assunto da primeira hora da aula de 13
de janeiro) e, segundo, em que consiste cuidar-se (assunto da
segunda hora da aula de 13 de janeiro).
O tratamento da primeira questão (o que é o eu?) faz apa-
recer, pela segunda vez, o preceito délfico, agora como uma
referência de natureza mais "metodológica": o que é "este
elemento idêntico" porque é o mesmo enquanto"sujeito" e
enquanto "objeto" do cuidado?". A alma, esta é a resposta, não
a alma como "substância", mas como "sujeito de ações'?'. Eis
o que diz o texto: "[ ...] é da alma que é preciso cuidar, é a ela
que devemos dirigir nosso 01har"36.
Segue-se a segunda questão (o que é cuidar-se?). Cuidar de
si é conhecer a si mesmo, esta a resposta. Na resposta, a terceira
referência ao preceito délfico, agora porém introduzido "em
todo o seu esplendor e em toda a sua plenitude?"; definitiva-
mente transformado de preceito de conduta em conceito filosófico.
Encontramos aqui aquele traço de "sobreposição" entre cuidadoe
conhecimento de si, espécie de origem bifurcada, que direcionará,
por assim dizer, o desenvolvimento posterior do pensamento
filosófico". Eis a passagem: "Mas, pelos deuses, este preceito tão
justo de Delfos, que evocávamos há pouco, estamos seguros de
34. HS, p. 51-52; ed. br., p. 66-67.
35. HS, p. 54-57; ed. br., p. 68-72.
36. PLATÃO,Alcibíades 132c; nado Robin, p. 245; trad. Marboeuf e pradeau,
p. 179; trad. Croiset, p. 113; nado Cazeaux, p. 109. Observe-se que o subtítulo
do diálogo, tardiamente acrescentado, é "da natureza humana" (cf. HS, p. 39;
ver também p. 42, nota 25, p. 166; ed. br., p. 50; ver também p. 54, nota 25,
p. 213). Eis o que]. F. PRADEAU(op. cit., p. 67) escreve: "O Alcibiades, ao con-
trário do que sugere o subtítulo que lhe deram seus editores alguns séculos
após sua redação, não é uma pesquisa sobre o homem" (ou "anrropológica").
37. HS, p. 66; ed. br., p. 85.
38. HS, p. 67; ed. br., p. 87. Ver também acima nota 18.
Da promessa à embriaguez I 31
tê-Io compreendidoj">, Pois bem, só teremos bem compreen-
dido o que é o conhecimento de si enquanto conhecimento da alma
se entendermos que só se verá a alma "dirigindo seu olhar para
um elemento que for da mesma natureza que ela [...]", "voltan-
do seu olhar, aplicando-o ao próprio princípio que constitui a
natureza da alma, isto é, o pensamento e o saber [...]". "Ora, o
que é este elemento? Pois bem, é o elemento divino."?" Numa
palavra, "é preciso olhar-se no elemento divino para reconhecer-
se: é preciso conhecer o divino para reconhecer a si mesmo?".
É esta a dinâmica: do cuidado de si ao conhecimento de si;
do conhecimento de si ao conhecimento do divino; do conhe-
cimento do divino à sabedoria. E assim, dotada de sabedoria, a
alma "saberá distinguir o bem e o mal, o verdadeiro e o falso.
Saberá conduzir-se como se deve, saberá governar a cidade", o
que significa, no limite, "saberá ocupar-se com a justiça":".
Então, no final do diálogo, Alcibíades promete e se compro-
mete. "Que promessa faz a Sócrates?" Ele promete aplicar-se à
justiça e compromete-se a ocupar-se com ela".
3. Destaques
a. R ética e a política. o erótico e o divino
O primeiro aspecto a realçar, o mais evidente, é a correlação
entre ética e política. Ambicionando participar da vida pública,
39. PLATÃO,Alcibíades 132c; trad. Robin, p. 245; trad. Maeboeuf e Pradeau,
p. 179-180; trad. Croiser, p. 115; trad. Cazeaux, p. 109.
40. HS, p. 68; ed. br., p. 88.
41. HS, p. 69; ver também p. 70-71,438-439; ed. br., p. 89; ver também
p. 90-91,555-556.
42. HS, p. 70; ed. br., p. 90.
43. HS, p. 70. Ver também p. 168-169; ed. br., p. 90; ver também
p. 215-216.
32 I Foucault. mestre do cuidado
A1cibíades é por Sócrates conduzido à imperativa necessidade
do cuidado de si, ou do governo de si próprio, condição primeira
_ de natureza eminentemente ética - rara bem governar os
outros. Como se exprime Pradeau, "na discussão do Alcibíades"
esrão reunidas "estas duas espécies de governo, o domínio de
si ético e o comando político"?".
Esta correlação, por sua vez, entre a ambição política e
sua condição ética é como que antecedida por outra que a
fundamenta: a relação entre o mestre e o discípulo, relação
que podemos denominar erótica, não necessariamente sexual,
mas antes erótico-pedagógica. Eis a frase inicial do diálogo:
"Tu sem dúvida te surpreendes, filho de Clínias, que após ter
sido o primeiro dos teus enamorados seja eu o único a não
me desligar de ti, enquanto os outros te abandonaram; e que,
no lugar de, como eles, ter te importunado com conversas, só
depois de tantos anos em que te amo eu te dirija a palavra":".
Sócrates, o que ama, é aquele que cuida de que Alcibíades cuide
de si a fim de poder bem cuidar da cidade. Posição análoga,
preservadas as diferenças, àquela que na Apologia Sócrates atri-
bui a si mesmo - mestre ou guia, cuja função é cuidar de que
os cidadãos cuidem de si. A tal ponto que se sua absolvição
ou seu indulto dependessem de abandonar o posto de mestre,
Sócrates preferiria morrer, "ainda que tenha de morrer muitas
vezes". E logo adiante: "Outra coisa não faço senão andar por aí
persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente
do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a
alma [...]"46. "Pois o cuidado de si", explicita Foucault, "é, com
efeito, algo que [...] tem sempre necessidade de passar pela
44. J-F. PRADEAU,op. cit., p. 9.
45. PLATÃO,Alcibíades, 103a; trad. Robin, p. 203; trad. Marboeuf e Pradeau,
p. 87; trad. Croiset, p. 3; trad. Cazeaux, p. 39.
46. PLATÃO,Apologia de Sôcrates 29d; 30a; trad. br. Jaime Bruna, in Sócrates,
São Paulo, Abril Cultural, p. 15.
Da promessa à embriaguez I 33
relação com um outro que é o mestre [...]. Porém, o que define
a posição do mestre é que ele cuida do cuidado que aquele que
ele guia pode ter de si mesmo [...]. O mestre é aquele que cuida
do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que
tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do
cuidado que o discípulo tem de si próprio":",
Entretanto, o laço entre ética e política e entre ética, política
e erótica consagra-se em sua aliança com o divino. Após declarar
um amor maior que o dos demais e a decisão de só tardiamente
dirigir a palavra a Alcibíades, eis o que diz Sócrates na segunda
frase do diálogo: "Ora, não foi um motivo humano que me
determinou, mas um certo impedimento dernoníaco=". É um
motivo análogo ao que Sócrates enuncia na Apologia: a "inspi-
ração que me vem de um deus" ou "da divindade't". Função
ou ordem a ser cumprida, o cuidado de si é para Sócrates missão
confiada pelos deuses. São os deuses que cuidam de que haja
quem cuide do cuidado de si. Por isto Sócrates pode afirmar:
"Ficai certos de uma coisa: se me condernardes por ser eu como
digo, causareis a vós próprios maior dano que a mim"so. Ou
ainda: "Outro igual não tereis facilmente, senhores", de modo
que sem ele, o aguilhão que desperta, "passareis o resto da vida
a dormir, salvo se o deus, cuidadoso de vós, vos enviar algum
outro":". Por isto mesmo, Sócrates se coloca como que "por
detrás do divino=", fazendo-se seu porta-voz. Reconstituamos
esta passagem do diálogo entre Sócrates e Alcibíades:
47. HS, p. 58; ed. br., p. 73-74.
48. PLATÃO,Alcibiades 103a; trad. Robin, p. 203; trad. Marboeuf e Pradeau,
p. 87; trad. Croiset, p. 3; trad. Cazeaux, p. 39.
49. PLATÃO,Apologia de Sócrates 31d; 40 a; ed. br., p. 17,26.
50. Ibid., 30c; ed. br., p. 16.
51. Ibid., 31a; ed. br., p. 16.
52. Cf.]. CAZEAUX,"Introduction" a Platon, Alcibiade, p. 24.
34 I Foucault. mestre do cuidado
[Sócrates]-- Meu tutor vale mais e é mais sábio que o teu,
Péricies.
[Alcibíades] - Quem é ele, Sócrates?
[Sócrates]- Um deus, Alcibíades, o mesmo que até o dia de hoje
não me deixou conversar contigo, e é nele que me fio para dizer
que só por mim, por mais ninguém, te virá a revelação".
Por isto também, já não é Sócrates quem fala diretamente, ele
diz o que diz o oráculo de Delfos". De modo análogo, é assim que
na sucessão dos discursos sobre Eros, no Banquete, Sócrates diz o que
sobre o amor lhe dissera a sacerdotisa Diotima de Mantineia.
É, pois, no plano do divino que se passa do cuidado de si
ao conhecimento de si. Conhecer-se a si mesmo, "tal é o presente
de uma erótica superior que Sócrates quer fazer"ss. Conhecer-
se é conhecer a alma e, na alma, o divino: ''[. ..] como o olho
se vê na pupila de um outro olho, é na alma do amante,ou
equivalentemente na divindade que melhor nos vernos=". Dito
de outro modo, cuidar de si é conhecer-se, entendendo-se o
conhecimento de si como uma espécie de exigência divina".
O conhecimento de si tem assim "um sentido profundamente
religioso, na medida em que preside a uma relação bem-sucedida
entre o humano e o divino", ainda que caiba a Sócrates "dar-lhe
também um sentido filosófico'l".
53. PLATÃO,Alcibíades 124c; rrad. Robin, p. 233; rrad. Marboeuf e Pradeau,
p. 146; trad. Croiset, p. 79; trad. Cazeaux, p. 88. Acrescentemos a referência
que Foucault faz à ideia de salvação: "Salvação de si e salvação dos outros.
O termo salvação é absolutamente tradicional. Com efeito, nós o encontra-
mos em Platão e precisamente associado ao problema do cuidado de si e
do cuidado dos outros. É preciso salvar-se, salvar-se para salvar os outros"
(HS, p. 174; ed. br., p. 222).
54.]. CAZEAUX,"Introductton" a Platon, Alcibiade, p. 25.
55. Ibid., p. 21.
56. Ibid., p. 26; destaque nosso.
57. Cf. ].-F. PRADEAU,op. cit., p. 33.
58. M.-L. DEscLOs, op. cit., p. XXX.
Da promessa à embriaguez I 35
Para cuidar de si, Alcibíades deverá conhecer a si mesmo;
para conhecer-se, há que conhecer o divino; conhecendo o divi-
no, conhecerá a sabedoria e, portanto, o que é a justiça; assim,
somente assim Alcibíades poderá ser o bom político capaz de
bem governar a cidade. Ou dito de outro modo: a formação do
político requer a ética do cuidado de si; o cuidado de si requer
a relação amorosa com o mestre; conduzindo o discípulo ao
reconhecimento da divindade, o mestre cuida de quem deve
cuidar de si.
Por isto mesmo, engana-se Alcibíades e não se revela um
bom discípulo quando, no final do diálogo, atribui a Sócrates
o que, se tivesse bem compreendido o mestre, atribuiria ao
deus": Leiamos uma parte do diálogo final entre nossos
personagens:
[Sócrates]- Sabes pois, qual o meio para escapar de teu estado
presente? [...]
[Alcibíades] - Sim, eu o sei.
[Sócrates] - Pois bem, e qual é este meio?
[Alcibíades] - Que eu me libertaria sob a condição de que tu
o queiras, Sócrates!
[Sócrates] - Não é isto o que deves dizer, Alcibíades!
[Alcibíades] - Mas que devo então dizer?
[Sócrares] - Deves dizer, sob a condição de que deus o
consinta!
[Alcibíades] - É então o que eu digo í'",
Podemos repetir Pradeau, que vê neste trecho do diálogo
final uma prova de que "Alcibíades não compreendeu Sócrates
59. cr J. CAZEAUX,"Introduction" a Platon, Alcibiade, p. 26.
60. PLATÃO,Alcibiades 135c-d; trad. Robin, p. 250; trad. Marboeuf e
Pradeau, p. 191-192; trad. Croiset, p. 127; rrad. Cazeaux, p. 116-117.
36 I Foucault. mestre do cuidado
e parece incapaz de sair da relação de obediência e fascínio que
seu curioso amante lhe inspira"?'.
b. R promessa e seu malogro
Embora Sócrates não consiga que A1cibíades o compreenda,
nele encontra uma ocasião de "esperança", de "anúncio", de
"promessa't'". E, como que num suspense, Foucault assim nos
encaminha ao desfecho do diálogo: ''[. ..] apoiados no conheci-
mento de si que é o conhecimento do divino, conhecimento
da sabedoria e regra para se conduzir como se deve, sabemos
agora que poderemos governar e que aquele que tiver feito este
movimento de ascensão e de descida poderá ser um governante
de qualidade para sua cidade. Alcibíades então promete't'".
Convém pois que reproduzamos as frases exatamente finais
do diálogo:
[Alcibíades]- Pois bem, está decidido; a partir de hoje, começarei
a cuidar da justiça!
[Sócrates]- Ah, como desejaria ver-te perseverar! Tenho porém
um grande medo. Não que desconfie de tua natureza, mas,
constatando a potência de nossa cidade, temo que ela nos vença,
tanto a ti quanto a mim?".
Ouçamos dois comentários deste epílogo: "A vida pública,
contudo, leva ao risco de corromper a boa natureza de Alcibíades
61. J.-F. PRADEAU,op. cit., p. 218, nota 164.
62. cr J. CAZEAUX,"lntroduction" a Platori, Alcibiade, p. 14, 22, 24.
].-F. PRADEAU,op. cit., p. 33.
63. HS, p. 70; ed. br., p. 90.
64. PLATÃO,Alcibíades 135e; trad. Robin, p. 251; trad. Marboeuf e Pradeau,
p. 192; trad. Croiset, p. 129; trad. Cazeaux, p. 117-118. Observação: a tradução
de Croiset traz "nosso povo" onde as outras trazem "nossa cidade".
Da promessa à embriaguez I 37
e reduzir a nada a influência de Sócrates", escreve Marie-
Laurence Desclos". E Pradeau adverte: "Esta última ameaça tem
valor de presságio, depois que sabemos o que efetivamente veio
a suceder com Sócrates e Alcibíades (este último retomando,
em Banquete 216a s., seu compromisso não mantido)"66.
Com efeito, o confronto entre Alcibíades e Sócrates no final
do Banquete, diz Foucault, "faz eco ao tema do Alcibiadesí'":
No Banquete, encontramos de Alcibíades como que uma "ou-
tra imagem, de certo modo negativa, em todo caso tardia e
já esmaecida+".
No Banquete, cuja data dramática situa-se por volta de
416 a.c., Alcibíades tem aproximadamente 35 anos: "está no
seu apogeu", escreve ].-F. Pradeau'"; "em plena prosperidade
política à frente da facção democrática", afirma Cavalcante de
Souza?". Durante o jantar entre amigos, na casa de Agatão, que
comemorava sua vitória em um concurso literário, sucedem-se
os convivas em outro concurso, cada qual fazendo um discurso
de elogio ao Amor (o jovem Fedro, o político Pausânias, o mé-
dico Erixímaco, o poeta cômico Aristófanes, o poeta trágico
Agatão e, por último, Sócrates"). Alcibíades irrompe de súbito
no cenário, completamente embriagado - "chefe da bebedeira",
65. M.-L. DEscLOs,op. cit., p. XXXIV.
66. J.-F. PRADEAU,op. cir., p. 218, nota 167.
67. HS, p. 168; ed. br., p. 215. Cf. expressão semelhante empregada por
J.-F. PRADEAU,op. cit., p. 19, nota 3.
68. HS, p. 168; ed. br., p. 215.
69. J.-F. PRADEAU,op. cir., p. 19.
70. J. Cavalcante de Souza em PLATÃO,OBanquete, trad., inrrod, e notas
J. Cavalcante de Souza, São Paulo, Difel, 2002, p. 64.
71. Pode-se encontrar uma sequência simples mas benfeita dos perso-
nagens e seus discursos na publicação da dissertação de mestrado (orientada
pela Profa. Ora. Jeanne Marie Gagnebin) de Dion David MACEDO,Do elogio à
verdade: um estudo sobre a noção de Eras como intermediário no Banquete de Platão,
Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001.
38 I Foucault. mestre do cuidado
como a si mesmo elege". E, numa espécie de correlato con-
creto do elogio ao Amor que Sócrates, repetindo a sacerdotisa
Diotima, acabara de fazer, Alcibíades faz o elogio a Sócrates.
Sempre enamorado, ataca e louva Sócrates, este homem que
jamais se embebeda, mas que seduz pelo poder da palavra e
enfeitiça pela força da argumentação. Como que em paralelo à
promessa anterior, segue-se agora um juramento: "Eu pelo menos,
senhores, se não fosse de todo parecer que estou embriagado,
eu vos contaria, sobjuramento, o que é que eu sofri sob o efeito
dos discursos deste homem, e sofro ainda agora'?", À exposição
das insuficiências das qualidades de Alcibíades segue-se uma
explanação invertida: "Sabeis que nem a quem é belo tem ele a
mínima consideração [...], nem tampouco a quem é rico, nem
a quem tenha qualquer título de honra"?". Entre a observância
dos argumentos de Sócrates e as glórias do sucesso político,
os impasses de Alcibíades: 'l..]tenho certeza de que não posso
contestar-lhe que não se deve fazer o que ele manda, mas quando
me retiro sou vencido pelo apreço que me tem o público. Safo-me
então de sua presença e fujo, e quando o vejo envergonho-me
pelo que admiti. E muitas vezes sem dúvida com prazer o veria
não existir entre os homens; mas, se por outro lado tal coisa
ocorresse, bem sei que muito maior seria a minha dor, de modo
que não sei o que fazer com este homerrr'?". E, por fim e mais
que tudo, a confissão definitiva do compromisso desfeito: "Pois
me força ele a admitir que, embora sendo eu mesmo deficiente
em muitos pontos ainda, de mim mesmo me descuido e trato dos
negócios de Atenas?".
72. PLATÃO,Banquete 213e; ed. br., p. 168.
73. lbid., 215 d-e; ed. br., p. 173. O grifo é nosso.
74. Ibid., 216e; ed. br., p. 175; destaque nosso.
75. Ibid., 216b-c; ed. br., p. 174.
76. Ibid., 216a;ed. br., p. 173-174; destaque nosso.
Da promessa à embriaguez I 39
Finalmente, é aqui e neste sentido que encontramos a
frase de Foucault, onde parece tudo caber, tão genérica quanto
incisiva: "E todos os dramas e catástrofes do Alcibíades real
estão desenhados neste pequeno intervalo entre a promessa e
a embriaguez"77.
Entretanto, se fazemos um paralelo, já inicialmente suge-
rido'", entre Alcibíades e Atenas, vale dizer então que neste
intervalo estão também desenhados "todos os dramas e catás-
trofes da democracia ateniense".
4. Ecos do Rlcibíades hoje?
Deste Alcibíades que "encarnou a ambição" de Atenas,
Cazeaux escreve: "Ele tem todas as pretensões ou toda a presun-
ção da própria Atenas, cidade imperialista, falante e orgulhosa";
"como ela, ele é falador e vazio de justiça" [...], "somente belo,
somente rico"?", Assim, "condenando Alcibíades, é a ambiciosa
Atenas que Platão condena="
Paralelo semelhante lemos emJ.-F. Pradeau: ''[...] é a figura
que melhor parece ter encarnado o período que viu Atenas
passar do apogeu de um reinado sem divisões sobre o mundo
grego às ruínas da derrota e da ocupação no final da Guerra
do Peloponeso". Assassinado no mesmo ano em que acaba a
guerra (404 a.C.), Alcibíades é uma espécie de "alegoria do des-
fecho de Atenas"?'. Mas também sua vida toda é descrita como
uma "alegoria" da história de Atenas. Como Atenas, assim ele é
julgado: "sempre controverso, acusado de todos os excessos, de
77. HS, p. 169; ed. br., p. 216.
78. Cf. ].-F. PltADEAU, op. cit., p. 15.
79.]. CAZEAUX, "Introduction" a Platon, Alcibiade, p. 10.
80. Ibid., p. 30.
81. ].-F. PltADEAU, op. cit., p. 15-16.
40 I Foucault. mestre do cuidado
uma ambição desmedida e costumes deploráveis, Alcibíades é
também e incessantemente louvado pOI seu carisma, sua audá-
cia e pela maneira como parece jamais ter podido dissociar seu
destino do destino da cidade" [...], "destino paradoxal de uma
cidade democrática que defendia a liberdade, mas dominando
um império, que cultivava o fausto baseado em um tesouro
colonial extorquido das cidades 'aliadas' e que pereceu nos
conflitos que ela mesma provocou'?".
Estendamos ainda mais, com excessiva licença certamen-
te, mas com alguma verdade, o alcance daquela frase em que
Foucault faz tudo caber e, dela eliminando os termos que si-
tuam personagens e localizam fatos, poderemos então ler que
naquele "pequeno intervalo entre a promessa e a embriaguez"
estão desenhados, afinal, "todos os dramas e catástrofes da
democracia".
Para concluir: na crítica a Alcibíades, a crítica à incompetên-
cia e à ignorância que minam por dentro o poder democrático
quando firmado não na sabedoria, mas na retórica, "uma certa
retórica ateniense imperial e belicisra=". Eliminemos, também
aqui, o adjetivo "ateniense" que circunscreve o fato, e poderemos
refletir sobre os riscos de qualquer democracia quando firmada
"numa certa retórica imperial e belicista".
82. Ibid., p. 18.
83. Ibid., p. 43. Ver também, p. 36; p. 62, nota 1.
Da promessa à embriaguez I 41
Capítulo 111
O CUIDRDO DE SI - SURGIMENTO
E MRRGINRLlZRÇÃOl
[".l a aposta) o desafio que toda história do pensamento deve suscitar,
está precisamente em apreender o momento em que um fenômeno cultu-
ral) de dimensão determinada) pode efetivamente constituir, na história do
pensamento) um momento decisivo [...J.
MICHEL FOUCAULT
Inaugurada na Grécia antiga e desenvolvida no período hele-
nístico e romano, a inclusão da noção de "cuidado de si" no
campo filosófico é historicamente circunscrita. Mas constitui
também o que Foucault denomina "fenômeno cultural de
conjunto". Com esta expressão quer significar que se trata de
um dado contextualizado, "de dimensão determinada" e, ao
mesmo tempo, de "um momento decisivo" que afeta toda a
história de nosso modo de pensar', É assim que esta noção dá
1. Comunicação apresentada no Colóquio Filósofos e Terapeutas - Em
Torno da Questão da Cura, PUC-PR, Curitiba, 2006. Publicada no volume de
mesmo título, org. Oaniel Omar Perez, São Paulo, Escuta, 2007, p. 21-32.
2. HS, p. 11; ed. br., p. 13.
143
título ao terceiro volume da História da sexualidade e último livro
produzido por Foucault (1984). Já antes, porém, ele a escolhera
como ponto de partida e fio condutor do curso de 1982 "A
hermenêutica do sujeito".
"Cuidado de si" remete à expressão grega epiméleia beaatoú e
à sua tradução latina cura sui. Ao longo da história da filosofia a
noção será diversamente modalizada, dando lugar a uma "série
de fórmulas" de que Foucault estabelece um sucinto inventário:
"ocupar-se consigo mesmo", "ter cuidados consigo", "retirar-se
em si mesmo", "recolher-se em si", "sentir prazer em si mesmo",
"buscar deleite somente em si", "permanecer em companhia de
si mesmo", "ser amigo de si mesmo", "estar em si como numa
fortaleza", "cuidar-se", "prestar culto a si mesmo", "respeitar-
se" erc.'.
O volumoso curso de 1982 é uma história do "cuidado de
si". Dos momentos desta história", Foucault dedica a maior
parte de suas aulas àquele que considera seu período áureo, a
saber, o da "cultura de si" helenística e romana, especialmente
no epicurismo e no estoicismo dos primeiros séculos de nossa
era. Porém, precedendo e fundamentando esta demarcação
histórica por ele priorizada, as aulas iniciais são dedicadas à
descrição da instauração filosófica inaugural da noção no assim
denominado "momento socrático-platônico". Sintética, porém
densa, esta primeira descrição é uma referência constante,
retomada ao longo de todo o curso, como que a atravessá-lo
perpendicularmente. E é nestas mesmas aulas iniciais, em meio,
portanto, à descrição do nascimento filosófico do "cuidado de
3. HS, p. 14; ed. br., p. 16.
4. Foucault esquematiza esta história em três momentos: o de seu
nascimento filosófico, séculos V e IV a.c., momento socrático-platônico; o
da sua "idade de outro", séculos I e IId.C., momento helenístico-romano;
o da passagem do ascetismo pagão ao ascetismo cristão, séculos IV e V. Cf
HS, p. 32; ed. br., p. 41.
44 I Foucault, mestre do cuidado
si", que Foucault insere uma reflexão acerca do que se poderia
identificar como uma quase "morte" filosófica do "cuidado".
Ela é diagnosticada em dois âmbitos: primeiramente numa es-
pécie de esmaecimento moral do próprio conceito e depois na
consolidação epistemológica de seu desaparecimento, chamada
por Foucault de "momento cartesiano", Curta e inusitada, esta
reflexão sugere nitidamente que, se a inclusão e as variantes
filosóficas da noção de "cuidado de si" configuram uma es-
pécie de baliza histórica, também a posterior desqualificação
filosófica da noção demarcará outro "momento decisivo" na
história do pensamento.
Ressalvadas, como diz o próprio Foucault, suas "impru-
dências cronológicas'" (e, consequentemente, as minhas),
proponho-me recortar alguns aspectos destes dois marcos: o
do surgimento e o da marginalização filosófica do "cuidado de
si", abordada esta última apenas do ponto de vista do primeiro
diagnóstico, isto é, de seu desprestígio moral.
1. Surgimento da noção
Como se sabe, não é o "cuidado", mas o "conhecimento de
si" (gnõthi seautón) que adquiriu importância na tradição histo-
riográfica da filosofia. Uma das inscrições do templo délfico,
conselho de conduta ao consulente do oráculo, o "conhece-te
a ti mesmo" passa, por assim dizer, de preceito a conceito
quando, na figura de Sócrates, é integrado por Platão à filo-
sofia". Mas o que Foucault realça em suas análises é que esta
incorporação filosófica do "conhecimento de si" é concomitante
5. HS, p. 32; ed. br., p. 41.
6. Cf HS, particularmente, as análises de Foucault sobre os diálogos
Apologia e Alcibíades.
o cuidado de si - surgimento e marginalização I 45
à inclusão do "cuidado". Ou antes, no momento originário de
nascimento filosófico das duas noções, é o "cuidado de si" que
tem primazia, que abarca e dá sustentação ao "conhecimento de
si". Ouçamos um trecho do início de seu curso: "Ora, quando
surge este preceito délfico (gnóthi seautón), ele está, algumas
vezes e de maneiramuito significativa, acoplado, atrelado ao
princípio do 'cuida de ti mesmo' (epimeleoú heautoú). Eu disse
'acoplado', 'atrelado'. Na verdade, não se trata totalmente de
um acoplamento. Em alguns textos [...] é bem mais como uma
espécie de subordinação relativamente ao preceito do cuidado
de si que se formula a regra 'conhece-te a ti mesmo'. O gnóthi
seautón ('conhece-te a ti mesmo') aparece, de maneira bastan-
te clara e, mais uma vez, em alguns textos significativos, no
quadro mais geral da epiméleia heautoú (cuidado de si mesmo),
como uma das formas, uma das consequências, uma espécie de
aplicação concreta, precisa e particular da regra geral: é preciso
que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo,
que tenhas cuidados contigo mesmo. É neste âmbito, como
que no limite deste cuidado, que aparece e se formula a regra
'conhece-te a ti mesmo"'.
A partir e depois da figura de Sócrates, particularmente na
época helenística e romana, a noção de "cuidado" passará por
transformações e deslocamentos, mas manterá sua posição de
fundamento do "conhecimento".
Duas caracterizações gerais do "cuidado de si" - no perso-
nagem Sócrates e, depois de Sócrates, no pensamento helenístico
e romano - recolhidas em dois trechos das aulas? podem ser
aqui sinteticamente reproduzidas.
7. HS, p. 9-10, 12-13; ed. br., p. 10-11, 14-15. Ver também, sobre a
caracterização após Sócrates, a segunda hora da aula de 3 de março de 1982,
p. 338-341, e a primeira hora da aula de 17 de março de 1982, p. 406-407;
ed. br., p. 427-431, 515-516.
46 I Foucault. mestre do cuidado
Em Sócrates, o "cuidado de si" remete a uma função a ele
confiada pelos deuses; designa-lhe uma posição, que é a do mestre
a quem cumpre ensinar os concidadãos a .-i lidar de si; determina-
lhe um papel, que é o daquele que desperta e inquieta.
Após Sócrates, o "cuidado de si" remete a uma atitude geral
que diz respeito a um modo de pensar e de conduzir-se; desig-
na uma atenção ou conversão do olhar vinculada ao sentido de
meditar e exercitar-se; determina ações cujo efeito é purificador
e transformador.
De todo modo, nas duas caracterizações - em Sócrates
e depois dele - o "cuidado de si" é uma noção que "acompa-
nhou, enquadrou, fundou a necessidade de conhecer-se a si
mesmo", constituindo "um princípio fundamental" da atitude
filosófica".
Ora, o destino histórico destas duas noções - "cuidado" e
"conhecimento de si" - ensaia uma espécie de cenário bifurca-
do no próprio destino histórico da filosofia, desempenhando
cada qual o papel, por assim dizer, de matriz de duas linhagens
de pensamento, de duas modalidades de conceber a atividade
filosófica e de a praticar. São, por um lado, a filosofia como
pensamento e ética de vida e, por outro, a filosofia como conhe-
cimento eminentemente representativo. A breve e aparentemente
anacrônica reflexão que Foucault enxertou em suas primeiras
aulas sugere que a via da representação será alicerçada pelo
que se pode nomear "ambiência cartesiana". Mas já antes desta
sedimentação no plano do "conhecimento" a via da ética passou
pela própria fragilização do "cuidado". É esta fragilização que
se trata agora de abordar.
8. HS, p. 10; ed. br., p. 11-12.
o cuidado de si - surgimento e marginalização I 47
2. Oesprestígio moral
Se na inserção filosófica inicial e em seu subsequente des-
dobramento o "cuidado de si" foi preponderante, será, como já
lembramos, o "conhecimento de si" que, ao longo da historio-
grafia da filosofia, receberá estatuto privilegiado. Buscando então
compreender a desqualificação do "cuidado", Foucault esboça
explicações, ou antes, usando suas próprias palavras, delineia
"hipóteses, com muitos pontos de interrogação e reticências'".
As reflexões acerca destas hipóteses podem ser esquematicamen-
te organizadas em dois blocos. O primeiro concerne à moral e
nele encontramos a descrição dos "paradoxos" veiculados pela
própria noção de "cuidado de si"; o segundo concerne à verdade
e nele se reconhece o assim denominado "momento cartesiano".
Nos contornos que traçamos para esta exposição, como já foi
dito, abordaremos apenas o primeiro bloco de reflexões.
Considerando o princípio do "cuidado de si" em uma pers-
pectiva prioritariamente moral, constatamos que ele gerou dois
paradoxos. Desde logo, observa-se que o valor do "cuidado de
si" sofreu, tradicionalmente, uma espécie de inversão de sinal:
de índice positivo, no sentido de acentuar uma moral social e
coletiva, passa a um índice negativo, no sentido de uma tônica
individualista. Basta repetir, aqui, aquele "inventário" de formu-
lações a que a noção deu lugar, reunindo expressões, todas elas,
com tonalidade autorreferente: "ocupar-se consigo mesmo", "ter
cuidados consigo", "retirar-se em si mesmo", "recolher-se em
si", "sentir prazer em si mesmo", "buscar deleite somente em
si", "permanecer em companhia de si mesmo", "ser amigo de si
mesmo", "estar em si como numa fortaleza", "cuidar-se", "prestar
culto a si mesmo", "respeitar-se" etc.". Complementando este
9. HS, p. 14; ed. br., p. 16.
10. HS, p. 14; ed. br., p. 16.
48 I Foucault, mestre do cuidado
elenco, que é introduzido na primeira hora da primeira aula
do curso (6 de janeiro de 1982), encontramos mais adiante,
na aula de 20 de janeiro (primeira hora) 1I, bem mais que um
"inventário", uma síntese do que Foucault denomina "uma
nebulosa de vocabulário e de expressões". A. síntese desta "ne-
bulosa" - recheada de exemplos trazidos pelo próprio Foucault
ou acrescentados em notas por Frédéric Gros - está organizada
em quatro "famílias" ou conjuntos de expressões.
- Primeiro, expressões que remetem a atos de conhecimento, ao
olhar sobre si ou à percepção de si mesmo, tais como "examinar-
se", "estar atento a si", "voltar o olhar para o interior da sua casa
e de si mesmo" etc. Em passagem posterior, isto é, na primeira
hora da aula de 10 de fevereiro, Foucault evoca, entre outras, a
curiosa "metáfora da casa", extraída precisamente do Tratado da
curiosidade, de Plutarco: o olhar sobre si é semelhante às janelas
de uma casa que "não devem abrir-se para as do vizinho'i".
- Segundo, expressões que remetem a um movimento não só
do olhar, mas da existência por inteiro, tais como "retirar-se em si",
"recolher-se em si, "descer ao mais profundo de si mesmo". Trata-
se aqui do sentido forte de "conversão" (metánoia ou convertere),
que é a atitude de "refluir sobre si mesmo" ou de "instalar-se em
si mesmo como em um lugar-refúgio, uma cidadela bem forti-
ficada, uma fortaleza protegida por muralhas etc.". Releiá-se a
passagem de Sêneca reproduzida por F. Gros: "Que a filosofia
erga em torno de nós a inexpugnável muralha que a Fortuna
ataca com suas mil máquinas, sem abrir passagem. Mantém
uma posição inatingível a alma que, desligada das coisas de fora,
defende-se no forte que ela mesma construiu para si"!'.
11. HS, p. 82-83; ed. br., p. 104-106.
12. HS, p. 210; ed. br., p. 268-269.
13. SÊNECA, Cartas a Lucilio, t. III, carta 82,5, passagem reproduzida por
F. Gros em M. FOUCAULT, HS, nota 10, p. 98; ed. br., p. 124-125.
o cuidado de si - surgimento e marginalização I 49
- Terceiro, expressões que remetem não agora a atitudes
globais, mas a atividades ou condutas particulares. E estas se des-
dobram em três ordens. Algumas relativas ao vocabulário médico,
tais como "tratar-se", "curar-se", "amputar-se", "abrir seus pró-
prios abscessos" etc. Evoquemos aqui a concepção de Epicteto
acerca de sua escola de filosofia, reproduzida por Foucault em
várias passagens: a escola de filosofia não é primeiramente um
lugar aonde se chega apenas "para aprender, como diríamos,
'filosofia', para aprender a discutir, para aprender a arte dos
silogismos etc."; uma escola de filosofia é "um 'gabinete médi-
co', um iatreíon", "um hospital da alma", um "dispensário da
alma", que se frequenta não quando se está "em boa saúde",
mas aonde "este chega com o ombro descolado, aquele com
um abscesso, o terceiro com uma fístula, outro com dores de
cabeça" erc.!" Outras são expressões particularmente relativasao vocabulário jurídico, tais como "reivindicar-se a si mesmo",
"fazer valer seus direitos", "liberar-se", "desobrigar-se" etc,
Outras ainda estão vinculadas ao vocabulário religioso, tais como
"culruar-se", "honrar-se", "respeitar-se", "envergonhar-se diante
de si mesmo" etc.
- Quarto, expressões que remetem a um certo tipo de relação
permanente consigo. E estas, por sua vez, se desdobram em dois
tipos. Algumas se inspiram em relações de domínio e sobera-
nia, tais como "ser mestre de si". Outras dizem respeito a sensações,
tais como "sentir prazer consigo", "alegrar-se consigo", "ser feliz
em presença de si", "satisfazer-se consigo mesmo" etc.
Ora, estes grupos de expressões prestam-se, precisamente,
a "conotações" ou propiciam "ressonâncias" que uma certa
tradição considera moralmente "negativas". Com efeito, "para
14. cr, por exemplo, HS, p. 96; ed. br., p. 121-122 (passagens retomadas
por FOUCAULTem Le souci de soi, p. 71; ed. br., p. 132); ou ainda o Résumé du
cours, in HS, p. 477; ed. br., p. 602-603.
50 I Foucault. mestre do cuidado
nós" ou "aos nossos ouvidos", soam como indicativas de alguma
coisa como "desafio", "bravata", "vontade de ruptura ética", ou
como uma alternativa "melancólica e triste" à impossibilidade
de uma moral coletiva ou civil então substituída por uma pro-
posta de conduta egoísta e individual.
É certo que esta leitura moralmente "negativa" do "cuidado
de si" foi reforçada por uma certa interpretação do período
helenístico e romano largamente defendida por respeitados
historiadores e até bem pouco tempo incontestada. Convém
explorar um pouco esta interpretação histórica, relembrada por
F. Gros em uma longa nota". Trata-se da tese segundo a qual,
por falta de condições políticas de liberdade social - estando a
Grécia politicamente dominada, desde Alexandre da Macedônia
até o Império Romano -, a valorização da ação moral, cívica e
política do filósofo, tão fortemente acentuada na Grécia clássica,
teria sido substituída pelo consolo, por assim dizer, da liber-
dade pessoal, individual ou interior. Esta tese é partilhada por
historiadores clássicos da filosofia, como Bréhier, Fescugiêre e
Aubenque. Tomemos alguns exemplos. Émile Bréhier, no capí-
tulo sobre "o estoicismo antigo", depois de afirmar que a idade
helênica - durante a qual "a cultura grega se tornou um bem
comum de todos os países mediterrâneos" - foi, sob certos
aspectos, "um dos mais importantes períodos na história da
civilização ocidental", identifica aí a "maturidade" e o "evidente
declínio" de um tipo de filosofia distanciada das "preocupações
políticas"'6. Pierre Aubenque, autor do capítulo sobre "as filo-
sofias helenísticas" na obra organizada por F. Châtelet, também
faz ver a importância deste período, durante o qual "misturas
de populações, consecutivas à conquista de Alexandre, farão
15. F. Gros em M. FOUCAULT,HS, p. 25, nora 47; ed. br., p. 32.
16. É. BRÉHIER, Histoire de Ia philosophie, Paris, PUF, 1967, r. I, fasc. 2,
p. 253; desraque nosso.
o cuidado de si - surgimento e marginalização I 51
nascer solidariedades novas: esse tempo verá o nascimento
do cosmopolitismo". Mas a tônica ainda recai sobre o caráter de
"decadência" que a filosofia teria então conhecido: "A perda da
independência das cidades gregas tem por primeiro efeito, na
ordem espiritual, dissociar a unidade do homem e do cidadão,
do filósofo e do político, da interioridade e da exterioridade,
da teoria e da prática [...]". E a seguir: "É o momento em que a
liberdade do homem livre, que até então se confundia com o
exercício dos direitos cívicos, se transmuta, por falta de melhor,
em liberdade interior; em que os ideais gregos de autarquia e de
autonomia, que procuravam até então se satisfazer na cidade,
se encontram confiados unicamente aos recursos espirituais do
homem individual [...]"17.
É esta leitura do período helênico e romano que a partir
da segunda metade do século XX (em sequência aos trabalhos
do estudioso e epigrafista Louis Robert) foi contestada. Outra
e mais recente interpretação é partilhada por historiadores
como Paul Veyne, Pierre Hadot e, na mesma direção, Michel
Foucault. Como exemplo, algumas passagens de Hadot, extraí-
das do capítulo 7 ("As escolas helenísticas") de O que é afilosofia
antiga? Depois de afirmar categoricamente que "é totalmente
errôneo representar essa época como um período de decadência",
propõe algumas reflexões: "A pretensa perda de liberdade das
cidades não provocou a diminuição da atividade filosófica. E
porventura pode-se dizer que o regime democrático lhe foi mais
favorável? Não foi a Atenas democrática que instaurou um pro-
cesso de impiedade contra Anaxágoras e Sócrates?". E continua:
"Não houve, na orientação da própria atividade filosófica, uma
17. P. AUBENQUE,As filosofias helenísticas - estoicismo, epicurismo,
ceticismo, in F. CHÂTELET(org.), História da filosofia - ideias, doutrinas, trad.
Maria José de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar, 1973, v. I, p. 167-168; desta-
que nosso.
52 I Foucault. mestre do cuidado
transformação tão radical quanto se gostaria de fazer acreditar.
Diz-se e repete-se que os filósofos da época helenística, diante
de sua incapacidade de agir na cidade, teriam desenvolvido
uma moral do indivíduo e teriam se uoltado para a interioridade. As
coisas são muito mais complexas". E contra a tese de que estes
filósofos não se ocupavam com a política: "Quando o filósofo se
dá conta de que é totalmente impotente para dar ao mundo o
menor remédio para a corrupção da cidade, que pode ele fazer
além de praticar a filosofia?". Conclui que, "de maneira geral,
os filósofos jamais renunciaram à esperança de transformar a
sociedade, ao menos pelo exemplo de sua vida"!",
Foucault, como bem esclarece Gros, posiciona-se explici-
tamente sobre o tema em dois momentos de O cuidado de si,
volume lII da História da sexualidade: mais longamente no item
intitulado "O jogo político" e sinteticamente no capítulo "A
cultura de si"!", Afirma, por exemplo, que o período em questão
não pode ser analisado apenas "nos termos negativos de uma
decadência da vida cívica" e que uma análise deste tipo pode
estar atrelada a "um sentimento que se atribui retrospectiva-
mente aos homens do mundo greco-romano"20. Para opor-se
à leitura deste período pela estrita qualificação de "individua-
lismo", observa que sob este termo confundem-se fenômenos e
realidades diferentes e de diferentes épocas. Esquematicaménte,
podem-se nele distinguir pelo menos três sentidos: primeiro,
"individualismo" é a "atitude" que atribui "valor absoluto" à
singularidade individual em contraposição ao grupo; segundo,
18. P. HADOT,O que é a filosofia antiga?, rrad. Dion Davi Macedo, São
Paulo, Loyola, 1999, p. 141-145; destaque nosso.
19. Cf. M. FOUCAULT,Histoire de Ia sexualité I - Le souci de 50 i, Paris,
Gallimard, 1984, respectivamente, p. 101-111,55-57; História da sexualidade
I - O cuidado de si, trad. M. Thereza da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro,
Graal, 1985, respectivamente, p. 88-109, 47-49.
20. M. FOUCAULT,Le souci de soi, p. 102; ed. br., p. 89.
o cuidado de si - surgimento e marginalização I 53
"individualismo" significa "valorização da vida privada" (relações
familiares, atividades domésticas etc.); terceiro, o termo diz
respeito à" intensidade das relações consigo", quando se toma
a si próprio para conhecer-se, para melhorar a si mesmo, para
transformar-se. Estas acepções podem articular-se ou sobrepor-
se, mas são distintas: "há sociedades ou grupos nos quais a
relação consigo é intensificada e desenvolvida sem que por isso,
e de modo necessário, os valores do individualismo ou da vida
privada encontrem-se reforçados". É neste sentido que Foucault
encontra no período helenístico e romano o desenvolvimento do
que ele chama de "uma 'cultura de si', na qual foram intensificas
e valorizadas as relações de si para consigo'?',
Eis, pois, o que podemos reconhecer como primeiro para-
doxo: ofuscando o sentido inicial de "intensificação das relações
consigo", historicamente o "cuidado de si"parece ter se prestado
a confundir-se com uma "atitude individualista" e mesmo com
uma "valorização da vida privada". Este paradoxo, por sua vez,
é reforçado por um fato que Foucault chama de "suplemen-
tar", mas não menos importante. Com efeito, foi a partir da
noção de "cuidado de si" que, precisamente na contramão da
ideia de "individualismo", se constituíram "as mais austeras,
as mais rigorosas, as mais restritivas morais, sem dúvida, que
o Ocidente conheceu", inauguradas e praticadas não pelo cris-
tianismo, como habirualmente se crê, mas pelas filosofias da
época helenística e romana. Em suma, pois, de um lado, temos
o "cuidado de si" invertendo-se em índice negativo e, de outro,
seu papel de matriz (ou de "princípio positivo matricial") das
mais rigorosas regras rnorais'".
Um segundo paradoxo completa o primeiro. A moral
austera do ascetismo pagão e suas regras severas vinculadas
21. Ibid., p. 56-76; ed. br., p. 47-48.
22. HS, p. 15; ed. br., p. 17.
54 I Foucault. mestre do cuidado
ao princípio do "cuidado de si", embora transformadas, serão
reassumidas "quer na moral cristã, quer na moral moderna
não cristã". Agora, porém, não mais desviadas em "individua-
lismo", mas em seu contrário, isto é, em uma "ética geral do
não egoísmo", quer no sentido cristão de renúncia a si, quer no
sentido moderno de obrigação para com os outros (por exemplo,
a "coletividade", a "classe", a "pátria"), mas sempre acarretan-
do o obscurecimento do sentido primeiro do "cuidado de si"
enquanto relação de si para consigo".
Consideradas juntas, estas transmutações desenham, afinal,
um só paradoxo: é o "cuidado de si" prestando-se a redundar
em moral tanto do "egoísmo" quanto do "não egoísmo". Este
é o primeiro bloco de hipóteses que, de certo modo, explicam
o desprestígio histórico da versão original do "cuidado de si",
que, assim "desconsiderado", acaba por "desaparecer da preo-
cupação dos historiadores'l".
Mas a fragilização moral da noção não é senão um primei-
ro ângulo de abordagem nem mesmo o mais essencial. Outro
ângulo, este não mais no âmbito da moral, mas no da verdade,
mostrará que a marginalização do "cuidado de si" não provém
somente dos desdobramentos a que a própria noção se prestara.
É também e principalmente consequência ou acompanhamento
da qualificação do outro polo, isto é, da privilegiada valorização
do "c~:mhecimento". Sob o nome geral de "momento cartesiano",
este é o segundo bloco de hipóteses, para o qual Foucault sugere
outras reflexões. Para nós, assunto de outro capítulo, exceto por
uma última (ou introdutória) observação. Se retomarmos os
dois marcos que nos serviram de pistas, a saber, o surgimento
e o quase desaparecimento filosófico da noção de "cuidado de
si", diremos então - utilizando uma metáfora "médica" - que,
23. HS, p. 15; ed. br., p. 17.
24. HS, p. 15; ed. br., p. 18.
o cuidado de si - surgimento e marginalização I 55
após seu nascimento e no decurso de sua vida filosófica, a noção
foi acometida por uma enfermidade de ordem moral e quase
sucumbiu à morte epistemológica. Capítulo IV
O CUIDADO DE S/ - MOMENTO
CARTES/ANO!
- Fala, meu caro Sócrates, eu te escuto...
PLATÃO, ALC/BÍADES l04E
Alcibíades dispõe-se a ouvir de Sócrates os ensinamentos que
o habilitem a conquistar o comando de Atenas. E o que diz
Sócrates? Que o justo governo da cidade começa com o gover-
no de si mesmo e que se governar implica conhecer-se. É neste
contexto que o diálogo platônico integra ao âmbito da reflexão
filosófica a tecnologia ou arte de "ocupar-se consigo" e, éom
ela, ~ preceito délfico de "conhecer-se a si mesmo'", Em seu
1. Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Cartografias
de Foucault, Natal, UFRN, 2007. Publicada no volume de mesmo título, org.
D. Muniz de Albuquerque Júnior, A. Veiga-Neto, A. de Souza Filho. Belo
Horizonte, Autêntica, 2008, p. 365-375.
2. Segundo a tradução francesa de J. Cazeaux (Paris, Librairie Générale
Française, 1998), a noção de "cuidado de si" no diálogo Alcibíades aparece 22
vezes (cf "Introducrion", p. 31). Segundo a tradução de M. Croiser (Paris,
Lcs Belles Lettres, 2002), há dezenove ocorrências no ponto culminante do
diálogo e mais quatro ocorrências depois (cf p. 78-79, nota 42). Foucaulc
situa o primeiro grande aparecimento da noção de "cuidado' em 127e (cf
157
curso de 1982 "A hermenêutica do sujeito" Foucault mostra
que anteriormente à sua inclusão no universo da filosofia a
relação entre as duas noções comportava, originariamente,
a primazia do "cuidado", noção mais fundante e abrangente
que a de "conhecimento". Mas, na dinâmica do pensamento
platônico, reconhece, por um lado, que esta relação tenderá a
inverter-se, subordinando o "cuidado" ao "conhecimento". Por
outro lado - e isto pertence ao que ele denomina "paradoxo
do platonismo'" -, reconhece também, como "característica
de Platão", uma espécie de "sobreposição dinâmica" das duas
noções, um "apelo recíproco" a articulá-Ias, de modo que "ne-
nhum dos dois elementos deve ser negligenciado em proveito do
outro'". Esta "sobreposição" ou este "apelo recíproco" sustenta
um vínculo indissolúvel entre o âmbito do conhecimento (que
remete à questão da verdade), o das condutas (que remete à
constituição ética de si) e o do governo dos outros (que remete
à ação política); e, se acrescentarmos que esta tríplice relação
resulta na constituição da própria vida como existência bela,
diremos então que da conjunção entre conhecimento e cuidado
de si segue-se a associação entre o que hoje denominaríamos
planos epistemológico, ético, político e estético. Foi esta asso-
ciação que se viu desagregar-se quando, ao longo da história do
pensamento ocidental, a noção de "conhecimento" tornou-se
preponderante, enquanto a de "cuidado" esmaecia-se.
A partir daí ganha relevância o desejo que Foucault im-
primiu ao curso de 1982, expressamente declarado: "Portanto,
é o cuidado de si, relativamente ao privilégio tão longamente
concedido ao conhecimento de si, que, neste ano, gostaria de
HS, p. 37; 45; 50; ed. br., p. 47; 57; 64). E identifica três passagens em que
aparece a noção de "conhecimento de si", a saber, em 124b, 129a, 132c (cf.
HS, p. 51-52; 65-67; ed. br., p. 65-66; 85-86).
3. HS, p. 75; ed. br., p. 97.
4. HS, p. 67-68; ed. br., p. 87.
58 I Foucault, mestre do cuidado
fazer reernergir'". Retenhamos esta afirmação. Ela será retomada
mais adiante.
Não tencionamos aqui analisar a proposta foucaultiana
de ressurgimento positivo do "cuidado". Antes, dela nos acer-
caremos pelas margens, explorando seu "negativo" ou, mais
precisamente, buscando compreender melhor a desvalorização
histórica do "cuidado". Para isto, nosso caminho segue indica-
ções que o próprio Foucault fornece.
Esquematizando muito sinteticamente o que já foi ex-
plicitado, podemos dizer que a dissociação entre "cuidado" e
"conhecimento" de si está na origem de duas vias que marcam,
na trajetória do pensamento filosófico, a concepção que se tem
da filosofia e a correlata concepção do sujeito: na via em que
predomina o "cuidado", a filosofia é pensamento inseparável
da prática de vida e a ela corresponde o sujeito de ações cuja
verdade não tem essência nem substância porque se constitui e
transforma-se continuamente; na outra via, a filosofia é conhe-
cimento prioritariamente "representativo" a que corresponde
o sujeito do conhecimento cuja verdade é substância essencial-
mente invariável, já dada e constituída.
O problema que nos colocamos é compreender como se deu
a passagem do predomínio do "cuidado" para o do "conheci-
mento". Foucault levanta dois tipos de hipótese. Primeiramente,
há um grupo de explicações que descrevem a ocorrência, no
decurso da história, de certa desfiguração moral do significa-
do do cuidado de si, revertendo diretamente no desprestígio
da noção. Este primeiro conjunto de explicações foi tratado
no capítulo anterior". O segundo tipo de hipótese, que é de
ordem prioritariamente epistemológica, consiste na sobrevalo-
rização do "conhecimento", incidindo assim, indiretamente,
5. HS, p. 67-68;ed. br., p. 86.
6. Cf. capo I1I, "O cuidado de si - surgimenro e marginalização".
o cuidado de si - momento cartesiano I 59
na consequente desqualificação do "cuidado". A esta hipótese
corresponde o que Foucault denomina "momento cartesiano'",
aquele, portanto, em que o "cuidado" se distancia do "conhe-
cimento" na direção de seu desaparecimento epistemológico.
É este o tema que pretendemos agora explorar.
Embora se permita um raro "salto de muitos séculos'", de
Platão a Descartes, as referências de Foucault ao "momento
cartesiano" durante as aulas que compõem "A herrnenêutica
do sujeito" (centradas no período socrático-platônico e mais
longamente no helenismo greco-romano dos séculos I e II d.Ci)
são poucas e muito breves. Para elucidá-las, buscaremos recurso
em passagens de outros textos, particularmente em História da
loucura (1961), As palavras e as coisas (1963) e A vida dos homens
infames (1977), que articularemos a A hermenêutica do sujeito
(curso de 1982, com publicação em 2001).
1. Primeiro cruzamento - Rs palavras e as coisas
Sem dúvida, Descartes é para Foucault um referencial desta-
cado e recorrente. Ao privilegiar as passagens do Renascimento
à Idade Clássica e desta à Modernidade, na trajetória histórica
percorrida em seus primeiros grandes livros, posiciona Descartes
como o marco filosófico no limiar do classicismo, assim como
Kant no da Modernidade. Para remeter apenas a uma menção
mais recente, na segunda hora da aula de 3 de fevereiro do
mesmo curso de 1982, inquirido por um interlocuror sobre
o significado do "modelo cartesiano", responde que tomou
Descartes "como marco" porque para ele "não é o sujeito que
deve transformar-se. Basta que o sujeito seja o que ele é para
7. HS, p. 15, 19; ed. br., p. 18,22.
8. HS, p. 19; ed. br., p. 22.
60 I Foucault, mestre do cuidado
ter, pelo conhecimento, um acesso à verdade que lhe é aberto
pela sua própria estrutura de sujeito'".
Contudo, salvaguardada a importância específica da figura
histórica de Descartes, a demarcação de um "momento" e a
adjetivação "carresiano" não devem significar que em algum
instante fixo e a partir de um único pensador mudanças
súbitas e definitivas tivessem acontecido. Na realidade, rup-
turas importantes já teriam ocorrido antes de Descartes e
ressurgimentos modernos do "cuidado" virão depois dele 10.É
Foucault quem afirma: "quando digo 'momento', não se trata,
de modo algum, de situar isto em uma data e Iocalizá-Io, nem
de individualizá-lo em torno de uma pessoa e somente uma"!'.
Não significa que Descartes foi um "inventor, o primeiro a rea-
lizar tudo isto"12. A expressão "momento cartesiano" aparece,
diz ele ainda, "a título puramente convencional" e, empregada
"com muitas aspas", seu sentido remete àquele duplo papel
de requalificar filosoficamente o "conhece-te a ti mesmo" e,
em contrapartida, desqualificar o "cuidado de si"!'. Declara
que usou esta denominação "brincando um pouco, embora
não seja engraçada"!", para nomear a tônica que recai sobre o
9. Acrescenta ele, como já fizera em textos anteriores, que esta situa-
ção que, "de maneira muito clara, encontramos em Descartes" será seguida
por uma "virada suplementar", trazida por Kant, de modo que "Kant e
Descartes me parecem ser os dois grandes momentos" (HS, p. 183; ed. br.,
p. 234-235). Referências de sentido semelhante e específicas sobre Descartes
reencontramos em outras passagens do mesmo curso, como: na primeira hora
da aula de 24 de fevereiro (p. 281; ed. br., p. 356); na primeira hora da aula
de 24 de março (p. 442-443; ed. br., p. 559-560). É igualmente nesta direção
que F. GROS remete à leitura foucaultiana de Descartes em seu Situation du
cours (p, 504; ed. br., 632-633).
10. HS, p. 29-32; ed. br., p. 46-53.
11. HS, p. 27; ed. br., p. 35.
12. HS, p. 19; ed. br., p. 23.
13. HS, p. 15; ed. br., p. 18.
14. HS, p. 67; ed. br., p. 86.
o cuidado de si - momento cartesiano I 61
"conhecimento" (e, portanto, do sujeito do conhecimento) às
expensas do "cuidado" (e, portanto, do sujeito de ações). Assim,
estas flexibilizações ou modalizações da expressão nos permitem
alargá-Ia, entendendo-a preferencialmente como "ambiência",
como "atmosfera" cartesiana na qual convivem e enredam-se
elementos diversificados, como múltiplas peças heterogêneas,
mas concomitantes de um mesmo dispositivo.
Assim, é nesta "ambiência" que tem lugar, por exemplo,
Las meninas, de Velásquez (1599-1660), que Foucault rede senha
no frontispício de As palavras e as coisas.Quadro dentro do qua-
dro, jogo de reflexo e espelho, Las meninas equivale - no pla-
no da imagem - à "representação reduplicada"!", que - no
plano do saber - compõe o "a priori" da epistemé clássica, chão
sobre o qual são possíveis as formações discursivas do classi-
cismo, incluindo aí a filosofia cartesiana.
Evoquemos, pois, a Primeira meditação de Descartes. Na
busca da certeza verdadeira, tudo é posto radicalmente em
dúvida: a existência das coisas do mundo (pelo argumento
dos sentidos), a própria existência intramundana daquele
que duvida (pelo argumento dos sonhos), a existência até
mesmo das ideias claras e distintas (pelo argumento do "gê-
nio maligno"). Portanto, a própria realidade do eu é colocada
em questão: "por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto
ao fogo [...], tendo este papel entre as mãos. E como poderia
eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus?"!", Como
sabemos, depois da dúvida universal, a primeira certeza de-
finitiva, alcançada na Segunda meditação, é precisamente a do
15. Cf capo Ilf de M. FOUCAULT,Les mots et les choses, Paris, Gallimard,
1966, p. 77; ed. br.: As palavras e as coisas, trad. Salma T. Muchail, São Paulo,
Marrins Fontes, 1981, p. 78.
16. DESCARTES,Meditações concernentes à primeira filosofia, in Obra
escolhida, ed.]. Guinsburg, Bento Prado Júnior, São Paulo, Difusão Europeia
do Livro, 1962, p. 118.
62 I Foucault. mestre do cuidado
eu. Mas o eu da certeza verdadeira não é o eu empírico, con-
creto e corpóreo, o mesmo que está "sentado junto ao fogo",
tendo um "papel entre as mãos" e cujo "corpo" lhe pertence.
É aquele a quem pertence o pensamento e exclusivamente o
pensamento: "nada sou, pois, falando precisamente, senão
uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento
ou uma razão"!", Podemos até conjecturar que, ao atribuir
justamente o título Meu corpo, este papel, este fogo a um texto
posterior sobre as Meditações (aquele em resposta às críticas de
Oerrida 18), Foucault talvez pretendesse restituir concretude à
verdade clássica da representação. Mas o que aqui nos interessa
é traçar os cruzamentos que compõem o assim denominado
"momento cartesiano": assim como resta ausente a concretude
do corpo, do papel, do fogo, no caminho do conhecimento cuja
certeza desemboca unicamente no pensamento, assim também,
no quadro de Velásquez, resta à frente da tela aquele espaço
branco, lugar vazio, supostamente ocupado pelos modelos
concretos cuja realidade só pode delinear-se como imagem,
reflexo ou representação.
Em reforço a estas considerações, emprestamos algumas
passagens de Blandine Kriegel" (assistente de Foucault no
Collêge de France). No capítulo "Foucault, filósofo" (cuja pri-
meira versão tinha um sugestivo título, "O olhar loquaz"), lê-se
que Foucault nos convida "à relação da imagem e do texto, da
arte e 'do discurso'l", Mais especificamente lê-se também: "A
pintura é um ápice do pensamento; não se compreende menos
a representação clássica contemplando As meninas do que lendo
17. lbid., p. 128.
18. M. FOUCAULT,Mon corps, ce papier, ce feu, in 10., Histoire de Iafolie
à I' âge classique, Paris, Gallimard, '1972, Apêndice, p. 582-603. Para mais
informações sobre outras versões deste texto cf Bibliografia.
19. Blandine KRlEGEL,Michel Foucault, aujourd 'hui, Paris, Plon, 2004.
20. Ibid., p. 27.
o cuidado de si - momento cartesiano I 63
a primeira Meditação metafísica de Descartes'?'. E mais concisa-
mente, na "Introdução": "Toda a filosofia em um só quadro.
Todo Descartes em Velásquez=",
2. Segundo cruzamento - Históriada loucura
Nesta mesma "ambiência" talha-se a fratura clássica entre
razão e desrazão, que a História da loucura torna exposta. Eu,
que penso e existo, o que sou? "Uma coisa que pensa", res-
ponde Descartes. E por quanto tempo? "A saber, por todo o
tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se
eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de
exístir.t'P Na juntura operada por Descartes entre a ordem do
conhecimento e a ordem do ser, tem lugar a primeira evidên-
cia, a do "conhecimento de si", que é, portanto, simultânea à
evidência da existência. Substância pensante, "res cogitans", sujeito
cognoscente, este é o meu ser, este é o estatuto ontológico do eu.
Assim, desta conjugação entre conhecimento e ser na evidên-
cia primeira do cogito, a leitura foucaultiana de Descartes em
História da loucura permite concluir: se sou louco, não penso;
portanto, se sou louco, nem penso, nem sou, "pois a loucura é
justamente a condição de impossibilidade do pensamenro'?",
o que significa, portanto, também impossibilidade de ser. Ou,
inversamente, porque impossibilidade de pensamento, a loucura
fere de morte a verdade real do eu que consiste em ser pensante.
Banida do pensamento, a desrazão será também socialmente
21. Ibid., p. 36.
22. Ibid., p. l l.
23. DESCARTES, op. cit., p. 128.
24. M. FOUCAULT, Histoire de Ia[olie à I'âge classique, p. 57; ed. br.: História da
loucura na idade clássica, trad. J. Teixeira Coelho Netro, São Paulo, Perspectiva,
51997, p. 46.
64 I Foucault. mestre do cuidado
excluída na prática do internamento. O gesto divisório que
o Hospital Geral instaura na ordem institucional, Descartes o
enuncia na ordem do discurso. Ora, com o exílio da loucura e
de todo o universo classicista da desrazão, no plano discursivo
e no extradiscursivo, o que então se consolida é a soberania do
sujeito do conhecimento e a consequente "morte" episternoló-
gica do "cuidado".
3. Terceiro cruzamento - R vida dos homens infames
Com efeito, enquanto a possibilidade do pensamento se
encerra no cerco estrito da razão, a população dos "desarrazoa-
dos" é confinada entre os muros do internamento. "Homens de
desrazão":", conhecemos a longa lista que a leitura da História
da loucura nos permite compor: são pobres, vagabundos e
sem-trabalho; são correcionários, detentos e condenados; são
devassos, libertinos, impudicos, doentes venéreos, prostitutas
e homossexuais; são bêbados e mentirosos; são filhos ingratos,
jovens que perturbam o sossego das famílias e pais dissipadores;
são blasfemadores, suicidas, alquimistas, feiticeiros e mágicos;
são insensatos, cabeças alienadas e espíritos transtornados". Mas
é esta lista que nos envia a outro texto, A vida dos homens infames.
À entrada do texto, Foucault adverte: "Isto não é uma obra de
história. O acervo que aqui encontraremos não obedeceu à regra
mais importante que o meu gosto, o meu prazer, uma emoção,
o riso, a surpresa, um certo assombro ou outro sentimento
25. Ibid., p. 117; ed. br., p. 103-104 (aqui traduzido por "homens do
desatino").
26. Esta lista é obtida de várias passagens ao longo de todo o livro. A
relação que ora elencamos retoma e amplia aquela que já havíamos reunido
em nosso artigo O mesmo e o outro - faces da História da loucura, in
S. MUCHAIL, Foucault, simplesmente, São Paulo, Loyola, 2004, p. 44-45.
o cuidado de si - momento cartesiano I 65
qualquer, cuja intensidade talvez fosse difícil justificar, agora que
é passado o primeiro momento de descoberta. É uma antologia
de existências". Ali, Foucault reproduz trechos de registros de
internamento (datados do século XVII) cuja forma original era
de "queixas, denúncias, ordens ou relatórios'?", colhidos em
"arquivos de reclusão, da polícia, das petições ao rei e das lettres
de cachet"?". Percorrendo este curto texto sobre vidas inglórias
- onde Foucault esbanja comoção e beleza -, podemos então
completar, por assim dizer, aquela relação recolhida ao longo da
História da loucura com outra lista de "desarrazoados": o "frade
apóstata, sedicioso, capaz dos maiores crimes, sodomita, ateu
até mais não poder ser, um verdadeiro monstro de abominação";
"o usurário fantasista e inconsequente"; "remendões, soldados
desertores, vendedoras de roupa, tabeliães, monges vagabun-
dos"; "o monge escandaloso, a mulher espancada, o bêbado
inveterado e furioso, o mercador dado a contendas"; "o monge
apóstata, os pobres espíritos extraviados"; "a mulher desprovida
de qualquer sentimento de religião, de honra, de probidade e
até de humanidade"; "o jovem estroina, mau filho e devasso";
"mulheres de maus costumes e fedelhos danados"; "jovens
desobedientes"; os que cometem "desentendimentos domésti-
cos", "excessos do vinho e do sexo", "brigas públicas", "paixões
secretas?". O que surpreende nestes registros é o contraste
entre a pequenez das vidas narradas e a grandiloquência das
narrativas. Por um lado, pessoas comuns e desventuradas, sem
fama, desafamadas, "personagens miseráveis", "vidas ínfimas",
"existências inessenciais" e "homens obscuros", "pessoas sem
27. M. FOUCAULT, La vie des hommes infames, in Dits et écrits, III, p. 239;
ed. port.: A vida dos homens infames, trad. Antônio F. Cascais,Eduardo Cordeiro,
in O que é um autor?, Lisboa, Vega, 1992, p. 94.
28. Ibid., p. 243; ed. porc., p. 104.
29. Ibid., respectivamente p. 237-238, 238, 239, 242, 243, 244, 244-245,
245,24~24~ed por~,p. 91,92,95, 101, 103, 10~ 10~ 110, 113, 116.
66 I Foucault. mestre do cuidado
importância", "absolutamente destituídas de glória", "maltra-
pilhos, desgraçados, simples medíocres'?", cujos delitos, infelici-
dades e vicissitudes não passam de "desordens insignificantes"
e "infortúnios comuns", "mal minúsculo da miséria e da falta
venial", "vigarices" ou "bebedeiras" e "pequenos desvios de con-
duta", "turbulências minúsculas", "vileza obscura" ou "pequena
intriga'?'. Por outro lado, na descrição destas vidas ordinárias
e de suas tão pequenas desditas cotidianas, a intensidade ex-
traordinária e exorbitante das narrativas, palavras perpassadas
de "fulgor", de "clarão" e "solenidade", "linguagem decorativa,
imprecatória ou suplicante", "retórica grandiosa" e "suntuoso
edifício verbal", "discurso empolado" numa cumplicidade de
"expressões rudes, desajeitadas, malsoantes", com "frases sole-
nes e descabidas'l". Nesta estranha desproporção entre o que
se diz e o modo de dizê-Ia, a realidade destas vidas acaba por
transformar-se no texto que as relata, tornando-se "existência
puramente verbal" e subsistindo tão somente "no abrigo precário
das palavras"; uma "discursificação do cotidiano't" substitui,
por assim dizer, a concretude das existências pelas frases que
as "representam", Permitindo-nos também um "salto" cronoló-
gico, poderíamos ilustrar esta situação evocando uma analogia
com um procedimento atual da legislação brasileira, noticiado
em jornal: trata-se dos casos de "pequenos furtos" (no- valor
equivalente a cerca de R$ 1,00) pelos quais o acusado, como
em qualquer outro crime, é preso e sofre processo na justiça
comum (envolvendo despesas em valor equivalente a cerca de
30. Ibid., respectivamente p. 238, 238, 241, 242-243, 250; ed. port.,
p. 91, 92, 99, 102, 121.
31. Ibid., respectivamente p. 244, 246, 246, 246, 249; ed. por~, p. 108,
112, 113, 117, 119.
32. Ibid., respectivamente p. 241, 244, 249, 249, 249; ed. port., p. 99,
109, 118, 119, 119-120.
33. Ibid., respectivamente p. 242, 245; ed. port., p. 100, 111.
o cuidado de si - momento cartesiano I 67
duas mil vezes o do objeto furtado); são chamados "crimes de
bagatela", cuja real insignificância é como que substituída por
sua "ritualização" judicial". Mas o próprio Foucault ilustra, por
assim dizer, a situação das vidas infames, usando repetidas vezes
a metáfora do teatro: como se nos limites de um "palco" uma
"encenação da vida" transformasse aquelas pequenas existências
em "estranhos poernas=".
No propósito de alinhavar a trama do "momento carte-
siano", retomemos os cruzamentos anteriores. Podemos pre-
sumir então que, assim como no

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