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1 O Fluxo Circular da Renda Revisitado em uma Perspectiva de Sustentabilidade: os intangíveis e o posicionamento das organizações Marcos Felipe Magalhães Lia Hasenclever∗∗∗∗ Resumo O objetivo deste artigo é rever a proposta de representação do sistema econômico através do fluxo circular da renda à luz do conceito de sustentabilidade, evidenciando a importância da troca de valores intangíveis que permita a perenidade do sistema econômico. A metodologia adotada foi uma revisão da literatura sobre os temas representação do sistema econômico e dos valores intangíveis. Os resultados apontam para uma nova perspectiva de compreensão da realidade econômica com sustentabilidade, denominada Fluxo Sustentável de Valores. Nesta perspectiva as organizações precisam se posicionar não só atendendo aos princípios de racionalidade econômica, mas também atendendo aos interesses das partes interessadas na perenidade do sistema. Palavras-chave: Sustentabilidade SOI; Valor; Fluxo de Valor; Intangíveis; Recompensas; Partes Interessadas (stakeholders); Fluxo Circular da Renda; Perfil de Sustentabilidade ∗ Respectivamente, pós-doutorando IE/UFRJ e doutor em Ciências de Engenharia de Produção (Coppe-UFRJ) e professora associada IE/UFRJ e doutora em Ciências de Engenharia de Produção (Coppe/UFRJ). 2 De “cœteris paribus” para “mutatis mutandis” O Fluxo Circular da Renda (FCR) é a representação clássica da união dos fluxos reais e monetários de uma economia para retratar como esta se movimenta, considerando o modo como os agentes econômicos transacionam entre si. Seus principais objetivos são a demonstração das identidades contábeis entre Produto-Renda-Despesas e a indicação das entradas e saídas que ocorrem para assegurar o equilíbrio da economia e dos principais agregados macroeconômicos, tais como Produto Interno Bruto (PIB) e outros. Enquanto a economia clássica estuda o problema da escassez – a escassez é fundamental para essa abordagem da economia, pois é ela quem dá o valor das coisas –, a abordagem econômica que considera os intangíveis é movida não apenas pela escassez, mas também pela abundância: abundância de produção, abundância de consumo, a abundância de mercados e quase-mercados,1 desencadeando fenômenos tais como desperdícios, obsolescência, redundância e volatilidade (GOLDFINGER, 1997). Além dessas considerações, há que se acrescentar as preocupações com a base da pirâmide e assumir que o que outrora foram entrelinhas do processo se transformou em cabeçalho: o estudo dos desejos ilimitados versus recursos limitados, ou a questão da sustentabilidade ambiental, social, econômica e individual. Este artigo, inspirado nos conceitos consagrados do fluxo de renda da economia clássica, pretende trazer outras considerações originais sobre a contribuição dos valores intangíveis (não monetários) a fim de apresentar um modelo que introduz uma nova perspectiva de sustentabilidade embutida nos fluxos econômicos: o Fluxo Sustentável de Valores (FSV). A partir dessa visão, os autores propõem a representação de um modelo dos fluxos de valores econômicos, que são maiores do que as trocas realizadas no mercado e maiores do que as necessidades tangíveis, ou seja, que considera tanto os fluxos tangíveis – estabelecidos pelos preços na troca de esforços (fluxos monetários) –, quanto os fluxos intangíveis – valores subjetivos imperceptíveis, no curto prazo, pelos sinais de mercado, mas que provocam transformações, em longo prazo, nos valores e na qualidade dos fatores essenciais de produção cujo conceito, neste trabalho, se expande compreendendo a terra, a sociedade, as empresas e os indivíduos, afetando a sustentabilidade dos sistemas econômicos. Um modelo é uma representação simplificada de um mundo real que incorpora, em sua construção, fatores e variáveis relevantes. Porém, os modelos econômicos não têm a pretensão de acolher todos os agregados do universo. A simplificação e abstração impostas aos esquemas não são problemas insanáveis; o perigoso sempre são as aferições imediatas 1 Estrutura institucional do setor público que se destina a colher os ganhos de eficiência dos setores privados sem perder os benefícios de equidade dos sistemas de administração e financiamentos públicos. No Brasil, são as chamadas parcerias público privadas (PPP). 3 de modelos unicelulares e, desse modo, representar a sustentabilidade em um modelo é o nosso desafio. Finalmente, a partir do tratamento macroeconômico do FSV, é apresentada uma proposta de posicionamento microeconômico das organizações que procura identificar como estas lidam com a sustentabilidade dos fatores de produção, priorizando a natureza do fluxo. Em outras palavras, procura-se identificar em que medida cada organização se posiciona para ser justa no cumprimento de sua missão, respeitando a sua própria hierarquia dos fatores de produção, e se manter comprometida com os objetivos de sustentabilidade das demais partes interessadas. I – A sustentabilidade dos fatores de produção A sustentabilidade é uma característica de sistemas dinâmicos que são capazes de se manter com o tempo, ou seja, não é um ponto fixo que possa ser definido nem o fim de um caminho que possa ser desenhado. Refere-se à preservação e manutenção do valor dos recursos não renováveis ou administráveis: ambientais, sociais, organizacionais e individuais, utilizados em um contexto evolutivo, a fim de atender aos objetivos de perenidade das partes interessadas2. Apesar de não existir um consenso sobre a melhor maneira de se perceber a sustentabilidade, observa-se certa concordância de que determinadas práticas contribuem para o perfil de perenidade dos sistemas econômicos e das organizações. Por exemplo, para alongar sua sustentabilidade, os ambientalistas costumam observar a depleção dos recursos naturais; a sociedade discute os conceitos de desenvolvimento; os economistas calculam a possibilidade de se sustentarem, no futuro, as taxas atuais de produtividade dos ativos; e os sociólogos refletem sobre os efeitos do estresse nas condições de trabalho. A abordagem de sustentabilidade proposta neste artigo, e doravante denominada sustentabilidade SOI,3 é, portanto, bastante abrangente. Ela considera os diversos aspectos da sustentabilidade e propõe planos de ação a ocorrer no curto prazo, mas devidamente orientados por uma política que considera os efeitos de longo prazo e os mecanismos organizacionais com habilidade de traçar as melhores trajetórias no uso sustentável dos recursos. Essa abordagem também admite um conjunto de mensurações específicas para as condições ambientais, organizacionais e individuais e suas inter-relações. Os melhores cenários de sustentabilidade do sistema econômico serão aqueles em que o grau de satisfação das recompensas SOI entre os agentes econômicos for obtido com sustentabilidade entre os sacrifícios dos sistemas, naturais ou administrados. Isso também 2 Pessoas, grupos, ou entidades de qualquer ordem, que tenham compromissos, expectativas, relações, ou interesses, diretos ou indiretos, nas ações, legados, impactos, resultados e recompensas, sem os quais a organização não se justificaria. 3 O anagrama incorpora o conceito de recursos SOI – Sociedade, Organização e Indivíduos. 4 implica medir os desgastes, considerar as possíveis perdas de elementos fundamentais dos organismos e as tensões existentes em cada sistema, na medida em que a magnitude de tais tensões serve como um indicador útil da pressão nos sistemas subjacentes, em um contexto de emergência no mundo contemporâneo. Os sistemas que tiverem tido respostas abaixo das expectativas tendem a ser descartados ou modificadose os que tiveram êxito merecem ser repetidos. No entanto, a mera reprodução dos ciclos não garante a manutenção do sucesso, e o crescimento não consegue se sustentar em modo contínuo. A sustentabilidade só é alcançada se a busca de excelência na execução for aliada a cuidados na renovação dos insumos daquele processo específico. Uma vez que os fluxos são, por definição, baseados em recursos não renováveis, as recompensas tendem a ser menores e, até mesmo, a se esgotar. Isso significa que sustentabilidade é a capacidade de sustentar o crescimento dos fluxos econômicos por meio da renovação dos recursos disponíveis, sejam estes da terra, da sociedade, das empresas ou dos indivíduos. A sustentabilidade, como um conceito sistêmico, deve estar relacionada com a continuidade dos recursos ambientais, sociais, econômicos e individuais capazes de afetar a perenidade das organizações e de expressar seu maior potencial no presente e que, ao mesmo tempo, sejam preservados para atingir a excelência na manutenção indefinida de seus valores. No núcleo da economia agrícola, havia uma relação entre homem, natureza e produtos naturais. A relação na economia industrial era entre homem, máquina e produtos. A economia pós-industrial é estruturada em torno de relacionamentos entre homem, ideias e símbolos. A fonte de valor econômico e a riqueza não está mais na produção de bens materiais, mas na criação e manipulação de valores intangíveis (GOLDFINGER, 2000). A escola clássica dos economistas concentra-se em recursos físicos, na definição de seus fatores de produção, e na distribuição de custos e valor entre tais fatores. Terra – indicando não só as terras cultiváveis e urbanas, mas também os bens naturais, como água, ar, solo, minerais, flora e fauna, que são usados na criação de produtos; o pagamento para o uso e a renda de terra são os aluguéis. Capital – compreendendo edificações, fábricas, maquinaria e equipamentos e todos os recursos financeiros aportados na produção dos bens; a recompensa do capital é o lucro. Trabalho, referindo-se às faculdades físicas e intelectuais dos seres humanos que intervêm no processo produtivo; os rendimentos recebidos pelo próprio trabalho são os salários. O aluguel, como remuneração única da terra, trata igualmente o empreendedor consciente e o predador contumaz. Na economia que considera os intangíveis, os aluguéis não bastam para remunerar o uso dos bens naturais, na medida em que não considera a manutenção, 5 recuperação, preservação e finitude dos bens, custos de extração, nem distingue a qualidade do processo (uso extensivo dos recursos ou artifícios tóxicos, etc.). Lucro como critério de retorno do capital iguala o capitalista selvagem ao empresário ético. Na economia que considera os intangíveis, o lucro não pode ser o indicador único para recompensar o capital, pois não considera os efeitos sociais e ambientais do empreendimento. Salário como remuneração exclusiva do trabalho equipara o empregador responsável e o capataz desumano. Na economia que considera os intangíveis, os salários não bastam para remunerar o trabalho, na medida em que não considera as condições de trabalho, qualidade de vida e progresso pessoal do trabalhador. Eventos como a Revolução Industrial, as transformações sociais ocorridas no século XX – a urbanização crescente, a produção em massa, o desenvolvimento tecnológico e das ciências – e as mudanças nas estruturas e na organização dos governos, entre outros, alteraram de forma significativa a classificação de recursos e fatores de produção fundamentais pela geração de riquezas, tornando necessário expandir tal conceito para incluir, como quarto fator de produção, a sociedade, representando não apenas o Estado que concede o direito de fazer negócios, mas também os recursos sociais e as condições macroeconômicas da região que interferem na competitividade das organizações. Na mesma linha de racionalismo, a Teoria do Valor-Trabalho afirma que sem esforços produtivos, os produtos naturais não têm valor, uma vez que a natureza oferece poucos bens que as pessoas podem usar em sua forma natural, ou seja, sem esforços humanos antes de serem consumidos. Assim, não se considerava o valor intrínseco do bem senão pelo esforço de obtê-lo e não por sua finitude. A água, por exemplo, é tecnicamente um bem livre, graças a sua abundância, e seu custo está no esforço de distribuí-la ou processá-la, não na sua preservação até o limite em que a sociedade perceba o risco de escassez, o que a tornaria valiosa desde então. O conceito de escassez, ou raridade de um bem, é inversamente proporcional a seu valor, mas na abordagem de sustentabilidade também se considera ter que repor para o futuro aquilo que se fez escasso, e nas mesmas condições – tangíveis e intangíveis – do presente. Esses conceitos subjetivos de valor tornaram-se devidamente percebidos pela sociedade desde o crescimento da importância do conceito de sustentabilidade cristalizado pelo Relatório de Brundtland (1987)4. 4 O desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. 6 O conceito de sustentabilidade SOI implica conquistar a perenidade das organizações por meio da justa remuneração de cada um dos fatores de produção fundamentais para a geração de riquezas. A remuneração justa é aquela, e somente aquela, que compensa o esforço proporcional aplicado na produção do bem e/ou serviço e que considera também o esforço de sustentabilidade para aquele recurso. Cada um dos fatores essenciais de produção – terra, sociedade, empresas ou indivíduos – deve obedecer à lógica de que “a cada ação corresponde uma reação em sentido contrário”. Quando esse princípio é aplicado em gestão, a cada atividade exercida e/ou cada esforço aplicado e/ou cada investimento feito deve corresponder um retorno, ou seja, um resultado, uma compensação ou uma recompensa. Se o retorno for menor que o esforço, ou implicar a depleção do sistema econômico correspondente, sua sustentabilidade estará comprometida pela perda. A reposição, reconstrução, preservação ou reintegridade dos recursos é, portanto, condição essencial de fluxos econômicos sustentáveis. Ocorre que cada um dos fatores de produção aporta aos fluxos econômicos recursos que são diferentes quanto aos valores objetivos, seja pela raridade, pela complexidade ou pelos esforços necessários para obtê-los, mas também pela complexidade dos valores subjetivos de cada um desses fatores. Desse modo, não podemos nos referir apenas a moeda/preço como conversor universal ou medida de equivalência do valor de troca em todos os fluxos econômicos, já que nenhum bem tangível está completamente despojado de atributos de qualidade percebida5 e os fluxos monetários espelham somente a escassez relativa dos bens e não sua condição de finitude. A qualidade – valor intangível – deve significar diferentes atribuições de valores na balança das recompensas de cada fluxo econômico. E como não estamos considerando identidades contábeis, como veremos mais adiante, devemos encontrar, para o fluxo de cada fator de produção, uma relação única de contrapartida. Uma relação única de contrapartida significa que os argumentos ou atributos de cada fluxo sejam percebidos com a mesma essência, qualidade, característica ou valor intrínseco pelos agentes envolvidos. É, portanto, insustentável que sejam utilizados argumentos diferentes na remuneração dos fatores de produção, já que as recompensas, além de serem equivalentes, devem considerar 5 O fluxo circular de renda admite a moeda/preço como medida de valor. 7 que não existe afinidade econômica isenta de custo de depleção dos sistemasgeradores de recursos. Por exemplo, da terra são esperados recursos naturais cuja finitude se altera na mesma proporção da maior “eficiência” com que são extraídos, extração essa cada vez mais complexa e demandando mais esforços. Do ponto de vista estritamente econômico, produz-se riqueza quando se destrói uma floresta e a madeira é vendida, mas só se produz sustentabilidade quando a utilização dos recursos naturais é compensada com sua renovação. Para garantir que os mesmos recursos estejam disponíveis no futuro, há que preservar, repor e compensar a natureza. Portanto, seria insustentável tratar apenas com impostos, taxas, multas e outros valores monetários, as compensações de danos ambientais. A sustentabilidade do meio ambiente é um tema cada vez mais percebido e valorizado pela sociedade, conforme se acumulam evidências sobre a mudança climática e a degradação do meio ambiente, torna-se relevante considerar a origem biológica e ecológica do processo econômico e relacionar a existência do homem com um limitado estoque de recursos acessíveis, disponíveis desigualmente em localidades e formas de apropriação. Da sociedade são esperados recursos sociais, que são os esforços organizados pelo coletivo para o bem comum, desde a organização de governo, passando pela infraestrutura e as condições de competitividade, etc. Os recursos sociais também obedecem à mesma lógica de valor pela qual a raridade, a complexidade e os esforços devem ser recompensados idealmente na mesma medida da qualidade do serviço recebido. É insustentável que o desenvolvimento econômico-social seja medido somente na forma de impostos e contribuições sociais, obrigatórias ou espontâneas. Adequados seriam novos indicadores de riqueza que apontassem a melhoria do padrão de vida, a felicidade e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto. A sustentabilidade política e social é tema de consideração desde que Adam Smith, publicou, em 1776, seu livro intitulado A riqueza das nações, estabelecendo as bases científicas da economia moderna e revelando três preocupações básicas: que fatores eram responsáveis pela riqueza das nações e como ocorre o crescimento econômico; a coesão social; e a direção para a qual caminharia a sociedade. A sustentabilidade das empresas trata de garantir para as gerações futuras a integridade dos ativos tangíveis e intangíveis disponíveis no presente, visto que elas se relacionam ao aporte de ativos físicos, financeiros e outros valores intangíveis da organização com uma expectativa variável, porém essencial, de retorno no tempo e no volume. 8 O modelo FSV propõe que o fluxo das empresas seja avaliado quanto à geração de riqueza e crescimento econômico, compensações dos valores ambientais, sociais e humanos, que, por sua vez, estariam sendo devidamente avaliados nos seus respectivos fluxos econômicos. Os indivíduos como fator de produção na era do conhecimento teve sua importância aumentada para assegurar a perenidade das organizações. Os recursos humanos são recompensados com valores monetários – salários e outras formas de remuneração direta, fixas ou variáveis. Nessa lógica, é insustentável pedir aos trabalhadores que deixem de receber salários em tempos de crise para as empresas, salvo se vierem a ser recompensados com a própria empresa, já que, nesse caso, eles estariam agindo como capitalistas que investem seus salários como recursos financeiros. Mas, além desses valores monetários,são os investimentos em intangíveis – desenvolvimento pessoal e qualidade de vida no trabalho – que garantem a sustentabilidade desse recurso humano. Na busca da sustentabilidade dos indivíduos, os gestores não podem esquecer que estão lidando com seres humanos, que merecem toda a consideração de qualidade de vida, mas não podem deixar de lado o fato de que estão lidando com recursos, que também merecem toda a consideração como qualidade de utilização. Tratar as pessoas como se fossem verdadeiramente ativos não apenas impacta como são “contabilizadas” pela empresa, mas também como esse tratamento afetaria positivamente o desempenho financeiro desta em longo prazo. Se, por exemplo, a busca de talentos for planejada com o mesmo cuidado e a devida diligência como a de um ativo físico adquirido para melhorar o desempenho da empresa e, em seguida, o capital intelectual for alimentado e mantido da mesma maneira que se cuida dos equipamentos e sistemas, tais empresas não considerariam cortar o orçamento de formação ou a retenção de pessoas para alcançar resultados de curto prazo (LUSTGARTEN, 2004). A conclusão é que os argumentos, ou a medida dos esforços, da terra, da sociedade, das empresas e dos indivíduos precisam ter uma relação única de contrapartida no que diz respeito às respectivas recompensas, visto que os totais, em cada fluxo e em seu conjunto, são imensuráveis do ponto de vista monetário. Desse modo, não é possível considerar o conceito contábil de resultado líquido das transações (a chamada última linha ou bottom line), ainda mais se multiplicarmos essa dificuldade levando em conta um conjunto de objetivos de interesses distintos, isto é, o resultado que interessa ao planeta, ao lucro e às pessoas, como propôs Elkington (1998) com a expressão triple bottom line. O que garante a sustentabilidade dos fatores de produção é a porção intangível de cada um deles. São os esforços que os sistemas econômicos põem na preservação e recuperação, no 9 consumo consciente, no cuidado com as externalidades,6 na qualidade esperada, etc., os quais não são captados pelo sistema de moeda/preço. As recompensas intangíveis dos fatores de produção não são compensatórias ou substituíveis entre si. Tratar bem a natureza não autoriza desrespeito aos direitos humanos; gerar lucros não pode ser feito com o sacrifício da sociedade; e assim por diante. A porção tangível das recompensas, ainda que contenha referências monetárias, também não pode ser enquadrada no mesmo fluxo econômico, uma vez que as recompensas são assíncronas no tempo, significando taxas de recuperação e retornos variáveis, desde salários mensais, impostos anuais, lucros plurianuais e até décadas de investimentos em recuperação ambiental. Em determinado lapso de tempo, é impossível fazê-las corresponder à proporção de valor de seus respectivos esforços. Desse modo, o modelo FSV considera que todas as políticas devem ser racionalizadas em nome da sustentabilidade e medidas pelo alcance ou avanço nos objetivos de cada agrupamento de partes interessadas, transcendendo a sociedade e os indivíduos. No jogo da perenidade, em que se lida com o coletivo e com a escassez não existe vitória de um, pois não existe fim; não existe o ótimo, mas sim a satisfação contínua de todos representados em seus respectivos fluxos econômicos. É obrigação de todo indivíduo e de suas organizações fazer com que a riqueza, não apenas a sua, se expanda pelo mundo a seu redor (BONDER, 2004). A riqueza é o maior nível de organização obtido pela transformação possível do ambiente – de tal maneira que tudo o que é vivo, e que seja importante para o que é vivo, exista sem escassez; isto é: que todos os recursos, ou tudo o que contribua para a geração de recursos, sejam perenizados. II - As expectativas dos agentes econômicos e das partes interessadas A geração permanente de valor é a condição essencial para garantir a perenidade dos sistemas econômicos e inclui saber o que é valor, para quem se agrega valor e como o valor é percebido. O valor de um sistema econômico para uma sociedade está relacionado a sua razão de existir e à qualidade com que ela cumpre sua missão e ocupa o espaço que pretende em defesa do meio ambiente, do desenvolvimento social, da competitividade das organizações, e na vida das pessoas. 6 Externalidades, também chamadaseconomias (ou deseconomias) externas, cujos efeitos – em termos de custos ou de benefícios – são gerados pelas atividades de produção ou consumo exercidas por um agente econômico e que atingem os demais agentes, sem que haja incentivos econômicos para que seu causador produza ou consuma a quantidade referente ao custo de oportunidade social. Na presença de externalidade, o custo de oportunidade social de um bem ou serviço se difere do custo de oportunidade privado, fazendo com que haja incentivos não eficientes do ponto de vista social. Portanto, externalidades referem-se ao impacto de uma decisão sobre aqueles que não participaram dessa decisão. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 14 fev. 2003. 10 Os diferentes participantes do sistema econômico – agentes e partes interessadas – têm uma percepção de valor e uma expectativa exclusiva do conjunto de recompensas geradas pelas ações da organização, incluindo as atividades em que ele participe diretamente ou, até mesmo, até nas que ele não participe, mas sofra influências. O sucesso de empreender depende da participação de agentes e partes interessadas no contexto macro da sociedade e, por isso, é necessário assegurar que as expectativas e necessidades sejam conhecidas e consideradas por todos envolvidos. De modo geral, essas expectativas envolvem recompensas de todas as ordens e espécies, como o reconhecimento da sociedade, a satisfação das necessidades dos clientes, sentimentos de pertencimento, resultados éticos e comportamentais que vão além das compensações financeiras. Um empreendimento sustentável é aquele que procura atender da maneira mais harmônica possível os interesses próprios das partes interessadas, hierarquizando as recompensas na medida dos esforços e da importância de cada uma das partes. Agentes e partes interessadas têm interesses específicos, e o envolvimento de todos, que se manifestam em diferentes níveis de satisfação, permite encontrar um alinhamento de forças e minimizar riscos quanto aos investimentos e esforços aplicados em sua execução. Uma organização que pretende ter uma existência estável e duradoura deve atender simultaneamente às necessidades de todas as partes interessadas. A sociedade atual tem valorizado cada vez mais a perspectiva de Sustentabilidade SOI, como demonstram o surgimento de novos movimentos de participação cidadã em assuntos de interesse público, que de forma direta ou indireta têm uma clara relação com as ciências de gestão pública ou privada, e como são tratados os problemas da poluição ambiental, do desenvolvimento sustentável, da qualidade de vida, do conhecimento e controle da informação, etc. Cada vez mais a sociedade cobra das empresas a preocupação com o imperialismo cultural e a perda de valores e costumes locais; a monocultura do comércio mundial; a degradação ambiental; as injustiças sociais e a melhoria do IDH de seu entorno; o capitalismo selvagem; a qualidade de vida no trabalho; ou qualquer forma de corrupção, entre outras tantas questões de interesse comum. A perseguição de objetivos próprios não significa necessariamente atitudes egoístas, se os objetivos de terceiros forem respeitados. A perseguição de custos menores é legítima se estes forem conquistados pelo aumento de eficiência e se não for com sacrifício dos interesses de famílias, do governo, da natureza. 11 A noção de desenvolvimento sustentável encontra-se, portanto, associada à ideia democrática de que todas as partes interessadas são responsáveis por uma parcela na perenidade dos sistemas econômicos. Nesse sentido, o êxito na implementação dos projetos de extensão de vida dos sistemas econômicos depende, em grande medida, dos diversos agentes sociais e organizacionais, da possibilidade de estabelecimento de parcerias, de mobilização de todos os recursos endógenos e exógenos a partir de uma perspectiva de compromisso com a cultura, o meio ambiente, o desenvolvimento humano e a infraestrutura econômico-social. Assim, os sistemas econômicos devem ser vistos como limitados e integrantes de uma realidade mais complexa que envolve a relação entre o grupo hegemônico (Estados, empresas, investidores, proprietários, ONGs, etc.), as culturas populares (classes subalternas: trabalhadores, pequenos proprietários, desempregados, etc.) e a cultura de massa e tecnológica (meios de comunicação de massa, internet, comunidades e redes temáticas, etc.), numa orientação crítica perante essa realidade. III - Os quatro fluxos de valor: terra, sociedade, empresas, indivíduos A economia dos intangíveis é a realidade de hoje. Há, no entanto uma considerável lacuna entre essa realidade e sua percepção por economistas, líderes de opinião e políticos que continuam a tratar intangíveis como periféricos ou contingenciais. A necessidade de um novo modelo conceitual para a economia moderna é primordial, e depende de um quadro alternativo, baseado em uma definição de tendência: a mudança de tangível para intangível. A paisagem econômica do presente e do futuro já não é moldada por fluxos físicos de materiais, mercadorias e produtos, mas também por etéreos fluxos de dados, imagens e símbolos (GOLDFINGER, 2000). Segundo ALLEE (2008), uma das questões mais importantes e desafiantes ao trabalhar com intangíveis é “como converter ativos intangíveis como conhecimento, estruturas internas, métodos de trabalho, reputação e relacionamentos comerciais em formas negociáveis de valor”. A análise da rede de valor proporciona um modo de moldar, analisar, avaliar e melhorar a capacidade de uma empresa para converter ativos tangíveis e intangíveis em outras formas de valor negociável e de perceber um valor maior para si própria. A dificuldade de avaliar os impactos dos investimentos em intangíveis advém do fato de que estes não apenas influenciam as condições de sobrevivência das organizações que competem, mas também geram uma série de externalidades sobre os ambientes em que tais organizações se inserem. 12 Além disso, os efeitos desses investimentos são não só variados, mas também têm várias dimensões. Por um lado, podem tornar-se tangíveis pela melhoria da qualidade de gestão ou da quantidade de esforço aplicado aos capitais organizacionais, gerando recompensas SOI – Sociedade, Organização e Indivíduos. Identificar ativos intangíveis ou classificar os investimentos intangíveis esbarra ainda na classificação contábil, que estabelece que os investimentos devem gerar depreciação e amortização, ou devem ser reclassificados como despesas ou custos e, portanto, não ativáveis, consumidos no fluxo de produção. Do ponto de vista conceitual, a construção de valores pode advir de esforços tangíveis ou intangíveis que, por sua vez, podem gerar recompensas tangíveis ou intangíveis, em curto e longo prazos, como foi apresentado no FSV. A aplicação, na microeconomia, dos conceitos do FSV ajuda na formação de um sentido crítico, ativo, consciente e engajado socialmente dos gestores, ao constatar que tais gastos podem atuar como motivação para uma transição para um futuro melhor dos ambientes da natureza, da sociedade, das empresas e dos indivíduos. Subjacente a essa abordagem está o entendimento de que os relacionamentos intangíveis, fortes e dinâmicos, e os ativos intangíveis que constituem esses relacionamentos e sobre eles exercem impacto são a base de qualquer esforço da organização. De fato, o sucesso futuro de uma organização depende de quão eficientemente ela consegue converter uma forma de valor em outra. Um exemplo de conversão de valor dá-se quando um ativo intangível, como a expertise profissional, é convertido numa forma mais negociável de valor, como os serviços de consultoria. A dinâmica da troca também se aplica à percepção de valor. Um exemplo é quando um insumo de valor tangível, como os relatórios de inteligência de mercado adquiridos,converte-se num ativo não financeiro de níveis maiores de competência em marketing. Uma década de pesquisa e prática em capital intelectual demonstrou que o impacto das intervenções e ações organizacionais (ou rede orientada para um objetivo) deve ser entendido tanto em termos tangíveis como intangíveis (ALLEE, 2008). Ativos intangíveis abrangem os relacionamentos, o know-how e as competências do empregado, a eficácia dos grupos de trabalho e da estrutura da organização, a eficiência dos processos de serviço e de produção da organização, e o nível de confiança entre as pessoas ou organizações que formam os relacionamentos. Confiança é uma expressão do alto nível de capital social, tanto dentro da organização quanto fora dela, expressa como reputação e marca. 13 Mas, é importante evitar a falácia de que a economia dos intangíveis seja determinada pelo crescimento da tecnologia. Apesar de importante, e de seu impacto econômico permanecer ainda aberto quanto aos resultados, essa nova abordagem considera tanto à teconologia quanto às tendências no comportamento do consumidor e no ambiente de negócios (GOLDFINGER, 2000) no que concerne ao crescimento da consciência coletiva relativa ao meioambiente, às questões sócio-comunitárias, e a qualidade de vida das famílias. Para compreender a dinâmica da conversão de valor é preciso ir além da visão dos intangíveis como capital de valor e enxergá-los como bens negociáveis e como produtos de uma atividade. No nível macro, o mecanismo primário para converter uma forma de valor em outra é o ciclo econômico. A análise dos fluxos econômicos e das redes, portanto, pode ser utilizada para descrever a dinâmica de criação de valor de grupos de trabalho, organizações, teias de negócios e redes orientados para um objetivo e envolvidos nas trocas de valores tangíveis e intangíveis que sustentam o alcance de resultados específicos e para gerar benefícios econômicos e sociais (ALLEE, 2008). A ideia de que os intangíveis, como quaisquer outros ativos, são aumentados e alavancados por meio de uma ação deliberada está ganhando ampla aceitação. A reputação agora vai além da marca para abranger os ativos de cidadania social e responsabilidade ambiental, demonstradas nos valores e práticas empresariais sustentáveis (ALLEE, 2008). Desse modo, fica evidente que a questão da sustentabilidade está cada vez mais relacionada a e dependente da inserção dos valores intangíveis nos fluxos econômicos. Visto por esse ângulo revolucionário, é possível ampliar, de modo considerável, o clássico Fluxo Circular da Renda, no qual apenas as relações com base em moeda são representadas (Figura1) para um modelo conceitual em que as trocas envolvem a oferta de tangíveis e intangíveis sendo recompensados por pagamentos e outras satisfações (Figura 2). 14 Figura 1. Fluxo Circular da Renda (versão conceitual simplificada) Fonte: Elaboração própria. No caso tradicional (Figura 1), podemos considerar o exemplo de um alfaiate que entrega uma roupa para um cliente e recebe em troca o pagamento do material utilizado na confecção e dos seus serviços de produção. Figura 2. Fluxo Sustentável de Valores (versão conceitual simplificada) Fonte: Elaboração própria. Na nova situação (Figura 2), um alfaiate entrega uma roupa sob medida para um cliente e recebe em troca o pagamento do material utilizado na confecção e dos seus serviços de alfaiataria acrescidos da customização. Os valores tangíveis trocados foram maiores do que no exemplo anterior – maior esforço de produção e maior preço, mas, além disso, houve uma 15 troca de intangíveis – a personalização que foi entregue recebe em troca a fidelização do cliente, ou seja, a sustentabilidade expressa no consumo futuro. O Fluxo Circular da Renda (Figura 3) considera apenas os valores monetários e classifica os agentes econômicos do ponto de vista da propriedade dos fatores de produção. Quem tem terra recebe renda dos recursos extraídos, o governo recebe pagamentos de impostos e contribuições, o capitalista recebe lucro, e quem trabalha percebe salários. Figura 3. Fluxo Circular da Renda Fonte: Montella, 2004. A atividade econômica representada simplificadamente no Fluxo Circular da Renda não é apenas um método convencional de aferição de riqueza e seu fluxo, mas também um argumento para a identificação da produção de valor e das identidades contábeis, onde: Y=C X+G+I=M+T+S Na verdade, considera que a cada esforço corresponde uma remuneração que será tão maior quanto mais escasso for o fator de produção. Portanto, é a escassez o que determina a remuneração, deixando de fora a qualidade e a relação única de contrapartida, que podem envolver valores intangíveis. Para cada um dos agentes, o valor criado é expresso em unidades monetárias, ainda que cada valor se expresse de distintas maneiras, conforme a propriedade do fator: nas empresas é o 16 lucro; nos indivíduos, a renda; no governo, o superávit primário; e no setor externo, o saldo da balança de pagamentos. As empresas maximizam o lucro, enquanto as famílias maximizam utilidades. O Fluxo Circular da Renda é um sistema que supõe que a economia é o todo e não parte de um todo. É um sistema isolado: não têm entradas externas nem saídas para o exterior (CUNHA & HASENCLEVER, 2011). Essa modelagem, no entanto, torna difícil responder à questão de identificar os recursos e ativos intangíveis como conhecimento, estruturas internas, métodos de trabalho, reputação e relacionamentos extracomerciais como contribuindo para a sustentabilidade dos sistemas. E, ainda mais, como expressar matematicamente os valores intangíveis se os resultados são positivos, superavitários ou lucrativos nas diferentes percepções e interesses dos agentes? A utilização, na literatura econômica moderna, da expressão lucro, com e sem aspas, já demonstra que as partes interessadas de organizações diversas têm uma visão particular do que sejam suas próprias condições de expectativas e recompensas. A pergunta que se deve fazer é qual é o objetivo primário, ou a missão genérica de uma organização? Atender de maneira harmônica aos objetivos dos agentes e das partes interessadas (MAGALHÃES, 2012). Seja qual for a situação, ainda que o lucro não seja o sentido da vida empresarial, sem ele não há sobrevivência (COLLINS & PORRAS, 2000). No entanto, o valor do investimento em fatores de produção – na lógica da raridade, complexidade e esforço – traduz-se em termos de risco em uma relação direta. Se, por exemplo, um recurso da natureza se tornar escasso, ou exigir extração mais complexa, ou um maior esforço para obtê-lo, os preços desse fator serão alterados. Porém, um modelo sustentável não admite que essa compensação monetária seja possível sem que haja a preocupação de recompor e preservar esse recurso para as gerações futuras. O lucro expresso monetariamente não pode ser o objetivo derradeiro de nenhuma organização, e as organizações não podem ser homogeneizadas na orientação de suas aplicações ou na apuração de resultados, na miríade de interesses que cerca qualquer empreendimento. O cumprimento de sua missão deve superar, pela importância, todos os demais objetivos organizacionais. Tal conceito não é pacífico na doutrina – e com muitas divergências nos campos da economia, da política, e da sociologia, entre outras ciências –, mas é inquestionável que a aferição de riqueza, ou mais exatamente da apropriação de valores, exige uma nova perspectiva de sustentabilidade. 17 Embora a escolha dos métodos de aferição de riqueza tenha resultado, historicamente, de convenções políticas e acordos internacionais, novos métodos de avaliação estão sendo perseguidos por autores em todo o mundo, e diversas iniciativas louváveis de identificar novos indicadores de riqueza demonstram que o modelo econômicoclássico depende de novas abordagens para capturar a essência do mundo contemporâneo e as demandas complexas e heterogêneas dos agrupamentos de partes interessadas. A inquietude científica com relação aos intangíveis é expressa pelo Prof. Ladislau Dowbor na apresentação brasileira do livro Novos Indicadores de Riqueza (GADREY & JANY-CATRICE, 2007, p. 12 e 13): De toda forma, o que estamos apontando é que a mudança do enfoque das contas econômicas é essencial. Um banco que desvia as nossas poupanças para aplicações financeiras especulativas e apresenta lucros elevados faz aumentar o PIB, mas reduz a nossa produtividade sistêmica ao descapitalizar as comunidades, ao reduzir o uso produtivo das nossas poupanças. O sistema alemão de intermediação financeira, baseado em pequenas caixas econômicas municipais, não apresenta grandes lucros, mas canaliza as poupanças para investimentos socialmente úteis, gerando melhores condições de vida para todos. O “lucro”, nessa visão, tem de ser social, e a produtividade tem de ser sistêmica. O fato de a ciência econômica evoluir para essa contabilidade integral constitui um progresso importante. De maneira geral, o grande avanço para as ciências econômicas, e, na realidade, para as ciências sociais em geral, é a mudança radical de como organizamos a informação sobre os resultados obtidos. Enquanto a medida se resume à soma do valor de produção das empresas e dos custos dos serviços públicos, naturalmente somos levados a achar que o progresso só se dá por meio do lucro empresarial e, até mesmo, que os serviços públicos representam um ônus. Quando passamos a avaliar de maneira sistêmica os resultados para a sociedade no seu conjunto, podemos ter uma visão inteligente do progresso real obtido. A construção de sistemas mais realistas de avaliação do nosso progresso econômico e social vem corrigir uma deficiência estrutural da ciência econômica. Várias metodologias foram sendo construídas e se encontram hoje bastante bem embasadas, como o índice de bem-estar econômico de Osberg e Sharpe, o índice de bem-estar sustentável (Ibes), o indicador de progresso real (IPR), o indicador de poupança real (genuine savings) do Banco Mundial, entre outros que surgiram como alternativas complementares ao PIB.7 Muitos debates foram feitos para discutir possíveis formas de ultrapassar esse indicador-chave (o PIB), reunindo atores de vários horizontes: cidadãos, políticos, instituições econômicas e 7 Para uma visão mais detalhada dos principais indicadores atualmente em questão, ver Gadrey & Jany-Catrice, 2007. 18 acadêmicos.8 O crescente interesse na pesquisa de novos indicadores, por parte de instituições poderosas, constitui um importante fenômeno: novos indicadores desempenham um papel crescente na esfera pública. Por um lado, constituem balizas para conduzir políticas, por outro lado, e mais fundamentalmente, contribuem para a definição de "progresso", uma vez que a escolha de um indicador, ou um conjunto de indicadores, carrega muitos valores e visões de mundo (CASSIERS, 2010). Há mais de sessenta anos, o objetivo de crescimento econômico, quantitativamente avaliado pelo PIB, tem sido fundamental na elaboração de políticas socioeconômicas das economias capitalistas. Criado no contexto específico pós-Segunda Guerra Mundial, os sistemas de contabilidade nacional – cujo principal indicador é o PIB – foram em grande parte moldados para atender à necessidade urgente de reconstrução e para a construção de uma nova imagem do poder nacional. A partir de então, o PIB progressivamente tornou-se uma referência central na formulação de políticas. O crescimento econômico como meta para condições socioeconômicas foi reforçado em virtude de uma ampla aceitação da ligação entre o mercado de produção e progresso social. Essa visão de progresso foi enraizada em pactos sociais, garantindo uma participação equilibrada do valor produzido entre trabalho e capital (CASSIERS, 2010). Hoje, no entanto, os impactos ambientais e sociais do crescimento econômico levaram a um momento crucial: não é mais possível manter o crescimento como um objetivo social implícito. Nem é consistente manter o PIB como referência principal para condições socioeconômicas. O PIB tem sido incapaz de lidar com questões fundamentais relacionadas com a qualidade e a sustentabilidade de pessoas e modos de viver da sociedade. Ele também não foi capaz de alertar contra a ascensão de muitos fatores de crises, como demonstrado por recentes crises financeiras e econômicas (CASSIERS, 2010). Uma das iniciativas mais inspiradoras é a do Felicidade Interna Bruta (FIB),9 em que o cálculo da “riqueza” deve considerar outros aspectos além do crescimento econômico, como a conservação do meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas. O FIB é baseado na premissa de que o objetivo principal de uma sociedade não deveria ser o crescimento 8 Segundo CASSIERS (2010), podem ser destacadas as seguintes iniciativas: - 3o Fórum Mundial da OECD, “Avaliando o progresso, construindo visões, melhorando vidas”, out. 2009, Busan, Coreia; - “Comissão de medição de desempenho econômico e progresso social”; - Conferência internacional do parlamento europeu (em parceria com OECD e WWF), “Além do PIB”, nov. 2007, Bruxelas, Bélgica. - 2o Fórum Mundial da OECD, “Medindo e promovendo o progresso das sociedades”, jun. 2007, Istambul, Turquia. 9 Indicador sistêmico desenvolvido no Butão, um pequeno país do Himalaia. O conceito nasceu em 1972, elaborado pelo rei butanês Jigme Singya Wangchuck. Desde então, o reino do Butão, com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), começou a pôr em prática esse conceito e atraiu a atenção do resto do mundo com sua nova fórmula para medir o progresso de uma comunidade ou nação. Assim, o cálculo da “riqueza” deve considerar outros aspectos além do desenvolvimento econômico, como a conservação do meio ambiente e a qualidade da vida das pessoas. 19 econômico somente, mas também a integração do desenvolvimento material com o psicológico, o cultural e o espiritual – sempre em harmonia com a terra e as pessoas. Em nível macro, o cálculo do PIB, que tradicionalmente leva em consideração a soma das riquezas de um país, está sendo contestado por propostas de se montar um sistema nacional de contas ambientais para medir a renda nacional deduzida de quanto a economia “consumiu” (depreciação) ou “investiu” (apreciação) em capital natural. O conceito de triple bottom line (ELKINGTON,1998), também conhecido como pessoas (people), planeta (planet), lucro (profit), captura um espectro expandido de valores e critérios para medir o sucesso organizacional: econômico, ambiental, social. A proposta da economia do amor (HENDERSON, FLYNN & LICKERMAN, 2000) está sendo encampada por organizações não governamentais a fim de forçar os governos a reconhecer e corrigir seus PIBs adicionando o valor do trabalho não remunerado, o capital humano e social, a minimização da poluição e da exploração do meio ambiente. Em O capitalismo na encruzilhada, ONGs, governos e agências multilaterais são apontados como colaboradores, em questões como responsabilidade das corporações, ao utilizarem o lucro para acelerar a transformação rumo à sustentabilidade (HART, 2006). Mais adiante, esse autor lembra que, na sua infância, as fábricas poluidoras tinham o “cheiro do progresso” e que, em vez de combater a poluição, os problemas ambientais eram tratados pecuniariamente, com impostos para compartilhar resultados ou com multas para criar freios econômicos. A regulamentação dos impactos das corporações nos ambientes, por sua vez, resultou na crença de que as empresas devem sacrificar seu desempenho financeiro para cumprir obrigações sociais– “a grande ilusão do trade-off’” (HART, 2006), ou seja, que a responsabilidade social de uma empresa seria a maximização de seus lucros – e, assim sendo, ela estava preenchendo o seu papel social e de sustentabilidade – e que as preocupações sociais ou ambientais só serviam para reduzir esses lucros (FRIEDMAN, 1970). Nesse sentido, se tudo convergir para a compensação do desgaste por meio de uma abordagem monetária, os gestores das empresas serão condicionados a entender que todas as ações que beneficiam o coletivo da sociedade e da natureza são empecilhos para os resultados que interessam aos acionistas no nível microeconômico. É, portanto, uma medida imperativa e inexorável a de incluir, de alguma forma, os intangíveis da terra, da sociedade, das empresas e dos indivíduos nos fluxos dos sistemas econômicos como única maneira de garantir a sustentabilidade dos fatores essenciais de produção. 20 IV - Posicionamento das organizações que buscam sustentabilidade Para as organizações que buscam a sustentabilidade, o cumprimento da missão vem em primeiro lugar, e o modo como essas organizações hierarquizam suas prioridades e priorizam suas ações é o que determina seu posicionamento em relação à questão da sustentabilidade. Tais organizações privilegiam o comprometimento delas com as expectativas e os objetivos das partes interessadas e, em consequência, o fator de produção diretamente relacionado com sua missão. Dividir o mundo em organizações lucrativas e não lucrativas é uma visão reducionista em todos os sentidos; do mesmo modo que separar o público do privado apenas pelo critério de propriedade dos fatores de produção. A coisa pública também deve ser do interesse do privado, assim como as questões privadas devem ser limitadas pelo interesse público. A criação do rótulo ONG – Organização Não Governamental para designar um grupo social organizado, sem fins lucrativos, constituído formal e autonomamente, caracterizado por ações de solidariedade no campo das políticas públicas e pelo legítimo exercício de pressões políticas em proveito de populações excluídas das condições da cidadania, é uma das evidências da busca de novas caracterizações para agentes que não se enquadram no modelo clássico do Fluxo Circular da Renda. Uma ONG pode ser definida por sua vocação política, por sua positividade política, cujo objetivo fundamental é desenvolver uma sociedade democrática, isto é, uma sociedade fundada nos valores da democracia – liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade. Em uma entidade com esses princípios, os recursos financeiros devem ser suficientes para o funcionamento da máquina administrativa e para a consecução dos objetivos a que se propõe. A denominação não lucrativa significa o reinvestimento dos valores monetários superavitários ou até mesmo a dependência de subsídios para a operação. Do mesmo modo, um organismo de governo com missão estabelecida estatutariamente não objetiva lucro financeiro, mas sim o cumprimento de sua missão, dentro dos limites orçamentários que lhe são impostos. Qual gestor será mais bem avaliado? Aquele que conseguir economizar recursos concedidos ou aquele que mais bem atender às partes interessadas que dependem de um determinado fator de produção? Não há expectativa de que uma organização humanitária priorize a questão ambiental ou distribua dividendos. Também, não seria razoável esperar que os ativistas ambientais cuidem dos sem-teto. Portanto, a empresa deve atender, de maneira lucrativa, a seus objetivos e distribuir resultados, desde que não traga prejuízos à natureza ou ao meio social. 21 Assim sendo, as organizações podem ser classificadas em quatro categorias ligadas aos fatores de produção: entidades com interesses na terra; entidades com interesses na sociedade; entidades com interesses nas empresas; e entidades com interesses nos indivíduos. Entidades com interesses na terra Vamos considerar, para fins da abordagem do valor de intangíveis, quais são os objetivos das partes interessadas e dos agentes, públicos ou privados, e que representam os interesses da sustentabilidade ambiental, e que serão doravante denominados movimentos. Muitas representam movimentos envolvidos nas questões da natureza, impactos ambientais, preservação, conservação, recuperação dos recursos ambientais. Uma organização ambientalista, por exemplo, que arrecada fundos para promover ações de conscientização, fiscalização, etc. precisa bancar seu custeio e suas promoções, mas estará criando valor se tiver contribuído para recuperar a pegada ecológica.10 Ela estará ‘zerando’ o fluxo sustentável de valor ambiental e, em seu conceito, sua gestão teria sido sustentável por ter criado valor para a natureza. Entidades com interesses na sociedade Atendem a partes interessadas e agentes econômicos que visam à preservação dos recursos sociais – seja da infraestrutura, dos tecidos sociais, bem-estar político-social, independentemente das questões de poder. Nessa classificação, estão também incluídos os agentes interessados nas questões de cidadania, acesso dos cidadãos aos direitos humanos e melhoria do IDH. Uma ONG, por exemplo, cuja missão é social precisa de meios para atingir seus fins. Não pode ser deficitária ou terá que ser subsidiada. Seu resultado financeiro pode ser zero e, mesmo assim, as partes interessadas ficarão satisfeitas se ela tiver conseguido utilizar a totalidade da sua receita no cumprimento da tarefa de criação de valor para a sociedade. Entidades com interesses nas empresas Compreendem os agentes, públicos ou privados, e respectivas partes interessadas que tenham como objetivos primários a rentabilidade do capital. Tem interesses nas questões da sociedade 10 O conceito de pegada ecológica foi criado nos anos 1990 pelo suíço Mathis Wackernagel, presidente da Global Footprint Network, como métrica para a sustentabilidade, com o intuito de ajudar o homem a perceber a quantidade de recursos da natureza utilizada para sustentar seu estilo de vida. Um indicador de sustentabilidade que mede o impacto do homem sobre a terra, um indicador da pressão exercida sobre o ambiente, e permite calcular a área de terreno produtivo necessária para sustentar nosso estilo de vida (footprint), no qual se incluem a cidade e a casa onde moramos e nossas relações de consumo, trabalho e lazer. Procura ser uma medida do impacto sobre o planeta, permitindo avaliar até que ponto a forma de viver está de acordo com a capacidade de disponibilizar e renovar os recursos naturais, assim como absorver os resíduos e os poluentes que geramos ao longo dos anos. 22 e do Estado, especialmente nas áreas de Cultura e Valores; Desenvolvimento Humano; Economia Pública, e nas relações políticas e sociais entre esses campos de interesses. O lucro é essencial no modelo econômico tradicional, no qual todos os fatores de produção se subordinam ao capital que, portanto, deve ser remunerado por seu esforço. No entanto, é insustentável que o lucro de um seja o prejuízo de outro,11 visto que a sobrevivência do todo depende da sobrevivência de cada uma das partes. Lucro com desenvolvimento sustentável é não somente atingir resultados tangíveis, como o lucro financeiro, mas também os intangíveis, como a boa reputação corporativa e a fidelização de consumidores (ARBACHE, 2012). Criar valor na dimensão financeira exige: (1) regularidade e transparência com os dados financeiros da empresa; (2) aderência das empresas às diretrizes da chamada economia verde (DANAHER, MARK & BIGGS, 2007); (3) alinhamento com os índices de sustentabilidade, garantindo maior confiabilidade e credibilidade no mercado; (4) práticas de capitalismo inclusivo (riqueza na base da pirâmide); (5) políticas de microcrédito; (6) desenvolvimento de produtos/soluções capazesde produzir a democratização do consumo; (7) ética ao assumir a missão, visão, valores, diretrizes de conduta nos campos do assédio moral, da discriminação racial, das políticas afirmativas e de inclusão; (8) preocupação em manter o bem-estar de seus colaboradores, investir em saúde e segurança no trabalho entre outros; e (9) investimentos e programas sociais realizados pela empresa para o público externo, seja por meio de programas com as comunidades vizinhas e/ou com familiares dos colaboradores. Entidades com interesses nos indivíduos Compreendem os agentes econômicos – pessoas e organizações – interessados na qualidade de vida e no desenvolvimento de pessoas e famílias e associados a atividades produtivas de qualquer ordem (questões relativas a trabalho, emprego, profissão), ou seja, os recursos humanos, inclusive os listados na já citada economia do amor. Na motivação dos indivíduos não é possível transacionar “tudo por dinheiro” e abrir mão de qualidade de vida e satisfação pessoal. Em vez de assumir a tradicional hierarquia das necessidades (MASLOW, 1943), os indivíduos entregam esforços e recebem recompensas das mais diversas formas: moeda, objetos de valor ou recursos; fama, estima, reputação ou reconhecimento; espaço, comida, segurança ou conforto; poder e influência; sentimento de pertencer e associar; criação de pares e reprodução; qualidade, melhorias e conquistas. Os recursos humanos sofrem, como todos os demais, desgastes e perdas. Por isso, é insustentável pagar altos salários e não investir em desenvolvimento, ou oferecer um excelente 11 Negação do ditado latino “Lucrum unibus est alterius damnum”. 23 ambiente de trabalho e compensações para a baixa remuneração. Sem buscar a satisfação das recompensas para os indivíduos, as recompensas para as organizações não se sustentarão, seja no curto ou no longo prazo. A maior exigência para a gestão sustentável, segundo Peter Drucker (1909-2005), é aumentar a produtividade dos empregados e do conhecimento. E, para fazê-lo, é necessário alinhar as pessoas, desenvolvê-las e medir resultados, e isso só é possível se tanto a organização como as pessoas conhecerem e entenderem os indicadores de competitividade que devem estar relacionados com a visão, a missão e os valores da organização e com objetivos corporativos transparentes, sejam estes econômicos ou de responsabilidade social. V - Conclusão: Proposta do Fluxo Sustentável de Valores A sustentabilidade do todo depende da sustentabilidade de cada uma das partes. É a partir das considerações, dos interesses, e dos recursos e expectativas desses agentes, que os autores estão propondo a representação de um modelo dos fluxos de valores econômicos que são maiores do que as trocas realizadas no mercado e maiores do que as necessidades tangíveis. Entre esses agentes, circulam tanto os fluxos tangíveis estabelecidos pela troca de esforços (fluxos monetários) quanto os fluxos intangíveis: valores subjetivos imperceptíveis, no curto prazo, pelos sinais de mercado, mas que provocam transformações em longo prazo nos valores, e na qualidade dos recursos da terra, da sociedade, das empresas e dos indivíduos afetando a sustentabilidade dos sistemas econômicos e a perenidade dos próprios agentes. No ambiente econômico do século XXI, a questão dos intangíveis emerge ainda mais forte quando se trata dos serviços, no sentido bastante amplo, e das implicações do compartilhamento de consumo: compra não é igual a consumo (segurança ou entretenimento são serviços que não são produzidos ou consumidos individualmente); o consumo não implica compra (desfrutar da natureza pode estar associado ao consumo de outros produtos que exigiram esforços de outras partes). As economias de escala dos intangíveis podem estar determinadas pelo uso e não pela produção (os acessos à midia são determinantes para viabilizá-las). Os custos de produção não podem ser utilizados como principal referência para a determinação do preço (a massificação de determinados serviços – informação, por exemplo, não implica aumento de custos de produção). Ainda mais, o consumo e a geração de riqueza estão definitivamente associados, em economias desenvolvidas, a seu conteúdo ético, ao compartilhamento de serviços sociais, a distribuição de bem-estar e à preservação da natureza. 24 O sistema econômico está embebido em um sistema mais amplo com o qual ele realiza trocas, tanto causando desgaste quanto trazendo recompensas, seja em valores tangíveis, seja em intangíveis. A proposta de Sustentabilidade SOI – Sociedade, Organização e Indivíduos – traz uma abordagem que pretende explorar quatro fluxos econômicos nos quais os conceitos de valor sejam desatrelados do binômio lucro/prejuízo, e que passem a ser observados na perspectiva de atendimento, no alcance dos objetivos prioritários de cada um dos agentes econômicos. Por exemplo, se os indicadores de meio ambiente forem atingidos o fluxo entre as entidades com interesse na Terra (movimentos ambientalistas, por exemplo) e outros agentes será positivo, ou neutro, superavitário, mas não necessariamente lucrativo no sentido clássico. O conceito “moeda de troca” deixa de fazer sentido, tanto literal quanto figurativamente. Os fluxos, obviamente, continuarão a conter trocas de moeda para remunerar recursos, entre outras lógicas, mas as transações financeiras não ocorrerão sem acompanhamento de valores subjetivos, que não são comparáveis ou substituíveis. É essa incomparabilidade de valores intangíveis que nos obriga a abandonar as “moedas de troca” pela relação única de contrapartida, isto é, só pode haver troca de intangíveis se as características ou qualidades intrínsecas forem as mesmas nas entradas e nas saídas. Um recurso da natureza pode ser trocado na sua porção tangível por moeda, mas a sua parcela intangível – qualidade, preservação, finitude, etc. – só pode ser trocada por outra da mesma espécie: esforços de recuperação, preservação, etc. O mesmo raciocínio vale para o aporte de cada um dos fatores de produção (terra, sociedade, empresas, indivíduos), que são diferentes quanto ao valor tangível e intangível, significando diferentes interesses na balança das recompensas e, principalmente diferentes objetivos na relação única de contrapartida. A lógica não matemática implica um conjunto inter-relacionado de tendências e forças que afetam todas as atividades econômicas, mudando a natureza das transações econômicas e estruturas de mercado. O consumo de intangíveis exibe propriedades específicas: não independente (está sempre associado a outros produtos, serviços e soluções, sejam tangíveis ou intangíveis); não destrutivo (pode ser consumido repetidamente pelo mesmo consumidor ou por outro); não subtrativo (o consumo de um não reduz o consumo de outro), ou seja, o custo de oportunidade de compartilhar é zero (GOLDFINGER, 2000). 25 O modelo ora proposto, apresentado na Figura 4, pretende ser a representação simplificada, não matemática, dos fluxos de valores de uma economia com a perspectiva de sustentabilidade SOI, considerando o modo como os principais agrupamentos de entidades transacionam, mediante uma relação única de contrapartida, seus esforços e recompensas para assegurar a sustentabilidade de seus respectivos recursos: Figura 4. Fluxo Sustentável de Valores Fonte: Elaboração própria. O FSV apresenta as relações únicas de contrapartida entre agentes e partes interessadas considerando os valores monetários e intangíveis associados aos objetivos de recompensas previstas para cada uma das classes de fatores de produção, a fim de garantir os objetivos de sustentabilidade. O FSV não consegue atribuir apenas valores monetários às transações entre os fluxos, uma vez que as relações únicas de contrapartida não conseguemexpressar a “compra” de compensações ou mesmo totalizá-las. Sob essa perspectiva, índices elevados do PIB não são garantia de desenvolvimento sustentável, pois não levam em conta as agressões ao meio ambiente, as desigualdades sociais ou a desatenção aos recursos humanos, fatos que deveriam comprometer o resultado, se expressos aritmeticamente. 26 Os resultados têm de ser compartilhados e a produtividade tem de ser sistêmica, e o fato de a ciência econômica evoluir para essa contabilidade integral constitui um progresso importante, mas somar ou subtrair o valor de fatores de origens diversas (ambiental, social, capital, humanos) seria o mesmo que somar frutas de árvores distintas. Apesar de reconhecerem a existência da monetarização para compensar danos e perdas, e as tentativas de economistas de buscar indicadores que reflitam essa “nova realidade econômica”, os autores entendem a dificuldade de extrair de um só fluxo – o da renda – todas as “compensações” e propõem a abertura do modelo de tal modo que a tarefa de calcular o impacto das ações ligadas à terra, à sociedade, às empresas e aos indivíduos, sobre os sistemas econômicos, seja feita por meio de indicadores próprios de valores em cada uma das perspectivas desses fatores. Ainda que a prática de desconsiderar as equivalências entre os diferentes fluxos seja uma limitação do modelo, os autores entendem que estão dando uma contribuição significativa para a integridade dos princípios morais e éticos que impregnam o FSV. Por exemplo, considerando os interesses da terra, não há como refletir, em seu fluxo, o direito a vender créditos de carbono. Uma empresa, mesmo contribuindo para o desenvolvimento sustentável e adicionando alguma vantagem ao ambiente, seja pela absorção de dióxido de carbono (por exemplo, com o plantio de árvores), seja por evitar o lançamento de gases do efeito estufa na atmosfera, a quantidade de CO2 que ela retirar ou deixar de despejar na atmosfera ao ser convertida em créditos de carbono. Em algumas sociedades mais conscientes, por exemplo, não existe a multa ambiental. Existe, por outro lado, a obrigação de reparar completamente o dano ambiental e restaurar a pegada ecológica a qualquer custo. Na mesma linha dessa sequência de exemplos e considerando os interesses da sociedade, os impostos serão sempre legítimos se, e apenas se, os serviços públicos oferecidos forem reciprocamente do mesmo nível. As renúncias fiscais podem servir para orientar a política pública de investimentos, mas não servem para compensar ações promocionais das organizações, que estão apenas reorientando a aplicação de suas contribuições sociais. Do mesmo modo, as perdas e o custo exagerado da máquina pública estarão corrompendo o fluxo dos valores da sociedade. Não se pode esperar também que as empresas sejam remuneradas abaixo da sua própria linha de eficiência, desde que cumpridas todas as obrigações com a terra, a sociedade e os indivíduos que contribuem para o retorno do investimento. As empresas, em um mundo globalizado, sempre fluirão para onde as exigências e regulamentações sejam justas e ofereçam segurança em longo prazo. 27 E quanto aos indivíduos? Não é justo “comprar” insalubridade com adicionais, ou oferecer mais dinheiro por insegurança e qualidade de vida. Desse modo, não se compensa, pois não é justo medir a perda de bem-estar psicológico, uso do tempo e padrão de vida. Os agentes que movimentam o FSV estão comprometidos com as partes interessadas: pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, grupos, ou entidades de qualquer ordem, que tenham compromissos, expectativas, relações, ou interesses, diretos ou indiretos, nas ações, legado, impactos, resultados e recompensas, sem os quais a organização não se justificaria (MAGALHÃES, 2012). É, portanto, na questão do interesse prioritário da organização, e seu consequente fluxo de valor e objetivos primários, que pode residir a classificação genérica dos agentes representados. A representação do FSV em quatro fluxos dos fatores de produção, com relações de contrapartida únicas, pode ser detalhada do ponto de vista econômico e de criação de valor, quanto aos agentes, objetivos e às condições de competitividade. No entanto, fica registrada a esperança de que os leitores – ecologistas, sociólogos, capitalistas ou humanistas – contribuam em suas especialidades para decifrar essa tessitura econômica urdida pelos interesses de cada uma das partes interessadas em sustentabilidade. O principal objetivo das entidades com interesse na terra é o equilíbrio ecológico, isto é, a máxima eficiência na utilização dos recursos naturais e pleno controle do ciclo de recuperação ecológica. A competitividade sistêmica de uma região, considerando o meio ambiente, se dará pela ecoeficiência da extração e aplicação dos recursos ambientais, pelo planejamento ambiental, tecnologia e pesquisa & desenvolvimento (P&D) de soluções ambientais, ou pela própria abundância e geração ou regeneração dos recursos ambientais. As figuras 5, 6 e 7 ilustram alguns valores que a terra entrega e as recompensas que recebe da sociedade, das empresas e dos indivíduos. Nas entidades com interesses na sociedade, o objetivo é o equilíbrio político e de desenvolvimento social, isto é, equilíbrio na aplicação dos recursos sociais, na distribuição das recompensas e na harmonização das políticas públicas para o desenvolvimento social e econômico. A competitividade sistêmica de uma sociedade pode ser medida pelo desenvolvimento social e pelas políticas sociais efetivas que permitam participação ativa na economia mundial e na criação de riqueza, assegurando bons negócios na divisão internacional do trabalho e o encorajamento de agrupamentos (clusters) e arranjos produtivos (PORTER, 1996). 28 As figuras 5, 8 e 9 ilustram alguns valores que a sociedade entrega e as recompensas que recebe da terra, das empresas e dos indivíduos. Nas entidades com interesses nas empresas, o principal objetivo é o retorno do investimento, isto é, lucro, geração de riqueza e valor agregado e a remuneração justa do capital. A competitividade das organizações requer excelência no desenvolvimento organizacional, na aplicação da inteligência empresarial – inovação, conhecimento e empreendedorismo – e na gestão dos capitais organizacionais (processos, pessoas, tecnologia, mercado e parcerias) para recompensar as partes interessadas (MAGALHÃES, 2012). As figuras 6, 8, 10 e 11 ilustram alguns valores que as empresas entregam e as recompensas que recebem da terra, da sociedade, das empresas e dos indivíduos. Os principais objetivos das entidades com interesses nos indivíduos são a prosperidade e a satisfação dos indivíduos, isto é, a remuneração “justa” do trabalho, o sucesso associado à atividade profissional, o desenvolvimento pessoal e a qualidade de vida no trabalho. Produtividade e competências são suas condições de competitividade, traduzidas em oportunidades de aprendizado dos indivíduos; ambiente favorável ao desenvolvimento de suas potencialidades; bem-estar e satisfação; valorização e estabelecimento de relações para que se realizem profissional e humanamente, aumentando seu desempenho por meio do comprometimento, desenvolvimento de competências e espaço para empreender (FNQ, 2008). As figuras 7,9 e 11 ilustram alguns valores que os indivíduos entregam, e as recompensas que recebem da terra, da sociedade e das empresas. Figura 5. Fluxo Sustentável de Valores entre Terra e Sociedade A terra entrega para a sociedade seus recursos naturais, produz riqueza, aumenta a competitividade, encoraja a produtividade, e contribui para a atratividade econômica da região. Em contrapartida, exige cultivo adequado e consciente, conservação e recuperação dos recursos e demanda inovações no trato com a natureza. Fonte: Elaboração própria.29 Figura 6. Fluxo Sustentável de Valores entre Terra e Empresas A terra entrega para as empresas adicionalmente insumos para produção de bens e condições exclusivas para serviços. Através da observação da terra se pode extrair informações e conhecimento para produzir efeitos econômicos, e em troca oferecer atenção e eficiência na utilização dos recursos. Fonte: Elaboração própria. Figura 7. Fluxo Sustentável de Valores entre Terra e Indivíduos A terra entrega para os indivíduos oportunidade de renda, riqueza, subsistência e até sobrevivência. Oferece qualidade de vida pela distribuição adequada dos recursos vitais – água e ar. Para receber esses valores, é necessário trabalho no cultivo, cuidados na extração, voluntariado e amor (economia familiar). Fonte: Elaboração própria. Figura 8. Fluxo Sustentável de Valores entre Sociedade e Empresas A sociedade deve entregar para as empresas as condições econômicas, infraestrutura, estofo social, organização política, segurança institucional, serviços públicos, regulamentações, créditos, conhecimento e oportunidades de parcerias e exige contribuições sociais, impostos e taxas, participação política, cooperação, investimentos, e respeito aos valores da sociedade. Fonte: Elaboração própria. 30 Figura 9. Fluxo Sustentável de Valores entre Sociedade e Indivíduos A sociedade deve entregar para os indivíduos condições de cidadania, programas sociais, políticas públicas, organização político-social, serviços públicos, segurança, saúde, saneamento, educação e habitação, e exige atividades econômicas e sociais, participação política, cooperação, voluntariado, trabalho e respeito aos valores da sociedade. Fonte: Elaboração própria. Figura 10. Fluxo Sustentável de Valores entre Empresas As empresas devem entregar para outras empresas bens, serviços e soluções de valor agregado, com padrões de qualidade, diferenciados e customizados, oferecer parcerias e intercâmbio de informações e conhecimento na cadeia produtiva e, em troca, obtém receitas e relacionamentos de longo prazo que garantem estabilidade e sustentabilidade ao sistema econômico. Fonte: Elaboração própria. Figura 11. Fluxo Sustentável de Valores entre Empresas e Indivíduos As empresas devem entregar aos indivíduos renda e emprego que lhes garantam prosperidade e participação no sucesso, desenvolvimento pessoal e qualidade de vida no trabalho, que, por sua vez, permita padrões de consumo de bens, serviços e soluções de valor agregado, com qualidade, diferenciação e customização, e relacionamentos de longo prazo que garantem estabilidade e sustentabilidade ao sistema econômico. Fonte: Elaboração própria. 31 A conjunção dos fluxos de fatores de produção com os princípios de sustentabilidade implica prover o melhor equilíbrio entre as quatro categorias: entidades com interesses na terra; entidades com interesses na sociedade; entidades com interesses nas empresas; e entidades com interesses nos indivíduos. Para suprir as necessidades presentes de cada uma das partes e, por meio da preservação dos recursos, não afetar a capacidade de suprir as necessidades futuras, é preciso que as práticas organizacionais estejam baseadas em cinco fundamentos de sustentabilidade:12 Politicamente corretos – Resultados caracterizados por um sentido de comunidade e visando ao bem comum. Culturalmente aceito – Resultados como a expressão do conjunto de valores da sociedade, segundo uma perspectiva evolutiva. Ecologicamente adequado – Resultados obedecendo a um ajustamento disciplinado, que acomode os efeitos relativos à capacidade regenerativa dos ambientes. Socialmente justo – Resultados sociocráticos distribuídos na medida das contribuições e necessidades das partes. Economicamente viável – Resultados econômicos exequíveis em prazos definidos e passíveis de crescimento e desenvolvimento duradouro. 12 Adaptado do tema da INTERNATIONAL CONFERENCE ON CORPORATE REPUTATION IDENTITY AND COMPETITIVENESS, 2007. 32 Referências ALLEE, V. Value network analysis: value conversion of tangible and intangible assets. Journal of Intellectual Capital, v. 9, n. 1, Nova York, dez. 2008. ARBACHE, A. P. Facility Property. Revista Infra - 40 +, jan. 2012. Especial de Sustentabilidade. BONDER, N. A cabala do dinheiro. Rio de Janeiro: Imago, 2004. CASSIERS, I. Alternative Indicators to GDP: values behind numbers adjusted net savings in question. In: Seminário de Pesquisa do Instituto de Economia – UFRJ. Rio de Janeiro: jun. 2012. CUNHA, S.K.; HASENCLEVER, L. Eco-inovação e a transação para o desenvolvimento sustentável. In: V Seminário sobre Sustentabilidade. 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