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Chico Buarque - vida e obra

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Chico de Hollanda, 
de aqui e de alhures 
"Parceiro de euforias e desventuras, amigo de todos os segundos, generosidade sistemática, silêncios eloqüentes, palavras cirúrgicas, humor afiado, serenas firmezas, traquinas, as notas na polpa dos dedos, o verbo vadiando na ponta da língua - tudo à flor do coração, em carne viva... Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva, Chico Buarque não existe, é uma ficção - saibam.
Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção." 
Ruy Guerra, cineasta e escritor, outubro de 1998 
Notas sobre A banda
Por Carlos Drummond de Andrade
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.
A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais.
Meu partido está tomado. Não da ARENA nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.
Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página inteira. Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o faroleiro... todos que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.
Carlos Drummond de Andrade Correio da Manhã, 14/10/66
PRIVATE
Notas sobre A banda
Por Humberto Werneck
"Há quem jure que a idéia lhe veio ao assistir à troca de guarda da rainha em frente ao Palácio de Buckingham, em Londres, durante a viagem com Morte e vida severina. Sem excluir essa hipótese, o que ele se lembra é de uma noite no Sandchurra, um bar que havia na Galeria Metrópole, no Centro de São Paulo, em que ouviu Gilberto Gil cantar o Rancho da rosa encarnada, e pensou: "Tenho que fazer uma música pra ganhar dessa aí no festival."
A Banda (interpretada por Chico Buarque e Nara Leão) dividiu o 1º lugar com Disparada de Geraldo Vandré e Théo de Barros, defendida por Jair Rodrigues, Trio Maraiá e Trio Novo, no II Festival de Música Popular Brasileira (TV Record, com final em 10 de outubro de 1966).
"O produtor Zuza Homem de Mello que tudo presenciou, é taxativo: "Uma das músicas ganhou da outra, não houve empate." O nome da vencedora ele não revela, fiel a um compromisso assumido naquela noite com diretor da Record, Paulo Machado de Carvalho Filho - mas não é difícil imaginar qual seja. Zuza recebeu deles a papeleta com os nomes dos jurados e a instrução de guardá-las em local seguro. "Não deixe ninguém ver" recomendou o dono da emissora. Assim se fez. As papeletas foram depositadas num cofre em casa de Zuza, que só muito anos depois as devolveu a Paulo Machado de Carvalho Filho."
Segundo o escritor Roberto Freire, membro do Júri: "Ele não queria, de jeito nenhum, ser o único vencedor."
Dividido o prêmio, cada música ficou com aproxidamente 6.800 dólares. Pouco tempo depois um compacto de Nara Leão com A banda chegou a vender cem mil cópias em menos de uma semana, feito considerável para a época.
(...)Maquiavélica, a ditadura utilizou A banda numa campanha do Alistamento militar - e, diante do protesto formal de Chico, jogou a responsabilidade sobre a agência de propaganda que fizera o anúncio. (Nota do editor: após o protesto a música foi retirada da propaganda.)
Não tardou para que a banda chegasse aos quatro cantos do mundo, não raro em versões absurdas. A alemã por exemplo, assinada por Weyriche Conta, resultou nesse amontoado de sandice:
E certamente este ano
já se pode prever
o mundo da moda trará
o que agrada Rosita
quando no México, à noite
ao carnaval se vai [...]
Uma moda como a banda
ainda não houve
Os cocos se transformam em roupagens
e a brincadeira continua
A banda está aí
Notas sobre A banda
Por Adélia Bezerra de Meneses
Outra metamorfose do Carnaval é a "banda" - que passa, "cantando coisas de amor", transfigurando a realidade. Sua passagem altera o modo de ser das mais diferentes pessoas: o homem sério, o faroleiro, a namorada, a moça triste, a meninada, o velho fraco, a moça feia - todos, sintetizados em:
"A minha gente sofrida que
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor"
Trata-se, evidentemente, do apelo órfico do canto, da música, do ritmo, da dança, que infringe o princípio de individuação, que rompe o isolamento dos indivíduos. A Banda é o próprio cortejo dionisíaco, cuja passagem não altera só o mundo humano, mas transfigura toda a natureza. Convocando-a:
"A rosa triste que vivia fechada, se abriu
A lua cheia que vivia escondida, surgiu"
· Estabelece-se uma comunhão de que os homens e a natureza participam:
· "Sob o encanto de Dionísio, é insuficiente dizer-se que a fraternidade renasce: a natureza, tornada estranha, hostil ou reduzida à servidão, celebra sua reconciliação com o homem, seu filho pródigo. (...) Nesse momento o escravo é um homem livre; nesse momento vemos que cedem todas as rígidas e constrangentes barreiras que a necessidade, o arbítrio e a "moda insolente" estabeleceram entre os homens. Nesse momento, no evangelhoda harmonia universal, cada um se sente não somente unido, reconciliado, confundido com seu próximo, mas um com ele, como se o véu de Maia se estraçalhasse e que só seus farrapos flutuassem em torno do mistério da unidade primitiva. É por cantos e danças que o homem se manifesta como membro de uma coletividade que o ultrapassa." (Nietzsche: La Naissance de le tragédie. Paris, Denoel-Gontthier, 1964, p. 21)
· Mas este estado de comunhão e euforia que o cortejo dionisíaco instaura é fugaz, dura apenas enquanto dura a canção:
· "Mas para meu desencanto
· O que era doce acabou
· Tudo tomou seu lugar
· Depois que a banda passou
· E cada qual no seu canto
· E em cada canto uma dor
· Depois que a Banda passou
· Cantando coisas de amor"
· Depois que a banda passa, a realidade de novo se desencanta. Em Tem mais samba, uma das primeiras composições de Chico, o sofrimento é conjurado pelo samba.
Fonte: Desenho mágico, Adélia Bezerra de Meneses, Editora Hucitec, 1982
Parte I - Lirismo Nostágico, página 54
PRIVATE
Notas sobre A banda
Por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello
A passagem de uma banda desperta alegria e prazer em um grupo de pessoas, mergulhadas na monotonia de suas vidas insignificantes ("A minha gente sofrida / despediu-se da dor / pra ver a banda passar / cantando coisas de amor"). Mas o encantamento tem apenas o tamanho de uma canção, voltando tudo à rotina anterior no momento em que a música deixa de ser ouvida ("Mas para o meu desencanto / o que era doce acabou / tudo tomou seu lugar / depois que a banda passou"). Espantando a dor, a desesperança, a imobilidade, a banda simboliza a importância da música para a vida. Na visão do poeta, a música é amor, emoção, movimento; o silêncio: tristeza, sofrimento, solidão. Uma composição típica da fase inicial de Chico Buarque, com seu estilo lírico-narrativo, "A Banda" dividiu com "Disparada" o primeiro lugar no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Seu sucesso foi fulminante, tendo o compacto de lançamento, gravado por Nara Leão, vendido 55 mil cópias em quatro dias. Porém, sua maior façanha foi entrar para os repertórios de bandas do mundo inteiro, mesmo sem ser música militar. 
Fonte: Livro 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34
PRIVATE
Literatura de Subtração - 1999
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5.2. O HOMEM CÔNCAVO 
E se definitivamente a sociedade só te tem
Desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo
És um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
Depois chamam os urubus
(Chico Buarque: Hino da Repressão) 
O emblema da situação culminante a que a cidade submersa lança seus habitantes é o próprio olho mágico que, desde o início da narrativa de Estorvo, condiciona o olhar do protagonista que atravessa a cidade. Ao observar o desconhecido que bate à sua porta, o narrador estabelece um entre-lugar do possível e do factual, da realidade e do sonho, da vigília e do sono, da encenação e da notícia, como na passagem em que uma reportagem é tratada como uma novela e o depoente transformado em ator: 
(...) Aí a índia perde a razão, agarra as lapelas do repórter e desata a chorar no microfone e berrar "ele não é criminoso! meu filho é um moço decente!", mas o cameraman, que está trepado no capô da caminhonete, grita "não valeu, não gravou nada, troca a bateria!" A índia pára de chorar, olha para o setor da imprensa e diz "imagine meu filho, que é até doente, estrangulando um professor de ginástica". Volta o repórter da TV Promontório e pede-lhe para repetir a fala anterior, que ele achou bem forte. (Est, p. 56) 
A imagem do vídeo, vertiginosa em seus cortes e superposições de cenas é análoga ao olhar do narrador, que pinça fragmentos da cena urbana como num processo de zapping - a prática de trocar os canais de uma TV através do controle remoto, que acentua a desagregação da continuidade da programação.(PEIXOTO: 1996, p. 180). Renato Cordeiro Gomes, ao analisar como o flâneur poderia ser representado nas cidade atuais, propõe o zappeur, como substituto daquele: O antigo flâneur absorvido pela multidão e pela massa não tem mais lugar na cidade da via expressa, na sociedade dominada pelas tecnologias comunicacionais. Talvez tenha cedido o lugar para o zappeur que, escolhendo pontos e fragmentos urbanos, pode montar sua imagem da cidade, longe da rua.(GOMES: 1996, p.22) 
Guardadas as devidas diferenças, uma vez que não está longe da rua, o narrador de Estorvo tem o olhar de um zappeur que transita entre uma cidade real e outra subjetiva, matéria de sonho. Esta zona de insônia, entre a ficção e a realidade - A insônia verdadeira principia quando o corpo está dormente. Semilesado, o cérebro não tem boas idéias... (Est, p. 28) - possibilita, inversamente, a superexposição da realidade que o autor aborda. É na repetição cíclica e vertiginosa do itinerário e das percepções do narrador, que o romance obtém o tempo de exposição suficiente para que o leitor se dê conta da superficialidade com que os valores e mitos se fundam na urbe contemporânea. A exposição insistente das mesmas situações leva a uma quase exaustão. Nelson Brissac afirma: 
A imagem explícita provoca o esgotamento da capacidade de descrever (...). Sob a ditadura da visão imediata, o olhar perdeu sua abrangência panorâmica. Isso vale também para o rosto: hoje não há mais o costume sistemático de retratar, com o que se faz uma verdadeira fisionomia de uma época. Sem personagens nem rostos, a literatura tornou-se introspectiva, voltada para os mistérios e percalços da alma humana. E a pintura, por seu lado, mergulhou cada vez mais na abstração. (PEIXOTO: 1992, p. 309) 
Diferentemente do que propõe Brissac, não é pela longa exposição, pela durée, que Chico Buarque recupera a ética da imagem. Tal procedimento pode vir a se mostrar inócuo ao olhar do leitor, pois, como responde o mesmo analista, nem a cidade - sem rastros e sem história - nos habita, nem os homens - que não sabem mais ver - habitam a cidade. A alma dos lugares parece ter-se perdido para sempre.(PEIXOTO: 1992, p. 72) 
O romance corrompe a representação realista da cidade, uma vez que não busca um efeito de realidade, mas uma sucessão de cenas reiteradas e, aparentemente, sem relação de causa/conseqüência. Há o predomínio do instantâneo, da troca simultânea de imagens desconexas. Ao intensificar a sucessão de imagens e situações pela reincidência da exposição, Chico Buarque apresenta a cidade não como ela é vista pelo habitante, mas de uma forma como este não é capaz de percebê-la por estar também submerso, como mais um entre os signos que se sucedem no efeito zapping. 
O processo de intensificação da exposição sucessiva é obtido pelo desdobramento do protagonista, através do olho mágico. Não se trata apenas de uma cidade sem aura, mas, também de um personagem sem alma, que não diz e não sabe a que veio: 
(...)E abraça-me, beija-me, recua um passo, fica me olhando como um cego olha, não nos olhos, mas em torno do meu rosto, como que procurando a minha aura. "Deus lhe abençoe, Deus lhe abençoe", diz. Depois pergunta "que é de Osbênio?, que é de Clauir?", e entendo que ele esperava outra pessoa, algum parente, quem sabe. (Est, p. 26) 
Ver através do olho mágico é ver sem ser visto, o que proporciona a existência de um espaço interior e hermético, que se nega a quem quer compreendê-lo - eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria a porta para quem de fato quisesse entrar. (p. 12) - Ao se negar, o protagonista passa a ser antagonista, um anti-narrador que vive a opressão de olhar em silêncio todos os lugares por onde passa - a cidade. Narrar se torna análogo a catar migalhas, selecionar fragmentos, inventar palavras sem estabelecer comunicação, como se depreende da passagem em que o narrador liga para a mãe e fala mesmo sem a ligação ter-se completado: 
Mamãe não deve ter entendido que era eu, e pouco depois cai a linha. O copeiro passa um tipo de espátula na toalha azul-celeste, catando as migalhas de cream cracker, enquanto eu invento umas palavrasno bocal. (Est, p. 20) 
Qual o destino do personagem, qual o sentido de seu percurso circular? - são perguntas que oprimem o leitor, que, contudo, permanecerá sem respostas; o próprio narrador caminha na narrativa como um cego: 
Com o sono em dia e de banho tomado, poderia andar por aí até amanhã, sem compromisso. Mas um homem sem compromisso e com uma mala na mão está comprometido com o destino da mala. Ela me obriga a andar torto e depressa. Quando dou por mim, estou ao pé das ladeiras que levam à casa de minha irmã. Parece que era esse o caminho arrevesado que eu faria se fosse cego. (Est, p.53) 
Porém não se pode ser cego para ler a cidade. Catando algumas migalhas da narrativa, o leitor poderá percorrer também um caminho arrevesado, que o leve a algum lugar, mas sem nunca perder a nítida impressão de que algo lhe está sendo subtraído. 
De forma condensada e poética, pode-se considerar que todo o romance está escrito na própria epígrafe - 
estorvo, estorvar, exturbare, distúrbio,
perturbação, torvação, turva, torvelinho,
turbulência, turbilhão, trovão, trouble,
trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor,
estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo 
- um percurso que volta ao início e se encaminha através de movimentos circulares em torno de um étimo e de falsos cognatos, mas cujo verdadeiro sentido é o da analogia. 
Analogia é o principal processo através do qual se pode estabelecer semelhanças entre coisas e seres e, assim, classificá-los. M. Foucault adverte que, sendo limite e condição para o conhecimento, a semelhança se situa do lado da imaginação ou, mais exatamente, em troca, só se exerce apoiando-se nela. Com efeito, se se supõem, na cadeia ininterrupta da representação, impressões por mais simples que sejam, e se não houvesse entre elas o menor grau de semelhança, não haveria qualquer possibilidade para que a segunda lembrasse a primeira (...) A mudança perpétua se desenrolaria na perpétua monotonia. (FOUCAULT: 1995, p. 84) 
Desprovido da imaginação, da capacidade de verificar semelhanças, o personagem de Estorvo insere a construção ficcional do romance na mudança perpétua, na perpétua monotonia. Essa forma de olhar encontra-se, também, cantada por Chico Buarque em "Outra noite", letra musicada por L. Cláudio Ramos: 
Será que já não vi
De modo impessoal
E em tempo indiferente
Um dia estranhamente igual
Dias iguais
- Avareza de Deus
Passando indiferentes
Por estranhos olhos meus (1993.LM, p.268) 
Também estudando a "Doutrina das semelhanças", Walter Benjamin atribui à escrita a força de leitura que, num momento primitivo da humanidade, era privilégio da clarividência. E exemplifica o que é essa leitura, em sua significação profana e mágica: 
O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas estrelas. No primeiro exemplo, o ato de ler não se desdobra em seus dois componentes. O mesmo não ocorre no segundo caso, que torna manifestos os dois estratos da leitura: o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê ao mesmo tempo, nessa posição, o futuro ou o destino. (BENJAMIN: 1996, p. 112). 
Estabelecer a leitura do astrólogo é ser capaz de perceber as semelhanças que relampejam aos olhos. Sendo vítima da avareza de Deus, o narrador do romance representa cada um dos habitantes da cidade contemporânea, incapazes de ver, pois se não há semelhanças, também não há diferenças, como se nota nessa declaração do narrador: Ando no meio do povo em linha reta, mas parece que cruzo sempre com as mesmas pessoas. E essas pessoas também parecem se admirar, me vendo passar tão repetido (Est, p. 23). 
Sob o signo da indiferença, o percurso circular em torno da analogia, que a epígrafe revela, é a própria armadilha e o próprio distúrbio; uma rota de alguém entorpecido pela insônia e em torno de entorpecentes; um caminho, enfim, que já não pode ser o do cidadão na cidade, mas o de um estorvo em outro estorvo. Um habitando o outro, embora não haja nem mais homens nem cidade. No romance se perde o limite entre um e outro. 
A cidade que no auge da modernidade foi um dos símbolos de progresso e futuro, marca principal da utopia moderna, é, assim como o personagem, deslocada da linha do tempo progressivo. O percurso circular da narrativa rompe com a estrutura de linearidade causal do romance realista. Ao negar um tempo linear e progressivo, Chico Buarque retira definitivamente o lugar das utopias. Estabelecem-se, assim, heterotopias. Como aponta M. Foucault, ao constatar que pior do que a desordem do incongruente e da aproximação que não convém, é a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão: 
As utopias consolam: é que, se elas não têm um lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas sejam quiméricos. As heterotopias inquietam, sem dúvida, porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isso ou aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruinam de antemão a "sintaxe", e não somente aquela que constrói frases - aquela, menos manifesta, que autoriza a "manter juntos" as palavras e as coisas. Eis porque as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda a possibilidade de gramática; desfazem os mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases.(FOUCAULT: 1995, p. 8) 
O que é Estorvo - a cidade, o personagem, o romance - senão linguagem solapada, lirismo estéril? Várias são as passagens em que o narrador se demonstra impossibilitado de nomear as coisas. Citam-se duas: 
Pulsa na tela uma figura semelhante a um intestino, em cujo tubo correm animaizinhos verdes. Por algum motivo, esses tubos às vezes se obstruem, obrigando o moleque da cabeça raspada a se contorcer com o comando nas mãos. Em conseqüência os animaizinhos chocam-se uns contra os outros, impelindo-se como bolas de bilhar e emitindo bips. Também acontece de eles se entalarem nas paredes dos tubos, numa reação em cadeia que provoca a explosão do intestino, acompanhada de um alarme e um clarão. Os animaizinhos bóiam na tela branca e o jogo recomeça inúmeras vezes.(Est, p. 28) 
À luz da manhã, barbas começando a pontilhar seus rostos, parecem homens destituídos, carregando garçons embrulhados debaixo do braço.(Est, p. 62) 
O romance é, em suma, uma hipérbole da epígrafe: um percurso circular e opressivo pela ausência de respostas, pela impossibilidade da linguagem e da fabulação. O protagonista se desdobra e inicia uma autoperseguição que, desde as primeiras páginas, fica evidente, não terá fim: às voltas com o homem que vê, através do olho mágico, e sabendo-se visto reversamente, como se fosse um homem côncavo (Est, p. 12), o personagem inicia um movimento circular num presente contínuo e precário - única dimensão temporal que será possível no romance, pois, se por um lado o perseguido é privado da memória - Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. (Est, p. 11) - por outro lado, ao perseguidor não resta nem o cacoete da esperança: Qualquer um olharia para o sexto andar, mesmo sabendo que é inútil; olharia para confirmar que não há uma luz acesa, que não há uma toalha estendida no parapeito, olharia automaticamente, por um cacoete da esperança.(Est, p. 13) 
Não há passado, pois a memória é vaga e rarefeita, nada que é visto chega a ser re-conhecido. Também não há futuro nem mesmo nos sentidos autômatos do ser. Num dado momento, essa perseguição, que poderia ser bilateral, torna-se solitária, uma autoperseguição: 
Verá que aperto o passo e sumo correndo na primeira à esquerda. E chamará o elevador, e chamará o taxi, mas não convencerá o motorista a me perseguir na contramão. Tentará uma paralela, mas eu emboco no túnel, alcançooutro bairro, respiro novos ares. Empacará no trânsito e eu subo as encostas, as prateleiras da floresta, as ladeiras invisíveis, com mansões invisíveis de onde se avista a cidade inteira. (Est, p. 14) 
A opção por um percurso a pé, numa cidade de túneis, táxis e vias expressas, coloca o protagonista na contramão, não só da rua, mas da própria cidade, enquanto o perseguidor permanecerá empacado no trânsito durante todo o romance. Não se encontrarão mais o homem côncavo com seu similar convexo que estava do outro lado do olho mágico, apagado na lembrança. Novamente o fragmento é a tônica da narrativa. Quem se fragmenta agora é o próprio homem, numa cidade que perdeu o horizonte, pois na mansão de vidro onde mora a irmã, ponto mais alto de onde se pode ver toda a cidade, penduraram por toda parte cortinas brancas, pretas, azuis, vermelhas e amarelas, substituindo o horizonte por enorme painel abstrato (Est. p.15). 
Estorvo - a cidade - não tem horizonte nem fronteiras. Geográficas ou sensoriais. A periferia sucumbe à expansão da cidade - o sítio, um paraíso perdido, é tomado por traficantes, oriundos do centro. Há um paralelo entre essa cidade e Leônia, uma das cidades contínuas de Calvino que, quanto mais lixo expele, mais coisas acumula (1995, p. 106). Para uma cidade em que submergem signos e lixo, os sentidos do narrador também não pode reconhecer limites: passa-se do paladar para a audição que é interrompida pela visão, numa sinestesia fragmentária que impede a formação de um sentido único, mas hiperboliza as partes: 
Abordo o bufê, hesito entre os canapés e uns camarões espetados no repolho, quando escuto "vagabundos, marginais e delinqüentes". Meu cunhado diz "não acredito", puxa minha camiseta e pergunta "você sabia?". O grisalho diz "vá lá ver", e meu cunhado, "nunca fui, minha mulher detesta". O grisalho diz "era um paraíso", meu cunhado, "e a polícia?", o grisalho, "cansei de dar queixa", e não sei o que mais dizem, pois assisto a escalada da ventania que apagou tocha por tocha nas aléias, e agora revira os móveis do jardim. (Est, p. 57) 
Em última análise, o leitor, para acompanhar o percurso do protagonista, deverá também renegar a via expressa, atingir outros espaços invisíveis para que a cidade se torne visível. Sobretudo, deverá o leitor aquiescer a uma nova modalidade temporal. O protagonista não obedece ao tempo sucessivo que pauta a cidade e o trabalho, daqueles que, no dizer de Walter Benjamin, se moldaram pelo tempo da máquina. Os relógios em Estorvo não funcionam ou não existem: 
Pergunta "Que horas são", mas estou de camiseta e é evidente que não uso relógio(Est, p. 56 - grifo nosso); 
Levo dez ou vinte minutos retido no canteiro central, junto de um poste com anúncio de cigarro e relógio digital enguiçado, os números inacabados parecendo estranho alfabeto (Est, p. 99). 
que pertence agora a um argentino.
PRIVATE
O Estado de São Paulo - 31/08/91 
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Chico Buarque - Entre o real e o imaginário
Marisa Lajolo - 31/08/91
Há quase 30 anos, o cenário cultural brasileiro abria espaço para um tipo de canção que - menos monocórdica que a bossa nova e mais trabalhada do que o samba de morro - combinava bem com os novos modos de vida que se impunham ao País... era um tempo que já vai longe, em que se vivia à toa na vida: uns, caminhando contra o vento; outros, cantando e seguindo a canção.
Carolinas em disponibilidade, os festivais de música popular eram as vozes que nos diziam a todos. E, entre tantas vozes, tons e melodias, veio o violão de um estreante Chico Buarque, que convidava o povo para ver a banda. Convite aceito, vieram depois as januárias e as genis, as bárbaras e as morenas de Angola, avós e bisavós das rosas e das lias de agora.
Mas em toda a farta, constante e aplaudida produção de Chico Buarque, nada que preparasse ninguém para a artilharia pesada de seu recém-lançado romance Estorvo (Companhia das Letras.)
Artilharia pesadíssima, de deixar o leitor de molho e de ressaca, olhos pisados e peito opresso por dias e dias depois da leitura. É, então, ainda nocauteada, que afio as facas de métier para, se não explodir, ao menos tentar entender o nocaute. Pois desta vez, não tendo a música por cúmplice, violão nem microfone por álibi, Chico deixa livre e aberto o campo para especulações literárias.
Da canção à montagem teatral e à miscelânea do filme, a obra de Chico costuma vir sempre de cambulhada com música, movimento, imagem... tudo acionado ao mesmo tempo, de forma que só uma mutiladora amputação do texto permite falar na literatura de Chico Buarque; apenas Fazenda modelo fugiu à regra desta miscigenação de linguagens. Foi nesta sombria fábula política de 1975 que, a sós com a escrita e com a leitura, Chico e seus fãs dispuseram exclusivamente de enxutas linhas e entrelinhas para dar e receber recados.
Só agora Chico vai de novo pedir ao despojamento da prosa a linguagem para enveredar pela literatura deste seu romance. Livro curto, narrado sempre pela personagem que protagoniza os episódios que narra, Estorvo é um romance pesado, sóbrio, que incomoda; estorva. Um narrador em trânsito, percorrendo itinerários involuntários, suspenso no tempo e no espaço de uma vontade dissipada e obscura, flutua entre o real e o imaginário. Conduzido por este personagem sem espanto, sem tédio e sem paixão, do pesadelo à realidade e do sonho à vigília, o leitor não sabe bem qual é qual ; desconcerto, desnorteio.
Conversas que se interrompem, telefones que tocam sem que ninguém atenda, autonomia de pés e de mãos que vão e vêm à revelia da vontade; muros a serem transpostos, shoppings cujas vitrines compartimentam solidões, malas e pacotes indesejáveis vão compondo uma vida à deriva, que transcorre num mundo cuja dissipação de sentido é o estorvo maior, intransponível.
Surpreende-se e assusta-se, então, com esta obra, o antigo e fiel ouvinte de Chico Buarque: onde, neste romance, a contra mão organizada, a malandragem redimida, o desencontro reversível? Parece difícil encontrar nas cento e tantas páginas de Estorvo parentesco ostensivo com o Chico de outros textos e outras linguagens...
Mas talvez a ruptura deste Chico de hoje com o violão que embalou toda uma geração não seja, assim, tão completamente inesperada. Alguns estudos dedicados à sua obra - em particular Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque, de Adélia Bezerra de Meneses, e o ensaio "Gol de Letras", de Humberto Werneck (apud Chico Buarque, letra e música) - já apontam rupturas e transformações na obra anterior de Chico, sugerindo, na sua temática lírica e social, um percurso que cruza amores & protesto, inscrevendo ambos numa trajetória ascendente de radicalismo e perplexidades, sugerindo que, pouco a pouco, a obra de Chico ia mesmo deixando longe os tempos em que era possível cantar uma vida vivida à toa...
No entanto, não é só a vida vivida à toa que Estorvo proscreve. As raízes do nocaute com que o livro ameaça seus leitores se ancoram mais no fundo, talvez nas expectativas criadas pelo compositor que cantou como poucos o cotidiano classe média da cidade grande. Chico flagrou o dia-a-dia de uma geração que, embora de diferentes lugares, com ele e como ele viveu os anos dourados, o golpe de estado, ditadura, a repressão, a liberação sexual, o consumismo desenfreado, e agora dissolve-se na geléia geral que a Tropicália de Gil anunciava... Viveu isso tudo e como que não se recuperou do susto!
Mas, pasmada embora, e até perplexa algumas vezes, a voz que fala e a melodia que rola nos textos de Chico anteriores a Estorvo é uma voz coesa, coerente, que encontra o que narrar ao desafiar episódios, pessoas e coisas que fazem sentido. O mundo deste Chico mais antigo é um mundo de sentidos lineares, ainda que sinuosos. Até textos-limite como Construção (1971) e Que Será (1976) admitem sentidos. Ainda que não se identifique com clareza o sujeito de Construção, o paralelismo e as proparoxítonas encarregam-se de amarrar o que a permutação de predicados embaralhava. Ainda que as interrogaçõesde Que será não tenham respostas, fica afiançado o direito a perguntas. Construção e Que será são belíssimos textos que marcam o limite da apreensão de um mundo cujo sentido se esgarça tanto no non-sense e nas reiteradas indagações quanto na quase intolerável repetição ampliada da música que com os versos se entrelaça.
Mas este sentido esgarçado não afligia nem aterrava. Era ainda um sentido, precário embora: é como se nesses anos 70 o enigma do sentido e a opacidade do real, como estorvo à compreensão do mundo, estivessem na esquina, ou melhor, passassem na janela: mas Chico não via, ou se via, fazia que não via.
Esta opacidade pressentida do mundo retorna mais tarde, por exemplo, no lirismo ambíguo de Na Ilha de Lia, no barco de Rosa e navega no belíssimo e intrigante Baticum. Ambas são composições do final dos anos 80 e habitam o mesmo disco que traz a canção Uma Palavra. Esta pode constituir a senha que nos ajuda a decifrar a passagem de Chico soft, habitante de discos e fitas, para o Chico hard de papel e tinta: "palavra dócil/ palavra d'água pra qualquer moldura/ que se acomoda em balde, em verso, em mágoa/ qualquer feição de se manter palavra".
Se a hipótese é plausível, então Estorvo não é um caos de geração espontânea. O romance inscreve-se na tradição de outros textos nos quais se podem encontrar prenúncios desta linguagem estorvo que espanta consumidores do Chico de Carolinas & demais senhoritas de comportamento acima de qualquer suspeita. Em Estorvo, a diluição de sentidos e o embaralhamento de tempos e espaços apagam de vez qualquer hipótese de happy end e criam um mundo intoleravelmente inóspito, labiríntico, instável, sem saída...
É por aí que o antigo freguês de Chico corre o risco de demitir-se; habituado à dieta light de bandas, madalenas e malandros, mesmo que temperados com o ritmo levemente indigesto de sambas de Orly e de Cálices, o leitor pode sucumbir à tentação de pedir baixa do fã-clube: onde foi parar a antiga cumplicidade?
Em Estorvo um narrador anônimo, abúlica criatura à mercê de tudo e de todos é quem conduz o leitor. Conduz, aliás, é modo de dizer: o narrador deixa-se seguir pelos espaços e episódios de que participa, sem que o leitor consiga entender o porquê de tudo o que presencia: quem é, afinal, a indesejável visita que, entrevista pelo olho mágico, põe o narrador em fuga? Afinal, o narrador foi ou não foi cúmplice do assalto à casa da irmã? E o homem da camisa quadriculada e a menina de cabelos crespos e os peões mutilados: quem são eles e o que têm a ver com a história? Aliás e sobretudo: qual é a história?
Mas, se é legítimo ao leitor a honesta curiosidade por tais e tantas outras questões, é igualmente legítimo ao narrador trapacear ao respondê-las de forma insatisfatória e, até mesmo - pasmem os leitores! -, não respondê-las e nem sequer ouvi-las, ficando, assim, à disposição de terceiros a ingrata tarefa de fazer as vezes de intérprete, quase inevitávelmente traindo expectativas de ambos os lados do papel ao selecionar suas perguntas e oferecer suas respostas.
No caso deste romance, uma tentação imediata para as afiadíssimas facas do métier é ver o sem-sentido do livro como o sentido possível do Brasil contemporâneo, ver a ruptura do texto como a experiência do aqui e agora alienado que se vive, e analisar a frouxidão de enredo como a impossibilidade de sentido no mundo reificado... Para os que acreditam em aparato crítico, prato cheio, sobretudo se salpicado de pós-odernidade, desconstrução ou novo historicismo, grifes em alta nos entrepostos da teoria literária. Para os que desacreditam em tais especialidades, quer por não terem acesso a elas, quer por considerá-las indigestas, resta, além do esperneio, a repetição da leitura, agora desenrolada na contraluz de um som que, à flor da pele e à flor da terra, se pergunta incessantemente o que será que será?, até que uma resposta satisfatória venha das experiências lidas e vividas por cada um ou - quem sabe? - até que chegue a roda-viva e afaste a pergunta pra lá...
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O Estado de São Paulo - 01/08/89
Eric Nepomuceno - 01/08/89
Instalado há um mês em seu apartamento parisiense, ele passeia, joga futebol e foge do assédio de repórteres, a cinco dias do lançamento de seu primeiro romance, Estorvo.
Desde que chegou a Paris, no começo de julho, Chico tem se dado à rotina agradável de andar muito, tomar bom vinho, ir ao cinema, ler, ver televisão e jogar bola. O time é formado por Raul, Banana, Chico, Rogério e Grilo. O adversário recebe o nome genérico e sonoro de Seleção do Resto da África. O campo em Paris não está lá grande coisa. Tanto assim, que Chico se refere a ele usando a terminologia clássica: Campo Careca. Mas, seja como for, o time não tem feito. Além dos dribles em campo ele vem se exercitando com afinco na arte de driblar os jornalistas, que o perseguem com fúria de artilheiros, atrás de declarações. Ontem à tarde por exemplo ele driblou os repórteres quando saiu de casa por volta de 16h30 e foi mais uma vez medir forças com a tal Seleção do Resto da África.
Pela primeira vez em quase dois anos tem trabalhado no violão. Tem buscado variações harmônicas, mas, curiosamente, vem sempre a mesma música: Morro dois irmãos, uma das últimas que compôs. "Marieta diz que estou querendo recuperar o fio da meada", escreveu, ontem, a um amigo.
O apartamento de Paris foi comprado há pouco mais de um ano. É pequeno e funcional. Graças a um mestre marceneiro, há lugar para tudo, da máquina de lavar ao fax. Nesta temporada, Chico tem comido fora, mas no inverno passado sozinho no apartamento dedicou-se às artes corriqueiras de cozinhar, arrumar a cama e aprender a operar a máquina de lavar louças.
Voltar ao violão, enfim, se dá em meio a um verdadeiro turbilhão, no qual se misturaram as andanças por Paris, os jogos de bola e, sobretudo, a expectativa da aparição de Estorvo. Não é nada que possa ser comparado à tensão que se sente em vésperas da estréia de um show, de uma peça de teatro ou até mesmo de um disco, diz ele: "Afinal, essas são criações coletivas, compartilhadas." E um livro é resultado do mais solitário dos ofícios, o do escritor.
Quando se trata de um romance escrito por um compositor, o autor tem - além de tudo - de superar uma certa desconfiança. Chico sabe disso, e mais: acha até que é "muito compreensível". Mas saber não serve para nada, na hora da tensão.
A alguns amigos, Chico chegou a comentar, na medida em que o trabalho - e o prazo - iam chegando ao fim, que tentam uma certa sensação de vazio, uma pequena tristeza, depois que pusesse o ponto final. Depois, ficou preocupado com a revisão e com tudo aquilo que preocupa um escritor após entregar o livro: o formato, o número final de páginas impressas, a capa. Até a ultimíssima hora, algumas dessas preocupações ainda rondavam sua cabeça. "Como é que você chama o sujeito que está do outro lado do balcão e serve cerveja num botequim?, "Perguntou a um amigo. A outro, a pergunta foi sobre o título. Para as filhas, foi disparada a seguinte dúvida : "É correto dizer tranças de maria-chiquinha?"
A capa agradou em cheio, e, tudo resolvido numa viagem relâmpago a São Paulo, na terça-feira 2 de julho, Chico ainda teve tempo para ser derrotado no futebol pelo time do roqueiro Léo Jaime (6x2 na tarde de quinta-feira, dia 4) e embarcar para a Europa na sexta, dia 5 de julho. Houve, é verdade, tempo para uma breve tensão, quando, ao receber as primeiras provas do livro, achou que ele ficará "muito fininho". Inseguranças de autor, comuns até mesmo aos mais experientes, afinal, o livro teve seus onze capítulos espalhados ao longo de 141 páginas, tamanho bastante razoável. E nunca é demais recordar que algumas obras absolutamente fundamentais, como Pedro Páramo, de Juan Rulfo, ou A metamorfose, de Franz Kafka, têm extensão semelhante - para não falar, é claro, nos Dez mandamentos, que mudaram o mundo e cabem em exatas dez linhas.
Chico Buarque diz que este é o seu primeiro romance, e que Fazenda modelo, de 1974, é "uma novela pecuária". Talveznem ele mesmo saiba explicar de onde tirou a idéia de escrever um romance. Escrever, é verdade, faz parte de sua vida, desde sempre. Mas a decisão de mergulhar fundo num romance acabou transformado-se numa experiência única, que consumiu praticamente todo o tempo de Chico desde aquela segunda-feira de maio do ano passado. Houve, é verdade, desafios: Rubem Fonseca, por exemplo, passou a avisar aos amigos comuns que Chico iria filhas de Natal de 1989 para escrever um romance. Chico, é claro, desconversa, mas o editor Luis Schwarcz resolveu levar a história a sério e chegou a oferecer um contrato antes mesmo que a primeira linha tivesse sido escrita. Chico agradeceu, dispensou o contrato antecipado e começou a escrever.
Ao longo de todo um ano, um mês e três dias, ele passou pelos vendavais que costumam se abater sobre quem está escrevendo. "É parecido com escrever uma letra de canção", disse ele a um amigo no fim do trabalho, "mas com uma diferença enorme: a canção chega ao fim antes". A sensação, em todo caso, era parecida - só que mais prolongada, mais profunda e, às vezes, mais dolorida.
Seguindo um velho hábito, Chico escreveu principalmente à noite. Ele tinha uma idéia aproximada e escrevia como quem segue uma pista. Nada foi especialmente planejado, e ele mostrou certa surpresa ao saber que alguns escritores armam, antes de começar a escrever, toda a estrutura do livro, com seus mínimos detalhes. A idéia, no caso de Estorvo, serviu de ponto de partida, e o rumo foi mudando conforme a história ia sendo escrita. "No fundo", comentou o autor, "o processo parece mesmo com o das letras, em pelo menos duas ocasiões ele confessou "ter uma certa saudade daquele não dormir, aquela coisa de tomar um copo de vinho, pensar em alguma coisa e ir escrever".
Escrever é, certamente, o mais solitário dos ofícios, Chico sabe e sabia disso, pois no fundo das madrugadas nasceram quase todas as suas letras, cujas palavras costumam ser buriladas até a exaustão. Em Estorvo, ele mergulhou numa longa aventura, numa história que gira ao redor de uma busca de fuga, de um ir-e-vir sem rota nem rumo, o encontro de um destino que, de tão previsível, fez, se inesperado. Como um mago desajeitado, que, ao invés de tirar coelhos, pombas e tangerinas da cartola de ilusões, tirasse a confissão de sensações do fundo da alma, seu personagem atravessa, em cada linha do livro, dias e noites de uma procura sem fim.
Na véspera de embarcar para a Europa, Vinícius Cantuária disse a Chico que se você fica muito tempo sem tocar violão, as cordas perdem a alma. "Então, meu violão deve estar com a alma toda embolorada", respondeu Chico, que foi tratar de recuperá-la em Paris.
Pode até ser. Mas a alma do livro esta em pleno vigor, cheia de brilhos e fulgores. Deve ter custado um bocado. Mas o autor sabe e sabia que nenhuma aventura bela e profunda é vivida sem riscos.
O Globo - 10/02/96
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Wilson Martins
A imprecisão da literatura de amadores
O compositor Chico Buarque e o humorista Jô Soares cometem erros e se entregam aos clichês em seus romances
O literato amador e o leitor amador são figuras simétricas e complementares da vida intelectual. Nenhum deles tem na literatura o seu interesse predominante: um escreve por vaidade, o outro lê por desafio. Num caso e noutro são atividades para as horas vagas: o literato amador não tem tempo para ler. São espécies paralelas à dos profissionais da escrita e da literatura - acrescentando o paradoxo de que os leitores amadores são muito mais numerosos do que os leitores de literatura. Mas são também os que lêem as primeiras 20 ou 30 páginas e raramente encontram lazer para retomar o livro abandonado (mesmo porque continuam a sair os que exigem leitura de 20 ou 30 páginas a fim de manter as conversas de bares e salões). Apesar das relações inevitáveis, a literatura amadorística não se confunde necessariamente com a subliteratura, pois há subliteratos profissionais, especializados em produzir a subliteratura (basta consultar a lista dos mais vendidos, onde também entram, claro está, os literatos amadores no caso de serem igualmente personalidades mediáticas). Embora seja raro que o leitor amador se transforme em leitor profissional, acontece que este último muitas vezes comece como amador: a leitura, como já disse, é um vício impunido que se contrai como todos os vícios e com as mesmas repugnâncias iniciais. Tudo isso é dito sem a menor intenção depreciativa, antes com o propósito de circunscrever um fenômeno sociológico aliás pouco estudado e digno de melhor atenção. No que se refere à ficção, tanto o literato amador quanto o seu leitor não têm consciência das técnicas de estilo; sem o qual não há literatura, dizia Thibaudet. São a intriga e as peripécias narrativas que lhes monopolizam a atenção, pouco sensíveis às inverosimilhanças e às simplificações psicológicas. Os personagens da literatura amadorística são como as pinturas bizantinas: não têm "perspectiva". Referindo-se à leitura, E. M. Forster lançou em 1927 a famosa distinção entre os personagens planos e redondos, ou seja, os de psicologia superficial e rasteira, os que jamais oferecem surpresas de comportamento, e os que se distingüem pela complexidade espiritual e ações não só imprevisíveis, mas até contraditórias - dentro de sua própria lógica. No que se refere à leitura amadorística, como nas novelas de Chico Buarque ("Benjamim") e Jô Soares ( "O xângo de Baker Street"), ambas de 1995 na editora Companhia das Letras, seria preciso acrescentar-lhes os personagens côncavos, sem conteúdo nem relevo próprio, preenchidos pelos autores com a massa das peripécias e acontecimentos que se sucedem por aluvião. Em Jô Soares, a sátira predominou sobre a observação humana que é a carne e o sangue da literatura. Seus figurantes são, por definição, anti-heróis da literatura: além de errar nas suas "deduções" antonomásticas (introduzidas a fórceps em cenas de artifício infantil), Sherlock Holmes não conseguir desvendar os crimes que o trouxeram ao Rio; o comportamento de Pedro II contraria todas as normas do protocolo palaciano, e assim por diante. Trantado-se de "romance histórico", Jô Soares procurou documentar-se sobre a época, seus vultos representativos e costumes característicos (há, mesmo, uma bibliografia que denuncia alguma insegurança do autor). Isso aparece no excesso das notações informativas, mas é duvidoso que vendedores ambulantes, população pitoresca dos bairros residenciais, percorressem a Rua do Ouvidor pelas duas horas da tarde anunciando produtos mais apropriados para as cozinhas domésticas. Resta ter sido engenhosa e bem articulada a trama dos crimes (embora de motivação nebulosa), mas, no propósito de desmoralizar o detetive, Jô Soares infringiu o princípio moralizante que justifica e em que assenta a literatura policial: no caso, a vitória coube ao criminoso, que escapa à punição e ainda se vangloria dos crimes. Ele é apresentado como a inteligência superior por oposição à suposta inteligência superior de Holmes. Por deliberação ou reminiscência involuntária, Chico Buarque escreveu pelo modelo já arcaico do "novo romance" francês (que era "novo" da década de 1950). É a "literatura do olhar", como a chamaram Robbe-Grillet e outros tratadistas, clara transposição das técnicas cinematográficas para o texto literário. Ao exemplo desses ancestrais, Chico Buarque entrega-se a descrições minuciosas em que o olho da câmera cimematográfica se transforma em microscópio. A influência do cinema predomina na própria concepção da história e domina o espírito do autor; desde as primeiras linhas ele volta ao velho lugar-comum segundo o qual toda a vida progressa perpassa vertiginosamente pelas pupilas do condenado no momento de sua morte - "tal qual um filme", acentua o ficcionista. A novela começa precisamente com essa cena (manes de García Marquez!), a obsessão do cinema condiciona toda a narrativa. Há passagens em que o texto admite copiar o que já vimos inúmeras vezes nas telas: "...como sucede nos filmes, onde oherói julga reconhecer a amante do outro lado da rua (...)" Num museu do Rio, os personagens de Jô Soares encontram "múmias autênticas dos tempos dos faraós"; ele tampouco foge dos lugares-comuns mais acalcanhados, como se referir à "mais antiga das profissões". Os de Chico Buarque encontram espelhos paralelos em que "uns refletem os outros e vice-versa", para nada dizer do que "justiça" o táxi ao bater-lhe a porta com violência. Outro, embarca para a Europa numa página e regressa da Índia na página seguinte, tudo enriquecendo os anais da literatura amadorística.
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Veja - 13/12/95
Diogo Mainardi
Chico Buarque é um orgulho nacional. Beijo-lhe os pés. É um grande sambista. Não obstante, permanece modesto. Adora futebol - informam-me, inclusive, que joga bem. Com suas canções, tornou-se símbolo de insubmissão à censura do regime militar. Descende da melhor linhagem de intelectuais do Brasil. Os livros de seu pai são imprescindíveis para compreender a formação do país. Uma imagem perfeita, a de Chico Buarque. Acrescida, nos últimos tempos, da enorme repercussão de sua incipiente carreira literária. Primeiro, Estorvo. Agora, Benjamim (Companhia das Letras; 165 páginas, 17 reais). 
Não é fácil entender por que um homem tão bem sucedido em outros campos põe-se a escrever literatura. Certamente não pelo dinheiro, pois ganharia muito mais com um disco ou vendendo uma velha canção para a publicidade. Duvido também que o romance seja fruto de uma inspiração repentina, absolutamente impreterível. De fato, Benjamim baseia-se numa idéia simples, até mesmo simples demais, em que não se percebe a mão de uma musa benévola, mas apenas o esforço de um escritor disposto a preencher buracos. A minha sensação é de que Chico Buarque estava enjoado de sua imagem imaculada, adormecido numa vida sem riscos, sempre circundado por adoradores. Como um jogador enfadado que gira o tambor na roleta russa, ele decidiu escrever romances. Nada mais emocionante do que invadir o terreno desconhecido, sem medo de quebrar a cara. 
Risco calculado - Chico Buarque falho, se essa era a sua intenção. Benjamim é tão comportado quanto ele. Não há perigo. Não há aventura. Não há nada que indique uma real motivação. O romance não ilumina. Ao mesmo tempo, não provoca danos. É um risco calculado, nem bom nem ruim. Roleta-russa com balas de festim. Apesar de despertar a inveja dos escritores profissionais, vendendo muito mais que todos eles juntos, Chico Buarque também não terá a emoção de ser atacado em público, por causa da habitual abjeção dos resenhistas da imprensa. Ele cometeu a ousadia de escrever um romance, mas a sua imaginação é tão avessa a ousadias que o resultado é imperceptível. Li ontem. Hoje, já não consigo lembrar de quase nada, a não ser um certo sentimento de vácuo. 
Benjamim é o nome do protagonista do livro, um velho modelo fotográfico agora desempregado. Nas primeiras linhas do romance, ele é fuzilado. Um instante antes de morrer, a sua vida passa-lhe diante dos olhos. Literalmente: "sua existência projetou-se do início ao fim, tal qual um filme". O leitor torce para que Chico Buarque não insista numa metáfora tão elementar, mas não há esperança, pois o romance não passa disso, o relato filmado de todos os episódios que levaram Benjamim até seu trágico destino. A história é mais ou menos a seguinte. Benjamim imagina reconhecer na jovem Ariela Masé a filha de sua antiga amada, Castana Beatriz, assassinada durante a ditadura militar. Involuntariamente, fora o próprio Benjamim a indicar o esconderijo de Castana Beatriz às forças da repressão. O sentimento de culpa destruíra sua vida. Agora ele tenta redimir-se com Ariela Masé, a suposta filha de sua amada. 
O principal recurso narrativo de Chico Buarque é encher a trama de ambigüidades. Ariela Masé pode ser a filha legítima de Castana Beatriz. Assim como pode não ser. Benjamim segue Ariela Masé até o sobrado verde-musgo em que Castana Beatriz foi assassinada. Mas pode tratar-se de mera alucinação. Nunca se sabe o que é alucinação e o que não é. Os personagens do romance parecem tornar-se confusos apenas quando é necessário criar mistério em torno de alguma situação. A idéia de transferir o ponto de vista de um personagem ao outro também confere um forte artificialismo à história. Em certos momentos, Chico Buarque segue os meandros da fantasia de Benjamim. Em outros, passa para Ariela. Em outros, para Aliandro Esgarte [sic], um marginal com direito a camisa aberta, corrente com medalhão no pescoço e amuletos no bolso. Considerando que estamos assistindo à reconstrução da vida de Benjamim, parece-me estranho que a ação perambule pelos diversos personagens. Pode ser que eu não tenha entendido alguma passagem. Pode ser que o livro possua uma mensagem secreta que não consegui absorver. 
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Teatro
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Em 1965, a pedido de Roberto Freire, diretor do TUCA, Teatro da Universidade Católica de São Paulo, Chico musicou o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, para a montagem da peça. cançõesDesde então, sua presença no teatro brasileiro tem sido constante. Aqui, você pode conhecer as quatro peças que escreveu além das diversas que compôs para teatro. 
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Roda viva
Peça em dois atos 
de Chico Buarque
PRIVATE "TYPE=PICT;ALT=Ma"A peça Roda viva foi escrita por Chico Buaque no final de 1967 e estreou no Rio de Janeiro, no início de 1968, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, com Marieta Severo, Heleno Pests e Antônio Pedro nos papéis principais. A temporada no Rio foi um sucesso, mas a obra virou um símbolo da resistência contra a ditadura durante a temporada da segunda montagem, com Marília Pêra e Rodrigo Santiago. Um grupo (de cerca de 110 pessoas) do Comando de Caça aos Comunistas - CCC - invadiu o teatro Galpão, em São Paulo, em julho daquele ano, espancou artistas e depredou o cenário. 
No dia seguinte, Chico Buarque estava na platéia para apoiar o grupo e começava um movimento organizado em defesa de Roda viva e contra a censura nos palcos brasileiros. 
2.4. POLIFONIA CULTURAL 
A cidade - e sua orquestração de vozes - não se restringe ao espaço geográfico; é mais o lugar centralizador da cultura e também - fato que está em sua origem - do mercado. Dessa forma, o contexto ideológico de Roda viva expõe a fratura que será um dos eixos principais da literatura de subtração: a indústria cultural. Se a primeira reação do modernismo foi rejeitá-la, produzindo uma arte aurática, exclusiva a iniciados, percebe-se entre os artistas contemporâneos um movimento contrário, no sentido de incorporar sua obra ao mercado. 
Esta questão vincula-se diretamente ao poder exercido pelos meios de comunicação de massa sobre a população, o que, de certa forma, conspira até contra os ideais do urbanismo moderno, como demonstra Adorno: 
Os projetos urbanísticos que deveriam perpetuar, em pequenas habitações higiênicas, o indivíduo como ser independente, o submetem ainda mais radicalmente à sua antítese, o poder do capital. (...) Toda civilização de massa em sistema de economia concentrada é idêntica, e o seu esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os dirigentes não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se reforça quanto mais brutalmente é reconhecida. Filme e rádio não têm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade, cujo nome real é negócio, serve-lhe de ideologia. (ADORNO: 1990, p.160) 
Sem fazer concessões à indústria cultural e indo de encontro à inserção do artista no mercado, a montagem de José Celso voltou-se, como evidenciou Décio de Almeida Prado em citação da seção anterior, contra um dos mais frágeis elos dessa cadeia - o consumidor. Neste sentido, vale a pena avaliar duas posturas diversas da crítica em relação ao teatro de agressão. 
A primeira é do crítico Yan Michalski que, ao justificar a ausência da classe média dos teatros causada pela propaganda de direita que passou, a partir de 1968, a associar as salas de espetáculos a antros de perversões, violências e subversão,afirma: 
Não há como negar, também, que a barulhenta ala do chamado teatro de agressão assustou bastante o público tradicional e, em vez de forçá-lo a participar ativamente do acontecimento cênico, de acordo com a sua proposta, afastou-os das salas, que tornaram-se mais vazias do que nunca. (1989, p. 38). 
Fernando Peixoto contrapõe a esse tipo de crítica a certeza de que Roda viva, sucedendo o Rei da vela, dava uma dimensão maior do que foi chamado "teatro de agressão". Foi um êxito de bilheteria.(1982, p.75) 
A segunda formulação é do crítico Anatol Rosenfeld, que, ao contrário de Yan Michalski, afirma que o teatro de agressão, não espanta o público burguês, mas, ao contrário, o atrai, pois a mera provocação, por si só, é um sinal de impotência. É descarga gratuita e, sendo apenas descarga que se comunica ao público, chega a aliviá-lo e confirmá-lo no seu conformismo (1973, p. 56). 
O teatro de agressão é uma das primeiras manifestação artísticas da época a instaurar a violência como linguagem. Se, no palco, esta estética foi-se gradativamente esgotando, na prosa literária legou páginas importantíssimas para a literatura brasileira. Há que se ressaltar, no entanto, que fica mais coerente compreender o fim do teatro de agressão associando-o ao próprio esgotamento das forças transformadoras modernas. 
Para Glauber Rocha o amor que essa violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência, mas um amor de ação e transformação. A intenção transformadora se esvazia e a violência se ressemantiza em, por exemplo, Rubem Fonseca; o amor e a solidariedade se transformam em solidão em Caio Fernando Abreu e o mecanismo de ação/reação se extingue nos últimos romances de Chico Buarque, alguns dos autores que possibilitam percursos na diver-cidade da literatura brasileira contemporânea. 
Primeira Crítica
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Nunca vi um público mais desorientado e perdido do que o fã-clube adolescente de Chico Buarque de Hollanda que lotava completamente o Teatro Princesa Isabel na estréia de Roda-viva. E não era por menos. As menininhas foram assistir a uma peça musical de Chico, com cuja arte possuem amplas afinidades; mas acabaram assistindo a um espetáculo de José Celso Martinez Corrêa baseado num roteiro de Chico; e as afinidades das menininhas com a arte de José Celso já são muito mais discutíveis.
Será difícil, aliás, encontrar uma platéia que possua reais afinidades com este happening, este ritual pagão que José Celso criou, com uma ousadia suicida, com um talento admirável, mas também com uma selvageria que desta vez me pareceu decididamente exagerada. A impressão que o espetáculo me deixou é a de que se trata, antes de mais nada, de uma catarsis particular do diretor, de sua luta pessoal contra os seus demônios interiores, com o qual o público tem muito pouco a ver.
A primeira meia hora impressiona fortemente, pela audácia e violência da empostação. Mas uma vez absorvida esta surpresa inicial, e apesar de várias soluções coreográficas e pictóricas de extraordinária beleza, Roda-viva se transforma cada vez mais numa frenética sessão de exibicionismo histórico e, como tal, deixa aos poucos de atrair o interesse do espectador. É claro que este é submetido, do início até o fim, a um violentíssimo tratamento de choques; mas se esse tratamento, tão importante e saudável no teatro contemporâneo, é perfeitamente legítimo quando se quer chocar em nome de alguma coisa, ele me parece eltamente discutível quando - comoaconteceaqui: existo apenas a vontade de chorar em nome do próprio choque. Não vejo, sinceramente, que tipo de enriquecimento uma tal realização pode trazer ao espectador. E não sei se no estágio atual do teatro brasileiro temos o direito de convidar os espectadores, com tanta falta de cerimônia, a nunca mais voltar ao teatro.
É por causa disso que Roda-viva me pareceu ser, surpreendentemente, um dos espetáculos mais alienantes e alienados dos últimos tempos. E Chico Buarque, coitado, que compôs para Roda-viva várias músicas de sua inconfundível lavra, não tem culpa nenhuma dessa alienação.
Um bravo ao elenco pela garra e coragem com a qual defende esta na minha opinião frustrada, embora talentosíssima, iniciativa.
"Roda viva" prova que ainda é transgressiva
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Parece incrível que dezessete anos após o escândalo provocado pela peça "Roda viva", de Chico Buarque de Hollanda, montada em 1968 pelo Grupo Oficina, a figura de seu diretor, José Celso Martinez Corrêa, 45, ainda apareça como o maior símbolo da transgressão no teatro brasileiro. Sinal dos tempos e do medíocre triunfo do "teatro de sala de visita" nas duas últimas décadas, pasteurizado e conformista. Quem ainda alimentava dúvidas, teve a última terça-feira - quando "Roda viva" foi apresentada no Projeto Balanço Geral, promovido pelo Núcleo Hamlet - para atestar que o teatro de Zé Celso mantém o mesmo nível de provocação.
Foi o maior sucesso, até agora, entre as 23 leituras de peças nacionais do projeto, que começou em setembro e segue até o final de dezembro. Ninguém imaginava que "Roda viva" conseguiria, ainda chocar burgueses escandalizáveis após todos esses anos. Ou lotar um teatro como o Marilia Della Costa, tomado de assalto por dezessete atores jovens e um grupo de quatro, músicos.Quase seiscentas pessoas (a lotação do teatro é de 420 lugares) disputaram, sem medo, um espaço para assistir a peça, que encerrou a sua carreira, em 1968, com integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadindo o palco do teatro Ruth Escobar e espancando todo o elenco, liderado, na época por Marilia Pêra e Rodrigo Santiago.
Pela reação do público e a ira demonstrada por participantes do debate promovido após a apresentação de "Roda viva", pode se afirmar que até mesmo através de uma peça datada, cuja proposta de leitura dramática foi inicialmente rejeitada por seu diretor - "teria preferido que o projeto escolhesse Gracias, Señor -, Zé Celso mantém sem mácula seu discurso transgressivo, a favor de um teatro batizado por ele como a própria "tragicomédia-orgia". Quem duvidava tremeu diante do fígado de Bem Silver, ou Benedito Silva - o cantor transformado em mito, na peça -, atirado à platéia como num ritual sangrento que não poupa sequer a roupa limpa dos espectadores.
Visita da polícia 
A história se repete. Antes de levar novamente ao palco " Roda viva", o grupo formado às pressas para apresentar a peça no Projeto Balanço Geral foi "visitado" quatro vezes pela polícia, no Teatro Oficina, durante os ensaios. Havia o temor de que o CCC voltasse a atacar, como em 1968, quando 79 integrantes da organização paramilitar arrastaram Marilia Pêra, Rodrigo Santiago e outros atores pelos cabelos sobre o chão do teatro Ruth Escobar. Felizmente, a ira hidrófoba dos opositores de Zé Celso limitou-se, desta vez, a discursos agressivos durante o debate de terça-feira. "As peças apresentadas na série têm provocado discussões apaixonadas", diz Mario Martini, 33,diretor operacional do Projeto Balanço Geral. "É interessante que o públco seja formado predominantemente por jovens entre 20 e 30 anos, pessoas que não tiveram a oportunidade, na época, de assistir espetáculos como "Arena Conta Zumbi" ou "Rei da Vela" por causa da idade. O idealizador do projeto, o ator Sérgio Mamberti, 46, garante que os resultados "são superiores aos que a gente imaginava". Os números confirmam.
"Morte e vida severina", de João Cabral de Mello Neto, por exemplo, foi apresentada em duas sessões, para um público superior a 900 espectadores.
Apesar desses resultados, o projeto Balanço Geral só conseguiu o apoio maciço da mídia (Rede Globo, Central de Outdoor, Active Computadores e anúncios em jornais). "O projeto tinha um orçamento inicial de Cr$ 712 milhões, incluindo todas as despesas", revela o diretor operacional da série. "Apelamos, então, para as secretarias de Cultura de São Paulo, municipal e estadual, além do Inacem e outros organismos estaduais e federais. Só conseguimos Cr$ 75 milhões a títulode contribuição, e a bilheteria não está cobrindo o resto."
Prefácio do livro Roda Viva,
por Vinícius de Moraes
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Chico Buarque sem tirar nem pôr
Faz uns sete anos, estando eu na Clínica São Vicente, numa de minhas recauchutagens, e me entra quarto adentro, violão em punho, o adolescente Francisco Buarque de Hollanda; cujo Chico, sério como um pote, e como se lhe tivessem dado corda, pôs-se a cantar para mim seus primeiros sambas. Lembro-me até de um que falava em estação-de-trens, os trenzinhos que partiam e toda essa coisa - certamente precursor de "Pedro pedreiro": ou seja, cronologicamente seu segundo sucesso, sendo o primeiro o lindo "Sonho de um carnaval".
Eu andava em boa fase de composição, e tinha acabado uns dois ou três sambas de Baden Powell, "Pra que chorar" entre os quais. Mostrei-o a Chico, ele sério como um pote, emitindo com uma certa gagueira, e telegraficamente, o que tinha a dizer. Chico pertence a essa classe de pessoas cujo invólucro parece vestir um bicho meio selvagem em processo de domesticação, que fica, de dentro, olhando a gente e assuntando coisas. Os olhos azuis de Chico, por exemplo, pertencem a esse bicho. Porque, pensanso bem, seus olhos deveriam ser castanhos.
Lembramos o inverno de 1953 em Roma, onde passei quase um mês em trânsito para o meu posto em Paris e onde, em sua casa, até altas horas, ficávamos, seu pai e eu, tomando grapa, a cachaça italiana, e cantando coisas ao violão. Houve uma madrugada em que me pareceu ter visto as perninhas do sem-vergonha lá no topo da escada, quietinho escutando.
Para mim é muito difícil falar de Chico sem parti-pris, sabendo como sei que a sua qualidade como ser humano e compositor é muito rara. Sua irmã Heloisa (Miúcha para os íntimos), hoje mulher de João Gilberto, era, brotinho, tão do meu lado que chamava seu violão pelo meu nome. Naquela época eu, depois de vinte anos de recesso, recomeçara a compor, e os bagulhinhos que fazia eram, ai demim, populares entre os Buarque de Hollanda. No dia em que cheguei a Roma, fui à tarde tomar um drinque no maravilhoso (era todo pintado a ouro!) barzinho da boate "La Kabala", meu ponto favorito e onde, de minha primeira viagem à Itália, passava as noites ensinando canções brasileiras aos músicos da casa: eles, entre os números, desciam rapidamente para ouvir-me cantarolar ao violão Caymmi, Antônio Maria, Fernando Lobo, Luiz Antonio, Paulinho Soledade e outros "cobras" da década: a grande década de Aracy, Elizete e Nora Ney. E eis que estava muito bem a tomar meu uísque, no bar em sombras, quando me entra alegre um grupo de moças e rapazes, e de repente, sem mais nem menos, ouço ao violão um samba meu cantado, meu Deus, por uma voz de cristal afinadíssimo que só poderia ser de... - e era ela, minha querida Miúcha, e foi aquela confraternização! À noite estava em casa de meu bom Sérgio e minha boa Maria Amélia, os pais de todos, e cantamos a mais não poder, inclusive - especialidade do dono da casa - canções italianas:
Te voglio bene
Te voglio tanto bene
Ou ainda - e morro de saudades...
Quanto sei bela Roma
Quanto sei bela Roma prima sera
Maria Amélia e Sérgio de Hollanda são um outro capítulo. Apesar de se apresentar hoje em dia, e com o maior orgulho, como "o pai do Chico", a verdade é que, apesar de seu imenso talento, Chico é que ainda é filho do Sérgio. Ou, pelo menos, um é pai do outro. Conheço o casal desde os idos de 1936, quando começavam a namorar, e apesar dos desvãos da vida, e de morarmos em cidades diferentes (ele é paulista), nossos eventuais encontros retomam o fio da amizade como se nos tivéssemos visto na véspera. Pois é difícil gente melhor e mais culta: culta no sentido menos livresco da palavra, se bem que Sérgio Buarque de Hollanda seja um sábio e um senhor escritor, claro e substantivo, pelo fundo e pela forma. Contam-se nos dedos os escritores brasilerios que lhe possam encostar.
Retomei contato com Chico no segundo semestre de 1965, em programas de TV em São Paulo, e rapidamente nos tornamos amigos. Pudera! era tudo histórico, arqueológico, hereditário. Os cromossomos da amizade se identificaram num segundo, e a diferença de idade deixou de existir diante dos interesses comuns. Eu ia, às vezes, à sua casa, onde me dividia entre os pais e os filhos: estes geralmente rodeados de cardumes de brotos em pleno exercício do direito inalienável de ser jovens. E nunca me senti fora do ambiente entre eles. Aceitavam-me naturalmente, a mim e às minhas canções. Eu as dava em troca do privilégio de poder, na minha madurez, estar entre eles, participar de sua beleza desinibida e móbil.
Uma noite, sua mãe, Maria Amélia, disse-me com seu ar garoto mais convicto:
- A música de Chico deu um grande passo em frente.
Ele tinha acabado de fazer "Olê, olá". Ouvi o samba cantado por suas irmãs em sua ausência, e ele me emocionou fundamente. Pois ali via-se, já com muito mais diafragma que em "Pedro pedreiro", o fundo sentimento de terna piedade para com seu semelhante que caracteriza a composição desse moço já nascido adulto para a arte de fazer canções.
O resto é história corrente: a "Banda" é o extraordinário sucesso de Chico, como nenhum artista brasileiro, em nenhuma época, conheceu igual. E isto quando ele apenas completara a maioridade. Sucesso que "Carolina" veio confirmar e agora "Roda-viva" e "Bom tempo" dimensionam num plano musical mais alto. Pois nem isso seus detratores podem mais dizer dele, em sua surda inveja, que Chico é um grande letrista mal servido por um músico sem imaginação. Ou que é uma cópia moderna de Noel. Não me perguntem o que eu acho, perguntem, por exemplo, a Antônio Carlos Jobim, que é, fora de qualquer dúvida, o maior compositor popular da atualidade.
Não me resta dúvida de que Chico é tembém um escritor. Não um escritor como a maioria dos que existem por aí, meros ajuntadores de palavras escritas num léxico convencional ou modernoso. Esta é sua primeira peça, desentranhada da dura e feia realidade dos ambientes de televisão, e com uma gana como só se tem ao vinte anos. Não é, literalmente, a sua experiência, mas também não deixa de o ser. Representa, de qualquer modo, a primeira crise de consciência de um jovem ídolo que assumiu inteiramente a responsabilidade do seu sucesso e em nada deixou se empolgar por ele, como é tão freqüente em nosso meio; aliás, em qualquer meio do mundo ocidental. E que, sem omitir-se dos seus deveres para com o público e seus empregadores, nem por isso aceita a desumanização que tais atividades terminam fatalmente por acarretar, num ambiente onde o patrocinador é Deus e o índice de audiência o seu profeta; onde o faturamento está na razão direta do mau gosto e na inversa de uma verdadeira consciência artística: e que é que se vai fazer?... É o "esquema", como dizem os donos da mercadoria...
Rio de Janeiro, julho de 1968
Vinícius de Moraes
Humberto Werneck, Gol de letras
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O ano de 1968, disso não há dúvida, foi aquele em que o bom moço de olhos verdes deixou de ser "a unanimidade nacional". Ele próprio se encarregou de dinamitar o incômodo rótulo da unanimidade ao escrever, em 1967, a peça Roda viva, sobre um artista popular triturado pelos mecanismos do show biz. As cinqüenta laudas do texto forma produzidas em 25 dias, e a montagem confiada ao diretor José Celso Martinez Corrêa, com quem Chico já havia trabalhado: em 1966, fez uma canção para a peça Os inimigos, de Máximo Gorki, que depois recebeu letra e se chamou Acalanto. As músicas da peça eram Roda viva e Sem fantasia. O ídolo Ben Silver foi vivido por Heleno Prestes, e a mulher dele, por Marieta Severo. Zé Celso, que saía de uma ousadíssima encenação de O rei da vela, de Oswald de Andrade, encantou-se com a perspectiva de trabalhar o próprio mito de Chico. No palco do teatro Princesa Isabel, no Rio, onde, Roda viva estreou no dia 15 de janeiro de 1968, havia um cenário, ladeado por um enorme São Jorge e uma monumental garrafa de Coca-cola - mas a ação se desenrolava também na platéia, em meioaos espectadores. Muitos deles saíam respingados com o sangue de um fígado cru que os atores dilaceravam com os dedos.
Não poucos duvidaram de que tanta agressividade partisse de Chico, preferindo debitá-la ao diretor, que teria tomado excessivas liberdades com o texto. Zé Celso admite que fez daquelas 50 laudas apenas ponto de partida para uma criação mais livre, mas não acredita que tenha cometido uma traição. Apenas, explica, tratou o autor com "carinhoso desrespeito". E Chico, ele diz, apoiou tudo, não interferiu em nada - "só numa cena em que Marieta Severo deveria aparecer nua; aí não concordou, e ela fez a cena com uma roupa cor da pele". Depois do Rio, o espetáculo viajou para São Paulo, num momento em que a radicalização política já não estava apenas nas escaramuças entre os estudantes e a polícia.
O tenebroso CCC, Comando de Caça aos Comunistas, estava bem articulado, e foi um grupo de militantes seus que invadiu o Teatro Galpão na noite de 17 de julho, destruindo os cenários e espancando os atores. Em Porto Alegre, a temporada resumiu-se ao espetáculo de estréia, a 3 de outubro: no dia seguinte, a repressão cercou o hotel onde o grupo estava hospedado, seqüestrou dois atores e os abandonou num matagal distante. Depois, todos foram tirados do hotel e embarcados num ônibus para São Paulo. Roda viva acabou ali.
Para Zé Celso, o próximo seria a montagem de Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, que veio a estrear num dia tristemente e inesquecível, 13 de dezembro de 1968. Naquela noite, Chico estava em casa, com o ator Hugo Carvana, quando o rosto do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, encheu o vídeo para anunciar a decretação de um novo ato institucional, o de número 5.
Estamos fodidos - adivinhou Carvana.
...o oficial que o interrogou, general Assunção, queria saber, por exemplo, a respeito de uma cena em que, segundo estava informado, um ator fazia cocô num capacete, um dos raros desvarios, por sinal, que não haviam ocorrido ao diretor...
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O teatro todo destruído a pauladas
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A reunião do secretário de Segurança com a comissão de artistas durou uma hora e meia. O próprio secretário telefonou a todas as delegacias e ao DOPS, e não conseguiu localizar os dois homens presos durante as violências de ontem à noite no Teatro Galpão. Ele prometeu policiamento nos teatros. Às 14:30 horas os artistas se reúnem para falar com o governador. À noite tem Roda Viva outra vez, no mesmo lugar.
Às onze e meia da noite de ontem, o elenco da peça Roda Viva, no Galpão do Teatro Ruth Escobar, tinha agradecido os aplausos e já estava nos camarins. Começavam a mudar a roupa, quando ouviram os primeiros gritos e o grande barulho que vinha da platéia. Ninguém sabia o que estava acontecendo.
Muita gente nem tinha-se levantado das cadeiras, quando mais de vinte rapazes, armados de cassetetes e revólveres, deram um grito, e começaram a depredar tudo dentro do Teatro galpão. Não deu tempo para nada: os guardas de três radiopatrulhas que estavam na porta, em frente do número 209 da rua dos Ingleses, correram, mas não puderam entrar. Foram impedidos por mais de 100 pessoas que queriam sair daquela confusão.
Lá dentro, continuava o quebra-quebra. Primeiro foram os espelhos dos camarins externos, que ficam bem perto do palco. Depois foi a vez dos projetores de Slides e dos microfones. Os instrumentos dos músicos também foram quebrados a pontapés e pauladas. Todos corriam, ninguém sabia o que acontecia. Marília Pêra, a atriz principal da peça, Margot Baird, dentro dos camarins internos, foram agredidas, os homens arrancaram suas roupas. Walkíria Mamberti, outra atriz da peça, também foi despida e espancada, apesar de avisar, aos gritos, que estava grávida.
Margot, com os olhos vermelhos de choro, passando as mãos pelos cabelos, quase não consegue falar, por causa dos soluços e do susto que passou:
- Eu estava tirando a blusa, para trocar de roupa, quando ouvi um barulhão. Não sabia o que era, abri a porta e vi uns homens correndo para cima de mim. Fiquei assustada a Marília apareceu, entrou no meu camarim, fechamos a porta. Daí a pouco, começaram a bater e a gritar para que abríssemos. Seguramos a porta, mas não adiantou nada: eles arrombaram tudo, arrancaram nossas roupas, rasgando, e começaram a apertar a gente, gritando: "Isso é que é revolução, isso é revolução".
No palco e na platéia, a confusão continuava. O eletricista Vicente Dualde, o contra-regra José Luís - este foi para o pronto-socorro Iguatemi - com a bacia quebrada - e a camareira Isa apanharam bastante. Rodrigo Santiago, artista principal, também foi espancado. Lá fora, os guardas não conseguiam entrar. Uma porta lateral foi arrombada pelos que queriam sair, um extintor de incêndio foi disparado contra o rosto de Rodrigo. Muita gente rolava pelas escadas.
Modesto Ramone Junior, agente do DOPS designado para trabalhar na porta do teatro, na hora da confusão viu que podia fazer muito pouca coisa. Viu dois homens saírem correndo. Um deles com um cassetete na mão. Pulou em cima dele e agarrou-o:
- Daqui, você só sai morto.
Um dos detidos imediatamente disse que era o 2º. Tenente do Exército, e se identificou como Flavio Ettore, filho de Vezzia Ettore e Alezzio Ettore, carteira de identidade do Ministério do Exército, número 56.203. O agente tirou dele um cassetete branco com cabo azul, quebrado ao meio, e um martelo fino. Depois, levou os dois até a RP-29 e entregou-os ao Capitão Capetti, com a promessa de que os presos seriam levados ao DOPS.
Enquanto isso, os homens que quebraram tudo começavam a sair lá de dentro, correndo. Ninguém sabia quem tinha atacado o teatro e quem tentava fugir dos agressores. Dois rapazes, um deles bem loiro, com o cabelo cortado á escovinha, correram para um Volkswagen branco, chapa 6-19-16, Pernambuco-6, anotada pelo agente do DOPS, e desceram pela rua dos Ingleses em alta velocidade. Um deles, na fuga, perdeu um cassetete de madeira com quase um metro de comprimento, com a assinatura Jonas escrita com caneta esferográfica, em letras maiúscula.
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Pouco depois da meia-noite, Marília Pêra, Juraci Pêra, Samuel Costa, Fabio Camargo, Hélio Pereira das Neves, Rodrigo Santiago, Vicente Dualde e Walkiria Mamberti estiveram na 1ª Delegacia, no Páteo do Colégio, para exame de corpo de delito. Depois, voltaram para a frente do Teatro Ruth Escobar, onde os artistas começavam uma assembléia permanente.
Nem o DOPS e nem a 4ª Delegacia, onde estão presos não aceitaram a queixa de Ruth Escobar, dona do Teatro. O delegado Serra da 4ª Delegacia, não aceitou também o requerimento do advogado do teatro, não quis autuar os presos em flagrante e nem deixou os artistas identificarem-nos. Ruth Escobar telefonou para a casa do secretário da segurança Hélio Lopes Meireles, tentando resolver alguma coisa. O secretário mandou dizer que aquilo não era com ele, que era "matéria de teatro " e ocorressem á Justiça. Por isso, quase toda a classe teatral reunida no teatro Ruth Escobar resolveu, as 2:45 de hoje ,ir à casa do governador Abreu Sodré .O grupo de artistas reunido em frente à casa do governador foi atendido por um ajudante de ordens que entro para comunicar ao Sr. Abreu Sodré que os artistas queriam falar com ele. Depois de meia hora, chegou o capitão Abate, num Volks. Ele tentou convencer os artistas a irem embora para voltarem de manhã, dizendo que não era hora de acordar o governador.
Diante da insistência dos artistas, o capitão resolveu telefonar para a 4ª Delegacia. Ele voltou às 4,15 e informou que o secretário da segurança receberia uma comissão de artistas às 8,30 da manhã e que o preso ficaria na 4ª Delegacia até receberem ordens do secretário da segurança.
Os artistas voltaram para o teatro Ruth Escobar para escolher a comissão que iria ao encontro. toda classe teatral se reuniu às 2,30 da tarde para falar com o governador Abreu Sodré, às três da tarde, no Morumbi.
Apesar de teatro estar inteiramente destruído ,a peça Roda Viva será encenada hoje lá

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