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A Figuração do feminino na Canção de Chico Buarque

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A ferro e fogo, em carne viva: a dialética da paixão em Chico Buarque de Hollanda 
  
 Consuelo Navarro
Virginia Commonwealth University 
   
De “artesão da linguagem”, Adélia Bezerra de Menezes chamou Chico Buarque de Hollanda em 1982. “As palavras, com ele, adquirem, na sua fluidez, algo de alquímico. Algo de mágico” (MENEZES, 2000, p.17), diz a autora. A figura de Chico Buarque é, sem dúvida, uma das mais representativas da música popular brasileira. Em maio de 2001, ele obteve o segundo lugar como o compositor brasileiro mais popular, segundo a enquete realizada pela Folha Ilustrada, de São Paulo. Com mais de trinta discos gravados, o autor (entendido como escritor de textos poéticos não musicados) tem conseguido uma penetração em meio ao público de classe média jamais alcançada por qualquer grande poeta da atualidade. (FONTES, 1999, p.3). Suas canções, ao contar a história contemporânea do país apartir da experiêcia do cotidiáno das várias camadas sociais urbanas, atingem um vasto público. As diárias tribulações dos brasileiros aparecem, no texto poético e na voz de Chico Buarque, transformadas em arte. 
  Desde 1964, ano em que podemos localizar, aproximadamente, o início de sua carreira, a temática de suas canções revela um poeta e cantor de grande versatilidade. A coletânea “50 anos Chico Buarque” apresenta Chico sobre várias denominações: o amante, o trovador, o cronista, o malandro, o político. Essa seleção de músicas volta a nos lembrar, em palavras de Tárik de Souza, que “por sua caligrafia de poeta-repórter de seu tempo, Chico Buarque viveu um corpo-a-corpo encarniçado com a ditadura militar”. Tárik acrescenta que Chico “toreou a Censura através de metáforas e imprimiu uma linguagem cifrada que não tirou a beleza de suas músicas nem reduziu seu trabalho à mera fabricação de panfletos de vida curta”. Hoje, a poética de Chico Buarque revive o lugar comum cada vez que um proletário atravessa a rua com seu passo tímido. Apesar do país ter mudado desde a época da ditadura, esse indivíduo ainda anônimo come feijão e arroz como se fosse o máximo, e se senta para descansar como se fosse um príncipe. Para não mudar a história, ele morre na contramão atrapalhando o sábado. O ritual se cumple sem que o homem esquece de beijar sua mulher como se fosse a única, ou como se o beijo fosse lógico. O proletário de “Construção”, que ama como se fosse máquina, ama também como se fosse a última. Amar por última vez é amar com angústia, desespero e fúria. Amor-paixão que está presente em muitos textos de Chico. Esse trabalho nasce voltado para essas líricas em que a paixão ocupa um aspecto central. Entre as várias facetas mostradas na coletânea, quatro músicas de Chico, “O amante”, foram selecionadas para esse estudo. 
 Com artifícios da linguagem Chico Buarque aborda a paixão em sua complexidade de sofrimento, desejo sexual, fúria violenta e amor intenso. Porém, ao colocar-se no espaço feminino e reconstruir a fala da mulher, o texto poético entra na areia de representações simbólicas da feminilidade, deixando de ser simplesmente intimista. No aqui e agora, integram-se e interagem forças em conflito, isto é, masculino e feminino, dentro do espaço de poder que define as relações íntimas. Nos textos escolhidos para essa comunicação: “Atrás da porta”, “Bastidores”, “Tatuagem” e “Olhos nos olhos”, há um ciclo que vai da infelicidade à felicidade, o qual marca a vivência da paixão. A escolha textual corresponde, quase exclusivamente, no plano estético, à minha preferência pessoal pelas velhas músicas de Chico, aquelas dos anos 70 e 80. No plano crítico, eu tentarei oferecer um comentário sobre o desenvolvimento do eu feminino nesses textos, sem seguir precisamente uma linha cronológica. Meu trabalho continua a pesquisa iniciada por Maria Helena Sansão Fontes e Adélia Bezerra de Menezes, somando-se a esses esforços para salientar o caráter de reflexão existencial sobre a condição feminina, tão importante na obra buarquiana. Isto sem desmerecer o caráter político de sua produção, na maioria dos casos, o mais comentado pela crítica especializada. 
 Como fizera Bezerra de Menezes, eu abordo as canções principalmente enquanto letras. Junto com Menezes, eu: “parto do pressuposto de que, dada a sua grande penetração, elas já fazem parte integrante da sensibilidade musical brasileira, tornando-se assim impossível simplesmente “ler” tais canções, sem cantá-las mentalmente.” (MENEZES, 2000, p.41-42) Os textos aqui estudados, lidos como “incursões na alma feminina, desfiada fibra por fibra em letras de (hiper) realismo a sangue frio”, acabam explorando vários aspectos da psyche da mulher no Brasil. Eu, porém, acrescento que alguns dos textos de Chico Buarque contêm representações que podem existir também em outros países da América Latina, dada nossa História social comum. As representações do feminino na obra de Chico Buarque foram estudadas por Fontes e Menezes, destacando a intensa valorização dada à mulher em sua obra, mas sem perder de vista que tais representações se inserem numa cultura patriarcal, da qual o própio autor é produto e, até certo ponto, também representante. Fontes, por exemplo, assinala que: 
 Como poeta de seu tempo, [Chico] é consciente da condição da mulher na sociedade, da opressão oriunda de situações econômicas e culturais (…). Entretanto, sobrevivem no poeta os arquétipos inconscientes e primordiais relativos ao Grande Feminino que impulsionam seu gesto criador e fazem com que se revelem em sua obra tanto a necessidade de valorização da mulher como deusa e fêmea, como a angústia de sua contraparte, a mulher castradora, face terrível da Grande Mãe (FONTES, 1999, p.10). 
 Portanto, esses aspectos transparecem nas canções: a mulher é representada como deusa ou amante, protetora ou devoradora, diabólica ou submissa, sem que um deles exclua seu contrário. Seja ela emissora, referente ou destinatária do texto poético, ela é o feminino múltiplo: da submissão à transgressão. Para Menezes, a produção de Chico Buarque oferece uma visão muito masculina do feminino. Às vezes, numa lírica entranhadamente corporal, o poeta reveste o feminino com imagens de alta sensibilidade sensorial, convocando os sentidos do tato, do olfato e da vista. De par com essa intensidade, haveria uma figuração do “eterno feminino”. Outras vezes, tratar-se-ia do eu lírico feminino – a anima do autor, em termos jungianos. (MENEZES, 2000, p.15-20) Adélia Bezerra de Menezes especifica que Chico consegue não só ser o outro, mas a outra. “Nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina”. (MENEZES, 2000, p.20) 
  
Nos textos que formam o corpo de minha análise, a mulher é a emissora. Os termos de sua elocução são os do monólogo dramático, ou seja “una voz en primera persona que poco a poco desarrolla la historia, las anécdotas y el carácter del hablante, el cual assume una existencia generalmente independiente de la de su autor”. (PALLEY, 1987, p.139) A figura feminina que emerge dos textos de “Atrás da porta”, “Bastidores”, e “Olhos nos olhos” é a da mulher mal-amada, que fala para o amante que a abandona: “Quando olhaste bem nos olhos meus, e teu olhar era de adeus…” e que resiste em acreditar em sua partida: “Voltei correndo ao nosso lar, voltei pra me certificar que tu nunca mais vais voltar”. “Tatuagem” introduz a variante do medo ao abandono: a imagem escolhida para explicar esse medo é a da mulher querendo se perpetuar no outro. Ela quer ser escrava, “que você pega, esfrega, nega mas não lava”. Os quatro textos colocam a mulher frente a sua própria solidão. Sendo o amante o destinatário de tais lamentos, estabelece-se um diálogo implícito entre ambos ou, ao menos, poder-se-ia dizer que a voz poética está atenta às reações do destinatário. Os textos também sugerem, com ou sem intenção do autor, um esboço da personalidade do homem a quem tais lamentos estão dirigidos. Ele é quem domina a situação, sendo quem abandona o lar e quem causa a dor da mulher.As canções não constituem unicamente uma transcrição do desespero feminino. O público tem acesso às vivências femininas, marcadas pela perda do objeto amoroso. Como diz Richard Rodgers, “[i]t may be that we can sing what we often cannot say, whether it be from shyness, fear, lack of the right words or the passion or dramatic gift to express them”. (RODGERS, 1973, p.xiii) Conseqüentemente, Chico abre o espaço íntimo da mulher, revelando-o não só para o amante e para ela mesma, mas para a sociedade que permanece estranha ao drama. Ao cantar, a dor da perda alcança o feminino coletivo e o sofrimento é exposto. Há comunhão entre o poeta e os sentimentos da mulher como ser socialmente marginalizado. 
Os textos mostram eus femininos que sofrem nas mãos de seus amores. A mulher revelada nos poemas é uma mulher que aprendeu a se ver a si própria como propiedade do homem, que aprendeu a aceitar e obedecer. Poder-se-ia dizer que a educação das mulheres em materia de amor é alimentada, de certa maneira, por canções e pelas imagens da mulher que aparecem em tais canções. 
Isso é especialmente importante, agora que os meios de comunicação têm um grande impacto em todos os aspectos de nossas vidas. Nesse sentido, fazendo uma ilação com aos textos de Chico, para Maria Helena Sansão Fontes, “Atrás da porta”, “Bastidores”, “Tatuagem” e “Olhos nos olhos” mostram “o encontro/desencontro dos seres de maneira passional, desvelando a natureza trágica do relacionamento amoroso”. (FONTES, 1999, p.36) Tendo como referência a teoriazação de George Bataille acerca do erotismo e da morte, Fontes explica os poemas a partir do reflexo que eles explicitam da “angústia pelo desejo de continuidade e a violência da passagem de um estado de fusão amorosa ao estado de individualidade discontínua, propiciado pela ameaça da separação, do isolamento e da solidão”. (FONTES, 1999, p.37) Eu tentarei mostrar que esses poemas, lidos em conjunto, também marcam um caminho para a mulher revalorizar-se a sim própria. Minha leitura mostra que, não querendo mais se perpetuar em escrava, a mulher quer ser feliz, se refazer na procura de uma vivência livre que dê passo a sua paixão pela vida. Esse caminho percorre desde a representação da dependência emocional total até a expressão da liberdade do corpo vivida através de uma sexualidade mais livre. Nessa instância, o não dito sobre o masculino vai nos levar de volta às formas arquetípicas. 
  “Atrás da porta” (1972) e “Bastidores” (1980) narram o período de fixação na violência e na auto-destruição. Em outras palavras, o período de loucura para a mulher que sofre o abandono. Em “Atrás da porta”, a violência física é dirigida contra o homem: 
Me debrucei sobre teu corpo (…)
E me arrastei e te arranhei,
E te agarrei nos teus cabelos,
Nos teus pêlos, teu pijama 
A violência verbal está marcada pelo verbo “maldizer”. Em ambos os casos, “Atrás da porta” e “Bastidores”, a maldição é a expressão da frustração ao não poder evitar o acontecido. “Dei para maldizer o nosso lar” e “Amaldiçoei o dia em que te conheci”. Essas imagens de fúria, que corresponderiam às da Mãe Terrível, aparecem contrapostas às da mulher representada num estágio de dependência primária: 
Ao pé da cama 
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da prota
Reclamei baixinho 
  O uso do adjetivo baixo no seu diminutivo, “baixinho”, contraposto ao verbo “reclamar”, sugere que a imagem terrível perde sua força diminuindo-se até quase desaparecer. O que antes foi fúria violenta é agora anulação do ser. O drama continua e culmina, no caso de “Atrás da porta”, com a auto-humiliação: 
  E me entregar a cualquer preço
Te adorando pelo avêsso
Pra mostrar que ainda sou tua
Só pra provar que inda sou tua… 
  No caso de “Bastidores”, a paixão é descrita num monólogo com estrutura circular. O poema abre e fecha com lágrimas e dor: “Chorei, chorei, até ficar com dó de mim”. O periodo de loucura é também um periodo de catarse, ou seja de purgação ou purificação, através da arte. Após o intento de controlar a fúria: “Tomei um calmante, um excitante / E um bocado de gim”, a dor abre espaço para o sucesso da cantante: 
  Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim…
Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim…
Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim… 
  
Nesse poema, se a mulher não chega ao ponto de revalorização própria, ela, ao menos, tem consciência de que é admirada pelos homens. A mirada dos outros lhe devolve, embora ilusoriamente, sua seguridade perdida: “Só sei que todo o cabaré / Me aplaudiu de pé / Quando cheguei ao fim”. A estatura da mulher é agora semelhante à das deusas. Desde as alturas do sucesso ela contempla os homens “bêbados e febris / A se rasgar por mim”. Mas a dor não desaparece apesar do sucesso. A perda é irreversível: “Voltei pra me certificar / que tu nunca mais vais voltar / Vais voltar, vais voltar”. 
  Se o abandono reduz essas mulheres ao aniquilamento, o medo do abandono as leva ao desejo de auto negação. A paixão representada em “Tatuagem” (1972-73) – começando pelo título do poema – insinua, por um lado, uma desaparição da pessoa, ou seja, da mulher. Ela se transforma em objeto. O texto sugere também a necessidade da mulher de fazer parte do corpo do amante. Nesse processo há prazer e dor: ela quer ficar no corpo dele; quer ficar feito tatuagem, feito bailarina e feito cruz. As imagens da bailarina são radiantes: ela alucina, salta e ilumina. A da cruz, pelo contrário, sugere aflição. O desejo final se sintetiza na própria metáfora da tatuagem: 
  Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva 
  Desse modo, o homen nunca conseguirá arrancá-la de sua vida. A eleição de palavras para expressar o desejo feminino de não ser abandonada é importante demais. A palavra “cicatriz”, que é a chave da imagem, refere-se ao tecido fibroso que se forma ao longo do processo de cicatrização e que substitui os tecidos normais lesados ou seccionados, deixando uma marca. A palavra sugere que haverá um processo de restituição do eu masculino no momento da mulher formar parte do corpo do amante. Há outras interpretações possíveis, como as que são apresentadas por Fontes, que fala do medo da castração nas representações da imagem do feminino, na poética buarquiana. Porém, a palavra “cicatriz” vem acompanhada de dois adjetivos, isto é “risonha” e “corrosiva”. Assim, a imagem completa sugere, por uma parte, alegria, contentamento, prazer e estado de viva satisfação. Por outra, a ação de corroer se refere a um processo de desgaste gradual de um corpo qualquer que sofre uma transformação química e/ou física, proveniente de uma interação com o meio ambiente. Essa interação homem-mulher é representada como um processo que acaba numa transformação dos “eus” involvidos. Guardando um paralelo entre as imagens, também a pele, ou seja, a camada externa que limita o corpo, é totalmente modificada pela ação da tatuagem. 
  Em “Tatuagem” produz-se a inversão da situação apresentada nos poemas anteriores. Agora a mulher tem o controle da relação, embora ela viva sua paixão de forma masoquista. Ela se perde para se perpetuar. Definida a partir de sua simbiose no outro, ela encontra sua maneira de ser feliz. A felicidade é também reivindicar seu direito ao prazer sexual: 
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansanço 
Tampouco nesse poema, a mulher tem uma idéia de autovalorização enquanto pessoa. Ela só consegue evitar o abandono por parte do homem ao renunciar à sua individualidade. O processo reinvindicatório da mulher abandonada é representado mais claramente em “Olhos nos olhos” (1976). Na primeira estrofe, já aparecem internalizados os aspectos sociais que condicionam a passividade da mulher: 
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e pasar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci 
  
A mulher abandonada narra a história de sua recuperação depois de ter passado pelo período de loucura e ciúmes.Não se observa muita diferença entre ela e as mulheres dos poemas analisados acima. A imagem do receptor tampouco mudou muito: ele decide sobre a vida dela, diz-lhe para ser feliz sem se importar com sua dor. Ela se revolta, quase morrendo de ciúmes, porque outra mulher pode vir a ocupar seu lugar na vida do seu homem. O último verso da estrofe “Mas depois, como era de costume, obedeci”, insinua, em princípio, que ela aceita a ordem masculina e obedece, ou seja, resigna-se. No entanto, sua obediência é, com efeito, um resurgir a partir da morte: ela obedece e começa a ser feliz. O tom do poema passa do desespero à ilusão: 
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais 
Ainda que a figura masculina controle seus pensamentos, a mulher acabará por se abrir a um novo processo: 
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê  
Levando-a à comparação entre o amor perdido e os novos amores: 
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você 
  
Como notara Fontes, o poema culmina num sentimento de desafio. Os versos “Olhos nos olhos, quero ver o que você diz / Quero ver como suporta me ver tão feliz”, são quase uma provocação para um duelo. As palavras não expressam indiferença, que é o último sinal de morte do amor. Isto, porém, não significa que a transformação da mulher vá da submissão à libertação. A transformação passa, mais uma vez, pelos arquétipos que sobrevivem em Chico Buarque, o poeta criador dessas figuras femininas. Longe da Mãe Terrível, a mulher volta se aproximar à Grande Mãe, em sua fase protetora ao dirigir-se ao amante: 
Quando talvez precisar de mim
‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz 
  Em sua fase bondosa, e uma vez esquecidas a fúria e a amargura do abandono, a mulher permanece sem mudar seu lugar no inconsciente do poeta. Atrás do da imagem da amiga que convida para a casa o amante do passado, está o esboço da Mãe Terrível: “Olhos nos olhos quero ver o que você diz”. Ela parece aguardar sua hora no desafio: “Quero ver como suporta me ver tão feliz”. O ressentimento da mulher pelo abandono não está devidamente superado, é apenas mascarado. 
Em conclusão, espero ter mostrado o direcionamento que os textos de Chico esboçam para uma exploração dos caminhos da paixão, da submissão à liberdade. A sua idéia de liberdade seria ainda tema de discussão. No entanto, o arquétipo confirma-se, marcado como a tatuagem, a ferro e fogo, em carne viva. 
Figuras do Feminino na Canção de
Chico Buarque
Textos e ilustrações traduzem as mulheres de Chico Buarque
Francisco Viana
Na música de Chico Buarque a mulher é a eterna musa. Cantar com magia a sedução pelo feminino é a sua grande arte. Ele abarca desde a mulher dionísiaca, aquela que se oferece à felicidade plena, quase ingênua, à mulher da raça de Prometeu, racional e trágica como o próprio deus da civilização, do trabalho, da cultura e, também, da repressão. E há ainda, a mulher que encarna, a um só tempo, o papel de amante e guerrilheira, a exemplo de Bárbara, a amante de Calabar, que mantém viva a memória do morto cujo nome os portugueses apagaram de todo e qualquer registro. Ou a mulher de Atenas, prisioneira do inescapável papel social de “serva da espécie”. É uma galeria interminável, modelada às vezes com suave lirismo, às vezes com dramas de separações dilacerantes, sempre com jogos de entregas, perdas, ambivalências e a infinitude da busca de felicidade, de amor. É esse universo que Adélia Bezerra de Menezes captura em Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque (Boitempo e Atelier, 180 págs., R$ 36).
É um livro raro. Nos seis capítulos, ilustrados com reproduções de Di Cavalcanti, Ismael Nery, Vicente do Rego Monteiro e Volpi, a mulher surge como uma vigorosa metáfora da confluência do erótico e do político. Mais do que isso, emerge como o próprio eros de um povo que parece ambicionar, acima de tudo, a liberdade no prazer, independente do caos urbano, dos períodos de ditadura ou dos percalços pessoais. Em outras palavras, a imagem da mulher se soprepõe a tudo: à cidade com suas multidões, às classes trabalhadoras, ao longo ciclo dos governos militares, ao futebol, ao carnaval e, assim, sucessivamente. Ela só não se sobrepõe ao próprio homem porque sem o masculino o elemento feminino se torna incompleto, sem a luz da chama que projeta o desejo para o infinito. 
Daí a autora, a partir da poesia de Chico Buarque, ampliar a questão proposta por Freud. Em lugar de o que quer a mulher, ela pergunta: “O que querem a mulher e o homem?”. 
A pedra e a perda – feminino e temporalidade 
notas a partir da escuta de Você, você - Uma canção edipiana David Calderoni
Abertura: Em que tempo pode a mãe advir como mulher para a criança? Questão do drama edípico, que a trama poética de Chico – nesta cação escrita em parceria com Guinga – retoma a partir dos olhos do pequeno Francisco. 
Qualificação: David Calderoni é psicanalista e compositor, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pesquisador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC/SP, mestre e doutorando pelo Instituto de Psicologia da USP, tendo lançado em 98 o CD Viação. O autor agradece a André Singer, José Luiz Maia, Maria Lúcia Calderoni, Renato Mezan e Swami Jr. o debate e as sugestões. 
  
I. Apresentando a letra  
Você, você - Uma canção edipiana (Guinga / Chico Buarque) 
Que roupa você veste, que anéis?Por quem você se troca?Que bicho feroz são seus cabelosQue à noite você solta?De que é que você brinca?Que horas você volta?Seu beijo nos meus olhos, seus pésQue o chão sequer não tocamA seda a roçar no quarto escuro 
E a réstia sob a porta 
Onde é que você some? 
Que horas você volta? 
Quem é essa voz? 
Que assombração 
Seu corpo carrega? 
Terá um capuz? 
Será o ladrão? 
Que horas você chega? 
Me sopre novamente as canções 
Com que você me engana 
Que blusa você, com o seu cheiro 
Deixou na minha cama? 
Você quando não dorme 
Quem é que você chama? 
Pra quem você tem olhos azuis 
E com as manhãs remoça? 
E à noite pra quem 
Você é uma luz 
Debaixo da porta? 
No sonho de quem 
Você vai e vem 
Com os cabelos 
Que você solta? 
Que horas, me diga, que horas, me diga 
Que horas você volta? 
II. Contexto, motivação e limites destas notas 
Ao conferir à canção Você, você o subtítulo uma canção edipiana, Chico Buarque fornece uma informação que decerto considera importante para a apreciação da letra de sua autoria, contribuindo para que, em minha condição de psicanalista, compositor e aficcionado por sua obra, ela se constitua como um instigante desafio interpretativo. 
Na época em que a canção foi composta, Chico possivelmente já aguardava o nascimento de seu segundo neto que, a exemplo do primeiro, lhe seria dado por sua filha Helena. Como informou na ISTOÉ o jornalista Sidney Garambone, o sentido da letra relaciona-se a essa situação existencial do pai e do avô amoroso: "A belíssima canção Você, você, do novo CD, feita em parceria com Guinga, nasceu da visão do netinho no berço enquanto a mãe Lelê se aprontava para sair e deixar o pequenino aos cuidados do vovô."  
Esse entrelaçamento de circunstânciais autorais e biográficas contextualiza a base de minha hipótese interpretativa, a saber: começando por adotar o ponto de vista de seu Francisco neto para falar da relação deste com Helena, Chico entretece uma engenhosa indução poética através de uma imbricação de perspectivas, pela qual vai cifrando e cruzando na trama edípica o avô, o pai, a mãe, o filho, a família humana e sua relação com o Feminino e a Temporalidade. Nos comentários da letra, trecho a trecho, que farei a seguir, convido o leitor a acompanhar o desdobramento desta hipótese e julgar sua pertinência. 
Antes porém, cumpre declarar uma intenção de debate crítico com João Gabriel de Lima, jornalista da revista Veja, a quem o mencionado subtítulopareceu de uma ruinosa e equivocada vacuidade ostentatória: "Você, você quase é estragada pelo pomposo subtítulo de ‘canção edipiana’. Pode ser entendida - e essa é sua verdadeira vocação - como uma bela dor-de-cotovelo, ao estilo de Lupicínio Rodrigues." Discordo desta pretensão de asseverar categoricamente o que pode e o que não pode ser o entendimento verdadeiro da canção. Acredito que a consideração do subtítulo e dos já mencionados episódios motivadores da vida pessoal do compositor ajude a captar um dos possíveis campos de sentido da letra, justamente aquele indicado pelo letrista no subtítulo e rechaçado pelo jornalista. Contrapondo-me à opinião deste último, espero indicar o quanto o denso conteúdo de referências e relações da letra em exame permite iluminar de modo inovador facetas essenciais do complexo de Édipo (que incluem a problemática da dor-de-cotovelo), e o quanto Chico revela de singular profundidade e fineza criativa na abordagem estética desse alicerce da antropologia psicanalítica. 
Cabe ainda salientar um limite do meu recorte analítico, uma vez que passarei ao largo de inúmeros elementos musicais (melódicos, harmônicos, rítmicos e instrumentais) que polifonizam e colorem os afetos, imagens, motivos e idéias em cujo tecido a letra confecciona e potencializa sua expressividade. A curva das frases melódicas que se finalizam reticencialmente, o seu pulso hesitante, o clima harmônico misterioso, os violões que harpejam agudos feito caixinha de música em noite de assombração, tudo isso ambienta de infância e embala o ansioso carrossel de perguntas veiculadas pela delicada interpretação vocal de Chico. Salta aos olhos e ouvidos a felicidade da parceria entre a linda música de Guinga, a letra arrebatadora de Chico e o sensível arranjo de Luiz Cláudio Ramos. A compatibilidade de gênios que preside esse raro casamento de música e letra mereceria um estudo à parte. 
É nesse sentido, enfim, que estas notas querem abrir perspectivas e motivar a produção de interpretações outras. 
  
III. Comentários, associações e reperguntas Que roupa você veste, que anéis? 
Por quem você se troca? 
A peculiar regência verbal - trocar-se por alguém - aponta ao universo infantil, onde as relações humanas se pautam por uma lógica do dom, isto é, pelo comércio da dádiva e do dote - como quando se diz que a criança come pelo amor da mamãe. A isso se conjuga outra conotação do trocar-se por alguém: mudar de papel social e de papel sexual. Donde os dois vocês do título: você (mãe), você (não-mãe ou mulher).  
Se é certo que você seja a mãe do eu que pergunta, o eu pergunta: de quem é você quando é não-mãe ou mulher? No sonho de quem / Você vai e vem / Com os cabelos / Que você solta? Que leis de propriedade regeriam a troca de dons de amor? Seria o amor relação de posse sem propriedade exclusiva? Ou a cada relação haveria uma exclusão? Cada tipo de relação amorosa definiria o que lhe é próprio? Quem definiria os tipos de regime de propriedade de uma pessoa com relação a outra? 
Claude Le Guen introduziu em sua Teoria do Édipo Originário a idéia de que o não-mãe seria o precursor do pai. Na letra de Chico, o não-mãe aparece como coextensivo à mulher. Seriam perspectivas incompatíveis? 
A cada vez, você é a mesma? você é outra? Permanecendo sempre a mesma, haveria tempo? 
Vestir anéis - que alianças isso envolve? Alianças com quem? Com aquele por quem você se troca? Por quem você veste tal roupa? Para quem, para quê? Qual o sentido dessa roupa? É adereço de quais ritos? A que atos encaminha? O que se dá? O que se recebe em troca? 
Que bicho feroz são seus cabelos 
Que à noite você solta? 
A noite marca o tempo da transformação; soltar os cabelos assinala a passagem à condição de bicho feroz. 
Retomando Freud, poderíamos perguntar: que ameaça figura o mito de Medusa, monstro feminino que traz serpentes por cabelos e cuja visão direta petrifica? Por que Medusa é gorgós (impetuosa, terrível, apavorante)? 
Junito Brandão relata que "Perseu, sem poder olhar diretamente para Medusa, refletiu-lhe a cabeça no escudo e, com a espada que lhe dera Hermes, decapitou-ª" Haveria na estratégia da letra recurso correspondente ao escudo? 
Qual a relação entre sexualidade, agressividade e terror? Com Ferenczi, poderíamos perguntar: aos olhos da ternura infantil, o engajamento sexual é violência? Com Monique Schneider, poderíamos lembrar as transformações históricas da lenda de Édipo, ao longo das quais a Esfinge monstruosa perguntadora toma o lugar da Esfinge fêmea ávida de amor. O dilema entre o desejo causado pela mulher que gera vidas e o desejo de retorno ao ventre da mãe - não estaria aí uma das vertentes da questão do Feminino? Qual visão da sexualidade feminina arrisca o homem? Pelo que e a que se arrisca? 
De que é que você brinca? 
Que horas você volta? 
Associação: na rede, o casal de índios brinca... De que brinca Macunaíma?  
De que brincam João e Maria? Que brincadeira é essa do menino João?: agora eu era herói, rei, bedel, juiz, louco...  
João brinca de agora eu era: finja que agora eu era o seu brinquedo / eu era o seu pião / o seu bicho preferido... Agora eu era: a ficção como reinvenção de tempos e de papéis. 
Você não pode representar todos os papéis ao mesmo tempo: há o tempo em que você solta os cabelos, há o tempo em que você volta. Entre estes, há o tempo enigmático em que você brinca - de quê? 
Seu beijo nos meus olhos, seus pés 
Que o chão sequer não tocam 
A seda a roçar no quarto escuro 
E a réstia sob a porta 
Onde é que você some? 
Que horas você volta? 
O beijo nos olhos assegura-os na jornada quase proibida: decerto é de quem beijou que provém o salvo-conduto. Aos olhos beijados seria então permitido avançar até o limite da porta ou das pálpebras seladas pelo beijo. Seriam bons os devaneios e sonhos a que convida esse gesto maternal de boa-noite? 
É a quem beijou que o olhar segue, num cenário de fantasia onde os pés não tocam o chão. Fantasia cujo solo real não é difícil imaginar: de tão suaves e silenciosos, os passos da mãe que se afasta parecem levitar, deixando o eu na companhia de tênues sensações - o som da seda que roça, a réstia que é a luz sob a porta. 
Crianças bem pequenas tomariam a saída do campo visual como saída da existência. Mas a luz vazada é o presságio de que você some para o eu onde você aparece para outrem. Assim, o fio de luz conduz o olhar à imaginação do que, numa dimensão de contrastante violência, aconteceria Atrás da Porta:  
Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus / Eu te estranhei / (...) / E me arrastei e te arranhei / E me agarrei nos teus cabelos / Nos teus pêlos / (...) / Te adorando pelo avesso / Pra mostrar que inda sou tua / Só pra provar que inda sou tua... 
O espaço no qual você some é reversível no tempo, a porta há de abrir para o regresso: o tempo da espera prepara o tempo da esperança realizada - mas é incerta a duração da espera, assim como o advento do retorno - que horas você volta? 
  
Quem é essa voz? 
Que assombração 
Seu corpo carrega? 
Terá um capuz? 
Será o ladrão? 
Que horas você chega? 
Assombração é sujeito ou objeto? 
Desta feita, os sons comparecem não no farfalhar da seda, mas numa voz cujo emissor é invisível. E é sobre o incógnito dono dessa voz que recaem as perguntas sugestivas sobre aquilo que, tampando a cara, desvendaria o ofício: invadir, assaltar, roubar, mantendo a face oculta.  
À primeira vista, a voz que carrega o corpo vem de fora. Mas como pode uma voz fazê-lo, senão por invocar desde dentro o corpo que carrega? Nesse caso, como se teria introduzido a paixão que a voz aciona? 
Teria sido como o terceiro que, segundo conta Teresinha, Foi chegando sorrateiro / E antes que eu dissesse não / Se instalou feito um posseiro / Dentro do meu coração ? Estaria encoberto pelo ventre seminal em crescimento? Quando se revelariam os sujeitos ocultos que participam do transporte de você? - contidos por você, até que chegue o tempo da chegada... 
Me sopre novamente as canções 
Com que vocême engana 
Que blusa você, com o seu cheiro 
Deixou na minha cama? 
Você quando não dorme 
Quem é que você chama? 
Tendo, de início, um murmúrio feminino, feito cantiga de ninar, introduzido sem palavras a canção, a evocação do acalanto revela-se aqui em plena ressonância. Proviria então da mãe a voz que com papões e cucas entoa palavras de assombração? Você, você seria daí um acalanto-resposta que devolve em forma de perguntas os enigmas infundidos pelas cantigas maternas? 
Enigma: mistério... ou ilusão? Como se a formação de uma queixa atravessasse o luto da inocência: você me engana. A memória desse desengano deixa um rastro olfativo ambíguo. A blusa tem o cheiro da mãe ou da mulher? Ao infante é legado o trabalho de fazer com que essa blusa não se petrifique como a mortalha do amor, aprisionante e insolúvel materialização do ressentimento e da saudade. 
Me sopre novamente as canções / Com que você me engana... - em que condições o desejo de ser enganado é sustentado pelo desejo de ser? Talvez quando seja o único modo de existir, posto que a verdade esteja interditada. Nessas condições, o mais profundamente reprimido é o desejo de verdade. 
Porém, não seria o engano o que primeiramente se deseja, mas sim o amor do qual o deixar-se enganar é o tributo. Daí, o eu se cinde: uma parte se gratifica com o amor, uma parte se ressente do preço cobrado, uma parte se insurge, uma parte se culpabiliza. Nessa dinâmica da sedução, onde a máscara? onde a verdade? onde a fantasia? onde a realidade?  
Um dos freqüentes destinos dessa sedução originária consistiria na servidão voluntária que se efetua nas relações sociais como inescapável hipocrisia. Quando se acredita que não mais subsista rosto atrás da máscara, a reflexão afetiva esbarra na desnorteante superficialidade do jogo de espelhos, em que multiplicadas se entremiram mímicas postiças. 
Pode ocorrer também que, por mais francamente advertido que seja da condição transitória da presença materna, o eu se aferre à inalcançável exigência de exclusividade. Considerando que o império do desejo é congênito ao eu, tal possibilidade sempre se efetiva em alguma medida. Assim sendo, a abertura do eu à verdade condiciona-se pelos caminhos através dos quais vem a admitir a perda, a frustração, a falta.  
Se o Feminino efetua-se como potência de fusão e como potência de geração, e se o Tempo é trânsito entre identidade e diferença, que fator promove uma ou outra destas funções? 
Pra quem você tem olhos azuis 
E com as manhãs remoça? 
Ora, só remoça quem tenha envelhecido. De que mãe então fala agora o compositor? Da jovem mãe de seu neto? Da sua própria mãe? Ou, para além das circunstâncias biográficas (conquanto motivado por elas), Chico presentifica com seu canto um modo de encontro com o objeto perdido? Que prodígio encantatório do tempo sua astúcia poética promove e ensina?  
Eu diria que sua poesia é também uma arte do amor, e que o seu amor é dom de reflexão afetiva: Vejo meu bem com seus olhos / E é com meus olhos que o meu bem me vê. 
Este trânsito perceptual profundo permitiria substituir a irrealizável esperança de encontrar o objeto perdido pela esperança de encontrar os sujeitos solidarizados pelo que perderam. 
E à noite pra quem 
Você é uma luz 
Debaixo da porta? 
Onde se localiza aquele para quem você é uma luz? no berço aquém da porta? ou na cama além da porta?  
O eu que via o feixe de luz sob a porta não haveria de inquirir sobre a própria identidade, a menos que houvesse mudado de condição e ampliado a perspectiva. 
Ao permitir incluir na pergunta sobre a identidade dos personagens tanto o eu que cobiçava a exclusividade da mãe, como o rival que a possuiria enquanto mulher, embaralham-se e indeterminam-se tanto a oposição entre o eu e seu rival, como a oposição entre a mãe e a mulher. 
No sonho de quem 
Você vai e vem  
Com os cabelos 
Que você solta? 
Observando que o sonho aparece no interior de uma pergunta, pergunto: a começar de As Cidades, como opera o motivo do sonho no corpus buarquiano? 
"As cidades do disco são sonhadas, irreais", declarou Chico. 
Adentrando o motivo do sonho em ato, vejamos como opera o sonho na canção Sonhos sonhos são: 
(...) Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá / Que sonho é esse de que não se sai / (...) / Sei que é sonho / Não porque da varanda atiro pérolas / (...) / Mas porque na verdade não me queres mais / Aliás, nunca na vida foste minha 
No interior do sonho, pois que dele não se sai, o compositor encontra na ausência de desengano amoroso o sinal da diferença entre sonho e realidade. 
Nos bastidores do irrealismo crítico de Chico, a cidade ruge e o tempo urge: "Não penso em parar agora, mas estou me preparando para ser um dia abandonado pela música. (...) O tempo está ficando curto." 
Segundo analisa Sidney Garambone, "a angústia do amadurecimento se fez presente em Xote de Navegação":  
Eu vejo aquele rio a deslizar / O tempo a atravessar meu vilarejo / E às vezes largo / O afazer / Me pego em sonho / A navegar / (...) / Pela água do rio / Que é sem fim / E é nunca mais / (...) / Num mesmo instante eu vejo a flor / Que desabrocha e se desfaz / (...) / Pra quem anda na barcaça / Tudo, tudo passa / Só o tempo não
Não como lugar de ilusão compensatória das angústias em face do tempo e das decepções afetivas, mas sim como ocasião de reabitá-las num modo fantasístico de questionamento auto-reflexivo, o sonho em Chico evolui para constituir-se propriamente como um motivo operante: mais que tema, vem a ser instrumento e exercício de uma sensibilidade pensante.  
"É curioso como a publicação de meus livros Estorvo e Benjamim aumentou meu rigor nas letras (...)." Estas palavras de Chico, sugerindo um paralelo entre a visada atual das letras e a das narrativas onírico-críticas desenvolvidas nesses livros, nos quais a alucinação torna-se perspectiva de estilo, estimulam a hipótese de que, à medida que a pólis real vai virando fantasmagoria caótica, o sonho em Chico vai-se politizando.  
O alvo sendo o sentido do sonho em Você, você, esse percurso por canções e obras outras encontra sua escala final de reengate n’Aquela Mulher: 
(...) Que noites de alucinação / Passo dentro daquela mulher / Com outros homens, ela só me diz / Que sempre se exibiu / E até fingiu sentir prazer / Mas nunca soube, antes de mim / Que o amor vai longe assim (...) 
Aqui, o amor vai longe dentro: as noites de alucinação se passam no interior d’Aquela Mulher. 
Já em Você, você (No sonho de quem / Você vai e vem / Com os cabelos / Que você solta?), sendo a mulher mãe/filha interditada, ainda assim o amor é dirigido à comparticipação da intimidade psíquica, mas de um terceiro, cuja identidade é suspensa numa interrogação, através de cujo sonho se tem acesso à imagem sensualmente sugestiva dos cabelos de você, balançando soltos num movimento de ir e vir. 
É no espaço de um sonho auto-interrogante, pelas suas virtudes de alucinação meditativa, que se ambienta o indireto e reflexivo regresso ao objeto perdido. Tanto quem regressa, como aquela a quem se regressa estão agora prenhes de múltiplas perspectivas: assim como Perseu somente acede em segurança à imagem de Medusa mediante o seu reflexo, o compositor procede à visão indireta da mãe através dos olhos do neto. 
Tendo tal perspectiva identificatória se apoiado de início na referência ao objeto comum interditado ao avô e ao neto (a filha/mãe), foi-se encaminhando à encenação do desejo interditado a todos os seres humanos: o desejo de deter o curso do tempo, de modo a eternizar a presença do objeto-fonte de amor. 
Destarte, ao longo da canção, os versos de Chico arquitetam uma geometria do devir, onde o ciclo das horas vai progressivamente ganhando relevo e, deslocando a cada volta os seus anéis, passa do círculo repetitivo à erradia espiral. 
Por fim, o filho que repassa a descoberta da mulher na mãe comunga com a humanidade a experiência da passagem do tempo: perda e espera, esperança e encontro... de quem se irmane na escuta do apelo: 
  
Que horas, me diga, que horas,me diga 
Que horas você volta?
A solenidade de Chico e Edu em Cambaio
GloboNews.com
"Cambaio", o musical, reuniu cinco dos maiores talentos brasileiros do teatro - João e Adriana Falcão - e da música - Chico Buarque, Edu Lobo e Lenine. A versão em CD da peça, lançada nesta quinta-feira pela BMG,  deve ser ouvida como um disco e não como trilha, que foi trabalhada pelo diretor musical Lenine de forma diversa. Aqui trata-se de um trabalho instrumental sofisticado de Edu Lobo, que faz música popular com uma veia clássica, e de Chico Buarque, o artífice das palavras, dono de uma poesia lírica de alta envergadura. É a quarta colaboração entre os dois, após O grande circo místico (1983), O corsário do rei (85) e Dança da meia lua (88).
"Cambaio", a peça, está excursionando pelo Brasil, com apresentações neste final de mês e em agosto em Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Salvador. A peça tem três personagens principais, o pop star Cara, a fã  Bela e o cambista Rato, que vivem um triângulo amoroso jogando com suas próprias referências, a visão do estrelato de um lado com a idolatria da fã e a visão da rua pelo outro, com o cambista vindo da favela. O elenco conta com 18 atores.
Ninguém espere ouvir no disco infiltrações de vertentes mais contemporâneas da música brasileira. Os timbres são clássicos em composições que se revelam à medida que o ouvinte se acostuma com elas. Além dos melhores músicos, Edu e Chico arregimentaram algumas vozes que acabaram rendendo mais do que as faixas cantadas pelos próprios autores, que têm seu ponto fraco nos vocais. Zizi Possi valoriza "Lábia", numa interpretação pontuada por intervenções de flautas e piano e pontuações de harpa e metais. As cordas fazem uma cama na proporção certa, sem se impor sobre os demais instrumentos. ¿Mas nem uma mulher em chamas/ Cede o beijo assim de antemão/ Há sempre um tempo, um batimento/ Um clima que a seduz/ E eis que nada mais se diz/ Os olhos se reviram para trás/ E os lábios fazem jus¿¿, dizem os versos, à altura da fama que Chico tem de entender a alma da mulher como poucos na MPB.
Lenine canta "Cambaio" pontuado pelo trompete com surdina de Márcio Montarroyos em uma interpretação cheia de sutilezas. Gal Costa se espalha  na ginga de "Veneta", assediada pelo cello de Jaquinho Morelenbaum, em mais uma letra do ponto de vista feminino à procura ¿de um homem bom/que me deixe louca a chorar pitangas no breu/ Que me beije a boca na laje do arranha-céu.¿¿ Chico Buarque canta a valsa "Uma canção inédita", conduzida por violinos, flautas, oboé e fagote e pontuadas  pelos acordes celestiais de uma harpa. Contido na valsa, Chico se espalha em "Ode aos ratos", uma canção sobre os deserdados da sociedade. Edu Lobo faz interpretação solene sob cordas em "A moça do sonho", Chico, Edu e Zizi dialogam em "Cantiga de acordar". O CD, de econômicas 10 faixas em 37m40s, se completa com duas suítes instrumentais de Edu, "Quase memória" e "A fábrica". Ao contrário da exuberância popular que se espera de um musical, Chico e Edu exerceram aqui a sofisticação e o comedimento.
As Mulheres em Chico ou As mulheres do Chico ?
                                                           Isabel F. R. Labriola 
" Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar 
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar 
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar 
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar 
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar 
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar 
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar 
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou 
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou 
E foram tantos beijos loucos 
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais 
Que o mundo compreendeu 
E o dia amanheceu 
Em paz." 
(VALSINHA - Vinicius de Moraes - Chico Buarque 1970) 
É da preciosidade dos encontros e desencontros homem-mulher, presentes na obra musical de Chico Buarque de Holanda, que pretende se ocupar a minha fala. Mais precisamente, dos deslocamentos possíveis do feminino e do masculino presentes em nossa cultura, e na obra de Chico Buarque, que resultam em formas variadas e determinadas do vir a ser "mulher". Então, e já esclarecendo o título, pretendo localizar sim as mulheres na obra do Chico mas quero também ousar afirmar que ele constrói as possibilidades de emergência de um certo tipo de mulher, que eu chamaria de "as mulheres do Chico". 
 Que me perdoe o Chico e as suas verdadeiras mulheres mas vou lidar aqui com a subjetividade de amores públicos e confessos de uma legião de fãs fiéis que mantêm projetado nele um romance transformador, e do qual já assumo fazer parte. Quero inclusive sugerir que de alguma forma, nós todas, mulheres aqui presentes, interessadas nos símbolos da cultura brasileira, somos ou podemos ser "mulheres do Chico". De um Chico - figura coletiva de homem capaz de despertar uma nova consciência feminina, arquétipo de um masculino - herói cultural ou figura de um ânimus criativo, intérprete do amor e de Eros. 
A razão desta fala se prende às minhas hipóteses, enquanto analista e mulher, de que a individuação das mulheres depende da conquista de uma equação criativa: um novo e singular encontro entre masculino e feminino, que ultrapassem as disposições tradicionais presentes na nossa cultura. E de que figuras míticas de ânimus, como a do Chico, estimulam eróticamente essa possibilidade de encontro. Assim, pretendo também compartilhar de algumas reflexões sobre as mulheres que somos ou podemos ser ou em que retratos do masculino e do feminino nos espelhamos. 
"Oh pedaço de mim, Oh metade amputada de mim, Leva o vulto teu, Que a saudade dói machucada..." . 
Na poesia desta música parece estar o protótipo e a síntese de toda obra do Chico;- a busca do homem e da mulher da sua contra-parte feminina ou masculina, um diálogo constante entre anima e animus. Em toda sua obra, esse romance lírico é revelado nas tramas dos encontros e desencontros de amor, em alegóricos personagens da nossa cultura intra e intersubjetiva. 
Como um fotógrafo das almas ele vai revelando retratos, cenas interiores que compõem nossas buscas por uma unidade primordial, com a intensidade colorida dos nossos sentimentos mais verdadeiros, com o som e o movimento dos encontros e desencontros malemolentes, trágicos, mágicos, profanos e divinos entre o eu e o outro. O eu e o outro lado de mim ou o eu e outras partes de mim, o masculino e o feminino em suas várias faces e composições. 
"O que é que eu posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto e que no entanto volta sempre a enfeitiçar, com seus mesmos tristes velhos fatos, que num álbum de retratos eu teimo em colecionar.." . 
Para isso, como um Orfeu e sua lira, ele tem a ousadia lícita de descer até o reino dos ínferos atrás da sua contraparte amada e refazer, com os enlevos de um Eros musical, a potência do amor perdido. Como um animus sedutor, Chico vai entoando canções de amor e de dor, acompanhando os movimentos da nossa alma, encantando-a com seu desejo de encontro; língua que canta, que lambe as feridas e que beija e acabamos cedendo "enfim à tentação das nossas bocas cruas e mergulhamos no poço escuro de nós"... 
Como um Deus presente na intimidade das pequenas coisas, vai iluminando registros de pequenas cenas carregadas de significado:
"Esperando, parada, pregada na pedra do porto, com seu único e velho vestido cada dia mais curto..."; "Os letreiros a te colorir, embaraçam a minha visão. Eu te vi suspirar de aflição e sair da sessão, frouxa de rir"...; "A moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela"...; "E me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos, teu pijama, nos teus pés aos pés da cama. Sem carinho e sem coberta, no tapete atrás da porta"..."Logo vou esquentar seu prato, dou umbeijo em seu retrato e abro meus braços pra você"..."Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar, com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar"...( Songbook ) 
São imagens de almas em construção, subtextos de emoções, traços de memórias afetivas, marcas simbólicas de paixões encerradas dentro de nós. E como um "Deus das pequenas coisas" ele vai abrindo, com sua poesia e com sua música, um atalho até o tesouro de nossos sentimentos e sensações mais verdadeiros, seduzindo-nos pelo reconhecimento dos nossos sinais comuns, numa sintonia simbólica que ancora nosso desejo de realização pelo encontro. 
Certamente, é respondendo ao chamado interno da sua própria ânima, do seu eu lírico feminino, que Chico Buarque projeta sobre nós a erotização do encontro homem-mulher. Não teme dar voz a um feminino que também pede reconhecimento das suas expressões. Assim, coloca-se no lugar da mulher, experimenta a alma - mulher e por isso é capaz de criar falas para os seus desejos. Por isso, penso que ele sabe, como poucos, o que quer uma mulher. 
Pergunta do século, "afinal, o que quer a mulher ?", que continua a fazer parte da nossa cultura, subjugada por um espírito masculino dissociado das imanações do feminino.
Diante da pergunta masculina "o que quer a mulher?" se construiu e se constrói ainda hoje impressões, filosofias, teorias científicas como a psicanálise, além de fantasias e imagens diversas, charges, piadas e preconceitos, que trazem embutidos um desconhecimento sobre a mulher, sobre uma identidade do feminino, dificultando inclusive a conquista de uma identidade para nós mulheres. 
Podemos encontrar nas canções do Chico as personagens femininas que compõem variadas concepções sobre a mulher presentes na nossa cultura, da santa à puta, de um feminino submisso e passivo a um feminino masculino e ativo. A importância da obra do Chico, para além da sua beleza plástica e sonora, está nas tonalidades interpretativas que ele compõe para se relacionar com as variações do feminino, sugerindo sempre a autoridade de uma identidade para cada mulher. 
Antes de localizarmos entretanto, essas figuras em Chico, penso que vale a pena, um rápido passeio por mitos do feminino presentes na cultura em que vivemos, porque são parte de uma consciência coletiva que "pensa" a mulher e acaba por determinar suas possibilidades de realização. 
Vejamos. Além de uma moral vitoriana e burguesa que destinava às mulheres o casamento e a maternidade como únicas formas de expressão, e que ainda se mantêm como potentes expressões do feminino, temos em Freud as contribuições mais polêmicas sobre o feminino e a mulher. 
Foram as mulheres que, submetidas a uma condição de inferioridade, de desvalorização e de dependência de uma lógica masculina, fundaram a psicanálise com Freud, oferecendo-lhe os sintomas da sua negação. Foi a dissociação histérica do feminino que fez com que ele "ouvisse" para além de uma consciência autorizada e experimentasse a objetividade do inconsciente. De acordo com Hillman (1984:224), "Freud estabeleceu uma linha divisória entre a antiga superstição denominada possessão e a moderna superstição denominada histeria."..."A inferioridade feminina adquire uma nova veste quando a histeria se torna assunto secular e científico. A bruxa torna-se então a pobre paciente - que não é mais maligna, porém enferma."
A partir de Freud ganhamos a possibilidade e o estatuto de sermos também histéricas. E para muitos, até hoje, além da maternidade, a histeria é tida como a única manifestação do feminino. "Ser mulher" então, também com Freud, é pertencer a categoria do patológico e do inferior a ser submetido pela cultura. 
A psicanálise e sua teoria da sexualidade manteve no corpo e na diferença genital entre os sexos a valoração dos destinos individuais de homens e mulheres. Na cultura psicanalítica o órgão genital masculino tem as representações de fálico/ativo/sádico e o genital feminino de castrado/passivo/masoquista. O masculino fica com a posição de sujeito do desejo e o feminino com a de objeto do desejo do outro. De acordo com Freud, nós mulheres, enquanto sujeitos castrados, sem "falo", passamos a atuar histericamente uma "inveja do pênis".
Para nos discriminarmos disso é necessário sabermos que não basta portar um pênis para ter um falo. Aliás, uma grande sacada que ouvi de um analista-homem, que sabe muito de mulher foi: "O único falo impossível a uma mulher é aquele que, no homem, só tem valor de "falo" se a mulher assim o reconhecer."
De qualquer forma, ficamos capturados numa trama cultural simbólica, fundada por um discurso masculino, num padrão patriarcal dissociado, onde a "identidade de mulher" e a "identidade de homem" são composições distintas e antagônicas. E, embora homens e mulheres sejam vários, diversificados quanto às posições feminina (passiva) ou masculina (ativa) que ocupem na cultura, uma ordem coletiva fálica e discriminadora nos designa lugares, posições, deveres e traços identificatórios. 
Então "ser uma mulher", implica em localizar, dentro de um discurso masculino que constrói a feminilidade, alternativas para "que mulher se pode ser". Numa posição passiva do feminino, as opções oferecidas em geral situam-se entre "mãe" (ou "santa") e "histérica"(ou "puta"). Em geral caminhamos entre personagens da adolescente ingênua e romântica (Perséfone), da esposa virtuosa (Hera) ou da amante apaixonada (Afrodite). 
Para Rousseau (in Kehl,1999:216), "a feminilidade é um conjunto de atributos que a mulher precisa oferecer ao homem para sustentar, nele, a virilidade. Assim, a masculinidade precisa ser sustentada pelo trabalho ativo de produção da passividade feminina." É claro que a essa condição desigual e masoquista se rebelaram as feministas na década de 60. Só que ao tentar demonstrar que a mulher é também sujeito livre e de desejos utilizaram - se dos mesmos recursos de um "falo" masculino para subjugar e negar a feminilidade. E passaram do masoquismo à virilização. 
Com a modernidade e a inserção das mulheres ao campo da produção e do trabalho, atributos e destinos tidos como masculinos também passaram a fazer parte da identificação das mulheres. Assim, aos ideais culturais de submissão feminina agregaram-se os de autonomia de todo sujeito moderno; aos ideais de domesticidade os de liberdade; a idéia de uma vida predestinada ao casamento e à maternidade contrapôs-se a idéia, também moderna, de que cada sujeito deve escrever seu próprio destino, de acordo com sua própria vontade.
Assim, "ser uma mulher" implica em ter de discriminar registros históricos que serviram para reforçar padrões ambivalentes e ainda desconsiderados do feminino que foram se adensando na cultura. "Ser mulher" traz como parte do destino individual a necessidade, ainda, da individuação do gênero. Se faz necessário localizar uma individualidade do feminino ainda não claramente inscrita numa ordem coletiva. 
A psicanalista Maria Rita Kehl (1999: 134) chama atenção para o fato de que em nossa cultura "só existe "O Homem" como categoria universal abstrata, "A Mulher" não existe. A posse do orgão masculino funda uma "identidade" entre todos os homens, sintetizada pelo significante fálico. E ainda: "O único significante que agrupa inquestionavelmente todas as mulheres sob a mesma barra é o que indica a "Mãe". A mulher não existe, mas existe a Mãe, esta figura temida e poderosa. Só que a mãe, no Inconsciente, não é exatamente uma mulher." 
Então, o projeto de individuação para as mulheres implica em encontrar um discurso singular que possa expressar "a mulher" que se é; o que implica em buscar ser uma "outra", que não necessariamente a mãe ou a histérica. 
Nosso desafio é encontrarmos, cada uma, um eixo singular de desejo e gozo entre o masculino e o feminino; acharmos um ajuste individual e cultural para sermos o mais possível sujeito do nosso destino, sendo "também" mulher. 
Para nós analistas, essa é uma tarefa que se apresenta constantemente nos sintomas de nossas clientes mulheres: sentimentosde isolamento, de frustração das expectativas amorosas depois do casamento, de dificuldades de expressar emoções e conflitos, a luta por manter alguma auto-estima quando os filhos crescem (ou quando não se tem filhos), a inibição diante dos homens e ao mesmo tempo a hostilidade abafada em relação a eles, as fantasias e anseios por uma felicidade vaga e sempre fora de alcance, são aspectos frequentes nos relatos de vida de mulheres. Recontextualizar as equações psíquicas entre figuras do masculino e do feminino e desnaturalizar o que foi construído pela cultura é pois necessário, se quisermos ter mobilidade na clínica das neuroses. 
Mas agora, voltemos ao Chico. Precisei desse espaço de cogitações culturais porque me ajudarão a deixar mais claro minhas suposições a cerca das mulheres do Chico, ou das possibilidades que sua arte abre para sairmos desse desamparo subjetivo, dessa estagnação psíquica de uma libido feminina. E então sugerir, como ele em sua música Paratodos: "Nessas tortuosas trilhas, a viola me redime. Creia ilustre cavalheiro, contra fel, moléstia, crime," use a música brasileira, e (eu acrescentaria) experimente o Chico.
Eu estava dizendo que ele sabe "o que quer a mulher" porque reconhece seus desejos e isto porque é capaz da experiência do encontro da sua própria contraparte feminina, como se soubesse que ser homem e ser mulher são possibilidades imanentes de um todo ao mesmo tempo masculino e feminino. Busca novos nexos, fluxos, figuras melódicas presentes na fluidez de uma outra ordem, na lógica dos sentimentos. Vai atrás de possibilidades ainda não exploradas, com a virilidade ativa de um homem, mas com a doçura sentimental e receptiva da mulher.
"Agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz, e pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz. E você era a princesa que eu quis coroar e era tão linda de se admirar que andava nua pelo meu país." 
Na sua arte poética e musical o sentido de nós mesmos é buscado alquimicamente, via fantasia e imaginação. Assim como Jung, ele retira a fantasia e a imaginação da patologia histérica e devolve à fantasia sua potência de dom, de talento, de cultivo da alma. Como Jung, ele nos oferece a alquimia da coniunctio entre masculino e feminino como um dado, uma imagem primordial sempre presente. Não como uma meta a ser alcançada pela cultura, como estivemos vendo até agora, mas como uma realidade arquetípica, uma possibilidade apriorística, a ser cuidada e mantida. Na sua concepção dionísiaca do amor, masculino e feminino compõem a figura do andrógino, uma totalidade, uma conjunção criativa de opostos. Então, na obra do Chico o encontro de amor é um dado, o que se pranteia é a separação, o desencontro: " Ah, foi que nem um temporal, foi um vaso de cristal que rompeu dentro de mim "....E continuando, numa leitura alquímica, na mesma música: "Ou quem sabe os ventos, pondo fogo numa embarcação, os quatro elementos, num momento de paixão"... 
Por isso, sua música acompanha arquétipos da intimidade, como um "Deus das pequenas coisas", vagueia na fluidez das imagens mentais, no eco de antigas palavras, na sintonia de novos sons, recupera memórias poéticas impressas em cenas que encantaram nossa alma e é capaz de erotizá-la de novo para novos encontros. Vai atrás da conjunção, da paixão, dos amantes, anima e animus, o rei e a rainha.
Em suas músicas somos sempre musas, deusas, a consorte escolhida; somos parte de uma história de caso real, mas nossa história de amor não é profana, é sempre sagrada, somos projeções femininas da sua anima: "Sim, me leva para sempre, Beatriz. Me ensina a não andar com os pés no chão. Para sempre é sempre por um triz." 
É nesta compreensão arquetípica dos eventos e fatos que parece estar a importância terapêutica das músicas do Chico. O convite é para a experiência musical que nos conecta em uma nova ordem que contém possibilidades imanentes de transformação: "estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando coisas de amor. A minha gente sofrida despediu-se da dor pra ver a banda passar cantando coisas de amor. O homem sério que contava dinheiro parou, o faroleiro que contava vantagem parou, a namorada que contava as estrelas parou para ver, ouvir e dar passagem..."
Ele faz um furo no muro da linguagem, um desmanchamento nos discursos prontos da cultura, e pela via da imaginação vai recriando diálogos com nossa alma, que pode estar lá "esperando parada, pregada na pedra do porto, com seu único e velho vestido cada dia mais curto" ou "sem carinho e sem coberta, no tapete atrás da porta".
Através dos letreiros da linguagem a nos colorir, ele é capaz de nos ver "suspirar de aflição e sair da sessão frouxa de rir "; e sabe criar as imagens que colorem nossos sentimentos: "Deixa em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa, e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d''agua." 
Manda recados para um masculino esteriotipado da cultura: "O delegado é bamba na delegacia, mas nunca fez samba e nunca viu Maria." 
Esse intérprete do amor-cortês oferece poemas musicais a nos atrair: "Não chore ainda não, que eu tenho um violão, e nós vamos cantar. Felicidade aqui pode passar e ouvir, e se ela for de samba, há de querer ficar..." e se oferece como um ânimus - companheiro, herói da delicadeza, diferente do herói masculino da cultura, um ânimus que busca novas formas de encontro: "Descansa em meu pobre peito, que jamais enfrenta o mar, mas que tem abraço estreito, morena, com jeito de lhe agradar. Vem ouvir lindas histórias, que por seu amor sonhei. Vem saber quantas vitórias, morena, por mares que só eu sei." 
Não teme revelar-se homem de sentimentos, de amores e fracassos; mostra sua castração simbólica; a mulher é a sua contraparte, que se perdida, precisa de ser resgatada:" Oh pedaço de mim, oh metade amputada de mim, leva o que há de ti, que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada, no membro que já perdi." ou ainda "A Rita levou meu sorriso, no sorriso dela, meu assunto....Levou os meus planos, meus pobres enganos, os meus vinte anos, o meu coração.."ou "Madalena foi pro mar, e eu fiquei a ver navios..."; E não se envergonha de clamar: "Bárbara, Bárbara, nunca é tarde, nunca é demais. Onde estou, onde estás, meu amor, vem me buscar..."
Num estudo sobre a alma brasileira, Gustavo Barcellos (2000:04) nos apresentou a idéia de um "logos do coração" para falar da função sentimento presente na música popular brasileira. Para isso, nos lembrou que o escritor Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico, apresenta o brasileiro como o "homem cordial", pois que possui uma "ética de fundo emotivo", o que, acrescenta Gustavo, melhor se expressa por um "pensamento do coração".
Certamente isso se aplica ao Chico e se revela em suas canções. Este "homem cordial" nos oferece pensamentos para o coração, ativando em nós uma vontade de encontro, de diálogo, de intimidade. Com isso promove uma dinamização e expansão do nosso espaço interior, restabelecendo na troca com o outro nossa fortaleza narcísica. 
Toda a sua obra musical parece ser um ritual devocional a Eros, deus do amor. "Qualquer canção de amor, é uma canção de amor, não faz brotar amor, e amantes. Porém, se essa canção, nos toca o coração, o amor brota melhor e antes."
Retira uma libido sensual aprisionada no corpo, pois sabe, como nossa grande poeta Adélia Prado, que "erótica é a alma", presente nos gestos, nos afetos, nas coisas simples, cotidianas e imediatas e vai dando a tudo uma consciência poética. "aquela aliança você pode empenhar ou derreter..." "devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu..." se lembra da jaqueira, a fruta no capim, o sonho que você contou pra mim...".
Podemos ver a obra musical do Chico também a partir das figuras do feminino, arquetípicamente impressas na cultura, que ele atualiza com uma consciência crítica instigante. Nos apresenta múltiplos retratos, processos simultâneos, paralelos ou compensatórios da nossa psique feminina. Da condição de submissão e servilidade total do feminino em "Mulheresde Atenas" que "vivem por seus maridos, orgulho e raça de Atenas...elas não têm gosto ou vontade, nem defeito nem qualidade, têm medo apenas"; até um feminino lírico, como em Beatriz: "Olha, será que é uma estrela, será que é mentira, será que é comédia, será que é divina, a vida da atriz..." .
Para o Chico podemos ocupar o lugar da inocência ou do pecado, da castração ou da onipotência, da sexualidade desenfreada e ameaçadora ou de uma vocação "natural" ao pudor e à castidade, depende da composição da conjunção a dois. Como homem que sabe do seu próprio desejo, ele nos permite constituir, como nos convier, a relação com a feminilidade.
Caminhando pelas suas imagens de mulher, fazemos exercícios projetivos de atualização e refinamento das configurações do feminino, o que nos permite também visualizar acertos e ajustes que temos com as configurações do masculino. E então podemos localizar qual a natureza da operação psíquica que está por trás do fascínio que nos mantém cativos na relação com o outro. Em que cena está o nosso retrato. Via Chico, um ânimus renovador e instigante nos desafia neste confronto interior: "Mesmo que você feche os ouvidos e as janelas do vestido, minha musa vai cair em tentação, mesmo porque estou falando grego com sua imaginação. Mesmo que você fuja de mim por labirintos e alçapões, saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão..." 
Chico nos remete a momentos nucleares únicos onde ritualizamos e atualizamos juntos, homem e mulher, sínteses possíveis e sempre fugidias entre o feminino e o masculino. : "Vem, meu menino vadio, vem, sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia, você não vai crescer...; Quem é você, adivinha se gosta de mim,...hoje eu sou da maneira que você quiser...; ou nas diferenças de vivência do Cotidiano: - Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã,...e em contrapartida: "Todo dia ele faz diferente, não sei se ele volta da rua, não sei se me traz um presente, não sei se ele fica na sua..." 
Nas suas músicas encontramos também experiências de busca de equilíbrio de emoções concentradas em sínteses perdidas: "Ah, se já perdemos a noção da hora, se juntos já jogamos tudo fora, me conta agora como hei de partir...Como, se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça o teu vestido, e o meu sapato ainda pisa no teu...e aqui, como bem apontou Adélia Menezes (2000:33) "os sentidos opostos de enlaçar/pisar iconizam as possibilidades virtuais de uma relação de casal". E ainda na belíssima canção "Todo Sentimento" onde o amor é colocado dentro dos limites possíveis de saúde de uma relação a dois, com as possibilidades de reparação: "Prometo te querer, até o amor cair, doente, Prefiro então partir, a tempo de poder, a gente se desvencilhar da gente. Depois de te perder, te encontro com certeza, Talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada, Nada aconteceu, Apenas seguirei, como encantado, ao lado teu..."
Como eu quis demonstrar desde o início, a obra musical de Chico Buarque de Hollanda pode servir como ativador de um processo de deslocamentos e condensações constantes dos arquétipos do feminino e do masculino e do arquétipo do coniunctio presente em nossa realidade objetiva e subjetiva. Suas músicas são capazes de desencadear movimentos psíquicos coletivos, às vezes ainda inconscientes, ativados via exercício da imaginação e da disciplina da fantasia. Em meio a agradáveis sonoridades uma ordem interna, conectada à delicadeza de sentimentos encobertos, é estimulada e o encontro da mulher com um masculino-amante, companheiro de alteridade se faz possível como uma nova forma de individuação. Há o ativamento de uma conjugalidade interior, que restaura uma dignidade feminina e inaugura com novos significados a necessidade de buscas originais de se tornar mulher. Ativados por sua imaginação, a Terezinha em nós abandona as vivências infantis, incestuosas e masoquistas do feminino e assume uma sexualidade adulta, se entregando para a parceria de prazer de ser mulher ao lado do homem. 
Por isso, penso que a individuação das mulheres fica propiciada quando atrelada a essa estética musical, pois nessas sínteses entre a arte e o pensamento parece repousar um equilíbrio formal e emocional que faz emergir novos estilos de existência. Neste sentido, somos mulheres do Chico, quando sua arte poética e musical nos reconecta com o nosso desejo animico interior e suas múltiplas possibilidades de expressão no reino do masculino e do feminino, o que resulta na maturidade de uma sexualidade adulta nas relações e nas soluções. Somos então mulheres modernas, capazes da delicadeza e da maturidade de uma feminilidade composta. O resultado provisório e constante dos ajustes entre feminino e masculino, porque estamos sempre permeáveis a um novo olhar e um novo encontro com nossas virtualidades criativas. Somos então, mulheres da individuação, capazes de nos equilibrar com elegância nessa saia justa e nesse salto alto. 
(encerrar com a música Valsinha, apenas lida no início, porque é num novo olhar que repousa uma nova mulher)

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