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1 AIIJRY LOPES JR. Doutor em Dire1ro Processual Penal pela Universidad Complutensc de Madrid. Professor Titular de Direito Processual Penal da PUCRS. Professor no Programa de Pôs-Graduação - Doutorado, Mestrado e Especialização - em Ciências Crímmais da PUCRS. Coordenador do Curso de Especialização em Ciências Penais da PUCRS. Vice-Prcsídente da Federasuí e da Associação Comerc1al de Porto Alegre. Parecerista e Conferencista. Advogado Criminalista. www.aurylopes.com.br www.facebook.com/aurylopesJr Fundamentos do Processo Penal Introdução Crítica 2015 19ei Çl.SSaraiva Capítulo 1 O fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade constitucional 1 .1. Constituindo o processo penal desde a Constituição. A crise da teoria das fontes. A Constituição como abertura do processo penal A primeira questão a ser enfrentada por quem se dispõe a pensar o processo penal contemporâneo é exatamente (re)discutir qual é o fundamento da sua existência, por que existe e por que precisamos dele. A pergunta poderia ser sintetizada no segumte questionamento: um Processo penal, para quê( quem)? Buscar a resposta a essa pergunta nos conduz à defimção da lógica do sistema, que vai· orientar a mterpretação e a aplicação das normas processuais penais. Noutra dimensão, significa definir quai é o nosso paradigma de leitura do processo penal, buscar o ponto fundante do discurso. Nossa opção é pela leitura const1tuc10nal e, dessa perspectiva, visualizamos o processo penal como instrumento de efetivação das garanllas constitucionais. J. Goldschmidt', a seu tempo', quest10nou: Por que supõe a imposição da pena a existência de um processo? Se o ius puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder soberano sobre l. Problemas1urídicos y políticos dei proceso penal, p. 7. 2. Logo, considerando que todo saber é datado, mteressa-nos mais a pergun- ta do que a resposta dada pelo autor naquele momento. 29 seus súditos, que acusa e também julga por meio de distintos órgãos, pergunta-se: por que necessita que prove seu direito em um processo? A resposta passa, necessariamente, por uma leitura constitucio- nal do processo penal. Se, antigamente, o grande conflito era entre o direito positivo e o direito natural, atualmente, com a recepção dos direitos naturais pelas modernas constituições democráticas, o desa- fio é outro: dar eficácia a esses direitos fundamentais. Como aponta J. Goldschmidt3, os princípios de política proces- sual de uma nação não são outra coISa senão o segmento da sua po- lítica estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é um termômetro dos elementos autoritários ou de1nocrátrcos da sua Constituição. A uma Constituição autorítána vai corresponder um processo penal autontáno, utilitansta. Contudo, a uma Constituição democrática, como a nossa, necessanamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como instrnmento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias const1tuc10nais do mdivíduo. Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constitui a ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da exis- tência do processo penal democrático se dá por meio da sua mstru- mentalidade co11stituc1011al. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente co11st1tuido a part!f da Constituição. Cremos que o constitucionalismo, exsurgente do Estado Demo- crático de Dirello, pelo seu pe1fil compromissário, dingente e vin- culativo, consfltui a ação do Estado'! Com a precisão conceituai que lhe caractenza, Juarez Tavares5 ensma que nessa questão entre liberdade mdiv1dual e poder de mter- venção do Estado não se pode esquecer de que a "garantia e o exer- cício da liberdade mdividual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência» 3. Problemas Jllrídicos y políticos dei proceso penal, p. 67. 4. STRECK, Lemo Lmz. Jurisdição constitucional e hermenêut1ca, p. 19. 5. TAVARES. Juarez. Teona do m1usto penal, p. 162. 30 Pai·ece, essa, uma afirmação simples, despida de maior dimensão. Todo o oposto. A pengosa viragem discursiva que nos está sendo (im)posta atualmente pelos movimentos repress1vistas e as ideologias decorrentes faz com que, cada vez mais, a "liberdade" seJa "provisó- ria" (até o CPP consagra a liberdade provisória ... ) e a pnsão cautelar (ou mesmo definitiva) uma regra. Ou, amda, aprofundam-se a dis- cussão e os questionamentos sobre a leg1t1m1dade da própna liberda- de individual, principalmente no âmbito processual penal, subverten- do a lógica do sistema jurídico-constitucional. Essa pengosa inversão de smais exige um choque à luz da leg1- timação a priori da liberdade individual, e a discussão deve voltar a centrar-se no ponto correto, muito bem c!fcunscnto por Tavares6: "o que necessita de leg1t1111ação é o poder de punir do Estado, e esta leg1t1mação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o di- reito de intervenção" Destaque-se: o que necessita ser legitimado e Justificado é o poder de pumr, é a intervenção estatal e não a liberdade mdiv1dual. Mais, essa legitimação não podena resultar de uma autoatribuição do Estado (uma autoleg1t1mação, que conduza a uma situação autop01é- tíca, portanto). Mas essa já sena outra discussão em torno daprópna legitimidade da pena, que extravasa os limites deste trabalho. A liberdade individual, por decorrer necessanamente do direito à vida e da própna dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constituc10nal e tratados mternac10nais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito em que vivemos. Essa é uma premissa básica que norteia tocla a obra: questionar a legitimidade do poder de mtervenção, por conceber a liberdade como valor primevo do processo penal. Nem mesmo o conceito de bem Jurídico pode contmuar sendo tratado como se estivesse imune aos valores do Estado Democrático. Como adverte Tavares 7, "a questão da crímmalização de condutas não 6. Idem. 7. TAVARES, Juarez. Teona do myusto penal, p. 200. 31 pode ser confundida com as finalidades políticas de segurança públi- ca, porque se msere como uma condição <lu Estado Democrático, baseado no respeito dos direitos fundamentais e na proteção da pes- soa humana" E segue o autor apontando que, em um Estado Demo- crático, o bem Jurfdico deve constituír um limite ao exercício da política de segurança pública, reforçado pela atuação do Judiciário, corno órgão fiscalizador e controlador e não como agência seletíva de agentes merecedores de pena, em face da respectiva atuação do Legislativo ou do Executivo8 Atualmente, existe uma megável crise da teoria das fontes, em que uma lei ordinána acaba valendo mais do que a própria Consti- tuição, não sendo raro aqueles que negam a Constituição como fonte, recusando sua eficácia imediata e executividade. Essa recusa é que deve ser combatida. A lwa é pela superação do preconceuo em relação à eficácia da Constituição 110 processo penal. Nlais do que isso, é 11ecessário fazer- se um controle ;udicíal da conve11cíonalidade das leis penms e pro- cessuais penms, na medida em que a Conve11ção Americana de Di- reuos Humanos (CADH) goza de caráter supra/ega/, ou seja, está abaixo ela Constztuzção, mas acima das leis ordinárias ( como o CP e o CPP). Portanto, é uma dupla co11formídade que devem guardar as leis ordinárias: com a Constituição e com a CADH. Esse é o desafio. O processo não pode mais ser visto como um simples mstru- mento a serviço do poder punitivo ( direito penal), senão que desem- penha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se_ compreender que o respeito às garantias fim- damentazs não se confimde com impunidade, e Jamais se defendeu isso. O processo penal é um cammho necessário para chegar-se, le- gnimamente, à pena. Daí por que somente se admitesua existência quando ao longo desse cammho forem ngorosamente observadas as reoras e oarantias constítucíonaln1ente asseguradas (as regras do " " -devido processo legal). 8. Idem. 32 !, .. _.'. 1 '.\ li r Assim, existe uma necessária símultaueidade e coexistência entre repressão ao delito e respeito às garantias constitucionais, sen- do essa a difícil missão do processo penal, como se verá ao longo da obra. No processo penal, a Constítmção e a CADH amda representam uma abertura, um algo a ser buscado como ideal. É avanço em termos de fortalecimento da dig111dade da pessoa humana, de abertura de- mocrática rumo ao fortalecimento do indivíduo. Nesse sentido, nos- sa preocupação com a mstrumentalidade constitucional e o caráter "constituidor" da Carta e da CADH. Geraldo Prado9 destaca a importância da Constitmção na pers- pectiva de fixai· "com ciareza as regras do Jogo político e de c1rcula- ção do poder e assmala, indelevelmente, o pacto que é a representação da soberania popular, e portanto de cada um dos cidadãos" É a Const1tmção um locus, prossegue Geraldo, de onde são vislumbrados os direitos fundamentais, estabelecendo um "nexo mdissoíúvel entre garantia dos direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia, de sorte a ínflmr na formulação das linhas gerais da política cnmmal de determinado Estado". Finalizando, lembra o autor que o espaço comum democrático é construído pela afirmação do respeito à dig- mdade humana e pela primazia do Direiro como 111str111nento das políticas sociazs, inclusive a política cnmmal. Partimos da mesma premissa de Prado'º: a Constituição da República escolheu a estrutura democrática sobre a quaí há que exis- tir e se desenvolver o processo penal, forçado que está - p01s mode- io pré-constituição de 1988 - a adaptar-se e conformar-se a esse paradigma. Então, não basta qualquer processo, ou a mera legalidade, senão que somente um processo penal que esteJa confom1e as regras cons- titucionais do jogo (devido processo) na dimensão formal, mas, pnn- c1palmente, substancial, resíste à filtragem constituc1onal ír11posta. Feito isso, é 1mprescmdível marcar esse referencial de leitura: o processo penal deve ser lido à luz da Constztwção e da CADH e não ao contráno. Os dispositivos do Código de Processo Penal é que 9. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório, p. 16. 1 O. Ibidem, p. 44. 33 devem ser obJeto de uma releitura mais acorde aos postulados demo- crál!cos e garant1stas na nossa atual Carta, sem que os direitos fun- damentais nela msculpidos seJam mterpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 1941. 1.2. Superando o maniqueísmo entre "interesse público" versus "interesse individual". Inadequada invocação do princípio da proporcionalidade Argumento recorrente em maténa penal é o de que os direitos mdiv1duais devem ceder (e, portanto, ser sacrificados) frente à "su- premacia" do mteresse público. É uma manipulação discursiva que faz um maniqueísmo grosseiro (senão mteresse1ro) para legitimar e pretender Justificar o abuso de poder. Inicialmente, há que se com- preender que tal rednc1onísmo (público -pnvado) está completamen- te superado pela complexidade das relações sociais, que não compor- tam mais essa dualidade cartesiana. Ademais, em matéria penal, todos os interesses em Jogo - pnncipalmente os do réu - superam muito a esfera do "pnvado", situando-se na dimensão de direitos e garantias fundamentais (portanto, "público", se prefenrem). Na verdade, são verdadeiros direitos de todos e de cada um de nós, em relação ao ( ab )uso de poder estatal. Já em 1882, Manuel Alonso Martínez afirmava na Expos1c1ón de Motivos de la Ley de Enjwcw,mento Crim111a/ que "sagrada es sin duda la causa de la soc1edad, pero no lo son menos los derecl10s 111- div1duales·· W. Goldschnudt' 1 explica que os direitos f1111da111entais, como tais, dirigem-se contra o Estado, e pertencem, por consegumte, à seção que trata do amparo do indivíduo contra o Estado. O processo penal constitm um ramo do direito público, e, como tal, implica au- tolimitação do Estado, uma soberania nuttgada. Ademais, existe ainda o fundamento h1stónco-polítíco para sus- tentar a dupla função do moderno processo penal, que foi bem abor- l l. Ln cte11c1a de ta Jllsflcta - Diketogia, p. 201. 34 f f 1 1 1 1 1 1 l [ , dado por Bettiol 12. A proteção do mdivíduo também resulta de uma imposição do Estado Democrático, pois a democracia trouxe a exi- gência de que o homem tenha uma dimensão Jurídica que o Estado ou a coletividade não pode sactificar ad nutum. O Estado de Direito, mesmo em sua ongen1, já representava uma relevante superação das estruturas do Estado de Polícia, que negava ao cidadão toda garantia de liberdade, e isso surgiu na Europa depois de uma época de arbJtra- nedades que antecedeu a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. A democracia, enquanto sistema político-cultural que valonza o indivíduo frente ao Estado, manifesta-se em todas as esferas da relação Estado-indivíduo. Inegavelmente, leva a uma democratização do processo penal, refletindo essa valonzação do mdivíduo no forta- lecimento do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda ênfase, que o princípio que pnme1ro impera no processo penal é o da proteção dos mocentes ( débil), ou seJa, o processo penal como direito protetor dos mocentes (e todos a ele submetidos o são, pois só perdem esse sratus após a sentença condenatória transitar em Julgado), pois esse é o dever que emerge da presunção constitucional de mocência prevista no art. 5°, LVII, da Constituição. O obJeto pnmordial da tutela no processo penal é a liberdade processual do imputado, o respeito a sua digmdade como pessoa, como efetivo SUJeJto no processo. O significado da democracia é a revalonzação do homem, en toda la complicada red de las instituciones procesales que solo tienen wi stgn(ficado si se enttenden por su naturaleza y por su_fina- lidad política y Jurídica de garantía de aquel supremo valor que no pu.ede nunca vemr sacrificado por razones de utilidad: el hombreD Não se pode esquecer, como explica Sarlet", de que a digmda- de da pessoa humana é um 12. BETTIOL, Gmseppe. lnstll11c101zes de derecho penal y procesal penal. p. 54 e ss. 13. Ibidem, p. 174. 14. SARLET, Ingo Wolfgang. Digmdade da pessoo /1111110110 e direitosfi111da- menra1s na Constawção Federal de 1988, 2. ed., p. 74. 35 valor-gma não apenas dos direitos functamentaís, mas de toda a ordem Jurídica (consutuc1onal e mfrnconst1tuc1onal), razão pela qual para mm- tos se Jllstifica plenamente sua caractenzação como princípio constítu- ciona1 de maior hierarquia axíológica-valorativa. Inclusive, na íupótese de conflito entre pnncípios e direitos cons- t1tuc10nalmente assegurados, destaca Sarlet", "o prmcípio da digmda- de da pessoa humana acaba por Justificar (e até mesmo exigir) a impo- sição de restnções a outros bens constitucionalmente protegidos". Isso porque, como explica o autor, existe uma inegável pnmazia da digni- dade da pessoa humana no âmbito da arq11itetura constit11cional. Algumas lições, por sua relevância, merecem ser repetidas nes- ta obra. É melhor pecar pela repetição do que correr o risco de per- dê-la por uma leitura pontual que nossos leitores eventualmente façam. Assim, nunca é excesso repetir uma lição magistral de Juarez Tava- res 16, que nos ensina que nessa questão entre liberdade individual e poder de intervenção do Estado não se pode esquecer que a "garantia e o exercício da liberdade mdiv1dual não necessitam de qualquer Jeg1t1mação, em face de sua evidência". Destaque-se: o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de pumr, é a intervenção estatal e não a liberdade mdividual. A liberdade mdiv1ctual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria digmctade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e tratados internacionais,sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito em que vivemos. Não há que se pactuar mais com a manipulação discursiva feita por alguns autores (e julgadores), que acabam por transfmmar a "liberdade" em "provisória" (até o CPP consagra a liberdade provi- sóna ... ), como se ela fosse precána, e, entretanto, a prisão cautelar ( ou mesmo defimt1va), uma regra. Essa pengosa mversão de sinais exige um choque à luz da leg1- t1mação a pnon da liberdade individual e a discussão deve voltar a 15. Ibíúem, p. 115. 16. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, 3. ed., p. 162. 36 t: 1 ' centrar-se no ponto correto, muito bem circunscrito porTavares 17 • "o que necess!la de legitimação é o poder de pumr do Estado" Essa é uma premissa básica que norteia toda a obra: quest10nar a legitimidade do poder de mtervenção, por conceber a liberdade como valor primevo do processo penal. Entendemos que sociedade base do discurso de prevalência do "público" - deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coe- xistência, e não mais como um ente supenor de que dependem os homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, onde os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual Constitmção e, antes dela, a Declaração Umversal dos Direitos Hu- manos consagram certas limitações necessánas para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente supenor, essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema penal autontáno 18 Na mesma linha, Bobbio 19 explica que, atualmente, impõe-se urna postura mais liberal na relação Estado-indivíduo, de modo que primeiro vem o mdivíduo e, depois, o Estado, que não é um fim em si mesmo. O Estado só se justifica enquanto meio que tem como fim a tutela do homem e dos seus direitos fundamentais, porque busca o bem comum, que nada mms é do que o benefíc10 de todos e de cada um dos indivíduos. Por isso, Ferrajoli fala da ley dei más débil'º. No momento do crime, a vítima é o íupossufic1ente e, por isso, recebe a tutela penal. Contudo, no processo penal, opera-se uma importante modificação: o mais fraco passa a ser o acusado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre a violência instituc1onalizada do processo e, postenor- mente, da pena. O sujeito passivo do processo, aponta Guarnieri21 , 17. Idem. 18. ZAFFARONI, Eugemo Raúl; PIERANGELI, José Henrique. A1anual de direlfo penal brasileiro, p. 96. 19. No prólogo da obra de FERRAJOLI, Derecho y razón -Teoria dei garan- tismo penal, p. 18. 20. FERRAJOLI, Lmg1. Derechos y garantías - La iey dei más débil. 21. Las partes en e/ proceso penal, p. 272. 37 passa a ser o protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual gJram todos os atos do processo. Amilton B. de Carvalho22 , questionando para quê(m) serve a lei, aponta que a "a lei é o limite ao poder desmesurado - leia-se, limite à dominação. Então, a lei eticamente considerada - é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação" Nessa democratização do processo penal, o su3e1to passivo deixa de ser visto como um mero ob3eto, passando a ocupar uma posição de destaque enquanto parte,23 com verdadetros direitos e deveres" É uma relevante mudança decon-ente da const1tuc1onaliza- ção e democratização do processo penal. Muito preocupante, por fim, é quando esse discurso da "preva- lência do mteresse público" vem atrelado ao Princípro da Proporcro- nalidade, fazendo uma viragem discursiva para aplicá-lo onde não tem legítimo cabimento. Nesse tema, é lúcida a análise do Ministro Eros Grau, cu3a citação, ainda que longa, deve ser ob3eto de reflexão. Diz o ilustre Mimstro do Supremo Tribunal Federal no voto profen- do no HC 95.009-4/SP (p. 44 e ss.): Tenllo cntlcado aqm - e o fiz amda recentemente <ADPF 144) - a "banalização dos 'pnncíptos' (entre aspas) da proporcwnalidade e da razoabilidade, em especial do pnmeiro, conceb1do como um cprmcí- p10· supenor, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que confe- nna ao Poder Judic1áno a facuictade de 'corrigir' o leg1slador, inva- dindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporc10nalida- cte e razoabilidade nem ao menos são prmcíp10s - porque não repro- duzem as suas características porém postulados normativos, regras 22. "Lei, para guelm)?" Escntos de direrto e processo penal em homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tovo, p. 56 e ss. 23. É complexa a problemática ctoutrmána acerca da existência de partes no processo penal. Não sendo o momento oportuno para enfrenta-la, limitamo-nos a esclarecer que quando falamos em partes estamos aludindo a um processo penal de partes, que trata o suJe1to passivo não mais corno um mero objeto. 24. Ou cargas. expectativas e perspecuvas, se adotarmos a teona do processo como situação Jurídica, cte James Goldschm1dt. 38 1: !: ' de mterpretação/aplicação do direito". No caso de que ora cogitamos esse falso prmcípio esta na sendo vertrdo na máx1111a segundo a quol "não há direlfos absolutos." E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxzma se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantw const1tuc1011al. Deveras, a cada direrto que se aie- ga o Jmz. responderá que esse direito existe, s1111, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dâ o esvaziamento do quanto construímos ao lollgo dos séculos para faze,; de súditos, cida- dãos. Diante do mquisiclor não tenios qualquer direito. Ou melhcn; temos sim, vános, mas como nenhum deles e absoluto, nenhum é re- conhecível na oporturndade em que deviria acudir-nos. Primeiro essa gazua, em segmda despencando sobre todos, a pretexto da "necessária atividade persecutória do Estado", a "supremacia do mteresse público sobre o mdiv1dual" Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Admm1strativo - não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqm impertinente não tem lugar em matenal penal e pro~ cessua/ penal. Esta Corte ensma (HC 80.263. relator Mimstro Ilmar Galvão) que a mterpretação sistemática da Constituição "leva à con- clusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à iiberdade em detrimento do direito de acusar". Essa é a proporcwna!idade que se rmpõe em sede processual penal: em caso de co1{flito de prece/los, prevalece o gara1111dor da liberdade sobre o que fundamenta sua su- pressdo. A nos afastarmos disso retornaremos à /Jarbáne (grifos nossos). Em suma: nesse contexto político-processual, estão superadas as considerações do estilo "a supremacia do rnteresse público sobre o pnvado" As regras do devido processo penal são verdadeiras ga- rantias democráticas (e, obviamente, constituc1onms), muito além dessa dimensão reducionista de público/pnvacto. Trata-se de direitos fundamentais - obviamente de natureza pública, se quisermos utilizar essa categona - limitadores da mtervenção estatal. 1.3. A influência dos movimentos repressivistas. Tolerância zero para quê(quem)? Desvelando a hipocrisia do discurso O sistema penal (material e processual) não pode ser ob3eto de uma aná1ise estntan1ente Jurídica, sob pena de ser n11n1malista, mgê- 39 i j 1 ! 1 nua até. O processo penal não está em um compartimento estanque, imune aos movimentos sociais, políticos e económicos. A violência é um fato complexo25, que decorre de fatores b10psicossocims. Logo, o processo, enquanto instrumento, exige uma abordagem interdisci- plinar, a partlr do caleidoscóp10, isto é, devemos visualizá-lo desde vános pontos e recorrendo a diferentes campos do saber26 Daí a importância de enfrentar o tema, abordando, entre outros, a ideologia repressivista da "lei e ordem", na medida em que é ma- nifestação do neoliberalismo para, após, desconstruir o utilitarismo processual por me10 do paradigma constitucional. A visão de ordem nos conduz, explica Bauman27 , a de pureza, a de estarem as coisas nos lugares "justos" e "convenientes". É uma situaçãoem que cada coisa se acha em seu ;usto lugar e em nenhum outro. O oposto da pureza (o imtmdo, o SUJO) e da ordem são as coi- sas fora do seu devido lugar. Em geral, não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em "sujas", senão o estar fora do lugar, da ordem. Exemplifica o autor com um par de sapatos, magnificamente lustrados e brilhantes, que se tornam sujos quando colocados na mesa de refeições. Ou, amda, uma omeiete, uma obra de ar1e culinária que dá água na boca quando no prato do jallta,; tonza-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro28 , O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, pnncipalmente em um país como o nosso, em que vira notícia no Jornal Nacional o fato de 25. Explica Ruth Chinó Gauer ("Alguns aspectos da fenomenologia da vio- lência". A Fenomenologw da vwlêncw, p. 13 e ss.) que a violêncía é 11111 elemento esrrwural, 1mrinseco ao fa10 soc,a/ e não o resto anacrômco de uma ordem bárba- ra em vws de extmçüo. Esf·e fenômeno aparece em todas as sociedades; faz pane, portanto, de qualquer civilizaçlío 011 grupo humano: basta atellfar para a qllestlío da vio/êncw no mundo atuai, ta~Úo nas grandes cu/ades como também nos recantos mais isolados. 26. Só o Junsta consciente da insuficiência do monólogo Jurídico está apto a compreender a complexidade característica da sociedade contemporânea. Para tan- to, deve ter humildade científica suficiente para socon-er-se de leituras de sociologia, antropologia, h1stóna, ps1qurntna etc., sem falar no lastro filosófico. Não há espaço para o profisswnal alienado, porque ele ali é nada. 27. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 14. 28. Idem. 40 1 f f um grupo de moradores da comunidade ter "descido o morro" e "inva- dido" um shoppmg cemer no Rio de Janeiro. Ou seJa, enquanto esti- verem no seu devido lugar, as coisas esLão em ordem. Mas, ao desce- rem o mmTo e invadirem o espaço da burguesia, está posta a (noJenta) omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organiza- ção do ambiente. Explica Bauman que "ordem" significa um meto regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estepm distribuídas ao acaso, mas airumadas numa hierarquia estnta - de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns vtrtuaimente impossíve1s29 Ora, tal c1mpério da ordem" só pode ser fruto do autismo Jurí- dico e de uma boa dose de má-fé. A falácia do discurso salta aos olhos, pois tal ordem, numa sociedade de risco como a nossa e com um altíssimo nível de complexidade, só pode decorrer do completo afas- tamento do direito da realidade e/ou da imensa má-fé por parte de quem o prega. Não sem razão foi o argumento largamente utilizado por programas políticos totalitários, como o nazismo (pureza de raça) ou mesmo o comnnismo (pureza de classe). Mas "cada esquema de pureza gera sua própna SUJeíra e cada ordem gera seus próprios estranhos"'º. Isso se reflete mmto bem na tolerância zero pm·a o outro e tolerância dez para nós e os nossos. E o cnténo da pureza é a aptidão de participar do Jogo consumista. Os deixados de fora são os consumidores falhas e, como tais, incapazes de ser "indivíduos livres", p01s o senso de liberdade é defimdo a partir do poder de escolha do consumidor. Eis os impuros, os obJetos fora do lugar" O discurso ela lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo seJmn detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitênc,a, 29. Ibidem, p. 15. 30. Ibidem. p. 23. 31. Ibidem. p. 24. 41 pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de consumidor, por meio de políticas públicas de inserção social. Trata-se de uma consequência (penal) do afastamento do Estado do setor social, onde um menos Estado-providência necessita de um Estado (mais) penal para conter a deco1Tente margmalização social. É o que Wacquant32 sintetiza em supressão do Estado econônúco, e11fraquecimento do Estado Social, fortalec11ne1110 e glorificação do Estado penal. Nesse cenário, o Manhattan lnslltute ( organismo cnado para aplicar os pnncípios da economia de mercado aos problemas sociais) imcia sua cruzada contra o Estado-providência de Ronald Reagan mvestmdo em Charles Murray ( definido por Wacquant33 como um politólogo ocioso de reputação medíocre), para produz1r a nova bíblia do projeto da nova direita amencana: Losing Ground: Amencan Social Policy, 1950-1980. Na intensa agenda de divulgação desse livro, milhares de dólai·es foram gastos em palestras, conferências, entrevistas, mídia etc. destinados a demonstrar que a excessiva generosidade das políticas de a3uda aos mais pobres sena responsável pela escalada da pobreza nos Estados Umdos: ela recom- pensa a mativ1ctade e rnctuz à degenerescência moral das classes po- pulares, sobretudo essas uniões ilegítimas que são a causa última de todos os maJes das sociedades modernas - entre os quais a víolêncrn urbana34 , Num desses eventos, estava o promotor Rudolph Giuliam, que acabara de perder as eleições para o democrata negro David Dinkms. Iromcamente, empunhando a bandeira do zero tolerance, Giuliam vence as eleições de 1993 e transforma Nova York na vitnna mundial dessa política reprcssivista. Ainda das mãos do Manhattan lnstitute, surge a broken windows theory, ou 1nais mna invencíonice am.ericana vendida aos incautos como panaceia no mercado da segurança pública mundial, como 32. \\!ACQUANT, Lo1c. As prisões da nuséna, p. 18. 33. Ibidem, p. 22. 34. Idem. 42 i 1 f 1 ! ' 1. definem Jacmto Coutmho e Edward Carvalho35 , formulada em 1982 por James Q. Wilson e George Kelling. Sustentam, em síntese, que todo e qualquer desvio de comportainento deve ser ngorosamente perseguido e pumdo, pois quem Joga uma pedra e quebra uma vidra- ça hoje, amanhã volta para cometer crimes mais graves. Obviamente que tal "vidência" jamais foi cotnprovada emp1n- camente. Das mãos de William Bratton (chefe de polícia de Giuliam e ex-chefe de segurança do metrô de Nova York) surge uma reengenha- na de "gestão por objetivo", visando à máxima eficiência a partir de rígidos cnténos quantitativos de avaliação. Como define Wacquanl, ele "transforma os comissanados em centros de lucro, o lucro em questão sendo a redução estatística do cnme registrado. E ena todos os cnténos de avaliação dos serviços em função dessa úmca medida. Em suma, dinge a admmistração policial como um mdustnal o fana com uma fi1111a CUJOS aciomslas JUigassem ter um mau desempenho"36 Obviamente que as detenções arbltránas e todos os tipos de auton- tarismo policial são praticados contra os clientes preferenciais do sistema, com a plena comvência e até estímulo por parte da admmis- tração /inclumdo o caso Abner Lmma)37 • Salta aos olhos que o modelo de tolerância zero é cruel, desu- mano e totalmente aético. Os socialmente etiquetados sempre foram os clientes preferenciais da polícia e, com o aval dos governantes, nunca se matou, prendeu e torturou tantos negros, pobres e latmos. A máquma estatal repressora é eficientíssuna quando se trata de prender e arrebentar lupossuficientes. Nos países da Aménca Latma, a situação é amda mais grave. Há que se ter sempre presentes as lições de Cinno dos Santos38 , quando desvela que o 35. COUTINHO, Jacmio Nelson cte Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. "Tcorrn das Janelas quebradas: e se a pedra vem de clcntro?" Revista de Estudos Cnmmais, Porto Alegre, p. 23 e ss. 36. WACQUANT, Lok. As prisões da m1séna, p. 22 e ss. 37. Imigrante hattlano que foi vítima de todo tipo de tortura sexual após ser detido ilegalmente e conduz1cto a um posto policial de .Manhattan. 38. SANTOS, Juarez Cinno dos. Direlfo Penal - Pane Geral. p. 7 e ss. Para compreensão da complexidade que envolve essa temática, m1prescmdíveI a le!lura 43 1 ' '!., 1' 1 '. direito pena! deve ser estudado do ponto de vista de seus obJefivos declarados ou manifestos e de seus objeuvos reais ou latentes, nos quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenô- menos da v1da social nas sociedades contemporâneas. Um rápido exemplo dos abusos do zero tolerance encontramos em Wacquant39 Explica o autor que depois de uma série de abusos a "Unidade de Luta contra os Cnmes de Rua" de Nova York passou a ser ob3eto de mtensa crítica. Trata-se de uma tropa de choque de 380 homens (quase todos brancos), que constitm a ponta de lança da política de tolerância zero, é objeto de diversos 10- quéritos adm1111strativos e d01s processos por parte dos procuradores federais sob suspeita de proceder a prisões pelo aspecto ( racw/ profilillg) e de zombar sistematicamente dos direitos constitucionais de seus alvos. Segundo a Natwnal Urban League, em dois anos essa brigada, que ronda em carros comuns e opera à pa1sana, deteve e revistou na rua 45.000 pessoas sob a mera suspeita baseada no vestuáno, aparência, comportamento e - acima de qualquer outro indíc10 - a cor da pele. Mais de 37.000 dessas detenções se revelaram gratmtas e as acusações sobre metade das 8.000 restantes foram consíderadas nulas e inválidas pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas 4.000 detenções Justi- ficadas: uma em onze. Uma ínvest1gação levada a cabo pe]o Jornal New York Daily News sugere que perto de 80% dos jovens homens negros e latmos da cidade foram detidos e revistados pelo menos uma vez pelas forças da ordem. [ ... ] A tolerância zero apresenta portanto duas fisionomias diametralmente opostas, segundo se é o alvo (negro) ou o beneficuí.rio (branco), isto é, de acordo com o lado onde se encontra essa ban-e1ra de casta que a ascensão do Estado penal amencano tem como efeito - ou ful)-ção - restabelecer e radicalizarlº- São dados estarrecedores que só reforçam nossa preocupação por uma matriz democrática que oriente o processo penal e o direito penal. da obra A cnmmologw radical, do mesmo autor, recentemente reeditada pela Edi- tora Lumen Juns. 39. WACQUANT, Lote. As pnsões da m1séna, p. 34--35. 40. Ib,dem, p. 37. 44 ' f ' í 1 1. O movimento da lei e ordem (law and orcler) é a mais clara manifestação penal do modelo neoliberal, dos movimentos de extre- ma direita. É "velha megera Direita Penal", na expressão de Karam-11 Prega a supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo e de seus direitos fundamentais. O Brasil Já foi contammado por esse modelo repressiv1sta há décadas, quando a famigerada Lei dos Cnmes Hediondos (Lei n. 8.072/90), seguida de outras na mesma linha, marcou a entrada do sistema penal brasileiro na era da escundão, na ídeologw do repressívísmo saneador. A ideia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacn- ficam-se direitos fundamentms em nome da incompetêncrn estatal em resolver os problemas que realmente geram a v10lêncía. Não é necessário maior esforço para ver que exemplo claro do fracasso nos dá o próprio modelo brasileiro. Basta questionar: com o advento da Lei dos Crimes Hediondos (e posteriores), houve adi- minmção da prática dos delitos ali enumerados (latrocímo, extorsão mediante sequestro, estupro, tráfico de entorpecentes etc.)? A políti- ca de aumentar penas e endurecer o regime de cumpnmento diminuw as taxas de cnrrunalidade urbana? Obviamente que não. A função de prevenção geral desempenhada pela norma penal é mímma ou ine- xistente. Tanto é assim que a cada dia ocorrem mais dehtos de latro- 41. KARAM, Mana Lúcia. "A esquerda punitiva: Entrevista com Mana Lúcia Karam", p. 11 e ss. Outro movimento punitivo mmto bem analisado pela autor_a C a "esquerda punitiva" Segundo Karam, taí movimento rnic10u-se com a fantasia de querer usar o sistema penal contra as classes dommantes. Com a perda do 1:eferencial socialista, a esquerda ficou sem perspectiva de futuro. Não há mais socialismo, nem revoluções, fazendo com que a esquerda se tornasse "eleJtoretra" Isso significa aJUStaro discurso h "opmião pública" ou, melhor, "opmião publicada", perfilando-se ao lado do discurso pumuvo do lmv and arder no "combate à vwlência". Em outras palavras, a esquerda pumttva passou a defender a max1ma mtervenç~o penal, con-o~ borando às ideias dos movimentos de extrema direita da lei e da ordem. Assumm o discurso da repressão ao cnme orgamzado, com o consequente utilitansmo proces- sual (supressão de garantias processuais) e banalização do direito penal (maxmuza- ção), sem perceber que tal endurecimento comamma todo o sistema penal e culmi- na por atingir os própnos excluídos, que são "clientes preferencrn1s" do sistema. Basta recordar que 90% dos réus procuram a defensona pública, porque não têm condições de pagar um advogado. Isso reflete, sem dúvida, uma profunda cnse de paradigmas. 45 cínio, extorsão mediante sequestro (agora na sua versão "relâmpago") e o tráfico de entorpecentes cresce de forma alarmante, apenas para dar alguns poucos exemplos. Como aponta Vera Batista·12, nos Estados Umdos, o marketing de que a redução da crimmaiídade urbana em Nova York foi conse- quência da política de tolerância zero é severamente cnticada. É pura propaganda enganosa. Não é prendendo e mandando para a pnsão mendigos, p1chadores e quebradores de vidraças que a macrocnmi- nalidade vm ser contida. As taxas de cnmmalidade realmente caíram em Nova Yorlc, mas também decresceram em todo país, porque não é fruto da mágica política nova-10rquma, mas sim de um complexo avanço social e econômico daquele país. É fato notório que os Esta- dos Umdos têm vivido nas últimas décadas uma eufórica evolução econômica, com aumento da qualidade de vida e substancial decrés- cuno dos índices de desemprego ( em que pese isso estar mudando novamente). Nisso está a resposta para a dirn111mção da criminalida- de: crescimento econômico, sucesso no combate ao desemprego e política educacional eficiente. É sempre importante destacar que a cnrnmalidade é fenômeno complexo, que decorre ele um feixe de eíementos (fatores biopsicossocims), em que o sistema penal desempenha um papel bastante secundário na sua prevenção. Aden1ats, na expressão de Bitencourt'i3. a "falência da pena de pnsão" é megável. Não serve como elemento de prevenção, não reeduca e tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou. Dessarte, o direito penal deve ser mínimo e a pena de prisão reserva- da para os cnmes realmente graves44 . O que deve ser máximo é o Estado Social (algo que nunca tivemos). 42. BATISTA. Vera Malagutl de Souza. ''Intolerância dez. ou a propaganda é a alma do negócm". Discursos sedic10sos. 43. VcJa-sc a obra de BITENCOURT, Cesar Roberto. Falêncra da pena de pnsão. 44. Por ora. parece-nos que o abolic10msmo é utópico, pnnc1palmcnte nos pobres países da Aménca Latma. 46 Corno Zaffaroni"', entendemos que todo discursus re está em crise. A pena de prisão não ressocializa, não reeduca, não remserc socialmente. Do discurso "re" somente se efetivam a reincidência e a reJeição social. É um discurso ao mesmo tempo real e falso. Éfalso o conteúdo, mas o discurso é real, ele ex,ste e produz e.fel/os (legiti- mantes do poder de pumr). Só por acidente a pena ressociaiiza, porque, como define Gar- cía-Pablos de Molina'16, la pena estigmatiza, no rehabilita. 'No limpw, mancha. z Cómo pu.ede apelarse a su función resocializadora cua,u/o consta empiricamente todo lo contra no? z Cómo se explica e! impacto rehabilitador dei castrgo y la reinserción socwl dei penadu s1, en la estmzación sacra/, suele ser más el mero hec/10 de haber cump/;do la pena que la propw com1s1ón del delito, lo que implica un grave deménto a los ajas de los concmdadanos. O law anel arderé pura propaganda enganosa, que nos fará mergulhar numa situação ainda mais caótica. É mais fácil seguir no cammho do direito penal simbólico, com leis absurdas, penas des- proporc10nadas e presídios superlotados, do que realmente combater a cnmmalidacte. Legislar é fácil e a diarreia legislativa brasiieira é prova mequívoca disso. O movimento de lei e ordem significa urna tnste opção pela gestão penal da pobreza. Na síntese de Zaffaroni47, o aumento de penas abstratas ofere- cidas pela /11pocrisía dos polít1cos, que não sabem o que propo1; 11ão têm espaço para propo1; não sabem ou não querem modificar a realidade. Como 11ão têm espaço para modificar a realídade, fazem o que é 11w1s barato: leis pe11aís1 Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausên- cia de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao 45. ZAFFARONI, Eugemo Raúl. "Desafios do direito penal na era da globa- lização". RevISta Consulex, p. 27 e ss. 46. Cnmmo!ogia, p. 288. 47. ZAFFARONI, Eugen10 Raú1. "Desafios do direito penal na era da globa- lização''., p. 27 e ss. 47 .i 1 ;i _, ,, i que tudo indica, o futuro será pior, p01s os menmos de rua que proli- feram em qualquer cidade brasileira ingressam em massa nas faculda- des do crime, chamadas FASE (antigas Febem). A pós-graduação é quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos su- perlotados presídios brasileiros, verclacle1ros mestrados profissionali- zantes cio cnme. A situação atualmente se vê agravada pela manipulação discur- siva em torno da soc10logrn do risco, revitalizando a (falsa) crença ele que o direito penal pode restabelecer a (ilusão de) segurança. Na correta defimção de Carvalho", a pretensão e a soberba gerada peía crença românuca de que o direito penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impedem o angustiante e doloroso. porém altamente saudável, processo de reco- nhecimemo dos limites. Dessarte, quanto maior for o 11arc1s1smo penal, ma10r deve ser nossa preocupação com o instrumento-processo. Se o direito penai falha em virtude da panpenalização, cumpre ao processo penai o papel deji/rro, evitando o (ab)uso do poder de perseguir e penar. O processo passa a ser o fre10 ao desmedido uso do poder. É a última instância de garantia frente à v10lação dos Pnncípíos da Intervenção Mímma e da Fragmentaneclacle49 cio direito penal. 48. CARVALHO, Sala de. "A Ferida Narcísica do Direito Penal (pnmeiras observações sobre as ( <lis)funções do controle penal na sociedade contemporânea)" A ema/idade do tempo: para além das aparências históricas, p. 207. 49. Como explica Cezar Bitencourt (lvlanual de direito penal, v. 1, p. 11-12), o "prmcip10 da 1111ervenção mimmn, tambem conhecido como ultima rat10, onenta e limita o poder mcnmrnador do Estado, preconizando que a cnmmalização de uma conduta só se leglluna se consticu1r meio nccessáno para a proteção de determmado bem Jurídico"., CUJOS outros me10s de controle social revelaram-se msufic1entes. A fragmentanedade e decorrência da intervenção mimma e da reserva legal, signifi- cando que o direito penal "não deve sancrnnar condutas lesivas dos bens Juridicos, mas tão somente aquelas condutas mais graves e mais pengosas praticadas contra bens mais relevantes". Sem embargo, na atualidade, o discurso fácil do repressiv1s- mo saneador fez com que o direito penal simbólico - de máxuna intervenção - se- pultasse tais princíp10s, reforçando a necessidade de termos um processo penal ainda mrus preocupado em resgatar a eficiicrn do sistema de garantias do mdivíduo. 48 1.4. Direito e dromologia: quando o processo penal se põe a correr, atropelando as garantias Vivemos numa sociedade acelerada. A dinâmica contemporânea é impressionante e - como o nsco50 - também está regendo toda nossa vida. Não só nosso emprego é temporário, pms se acabaram os empregos vitalícios, como também cada vez é mais comum os em- pregos em Jornada parcial. Da mesma forma nossas "aceleradas" relações afetivas, com a consagração do ficar e do no fwure. Que dizer então da velocidade da informação? Agora passada em tempo real, via internet, sepultando o espaço temporal entre o fato e a notícia. O fato, ocomdo no outro lado do mundo, pode ser pre- senciado vütualmente em tempo real. A aceleração cio tempo nos leva próximo ao mstantâneo, com profundas consequências na questão tempo/velocidade. Também encurta ou mesmo elimina distâncias. Por isso, Virilio" - teórico da Dromología (do grego clromos = velo- c1clade)- afirma que "a velocidade é a alavanca do mundo moderno" O mundo, aponta Virilio52, tornou-se o ela presença virtual, da telepresença. Não só teleconrnmcação, mas também teleação ( traba- lho e compra a distância) e até em telessensação (sentir e tocar a distância). Essa h1permobilidade vlftual nos leva à mércia, além ele contrair espaços e mtervalos temporais. Até mesmo a guerra nas sociedades contemporâneas são confrontos breves, instantâneos e virtuais, como se fossem wargames de computador, em que toda carga de expectativa está lançada no presente. Sob o enfoque econômico, o "cassmo planetáno" é formado pelas bolsas de valores que funcionam 24 horas por dia, em tempo real, com uma imensa velocidade ele circulação de capital especulati- vo, gerando uma economia virtual, transnacional e 1mprev1síve1 - li- berta cio presente e cio concreto. Isso fulmina com o elo sociai, p01s 50. Estamos nos refenndo ao nsco exógeno {soctoiogrn do nsco) e endógeno (inerente ao processo, enquanto situação Jurídica dinâmica e 1mprev1sivel). Ambos serão tratados na contmuação. 51. Sobre o tema: VIRILIO, Paul. A inércia polar. 52. A velocidade da libertação, p. 1 O. 49 aqueles que mvestem na economia real não têm como antecipar a ação, desencorapndo mvestnnentos, destruindo empresas e empregos53 Nessa lógica de mercado, para consegmr lucros, é preciso ace- lerar a circulação dos recursos, abreviando o tempo de cada operação. Como consequência, a contratação de mão de obra também navega nesse ritmo: ao menor smal de diminuição das encomendas, dispen- sa-se a mão de obra. É a hiperaceleração levando o risco ao extremo. mna Ost" fala nos contratos de emprego temporários apontando para heterogeneização do tempo social, manifestada em ritmos sempre mais diversificados. Tempo conjugal e tempo parental dissociam-se55, ao passo que a orgamzação fordista do trabalho dá lugar a uma flexibili- dade das prestações, mas também a uma nova precariedade dos em- pregos. A duração promete1ca dos Códigos e a promessa das mstitm- ções dão então lugar a um tempo em migalhas que tem de ser recon- qmstado a cada instante. Direito de visita negociado, estágio conse- gmcto com dificuldade, emprego mtenno, tudo se passa como se rea- parecesse o ant1quíssm10 imperativo imposto aos pobres: viver o dia adia. Sob outro enfoque, a aceieração obtida a partir do referencial luz é impressionante e afeta diretamente nossa percepção de tempo. Como aponta Virilio56, a tecnologia do final dos anos 1980 permitiu que os satélites transmitissem a ,magem à velocidade da luz e isso representou um avanço da mídia televisiva com relevante mudança de paradigma. 53. OST, François. O tempo dn direlfo, p. 353. 54. Ibidem, p. 377. 55. No que se refere ao casamento, Ost {ob. cit., p. 390) aponta para um tem- po c01uugal mais permanente, que sobrevive ao tempo do casamento. O casal pa- rental sobrevive ao casal conjugal na medida em que - apesar de o elo conjugal ter deixado de existtr- a filiação simbólica em relação à cnança permanece. A respon- sabilidade educativa dos d01s cônjuges sobrevive ao tempo do casamento, sendo mcondícmna1 e permanente. É possível divorciar-se do cônjuge, mas não dos filhos. 56. A velocidade da libertaçiio, p. 26. 50 í A imagem passa a ter visibilidade mstantânea com o novo refe- rencial luz. O fascínio da 1111agen1 conduz a que "o que não é visível e não tem imagem não é televisável, portanto,não existe m1diatica- mente" O choque emocional provocado pelas Imagens da TV - sobre- tudo as de aflição, de sofnmento e mo1te - não tem comparação com o sentimento que qualquer outro meio possa provocar. Suplanta assim a fotografia e os relatos, a ponto de que, quando não há imagens, ena-se. A "reconstituição" das Imagens não captadas passa a ser fundamental para vender a emoção não ,apreendida no seu devido tempo. Exemplos típicos são os programas policiais sensacionalistas que proliferam nas televisões brasileiras, fazendo, mclus1ve, recons- titmções ainda mais dramáticas dos crimes ocon-idos para "captura psíqmca" dos telespectadores. Mas a velocidade da notícza e a própria dinâmica de uma socie- dade espantosamente acelerada são completamente diferentes da velocidade do processo, ou seja, existe um tempo do direito que está completamente desvmculado do tempo da sociedade. E o dirello pmais será capaz de dar soluções à velocidade da luz. Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a velocidade da virtualidade não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas pnsões cautelares e a visibilidade de uma imediata pumção. Assim querem o mercado ( que não pode esperar, pois tem- po é dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, pms está acostu- mada ao instantâneo). Isso, ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, expandindo o presente. Desse presenteísmo/imediatismo brota o Estado de Urgêncw, uma consequência natural da mcerteza episte- mológica, da mdetermmação democrática, do desmoronamento do Estado sociai e da con-elativa subida da sociedade de risco, da ace- leração e do tempo efêmero da moda. A urgência surge como forma de correr atrás do tempo perdido. Como explica Ost, isso significa que passamos dos "relógios ãs nuvens", no sentido de que não estamos mais vivendo um modelo mecânico (relóg10 ), linear e previsível de uma legislação piramidal, senão o modelo das "nuvens", mterativo, recursivo e mcerto de uma 51 \ 1 .1 • 1 'l '.i " ·: regulação em rede. O direito em rede é flexível e evolutivo. Um con- JUnto indefinido de dados em busca de um equilíbrio pelo menos provisório. É a normatividade flexibilizada, própria de um direito ""moie, vago, no estado gasoso"57 . A uroência - ou Estado correndo atrás - deixa de ser uma cate- "' gana extraordinána para generalizar-se, com uma tendência de ali- mentar-se de s1 mesmo, como se de alguma forma uma das suas intervenções pedisse a seguinte. Ao não tratar do problema com a devida maturação e profundidade, não há resultados duráveis. As mtervenções de urgência parecem sempre chegar ao mesmo tempo demasiado cedo e demasiado tarde: demasiado cedo porque o trata- mento aplicado é sempre superficial; demasiado tarde porque, sem urna ínversão de lógíca, o mal não parou de se propagar58_ Os planos urgentes e milagrosos para "conter" a violência ur- bana são exemplos típicos disso: ao mesmo tempo demasiadamente cedo (tratamento superficial) e demasiadamente tarde (diante da gravidade Já assumida). Nesse cenáno, juízes são press10nados para decidirem "rápido" e as comissões de reforma, para criarem procedimentos maís "acele- rados"59, esquecendo-se de que o tempo do direito sempre será outro, por uma questão de garantia. A aceleração deve ocorrer, mas em outras esferas. Não podemos sacrificar a necessária maturação, refle- xão e tranquilidade do ato de julgar, tão unportante na esfera penal. Tampouco acelerar a ponto de atropelar os direitos e as garantias do acusado. Em última análise, o processo nasce para demorar (racio- nalmente, é claro), como garantia contra JUigamentos imediatos, precipitados e no calor da emoção. Dizer que o processo é dinâmico significa reconhecer seu mo- vimento. Logo, como todo movimento, está mscrito no tempo de 57. OST, Franç01s. O rempo do direito, p. 323. 58. Ibidem, p. 356. 59. Que não pode ser confundido com técnicas de sumanzação (honzontaJ e vertical) da cogmçâo. Sobre o tema veJa-se nossa obra Direito processual penal e sl/a confonmdade co11stiwcwnal. 52 f l f 1 1 1 1 1 ' L ! l !·_·._ ' ) ) i í [. [ I L maneira irreversível, sem possibilidade de voltar atrás'º O que Já foi feito não pode voltar a acontecer, até porque o tempo é in-eversível, ao menos por ora. Se o processo, como a vida, é movimento, o equi- líbrio necessário só pode ser dinâmico e, como taí, extremamente difícil e eivado de riscos. É o que Raux61 define como o "equilíbno de ciclista fundado sobre o movimento" O processo penal também é acelerado em resposta ao deseJO de uma reação imediata. Surgem os procedimentos sumários e até su- mariíssimos (como previsto na Lei n. 9.099/95); proliferam os casos de guilty plea nos Estados Unidos, de patteg,amento na Itália ou transação penal no Brasil, até porque as chamadas wnas de consen- so são ícones de eficiência (utilitarista) e celeridade (leiam-se: atro- pelo de direitos e garantias individuais). Retomando à situação do ciclista, o difícil é encontrar o equilí- brio, p01s, se é verdade que um processo que se aiTasta assemelha-se a uma negação da Justiça, não se deverá esquecer, mversamente, que o prazo razoável em que a just:1ça deve ser feita entende-se igualmen- te como recusa de um processo demasiado expedito'° O processo tem o seu tempo, pois deve dar oportumdade pai·a as partes mostrarem e usarem suas armas, deve ter tempo para oportumzar a dúvida, fo- mentar o debate e a prudência de quem julga. Nesse terreno, parece- nos evidente que a aceleração deve vir mediante inserção de tecno- logia na admimstração da Justiça e, Jamais, com a mera aceleração procedimental, atropelando direitos e garantias mdividums. Infelizmente, na atualidade, assistimos a um velho direuo ten- tando correr no ritmo da moderna urgência. Para tanto, em vez de modernizar-se com a tecnologia, prefere os planos milagrosos e o terror da legislação simbólica. A mflação leg1slat1va brasileira em matéria penal é exemplo típico desse fenômeno. Nesse complexo contexto, o direito é diretamente atmgido, na medida em que é chamado a (re)insütuir o elo social e garantir a 60. RAUX, Jean-François. "Prefücio: elog10 da filosofia para constrmr um mundo melhor". A soc1edade em busca de valores, p. 13. 61. Idem. 62. OST, François. O tempo do direito, p. 359. 53 segurança Jurídica. Multiplicam-se os direitos subjetivos e implemen~ tam-se ~ma séne de novos mstrumentos Jurídicos. O sistema penal e utiiizado como sedante por meio do simbólico da panpenaliza~ão,_ do utilitarismo processual e do endurecimento geral do sistema. E a tlu- são de resgatar um pouco da segurança perdida por me10 do direito penal, 0 eno de pretender obligar o futuro sobre a forma de ameaça. Não se edifica uma ordem social apenas com base na repressão. Acompanhando a síntese de Ost, o endurecimento da norma penal é reflexo da urgência, que descmda do passado e fracassa na pretensão de obngar o futuro. Os programas urgentes, COJ~tudo, per- mitem resultados rápidos, visíveis e m1diat1camente rentaveis, mas com certeza não se ínstltUJ nada durável em uma sociedade a partll', umcamente, da ameaça de repressão. Mas as condições para que se atue com a necessána reflexão e maturacão desaparecem, uma vez que os discursos da segurança e do urgent; (imediato) mvadiram o 1magmáno social. Quando O direito se põe a coner no ritmo da urgência, opera-se uma importante mudança de paradigma, em que "o transitóno ~o_mou- se O habitual, a urgência tomou-se permanente"" O transitono era antes visto como um elo entre d01s períodos de estabilidade norma- Uva um articulador entre duas sequências hístóncas. Hoje isso tudo mudou, a duração desapareceu, tornando inúteis os rearranjos. d_o direito transitório. Todo o direlto se pôs em movimento e o transito- no é O estado normal, com o direito em constante trânsito, impondo- se a urgência como tempo normal. Ao genernlizar a exceção, o SIS- tema entra emcolapso. Antes, a urgência era adm1t1da no dtreito com extrema reserva e era sempre situac10nal, revogando-se tão logo cessasse O estado de urgência. Hoje ela está em todo lugar e surge mdependentemente de qualquer cnse. Isso também se manifesta no processo legislativo. A urgência implica não só aceleração, mas também mversão, pois permite "ao unperiwn {a força) preceder aJi.msdict10 (o enun- ciado da regra), imunizando o facto consumado relativamente a um 63. Idem. 54 1 t 1 1 request10namento Jurídico ulterior"64 É o que ocone, v.g., com o chamado "contraditório diferido", em que primeiro se decide (poder), para depois submeter ao contraditório (ilusório) de onde deve(na) brotar o saber. Outro exemplo seria a banalização das medidas m limme litís, especialmente com a antecipação de tutela do CPC, e também das prisões cautelares no processo penal, em que a pnsão preventiva - típica medida de urgência - f01 generalizada, como um efeito sedan- te da opmião pública. A pnsão cautelar transformou-se em pena antecipada, com uma função de imediata retribmção/prevenção. A "urgência" também autonza(?) a admmistração a tomar medidas excepcionais, restrm- gindo direitos fundamentais, diante da ameaça à "ordem pública" .. vista como um perigo sempre urgente. Leva, igualmente, a simplificar os procedimentos, abreviar prazos e contornar as formas, gerando um gravíssimo problema, pois, no processo penal, a forma é garantia, enquanto limite ao poder pu- nitivo estatal. São inúmeros os mconvementes da tirama da urgência. As medidas de urgência deveriam limitar-se a um caráter "con- servatóno" ou "de preservação" até que regressasse à normalidade, quando então sena tomada a decisão de fundo. Contudo, isso hoJe foi abandonado e as medidas verdadeirmnente ''cauteJares" e uprov1- síonais" (ou situac10nais e temporánas) estão sendo substituídas por antec1patónas da tutela ( dando-se o que devena ser concedido amanhã. sob o manto da artificial reversão dos efeitos, como se o direito pu- desse avançar e retroagir com o tempo) com a natural defimtividade dos efeitos. Na esfera penal, considerando-se que estamos lidando com a liberdade e a digmdade de alguém, os efeitos dessas alqmmias Jurí- dicas em torno do tempo são devastadores. A urgência conduz a uma mversão do eixo lógico do processo, pois, agora, pnmerro prende-se para depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do pro- cesso (que somente podena deconer de uma sentença, após decorn- 64. Ibidem, p. 362. 55 1I ' ' do o tempo de reflexão que lhe é merente), que jamais poderá ser revertido, não só porque o tempo não volta, mas também porque não voltam a dignidade e a mtim1dade violentadas no cárcere. Ineqmvocamente, a urgência é um grave atentado contra a liber- dade mdiv1duai, levando a uma erosão da ordem constitucional e ao rompimento de uma regra básica: o processo nasceu para retardar, pai·a demorar (clentro do razoável, é claro), para que todos possam expressar seus pontos de vista e demonstrar suas versões e, princi- palmente, para que o calor do acontecimento e das paixões aiTefeça, permitindo uma rac10nal cognição. Em última análise, para que possamos rac10nalizar o acontecimento e aproximar o julgamento a um criténo mímmo de JUstíça. O ataque da urgência é duplo, pms, ao mesmo tempo em que impede a plenaJundicidade (e JUrisdic10nalidade), ela impede a rea- lização de qualquer reforma séria, de modo que, "não contente em destruir a ordem jurídica, a urgência impede a sua reconstrução"". Surge um novo66 risco: o risco endógeno ao sistema jurídico em decmTêncrn da aceleração e da (banalização) da urgência. Essa é uma nova msegurança Jurídica que deve ser combatida, pois perfeitamen- te contornável. Não há como abolir completamente a legislação de urgência, mas tmnpouco se pode admitir a generalização desmedida da técmca. Entendemos que a esse novo nsco deve-se opor uma (renovada) segurança Jurídica, enquanto mstrumento de proteção do mdivíduo. Trata-se de recorrer a uma clara defimção das regras do Jogo para evitar uso desmedido do poder, enquanto redutor do arbítrio, impon- do ao Estado o dever ele obediência. No processo penal, é o que convenc10namos charnar ele instrumenta/idade constztucional, ou seJa, o processo enquanto instrumento a serviço da máxima eficácia elos direitos e das garantias do débil a ele submetido. Afinal, o Estado é uma reserva ética e ele legalidade, Jamais podendo clescumpnr as regras elo Jogo democrático ele espaços ele poder. 65. OST, Franç01s. O tempo do direito, p. 366. 66. Ao lado do risco exógeno, inerente a nossa sociedade de risco. 56 Interessante é o exemplo trazido por Ost". de que o Tribunal de Justiça Europeu decidiu pela "obrigação de não impor aos indivíduos u1na 111udança normativa demasiado bruta]: por essa razão, a regra nova deve ao menos comportar medidas trans1tónas em benefício de destinatários que possam alegar uma expectativa legítima". Sena uma espécie de "direito a medidas t1·ans1tónas", Importante limite a mu- danças radicais de atitude é a necessidade de Justificação obJet1va e razoável (motivação). Por me10 ele proteções e contrapesos, a JUnspruclêncrn deve tentar assegurar ao direito um papei garantidor e emancipador. Assim, eleve ser repensado o conceito ele segurança Jurídica, enquanto freio à ditadura ( estatal) ela urgência. A noção ele "segurança" no processo (e no direito) eleve serre- pensada, partindo-se da premissa ele que ela está na forma elo mstru- mento Jurídico e que, no processo penal, adqmre contornos ele limita- ção ao poder punitivo estatal e emancipador elo débil submetido ao processo. O processo, enquanto ritual ele reconstrução elo fato histó- rico, é úmca maneira de obter uma versão aproximada do que ocorreu. Nunca será o fato, mas apenas uma aproximação ritualizada deste. É fundamental definu- as regras desse Jogo, mas sem esquecer que mais importante do que a definição está em (des)velar o conteú- do axiológico das regras. A serviço do que ou de quem elas estão? Voltamos sempre à pergunta: Um processo penal para quê(quem)? Nessa linha, evidencia-se o cenáno ele risco e aceleração que conduz a tirania da urgência no processo penal. Essa nova carga ideológica elo processo exige especial atenção diante da banalização da excepcionalidade. O contraste entre a dinâmica social e a proces- sual exige uma gradativa mudança a partir de uma séria reflexão, obviamente mcompatível com o epidérmico e simbólico tratamento ele urgência. O processo nasceu para retardar a decisão, na medida em que exige tempo para que o Jogo ou a guerra se desenvolvam segundo as 67. O tempo do direuo, p. 371. 57 regras estabelecidas pelo próprio espaço democrático" Logo,Jamaís alcançará a h1perace1eração, o nnediat1smo característico da virtua- lidade. Ademais, o JUIZ mterpõe-se no processo numa dimensão espa- cial, mas principalmente temporal, situando-se entre o passado-cnme e o futuro-pena, incumbmdo-se a ele ( e ao processo) a importante missão de romper com o bmômio ação-reação69 , O processo nasceu para dilatar o tempo da reação, nasceu para retardar. Contudo, alguma melhora na dinâmica não só é possível, como também necessária. Obviamente que não pela mera aceleração pro- cedimental (e consequente supressão de garantias fundamentais), mas sim por me10 da mserção de um pouco da ampla tecnologia à dispo- sição, especialmente na fase pré-processual. Também devemos con- siderar o referenciai "luz", a visibilidade. Nesse (des)velar, a luz é fundamental, ainda que mdireta, como ensina Paul Virillo. Tal ques- tão nos leva - também - a repensar a publicidade e a visibilidade dos atos. A transparência do processo, mas sem cair no bizarro espetácu- lo telev1s1vo. Esse é um ponto de dificílimo equilíbrio. No que tange à duração razoável do processo, entendemos que a aceleração deve produzir-se não a partir da visão utilitarista, da ilusão de uma Justiça imediata, destmadaà imediata satisfação dos deseJos de vingança. O processo deve durai· um prazo razoável para a necessária maturação e cognição, mas sem excessos, pois o grande preJudicado é o réu, aquele submetido ao ritual degradante e à angús- tia prolongada da situação de pendência. O processo deve ser mais célere para evitar o sofrimento desnecessário de quem a eíe está submetido. É uma mversão na ótica da aceleração: acelerar para abreviar o sofrimento do réu. Também chegou o momento de aprofundar o estudo de um novo direito: o direito de ser.1ulgado num processo sem dilações 111dev1das. 68. Democracia aqm é considerada cm uma dimensão substanctal, enquanto sistema político e cultural que valoriza, fortalece, o mdivíduo entre todo feixe de relações que ele mantém cum os demais e com o Estado. 69. MESSUTI, Ana. O tempo como pena, p. 103. 58 Trata-se de decorrência natural de uma série ele outros direitos fun- damentais, como o respeito à dignidade da pessoa humana e à própria garantia da Jurisdição. Na medida em que a Jurisdição é um poder, mas também um direito, pode-se falar em verdadeira mora Jlirisdi- ciona/ quando o Estado abusar do tempo necessário para prestar a tutela. Entendemos adequado falar-se em uma nova pena processual, decorrente desse atraso, na qual o tempo desempenha uma funcão punitiva no processo. É a demora excessiva que pune pelo sofnm~n- to decorrente da angústia prolongada, do desgaste ps1cológ1co (o processo como gerador de depressão exógena), do empobrecunen- to do réu, enfim, por toda estigmatização social e Jurídica gerada pelo simples fato de estar sendo processado. O processo é uma cerimônia degradante e, como tal, o caráter estigmatizante está diretamente relacionado com a duração desse ritual punitivo. Assumido o caráter punitivo do tempo, não resta outra cmsa ao Juiz que (além da elementar detração em caso de pnsão cautelar) compensar a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da pum- ção já foi efetivada pelo tempo. Para tanto, fo1111almente, poderá lançar mão da atenuante genérica do art. 66 do Código Penal. O próprio tempo do cárcere deve ser pensado a partir da distin- ção objetivo/subJetJvo, partmdo-se do clássico exemplo de Einstem 70 , a fim de explicar a relatividade: "quando um homem se senta ao lado de uma moça bomta, durante uma hora, tem a 1111pressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente durante um mmuto somente - e esse minuto lhe parecerá mais com- prido que uma hora. Isso é relatividade" O tempo na prisão" deve ser repensado, pois está mumificado pela 111st1tu1ção e gera grave defasagem enquanto tempo de involução. 70. EINSTEIN, Vida e pensamentos, p. 100. 7 l. Sobre o tema, consulte-se o trabalho de Giuscppe ~,foscom, "Ticmpo social y ticmpo de cárcel" ln: BEIRAS, lfiaki Rivera; DOBON, Juan (orgs.). Secuesrros msfltuc101wles y derechos humanos: la cárcel v et ma,11comto como tabermtos de obediencws fingidas. 59 Em suma, uma infinidade de novas questões que envolvem o bmômzo tempo/direito está posta e exige profunda reflexão. 1.5. Princípio da necessidade do processo penal em relação à pena A t!tulandade exclusiva por parte do Estado do poder de punir ( ou penar, se considerarmos a pena como essência do poder pumt,vo) surge no momento em que é suprimida a vingança pnvada e são unplantados os critérios de JUSt1ça. O Estado, como ente Jurídico e político, avoca para s1 o direJto (e o dever) de proteger a comunidade e também o próprio réu, como meio de cumprir sua função de pro- curar o bem comum, que se vena afetado pela transgressão da ordem Jurídico-penal, por causa de uma conduta delitiva72• À medida que o Estado se fortalece, consciente dos pengos que encerra a autoclefesa, assume o monopólio da justiça, ocorrendo não só a revisão da natureza contratual do processo, senão a proibição expressa para os particulares de tomar a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação de um bem1undicamente protegido, não cabe outra at1v1clade73 que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado - o processo penal - em que, mediante a atuação de um ter- ceiro imparcial, cuJa designação não corresponde à vontade das partes e resulta ela imposição da estrutura mstituc10nal, será apurada a existência do delito e sanc10nado o autor. O processo, como insti- tuição estatal, é a úmca estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena. Não há uma atividade propnamente subs- titutiva, pms a pena pública nunca pertenceu aos particulares para que houvesse a "substitujção". Por isso, é uma avocação para o Es- taclo do pocler de punir, afastando as formas de vingança pnvada. 72. ALONSO, Pedro Aragoneses. lnsllt11c1ones de derecho procesal penal, p. 7. 73. Salvo aquelas protegidas pelas causas de exclusão da ilicaude ou <la cul- pabilidade jundicamenre reconhecidas pelo direito penal. 60 Isso porque o direito penal é despido de coerção direta e, ao contrário do direito privado, não tem atuação nem realidade concre- ta fora do processo correspondente. No direito privaclo, as normas possuem uma eficácia direta, imediata, pois os particulares detêm o poder de praticar atos Jmidicos e negócios jurídicos, de modo que a incidência das normas de direi- to mateiial - se1an1 civis, comerciais etc. -é direta. As partes matenais, em sua vida diána, aplicam o direito pnvado sem qualquer interven- ção dos órgãos 1unsdic10nais, que, em regra, são chamados apenas pai·a soluc10nai· eventuais conflitos surgidos pelo mcumpnmento do acordado. Em resumo, não existe o monopólio dos tribunais na apli- cação do direito pnvado e "ní siquiera puede decirse que estatística- mente sean sus aplicadores más importantes"" No entanto, totalmente distinto é o tratamento do direito penal, pois, amda que os tipos penais tenham uma função de prevenção geral e também de proteção (não só de bens jurídicos, mas também do pm·tícular em relação aos atos abusivos do Estado), sua verdadei- ra essência está na pena e essa não pode prescindir do processo penal. Existe um monopólio da aplicação por parte dos órgãos JUrisdic,onms e isso representa um enorme avanço da humamdacle. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um ÍnJUSto culpável, mas também que exista previamente o devido processo penal. A pena não só é efeito Jurídico do delito75 , senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por me10 do processo. A pena depende da existência do delito e da existência efetiva e total do processo penal, posto que, se o processo termina antes de desenvolver-se compietamente ( arquivamento, suspensão condicional etc.) ou se não se desenvolve de forma válida (nulidade), não pode ser imposta uma pena. 74. AROCA, Juan Montero. Prmcipws dei pmceso penai - una exp/icación basada en la razón, p. 15. 75. Corno explica ORBANEJA, Emilio Górnez. Comemanos a ta ley de En1mcwm1enro Criminal, t. I, p. 27 e ss. 61 Existe uma íntima e 1mprescmdível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determmar o delito e impor uma pena. Assim, fica estabelecido o caráter mstrumental do processo penal com relação ao direito penal e à pena, p01s o processo penal é o cmninho necessário para a pena. É o que Gómez OrbaneJa76 denomma principio ele la necesidacl ele/ proceso penal, amparado no art. 12 da LECnm 77, pois ncio existe delito sem pena, nem pena senz delito e processo, nen1 processo penal sencio para cletenmnar o delito e atuar a pena. O pnncípio apontado pelo autor resulta da efetiva aplicação no campo penal do adágio latmo nulla poena et nu/la culpa s111e iuclicio, expressando o mono- pólio da Jurisdição penal por parte do Estado e também a ínstrumen- talidade do processopenal. São três78 os monopólios estatais: a) exclusividade do direito penal; b) exclusividade pelos tribunais; e c) exclus1v1dade processual. Como explicamos, atualmente, a pena é estatal (pública), no sentido de que o Estado subst1turn a vingança privada e, com isso, estabeleceu que a pena é uma reação do Estado contra a vontade mdividual. Estão proibidas a autotutela e a "justiça pelas próprias mãos", A pena deve estar prevista em um tipo penal e cumpre ao Estado definn- os tipos penais e suas consequentes penas, ficando o tema completamente fora da disposição dos particulares (vedada, assim, a "justiça negocrnda")'9 76. Comentanos a la Ley de E11;wcia1111ento Cnmmal, t. I, p. 27. 77. Norma processual penal espanhola - Ley de Enpt1c1mme11to Crumnal. 78. Seguindo AROCA, Juan Montem, Prmc1p1os del proceso penal, p. 16 e ss. 79. Apesar disso, cumpre destacar que o monopólio estatal de perseguir e pumr está sendo questionado a cada dia com mais força, com o 1mptemento de pnncíp10s, como oportumdade e conveniência da ação penal, aumento do número de deiitos de ação penal pnvada ou pública condicrnnada, e com as possibilidades 62 Rogéno Launa Tucci'º aponta para a ünpos1ção de uma autoii- m1tação do 111teresse pw11t1vo do Estado-adm1111stração, que somente poderá realizar o direito penal mediante a açcio .1udic1ána dos Juízes e tribunais. Entendemos que a exc/11s1v,dacle dos tribuncus em maténa penal deve ser analisada em conJunto com a exclus1vidade processual, pois, ao mesmo tempo em que o Estado prevê que só os tribunais podem deciarar o delito e impor a pena, tamb(jm prevê a imprescindibilida- de de que essa pena venha por meio do devido processo penal. Ou seja, cumpre aos juízes e tribunais declararem o clelito e determmar a pena proporcional aplicável, e essa operação deve necessariamente percoITer o leHo do processo penal válido com todas as garantias constitucionalmente estabelecidas para o acusado. Aos demais Poderes do Estado - Legíslal!vo e Executivo - está vedada essa al!v1dade. Não obstante, como destaca Montero Aroca" ,. absurdamente"[ ... ] se constata día a día que las leyes van perm1tien- do a los órganos adn11111stral!vos 11nponer sanciones pecumanas de tal magnitud, muchas veces, que 111 siqmera pueclen ser nnpuestas por los t1ibunales como penas" Da mesma forma. na execução penal, constata-se uma excessiva e pengosa admm1strativ1zação, em que faltas graves - apuradas en1 proceditnentos adn1mistratiVOS 1nqu1s1- tlvos - geran1 gravíss11nas consequências82 Por fim, destacamos que o processo penal constitui uma instân- cia formal de controle do cnme83, e, para a Cnmmologia, é uma reação formal ao delito e também pode ser considerado um 111stru- mento de seleçcio, pnnc1palmente nos sistemas Jurídicos que adotam de transação penal (plea bargammg). AJusttça negociada configura uma pengosa e eqmvocada alternativa ao processo penal. 80. TUCCI, Rogério Launa. Teona do direito proccs.rnal penal, p. 25. 81. P1wc111ros dei proceso penal, p. l 9. 82. Sobre o tema, consultem os diversos trabalhos constantes na obra Critica ã execução penal - dolltnna, 1unspmdê11cw e projetos lcg1slat1Fos, orgamzacta por Sa"Jo de Carvalho e publicada pela Editora Lumen Juns. 83. Conforme explicam Figue!fedo Dias e Cosla Andrade na obra Cnm11zoío- g10 - O homem delinquente e a sociedade cnm111ógena. p. 365 e ss. 63 'I L :J 1 L princíp10s como o da oportunidade, piea bargammg e outros meca- msmos de consenso. Ademais, da mesma forma que o direito penal é excludente (tanto quanto a sociedade), o processo e seu conteúdo aflitivo só agravam a exclusão, eis que se trata de inegável cerimônia degradante que possm seus "clientes preferenc1ms". 1.6. lnstrumentalidade constitucional do processo penal Estabelecido o monopólio da Justiça estatal e do processo, tra- taremos agora da instrumenta/idade. Desde logo, não devem existir pudores em afirmar que o processo é um instrumento (o problema é definir o conteúdo dessa mstrumentalidade, ou a serviço de que(m) ela está) e que essa é a razão básica de sua existência. Ademms, o direito penal carecena por completo de eficácia sem a pena, e a pena sem processo é inconcebível, um verdadeiro retrocesso, de modo que a relação e mteração entre direito e processo é patente. A s1rumelllalità84 do processo penal reside no fato de que a norma penal apresenta, quando comparada com outras normas Jurí- dicas, a caracteiistica de que o preceito tem por conteúdo um deter- mmado comportamento proibido ou imperativo e a sanção tem por destmatáno aquele poder do Estado, que é chamado a aplicar a pena. Não é possível a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele não pode se submeter voluntariamente à pena, senão por meio de um ato judicial (nulla poena sme wdicw ). Essa particularidade do processo penal demonstra que seu caráter instrumental é mais destacado que o do processo civil. É fundamental compreender que a instrumentalidade do proces- so não significa que ele seja um mstrumento a serviço de uma única finalidade, qual seja, á satisfação de uma pretensão (acusatória). Ao lado dela está a função constitucional do processo, como 111s- trume11to a serviço da realização do projeto democrático, como 84. Como explica LEONE, Giovanm. Elemenfl di diri110 e procedura pena/e, p. 189. 64 muito bem adverte Geraldo Prado85 • Nesse viés, insere-se a finalida- de const1tuc10nal-garantídora da máxima eficácia dos direitos e ga- rantias fundamentais, em especial da liberdade mdividual. Ademais, a Constituição constitm, logo, necessanamente, onenta a mstrumen- talidade do processo penal. O termo "instrumentalidade", que sempre remeteu a algumas lições parciais de Dínamarco86, deve ser rev1sJtado. Claro que nunca pactuamos com qualquer visão "eficientista" ou de que o processo pudesse ser usado como mstrumento político de segurança pública ou defesa social. Resulta imprescindível visualizar o processo desde seu ex tenor, para constatar que o sistema não tem valor em s1 mesmo, senão pelos objetivos que é chamado a cumprir (projeto democrát1co-constítucio- nal). Sem embargo, devemos ter cuidado na definição do alcance de suas metas, pms o processo penal não pode ser transformado cm instrumento de "segurança pública". Nesse contexto, por exemplo, insere-se a crítica ao uso abusivo das medidas cautelares pessoais, especialmente a pnsão preventiva para "garantia da ordem pública" Trata-se de buscar um fim alheio ao processo e, portanto, estranho à natureza cautelar da medida. Trataremos novamente desse tema quando analisarmos a presunção de mocência e as pnsões cautelares. Nesse sentido, importante é a análise de Morais da Rosa87 quan- do sublinha o perigo de - a transmitir-se mecanicamente para o processo penal as lições de Dínamm·co - pautar a mstrnmentalidade pela conjuntura social e política, demandando um "aspecto ético do processo, sua conotação deontológica" (expressão de Dinamarco). Explica Morais da Rosa que "esse chamado exige que o JlllZ tenha os predicados de um homem do seu tempo, imbuído em reduzir 85. Imprescmdível a leitura de Geraldo Prado, na excepc10nal obra Sistema acusatór10. 86. DINAMARCO, Cândido Rangel. A mslmmentalidade do processo. 87. ROSA, Alexandre Morais da. Direito mfracwnal: garanflsmo, psicanáli- se e movw1enro antiterror, p. 135 e ss. 65 as desigualdades sociais"". baseando-se nas modificações do Estado Liberal rumo ao Estado Social, mas vmculada a uma posição especial do Juiz no con~ext~ democráttco, dando-lhe poderes sobre-humanos, na linha de reahzaçao dos e~:opos processums, com forte influência cta superada.filosofia da c01:~c1enc1a, deslizando no lmagznâno e facilitando o surgimento de lw.:..es Justl- ceiros da Sociedade. E conclm o autor afirmando que a pretensão de Dinamarca de que O juiz deve aspirar aos_ anseio: sociais ou mesmo ao espínto das leis, tendo
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