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AIIJRY LOPES JR.
Doutor em Dire1ro Processual Penal pela Universidad Complutensc de Madrid.
Professor Titular de Direito Processual Penal da PUCRS. Professor no Programa
de Pôs-Graduação - Doutorado, Mestrado e Especialização - em Ciências Crímmais
da PUCRS. Coordenador do Curso de Especialização em Ciências Penais da
PUCRS. Vice-Prcsídente da Federasuí e da Associação Comerc1al de
Porto Alegre. Parecerista e Conferencista. Advogado Criminalista.
www.aurylopes.com.br
www.facebook.com/aurylopesJr
Fundamentos do
Processo Penal
Introdução Crítica
2015
19ei
Çl.SSaraiva
Capítulo 1
O fundamento da existência do processo
penal: instrumentalidade constitucional
1 .1. Constituindo o processo penal desde a Constituição.
A crise da teoria das fontes. A Constituição como
abertura do processo penal
A primeira questão a ser enfrentada por quem se dispõe a pensar
o processo penal contemporâneo é exatamente (re)discutir qual é o
fundamento da sua existência, por que existe e por que precisamos
dele. A pergunta poderia ser sintetizada no segumte questionamento:
um Processo penal, para quê( quem)?
Buscar a resposta a essa pergunta nos conduz à defimção da
lógica do sistema, que vai· orientar a mterpretação e a aplicação das
normas processuais penais. Noutra dimensão, significa definir quai
é o nosso paradigma de leitura do processo penal, buscar o ponto
fundante do discurso. Nossa opção é pela leitura const1tuc10nal e,
dessa perspectiva, visualizamos o processo penal como instrumento
de efetivação das garanllas constitucionais.
J. Goldschmidt', a seu tempo', quest10nou:
Por que supõe a imposição da pena a existência de um processo? Se
o ius puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder soberano sobre
l. Problemas1urídicos y políticos dei proceso penal, p. 7.
2. Logo, considerando que todo saber é datado, mteressa-nos mais a pergun-
ta do que a resposta dada pelo autor naquele momento.
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seus súditos, que acusa e também julga por meio de distintos órgãos,
pergunta-se: por que necessita que prove seu direito em um processo?
A resposta passa, necessariamente, por uma leitura constitucio-
nal do processo penal. Se, antigamente, o grande conflito era entre o
direito positivo e o direito natural, atualmente, com a recepção dos
direitos naturais pelas modernas constituições democráticas, o desa-
fio é outro: dar eficácia a esses direitos fundamentais.
Como aponta J. Goldschmidt3, os princípios de política proces-
sual de uma nação não são outra coISa senão o segmento da sua po-
lítica estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é um
termômetro dos elementos autoritários ou de1nocrátrcos da sua
Constituição. A uma Constituição autorítána vai corresponder um
processo penal autontáno, utilitansta. Contudo, a uma Constituição
democrática, como a nossa, necessanamente deve corresponder um
processo penal democrático, visto como instrnmento a serviço da
máxima eficácia do sistema de garantias const1tuc10nais do mdivíduo.
Somente a partir da consciência de que a Constituição deve
efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constitui a ação),
é que se pode compreender que o fundamento legitimante da exis-
tência do processo penal democrático se dá por meio da sua mstru-
mentalidade co11stituc1011al. Significa dizer que o processo penal
contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e
for devidamente co11st1tuido a part!f da Constituição.
Cremos que o constitucionalismo, exsurgente do Estado Demo-
crático de Dirello, pelo seu pe1fil compromissário, dingente e vin-
culativo, consfltui a ação do Estado'!
Com a precisão conceituai que lhe caractenza, Juarez Tavares5
ensma que nessa questão entre liberdade mdiv1dual e poder de mter-
venção do Estado não se pode esquecer de que a "garantia e o exer-
cício da liberdade mdividual não necessitam de qualquer legitimação,
em face de sua evidência»
3. Problemas Jllrídicos y políticos dei proceso penal, p. 67.
4. STRECK, Lemo Lmz. Jurisdição constitucional e hermenêut1ca, p. 19.
5. TAVARES. Juarez. Teona do m1usto penal, p. 162.
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Pai·ece, essa, uma afirmação simples, despida de maior dimensão.
Todo o oposto. A pengosa viragem discursiva que nos está sendo
(im)posta atualmente pelos movimentos repress1vistas e as ideologias
decorrentes faz com que, cada vez mais, a "liberdade" seJa "provisó-
ria" (até o CPP consagra a liberdade provisória ... ) e a pnsão cautelar
(ou mesmo definitiva) uma regra. Ou, amda, aprofundam-se a dis-
cussão e os questionamentos sobre a leg1t1m1dade da própna liberda-
de individual, principalmente no âmbito processual penal, subverten-
do a lógica do sistema jurídico-constitucional.
Essa pengosa inversão de smais exige um choque à luz da leg1-
timação a priori da liberdade individual, e a discussão deve voltar a
centrar-se no ponto correto, muito bem c!fcunscnto por Tavares6: "o
que necessita de leg1t1111ação é o poder de punir do Estado, e esta
leg1t1mação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o di-
reito de intervenção"
Destaque-se: o que necessita ser legitimado e Justificado é o
poder de pumr, é a intervenção estatal e não a liberdade mdiv1dual.
Mais, essa legitimação não podena resultar de uma autoatribuição do
Estado (uma autoleg1t1mação, que conduza a uma situação autop01é-
tíca, portanto). Mas essa já sena outra discussão em torno daprópna
legitimidade da pena, que extravasa os limites deste trabalho.
A liberdade individual, por decorrer necessanamente do direito
à vida e da própna dignidade da pessoa humana, está amplamente
consagrada no texto constituc10nal e tratados mternac10nais, sendo
mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito em
que vivemos.
Essa é uma premissa básica que norteia tocla a obra: questionar
a legitimidade do poder de mtervenção, por conceber a liberdade
como valor primevo do processo penal.
Nem mesmo o conceito de bem Jurídico pode contmuar sendo
tratado como se estivesse imune aos valores do Estado Democrático.
Como adverte Tavares 7, "a questão da crímmalização de condutas não
6. Idem.
7. TAVARES, Juarez. Teona do myusto penal, p. 200.
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pode ser confundida com as finalidades políticas de segurança públi-
ca, porque se msere como uma condição <lu Estado Democrático,
baseado no respeito dos direitos fundamentais e na proteção da pes-
soa humana" E segue o autor apontando que, em um Estado Demo-
crático,
o bem Jurfdico deve constituír um limite ao exercício da política de
segurança pública, reforçado pela atuação do Judiciário, corno órgão
fiscalizador e controlador e não como agência seletíva de agentes
merecedores de pena, em face da respectiva atuação do Legislativo ou
do Executivo8
Atualmente, existe uma megável crise da teoria das fontes, em
que uma lei ordinána acaba valendo mais do que a própria Consti-
tuição, não sendo raro aqueles que negam a Constituição como fonte,
recusando sua eficácia imediata e executividade. Essa recusa é que
deve ser combatida.
A lwa é pela superação do preconceuo em relação à eficácia da
Constituição 110 processo penal. Nlais do que isso, é 11ecessário fazer-
se um controle ;udicíal da conve11cíonalidade das leis penms e pro-
cessuais penms, na medida em que a Conve11ção Americana de Di-
reuos Humanos (CADH) goza de caráter supra/ega/, ou seja, está
abaixo ela Constztuzção, mas acima das leis ordinárias ( como o CP e
o CPP). Portanto, é uma dupla co11formídade que devem guardar as
leis ordinárias: com a Constituição e com a CADH. Esse é o desafio.
O processo não pode mais ser visto como um simples mstru-
mento a serviço do poder punitivo ( direito penal), senão que desem-
penha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele
submetido. Há que se_ compreender que o respeito às garantias fim-
damentazs não se confimde com impunidade, e Jamais se defendeu
isso. O processo penal é um cammho necessário para chegar-se, le-
gnimamente, à pena. Daí por que somente se admitesua existência
quando ao longo desse cammho forem ngorosamente observadas as
reoras e oarantias constítucíonaln1ente asseguradas (as regras do
" " -devido processo legal).
8. Idem.
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Assim, existe uma necessária símultaueidade e coexistência
entre repressão ao delito e respeito às garantias constitucionais, sen-
do essa a difícil missão do processo penal, como se verá ao longo da
obra. No processo penal, a Constítmção e a CADH amda representam
uma abertura, um algo a ser buscado como ideal. É avanço em termos
de fortalecimento da dig111dade da pessoa humana, de abertura de-
mocrática rumo ao fortalecimento do indivíduo. Nesse sentido, nos-
sa preocupação com a mstrumentalidade constitucional e o caráter
"constituidor" da Carta e da CADH.
Geraldo Prado9 destaca a importância da Constitmção na pers-
pectiva de fixai· "com ciareza as regras do Jogo político e de c1rcula-
ção do poder e assmala, indelevelmente, o pacto que é a representação
da soberania popular, e portanto de cada um dos cidadãos" É a
Const1tmção um locus, prossegue Geraldo, de onde são vislumbrados
os direitos fundamentais, estabelecendo um "nexo mdissoíúvel entre
garantia dos direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia,
de sorte a ínflmr na formulação das linhas gerais da política cnmmal
de determinado Estado". Finalizando, lembra o autor que o espaço
comum democrático é construído pela afirmação do respeito à dig-
mdade humana e pela primazia do Direiro como 111str111nento das
políticas sociazs, inclusive a política cnmmal.
Partimos da mesma premissa de Prado'º: a Constituição da
República escolheu a estrutura democrática sobre a quaí há que exis-
tir e se desenvolver o processo penal, forçado que está - p01s mode-
io pré-constituição de 1988 - a adaptar-se e conformar-se a esse
paradigma.
Então, não basta qualquer processo, ou a mera legalidade, senão
que somente um processo penal que esteJa confom1e as regras cons-
titucionais do jogo (devido processo) na dimensão formal, mas, pnn-
c1palmente, substancial, resíste à filtragem constituc1onal ír11posta.
Feito isso, é 1mprescmdível marcar esse referencial de leitura:
o processo penal deve ser lido à luz da Constztwção e da CADH e
não ao contráno. Os dispositivos do Código de Processo Penal é que
9. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório, p. 16.
1 O. Ibidem, p. 44.
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devem ser obJeto de uma releitura mais acorde aos postulados demo-
crál!cos e garant1stas na nossa atual Carta, sem que os direitos fun-
damentais nela msculpidos seJam mterpretados de forma restritiva
para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal
de 1941.
1.2. Superando o maniqueísmo entre "interesse público"
versus "interesse individual". Inadequada invocação do
princípio da proporcionalidade
Argumento recorrente em maténa penal é o de que os direitos
mdiv1duais devem ceder (e, portanto, ser sacrificados) frente à "su-
premacia" do mteresse público. É uma manipulação discursiva que
faz um maniqueísmo grosseiro (senão mteresse1ro) para legitimar e
pretender Justificar o abuso de poder. Inicialmente, há que se com-
preender que tal rednc1onísmo (público -pnvado) está completamen-
te superado pela complexidade das relações sociais, que não compor-
tam mais essa dualidade cartesiana. Ademais, em matéria penal, todos
os interesses em Jogo - pnncipalmente os do réu - superam muito a
esfera do "pnvado", situando-se na dimensão de direitos e garantias
fundamentais (portanto, "público", se prefenrem). Na verdade, são
verdadeiros direitos de todos e de cada um de nós, em relação ao
( ab )uso de poder estatal.
Já em 1882, Manuel Alonso Martínez afirmava na Expos1c1ón
de Motivos de la Ley de Enjwcw,mento Crim111a/ que "sagrada es sin
duda la causa de la soc1edad, pero no lo son menos los derecl10s 111-
div1duales··
W. Goldschnudt' 1 explica que os direitos f1111da111entais, como
tais, dirigem-se contra o Estado, e pertencem, por consegumte, à
seção que trata do amparo do indivíduo contra o Estado. O processo
penal constitm um ramo do direito público, e, como tal, implica au-
tolimitação do Estado, uma soberania nuttgada.
Ademais, existe ainda o fundamento h1stónco-polítíco para sus-
tentar a dupla função do moderno processo penal, que foi bem abor-
l l. Ln cte11c1a de ta Jllsflcta - Diketogia, p. 201.
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dado por Bettiol 12. A proteção do mdivíduo também resulta de uma
imposição do Estado Democrático, pois a democracia trouxe a exi-
gência de que o homem tenha uma dimensão Jurídica que o Estado ou
a coletividade não pode sactificar ad nutum. O Estado de Direito,
mesmo em sua ongen1, já representava uma relevante superação das
estruturas do Estado de Polícia, que negava ao cidadão toda garantia
de liberdade, e isso surgiu na Europa depois de uma época de arbJtra-
nedades que antecedeu a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789.
A democracia, enquanto sistema político-cultural que valonza
o indivíduo frente ao Estado, manifesta-se em todas as esferas da
relação Estado-indivíduo. Inegavelmente, leva a uma democratização
do processo penal, refletindo essa valonzação do mdivíduo no forta-
lecimento do sujeito passivo do processo penal.
Pode-se afirmar, com toda ênfase, que o princípio que pnme1ro
impera no processo penal é o da proteção dos mocentes ( débil), ou
seJa, o processo penal como direito protetor dos mocentes (e todos a
ele submetidos o são, pois só perdem esse sratus após a sentença
condenatória transitar em Julgado), pois esse é o dever que emerge
da presunção constitucional de mocência prevista no art. 5°, LVII, da
Constituição.
O obJeto pnmordial da tutela no processo penal é a liberdade
processual do imputado, o respeito a sua digmdade como pessoa,
como efetivo SUJeJto no processo. O significado da democracia é a
revalonzação do homem,
en toda la complicada red de las instituciones procesales que solo
tienen wi stgn(ficado si se enttenden por su naturaleza y por su_fina-
lidad política y Jurídica de garantía de aquel supremo valor que no
pu.ede nunca vemr sacrificado por razones de utilidad: el hombreD
Não se pode esquecer, como explica Sarlet", de que a digmda-
de da pessoa humana é um
12. BETTIOL, Gmseppe. lnstll11c101zes de derecho penal y procesal penal. p.
54 e ss.
13. Ibidem, p. 174.
14. SARLET, Ingo Wolfgang. Digmdade da pessoo /1111110110 e direitosfi111da-
menra1s na Constawção Federal de 1988, 2. ed., p. 74.
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valor-gma não apenas dos direitos functamentaís, mas de toda a ordem
Jurídica (consutuc1onal e mfrnconst1tuc1onal), razão pela qual para mm-
tos se Jllstifica plenamente sua caractenzação como princípio constítu-
ciona1 de maior hierarquia axíológica-valorativa.
Inclusive, na íupótese de conflito entre pnncípios e direitos cons-
t1tuc10nalmente assegurados, destaca Sarlet", "o prmcípio da digmda-
de da pessoa humana acaba por Justificar (e até mesmo exigir) a impo-
sição de restnções a outros bens constitucionalmente protegidos". Isso
porque, como explica o autor, existe uma inegável pnmazia da digni-
dade da pessoa humana no âmbito da arq11itetura constit11cional.
Algumas lições, por sua relevância, merecem ser repetidas nes-
ta obra. É melhor pecar pela repetição do que correr o risco de per-
dê-la por uma leitura pontual que nossos leitores eventualmente façam.
Assim, nunca é excesso repetir uma lição magistral de Juarez Tava-
res 16, que nos ensina que nessa questão entre liberdade individual e
poder de intervenção do Estado não se pode esquecer que a "garantia
e o exercício da liberdade mdiv1dual não necessitam de qualquer
Jeg1t1mação, em face de sua evidência".
Destaque-se: o que necessita ser legitimado e justificado é o
poder de pumr, é a intervenção estatal e não a liberdade mdividual. A
liberdade mdiv1ctual, por decorrer necessariamente do direito à vida e
da própria digmctade da pessoa humana, está amplamente consagrada
no texto constitucional e tratados internacionais,sendo mesmo um
pressuposto para o Estado Democrático de Direito em que vivemos.
Não há que se pactuar mais com a manipulação discursiva feita
por alguns autores (e julgadores), que acabam por transfmmar a
"liberdade" em "provisória" (até o CPP consagra a liberdade provi-
sóna ... ), como se ela fosse precána, e, entretanto, a prisão cautelar
( ou mesmo defimt1va), uma regra.
Essa pengosa mversão de sinais exige um choque à luz da leg1-
t1mação a pnon da liberdade individual e a discussão deve voltar a
15. Ibíúem, p. 115.
16. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, 3. ed., p. 162.
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centrar-se no ponto correto, muito bem circunscrito porTavares 17 • "o
que necess!la de legitimação é o poder de pumr do Estado"
Essa é uma premissa básica que norteia toda a obra: quest10nar
a legitimidade do poder de mtervenção, por conceber a liberdade
como valor primevo do processo penal.
Entendemos que sociedade base do discurso de prevalência do
"público" - deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coe-
xistência, e não mais como um ente supenor de que dependem os
homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica,
na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, onde os
homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual
Constitmção e, antes dela, a Declaração Umversal dos Direitos Hu-
manos consagram certas limitações necessánas para a coexistência e
não toleram tal submissão do homem ao ente supenor, essa visão
antropomórfica que corresponde a um sistema penal autontáno 18
Na mesma linha, Bobbio 19 explica que, atualmente, impõe-se
urna postura mais liberal na relação Estado-indivíduo, de modo que
primeiro vem o mdivíduo e, depois, o Estado, que não é um fim em
si mesmo. O Estado só se justifica enquanto meio que tem como fim
a tutela do homem e dos seus direitos fundamentais, porque busca o
bem comum, que nada mms é do que o benefíc10 de todos e de cada
um dos indivíduos.
Por isso, Ferrajoli fala da ley dei más débil'º. No momento do
crime, a vítima é o íupossufic1ente e, por isso, recebe a tutela penal.
Contudo, no processo penal, opera-se uma importante modificação:
o mais fraco passa a ser o acusado, que frente ao poder de acusar do
Estado sofre a violência instituc1onalizada do processo e, postenor-
mente, da pena. O sujeito passivo do processo, aponta Guarnieri21 ,
17. Idem.
18. ZAFFARONI, Eugemo Raúl; PIERANGELI, José Henrique. A1anual de
direlfo penal brasileiro, p. 96.
19. No prólogo da obra de FERRAJOLI, Derecho y razón -Teoria dei garan-
tismo penal, p. 18.
20. FERRAJOLI, Lmg1. Derechos y garantías - La iey dei más débil.
21. Las partes en e/ proceso penal, p. 272.
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passa a ser o protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual gJram
todos os atos do processo.
Amilton B. de Carvalho22 , questionando para quê(m) serve a lei,
aponta que a "a lei é o limite ao poder desmesurado - leia-se, limite
à dominação. Então, a lei eticamente considerada - é proteção ao
débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a
dominação"
Nessa democratização do processo penal, o su3e1to passivo
deixa de ser visto como um mero ob3eto, passando a ocupar uma
posição de destaque enquanto parte,23 com verdadetros direitos e
deveres" É uma relevante mudança decon-ente da const1tuc1onaliza-
ção e democratização do processo penal.
Muito preocupante, por fim, é quando esse discurso da "preva-
lência do mteresse público" vem atrelado ao Princípro da Proporcro-
nalidade, fazendo uma viragem discursiva para aplicá-lo onde não
tem legítimo cabimento. Nesse tema, é lúcida a análise do Ministro
Eros Grau, cu3a citação, ainda que longa, deve ser ob3eto de reflexão.
Diz o ilustre Mimstro do Supremo Tribunal Federal no voto profen-
do no HC 95.009-4/SP (p. 44 e ss.):
Tenllo cntlcado aqm - e o fiz amda recentemente <ADPF 144) - a
"banalização dos 'pnncíptos' (entre aspas) da proporcwnalidade e da
razoabilidade, em especial do pnmeiro, conceb1do como um cprmcí-
p10· supenor, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que confe-
nna ao Poder Judic1áno a facuictade de 'corrigir' o leg1slador, inva-
dindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporc10nalida-
cte e razoabilidade nem ao menos são prmcíp10s - porque não repro-
duzem as suas características porém postulados normativos, regras
22. "Lei, para guelm)?" Escntos de direrto e processo penal em homenagem
ao Professor Paulo Cláudio Tovo, p. 56 e ss.
23. É complexa a problemática ctoutrmána acerca da existência de partes no
processo penal. Não sendo o momento oportuno para enfrenta-la, limitamo-nos a
esclarecer que quando falamos em partes estamos aludindo a um processo penal de
partes, que trata o suJe1to passivo não mais corno um mero objeto.
24. Ou cargas. expectativas e perspecuvas, se adotarmos a teona do processo
como situação Jurídica, cte James Goldschm1dt.
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de mterpretação/aplicação do direito". No caso de que ora cogitamos
esse falso prmcípio esta na sendo vertrdo na máx1111a segundo a quol
"não há direlfos absolutos." E, tal como tem sido em nosso tempo
pronunciada, dessa máxzma se faz gazua apta a arrombar toda e
qualquer garantw const1tuc1011al. Deveras, a cada direrto que se aie-
ga o Jmz. responderá que esse direito existe, s1111, mas não é absoluto,
porquanto não se aplica ao caso. E assim se dâ o esvaziamento do
quanto construímos ao lollgo dos séculos para faze,; de súditos, cida-
dãos. Diante do mquisiclor não tenios qualquer direito. Ou melhcn;
temos sim, vános, mas como nenhum deles e absoluto, nenhum é re-
conhecível na oporturndade em que deviria acudir-nos.
Primeiro essa gazua, em segmda despencando sobre todos, a pretexto
da "necessária atividade persecutória do Estado", a "supremacia do
mteresse público sobre o mdiv1dual" Essa premissa que se pretende
prevaleça no Direito Admm1strativo - não obstante mesmo lá sujeita
a debate, aqm impertinente não tem lugar em matenal penal e pro~
cessua/ penal. Esta Corte ensma (HC 80.263. relator Mimstro Ilmar
Galvão) que a mterpretação sistemática da Constituição "leva à con-
clusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à iiberdade
em detrimento do direito de acusar". Essa é a proporcwna!idade que
se rmpõe em sede processual penal: em caso de co1{flito de prece/los,
prevalece o gara1111dor da liberdade sobre o que fundamenta sua su-
pressdo. A nos afastarmos disso retornaremos à /Jarbáne (grifos
nossos).
Em suma: nesse contexto político-processual, estão superadas
as considerações do estilo "a supremacia do rnteresse público sobre
o pnvado" As regras do devido processo penal são verdadeiras ga-
rantias democráticas (e, obviamente, constituc1onms), muito além
dessa dimensão reducionista de público/pnvacto. Trata-se de direitos
fundamentais - obviamente de natureza pública, se quisermos utilizar
essa categona - limitadores da mtervenção estatal.
1.3. A influência dos movimentos repressivistas. Tolerância
zero para quê(quem)? Desvelando a hipocrisia do discurso
O sistema penal (material e processual) não pode ser ob3eto de
uma aná1ise estntan1ente Jurídica, sob pena de ser n11n1malista, mgê-
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! 1
nua até. O processo penal não está em um compartimento estanque,
imune aos movimentos sociais, políticos e económicos. A violência
é um fato complexo25, que decorre de fatores b10psicossocims. Logo,
o processo, enquanto instrumento, exige uma abordagem interdisci-
plinar, a partlr do caleidoscóp10, isto é, devemos visualizá-lo desde
vános pontos e recorrendo a diferentes campos do saber26
Daí a importância de enfrentar o tema, abordando, entre outros,
a ideologia repressivista da "lei e ordem", na medida em que é ma-
nifestação do neoliberalismo para, após, desconstruir o utilitarismo
processual por me10 do paradigma constitucional.
A visão de ordem nos conduz, explica Bauman27 , a de pureza,
a de estarem as coisas nos lugares "justos" e "convenientes". É uma
situaçãoem que cada coisa se acha em seu ;usto lugar e em nenhum
outro. O oposto da pureza (o imtmdo, o SUJO) e da ordem são as coi-
sas fora do seu devido lugar. Em geral, não são as características
intrínsecas das coisas que as transformam em "sujas", senão o estar
fora do lugar, da ordem. Exemplifica o autor com um par de sapatos,
magnificamente lustrados e brilhantes, que se tornam sujos quando
colocados na mesa de refeições. Ou, amda, uma omeiete, uma obra
de ar1e culinária que dá água na boca quando no prato do jallta,;
tonza-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro28 ,
O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, pnncipalmente em
um país como o nosso, em que vira notícia no Jornal Nacional o fato de
25. Explica Ruth Chinó Gauer ("Alguns aspectos da fenomenologia da vio-
lência". A Fenomenologw da vwlêncw, p. 13 e ss.) que a violêncía é 11111 elemento
esrrwural, 1mrinseco ao fa10 soc,a/ e não o resto anacrômco de uma ordem bárba-
ra em vws de extmçüo. Esf·e fenômeno aparece em todas as sociedades; faz pane,
portanto, de qualquer civilizaçlío 011 grupo humano: basta atellfar para a qllestlío
da vio/êncw no mundo atuai, ta~Úo nas grandes cu/ades como também nos recantos
mais isolados.
26. Só o Junsta consciente da insuficiência do monólogo Jurídico está apto a
compreender a complexidade característica da sociedade contemporânea. Para tan-
to, deve ter humildade científica suficiente para socon-er-se de leituras de sociologia,
antropologia, h1stóna, ps1qurntna etc., sem falar no lastro filosófico. Não há espaço
para o profisswnal alienado, porque ele ali é nada.
27. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 14.
28. Idem.
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um grupo de moradores da comunidade ter "descido o morro" e "inva-
dido" um shoppmg cemer no Rio de Janeiro. Ou seJa, enquanto esti-
verem no seu devido lugar, as coisas esLão em ordem. Mas, ao desce-
rem o mmTo e invadirem o espaço da burguesia, está posta a (noJenta)
omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organiza-
ção do ambiente.
Explica Bauman que "ordem"
significa um meto regular e estável para os nossos atos; um mundo em
que as probabilidades dos acontecimentos não estepm distribuídas ao
acaso, mas airumadas numa hierarquia estnta - de modo que certos
acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis,
alguns vtrtuaimente impossíve1s29
Ora, tal c1mpério da ordem" só pode ser fruto do autismo Jurí-
dico e de uma boa dose de má-fé. A falácia do discurso salta aos olhos,
pois tal ordem, numa sociedade de risco como a nossa e com um
altíssimo nível de complexidade, só pode decorrer do completo afas-
tamento do direito da realidade e/ou da imensa má-fé por parte de
quem o prega. Não sem razão foi o argumento largamente utilizado
por programas políticos totalitários, como o nazismo (pureza de raça)
ou mesmo o comnnismo (pureza de classe).
Mas "cada esquema de pureza gera sua própna SUJeíra e cada
ordem gera seus próprios estranhos"'º. Isso se reflete mmto bem na
tolerância zero pm·a o outro e tolerância dez para nós e os nossos. E
o cnténo da pureza é a aptidão de participar do Jogo consumista. Os
deixados de fora são os consumidores falhas e, como tais, incapazes
de ser "indivíduos livres", p01s o senso de liberdade é defimdo a
partir do poder de escolha do consumidor.
Eis os impuros, os obJetos fora do lugar" O discurso ela lei e da
ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar
no jogo seJmn detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor
custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitênc,a,
29. Ibidem, p. 15.
30. Ibidem. p. 23.
31. Ibidem. p. 24.
41
pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de
consumidor, por meio de políticas públicas de inserção social.
Trata-se de uma consequência (penal) do afastamento do Estado
do setor social, onde um menos Estado-providência necessita de um
Estado (mais) penal para conter a deco1Tente margmalização social.
É o que Wacquant32 sintetiza em supressão do Estado econônúco,
e11fraquecimento do Estado Social, fortalec11ne1110 e glorificação do
Estado penal.
Nesse cenário, o Manhattan lnslltute ( organismo cnado para
aplicar os pnncípios da economia de mercado aos problemas sociais)
imcia sua cruzada contra o Estado-providência de Ronald Reagan
mvestmdo em Charles Murray ( definido por Wacquant33 como um
politólogo ocioso de reputação medíocre), para produz1r a nova bíblia
do projeto da nova direita amencana: Losing Ground: Amencan
Social Policy, 1950-1980. Na intensa agenda de divulgação desse
livro, milhares de dólai·es foram gastos em palestras, conferências,
entrevistas, mídia etc. destinados a demonstrar que a
excessiva generosidade das políticas de a3uda aos mais pobres sena
responsável pela escalada da pobreza nos Estados Umdos: ela recom-
pensa a mativ1ctade e rnctuz à degenerescência moral das classes po-
pulares, sobretudo essas uniões ilegítimas que são a causa última de
todos os maJes das sociedades modernas - entre os quais a víolêncrn
urbana34 ,
Num desses eventos, estava o promotor Rudolph Giuliam, que
acabara de perder as eleições para o democrata negro David Dinkms.
Iromcamente, empunhando a bandeira do zero tolerance, Giuliam
vence as eleições de 1993 e transforma Nova York na vitnna mundial
dessa política reprcssivista.
Ainda das mãos do Manhattan lnstitute, surge a broken windows
theory, ou 1nais mna invencíonice am.ericana vendida aos incautos
como panaceia no mercado da segurança pública mundial, como
32. \\!ACQUANT, Lo1c. As prisões da nuséna, p. 18.
33. Ibidem, p. 22.
34. Idem.
42
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1
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1
!
' 1.
definem Jacmto Coutmho e Edward Carvalho35 , formulada em 1982
por James Q. Wilson e George Kelling. Sustentam, em síntese, que
todo e qualquer desvio de comportainento deve ser ngorosamente
perseguido e pumdo, pois quem Joga uma pedra e quebra uma vidra-
ça hoje, amanhã volta para cometer crimes mais graves.
Obviamente que tal "vidência" jamais foi cotnprovada emp1n-
camente.
Das mãos de William Bratton (chefe de polícia de Giuliam e
ex-chefe de segurança do metrô de Nova York) surge uma reengenha-
na de "gestão por objetivo", visando à máxima eficiência a partir de
rígidos cnténos quantitativos de avaliação. Como define Wacquanl,
ele "transforma os comissanados em centros de lucro, o lucro em
questão sendo a redução estatística do cnme registrado. E ena todos
os cnténos de avaliação dos serviços em função dessa úmca medida.
Em suma, dinge a admmistração policial como um mdustnal o fana
com uma fi1111a CUJOS aciomslas JUigassem ter um mau desempenho"36
Obviamente que as detenções arbltránas e todos os tipos de auton-
tarismo policial são praticados contra os clientes preferenciais do
sistema, com a plena comvência e até estímulo por parte da admmis-
tração /inclumdo o caso Abner Lmma)37 •
Salta aos olhos que o modelo de tolerância zero é cruel, desu-
mano e totalmente aético. Os socialmente etiquetados sempre foram
os clientes preferenciais da polícia e, com o aval dos governantes,
nunca se matou, prendeu e torturou tantos negros, pobres e latmos.
A máquma estatal repressora é eficientíssuna quando se trata de
prender e arrebentar lupossuficientes. Nos países da Aménca Latma,
a situação é amda mais grave.
Há que se ter sempre presentes as lições de Cinno dos Santos38 ,
quando desvela que o
35. COUTINHO, Jacmio Nelson cte Miranda; CARVALHO, Edward Rocha
de. "Tcorrn das Janelas quebradas: e se a pedra vem de clcntro?" Revista de Estudos
Cnmmais, Porto Alegre, p. 23 e ss.
36. WACQUANT, Lok. As prisões da m1séna, p. 22 e ss.
37. Imigrante hattlano que foi vítima de todo tipo de tortura sexual após ser
detido ilegalmente e conduz1cto a um posto policial de .Manhattan.
38. SANTOS, Juarez Cinno dos. Direlfo Penal - Pane Geral. p. 7 e ss. Para
compreensão da complexidade que envolve essa temática, m1prescmdíveI a le!lura
43
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1 '.
direito pena! deve ser estudado do ponto de vista de seus obJefivos
declarados ou manifestos e de seus objeuvos reais ou latentes, nos
quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenô-
menos da v1da social nas sociedades contemporâneas.
Um rápido exemplo dos abusos do zero tolerance encontramos
em Wacquant39 Explica o autor que depois de uma série de abusos a
"Unidade de Luta contra os Cnmes de Rua" de Nova York passou a
ser ob3eto de mtensa crítica. Trata-se de uma
tropa de choque de 380 homens (quase todos brancos), que constitm a
ponta de lança da política de tolerância zero, é objeto de diversos 10-
quéritos adm1111strativos e d01s processos por parte dos procuradores
federais sob suspeita de proceder a prisões pelo aspecto ( racw/ profilillg)
e de zombar sistematicamente dos direitos constitucionais de seus alvos.
Segundo a Natwnal Urban League, em dois anos essa brigada, que
ronda em carros comuns e opera à pa1sana, deteve e revistou na rua
45.000 pessoas sob a mera suspeita baseada no vestuáno, aparência,
comportamento e - acima de qualquer outro indíc10 - a cor da pele.
Mais de 37.000 dessas detenções se revelaram gratmtas e as acusações
sobre metade das 8.000 restantes foram consíderadas nulas e inválidas
pelos tribunais, deixando um resíduo de apenas 4.000 detenções Justi-
ficadas: uma em onze. Uma ínvest1gação levada a cabo pe]o Jornal New
York Daily News sugere que perto de 80% dos jovens homens negros
e latmos da cidade foram detidos e revistados pelo menos uma vez
pelas forças da ordem. [ ... ] A tolerância zero apresenta portanto duas
fisionomias diametralmente opostas, segundo se é o alvo (negro) ou o
beneficuí.rio (branco), isto é, de acordo com o lado onde se encontra
essa ban-e1ra de casta que a ascensão do Estado penal amencano tem
como efeito - ou ful)-ção - restabelecer e radicalizarlº-
São dados estarrecedores que só reforçam nossa preocupação
por uma matriz democrática que oriente o processo penal e o direito
penal.
da obra A cnmmologw radical, do mesmo autor, recentemente reeditada pela Edi-
tora Lumen Juns.
39. WACQUANT, Lote. As pnsões da m1séna, p. 34--35.
40. Ib,dem, p. 37.
44
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1
1.
O movimento da lei e ordem (law and orcler) é a mais clara
manifestação penal do modelo neoliberal, dos movimentos de extre-
ma direita. É "velha megera Direita Penal", na expressão de Karam-11
Prega a supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo
e de seus direitos fundamentais. O Brasil Já foi contammado por esse
modelo repressiv1sta há décadas, quando a famigerada Lei dos Cnmes
Hediondos (Lei n. 8.072/90), seguida de outras na mesma linha,
marcou a entrada do sistema penal brasileiro na era da escundão, na
ídeologw do repressívísmo saneador. A ideia de que a repressão total
vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacn-
ficam-se direitos fundamentms em nome da incompetêncrn estatal
em resolver os problemas que realmente geram a v10lêncía.
Não é necessário maior esforço para ver que exemplo claro do
fracasso nos dá o próprio modelo brasileiro. Basta questionar: com
o advento da Lei dos Crimes Hediondos (e posteriores), houve adi-
minmção da prática dos delitos ali enumerados (latrocímo, extorsão
mediante sequestro, estupro, tráfico de entorpecentes etc.)? A políti-
ca de aumentar penas e endurecer o regime de cumpnmento diminuw
as taxas de cnrrunalidade urbana? Obviamente que não. A função de
prevenção geral desempenhada pela norma penal é mímma ou ine-
xistente. Tanto é assim que a cada dia ocorrem mais dehtos de latro-
41. KARAM, Mana Lúcia. "A esquerda punitiva: Entrevista com Mana Lúcia
Karam", p. 11 e ss. Outro movimento punitivo mmto bem analisado pela autor_a C a
"esquerda punitiva" Segundo Karam, taí movimento rnic10u-se com a fantasia de
querer usar o sistema penal contra as classes dommantes. Com a perda do 1:eferencial
socialista, a esquerda ficou sem perspectiva de futuro. Não há mais socialismo, nem
revoluções, fazendo com que a esquerda se tornasse "eleJtoretra" Isso significa
aJUStaro discurso h "opmião pública" ou, melhor, "opmião publicada", perfilando-se
ao lado do discurso pumuvo do lmv and arder no "combate à vwlência". Em outras
palavras, a esquerda pumttva passou a defender a max1ma mtervenç~o penal, con-o~
borando às ideias dos movimentos de extrema direita da lei e da ordem. Assumm o
discurso da repressão ao cnme orgamzado, com o consequente utilitansmo proces-
sual (supressão de garantias processuais) e banalização do direito penal (maxmuza-
ção), sem perceber que tal endurecimento comamma todo o sistema penal e culmi-
na por atingir os própnos excluídos, que são "clientes preferencrn1s" do sistema.
Basta recordar que 90% dos réus procuram a defensona pública, porque não têm
condições de pagar um advogado. Isso reflete, sem dúvida, uma profunda cnse de
paradigmas.
45
cínio, extorsão mediante sequestro (agora na sua versão "relâmpago")
e o tráfico de entorpecentes cresce de forma alarmante, apenas para
dar alguns poucos exemplos.
Como aponta Vera Batista·12, nos Estados Umdos, o marketing
de que a redução da crimmaiídade urbana em Nova York foi conse-
quência da política de tolerância zero é severamente cnticada. É pura
propaganda enganosa. Não é prendendo e mandando para a pnsão
mendigos, p1chadores e quebradores de vidraças que a macrocnmi-
nalidade vm ser contida. As taxas de cnmmalidade realmente caíram
em Nova Yorlc, mas também decresceram em todo país, porque não
é fruto da mágica política nova-10rquma, mas sim de um complexo
avanço social e econômico daquele país. É fato notório que os Esta-
dos Umdos têm vivido nas últimas décadas uma eufórica evolução
econômica, com aumento da qualidade de vida e substancial decrés-
cuno dos índices de desemprego ( em que pese isso estar mudando
novamente). Nisso está a resposta para a dirn111mção da criminalida-
de: crescimento econômico, sucesso no combate ao desemprego e
política educacional eficiente.
É sempre importante destacar que a cnrnmalidade é fenômeno
complexo, que decorre ele um feixe de eíementos (fatores
biopsicossocims), em que o sistema penal desempenha um papel
bastante secundário na sua prevenção. Aden1ats, na expressão de
Bitencourt'i3. a "falência da pena de pnsão" é megável. Não serve
como elemento de prevenção, não reeduca e tampouco ressocializa.
Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que
serve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da
cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou.
Dessarte, o direito penal deve ser mínimo e a pena de prisão reserva-
da para os cnmes realmente graves44 . O que deve ser máximo é o
Estado Social (algo que nunca tivemos).
42. BATISTA. Vera Malagutl de Souza. ''Intolerância dez. ou a propaganda é
a alma do negócm". Discursos sedic10sos.
43. VcJa-sc a obra de BITENCOURT, Cesar Roberto. Falêncra da pena de
pnsão.
44. Por ora. parece-nos que o abolic10msmo é utópico, pnnc1palmcnte nos
pobres países da Aménca Latma.
46
Corno Zaffaroni"', entendemos que todo discursus re está em
crise. A pena de prisão não ressocializa, não reeduca, não remserc
socialmente. Do discurso "re" somente se efetivam a reincidência e
a reJeição social. É um discurso ao mesmo tempo real e falso. Éfalso
o conteúdo, mas o discurso é real, ele ex,ste e produz e.fel/os (legiti-
mantes do poder de pumr).
Só por acidente a pena ressociaiiza, porque, como define Gar-
cía-Pablos de Molina'16,
la pena estigmatiza, no rehabilita. 'No limpw, mancha. z Cómo pu.ede
apelarse a su función resocializadora cua,u/o consta empiricamente
todo lo contra no? z Cómo se explica e! impacto rehabilitador dei
castrgo y la reinserción socwl dei penadu s1, en la estmzación sacra/,
suele ser más el mero hec/10 de haber cump/;do la pena que la propw
com1s1ón del delito, lo que implica un grave deménto a los ajas de los
concmdadanos.
O law anel arderé pura propaganda enganosa, que nos fará
mergulhar numa situação ainda mais caótica. É mais fácil seguir no
cammho do direito penal simbólico, com leis absurdas, penas des-
proporc10nadas e presídios superlotados, do que realmente combater
a cnmmalidacte. Legislar é fácil e a diarreia legislativa brasiieira é
prova mequívoca disso.
O movimento de lei e ordem significa urna tnste opção pela
gestão penal da pobreza.
Na síntese de Zaffaroni47, o aumento de penas abstratas ofere-
cidas pela /11pocrisía dos polít1cos, que não sabem o que propo1; 11ão
têm espaço para propo1; não sabem ou não querem modificar a
realidade. Como 11ão têm espaço para modificar a realídade, fazem
o que é 11w1s barato: leis pe11aís1
Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausên-
cia de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao
45. ZAFFARONI, Eugemo Raúl. "Desafios do direito penal na era da globa-
lização". RevISta Consulex, p. 27 e ss.
46. Cnmmo!ogia, p. 288.
47. ZAFFARONI, Eugen10 Raú1. "Desafios do direito penal na era da globa-
lização''., p. 27 e ss.
47
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que tudo indica, o futuro será pior, p01s os menmos de rua que proli-
feram em qualquer cidade brasileira ingressam em massa nas faculda-
des do crime, chamadas FASE (antigas Febem). A pós-graduação é
quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos su-
perlotados presídios brasileiros, verclacle1ros mestrados profissionali-
zantes cio cnme.
A situação atualmente se vê agravada pela manipulação discur-
siva em torno da soc10logrn do risco, revitalizando a (falsa) crença ele
que o direito penal pode restabelecer a (ilusão de) segurança.
Na correta defimção de Carvalho",
a pretensão e a soberba gerada peía crença românuca de que o direito
penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impedem o
angustiante e doloroso. porém altamente saudável, processo de reco-
nhecimemo dos limites.
Dessarte, quanto maior for o 11arc1s1smo penal, ma10r deve ser
nossa preocupação com o instrumento-processo. Se o direito penai
falha em virtude da panpenalização, cumpre ao processo penai o
papel deji/rro, evitando o (ab)uso do poder de perseguir e penar. O
processo passa a ser o fre10 ao desmedido uso do poder. É a última
instância de garantia frente à v10lação dos Pnncípíos da Intervenção
Mímma e da Fragmentaneclacle49 cio direito penal.
48. CARVALHO, Sala de. "A Ferida Narcísica do Direito Penal (pnmeiras
observações sobre as ( <lis)funções do controle penal na sociedade contemporânea)"
A ema/idade do tempo: para além das aparências históricas, p. 207.
49. Como explica Cezar Bitencourt (lvlanual de direito penal, v. 1, p. 11-12),
o "prmcip10 da 1111ervenção mimmn, tambem conhecido como ultima rat10, onenta
e limita o poder mcnmrnador do Estado, preconizando que a cnmmalização de uma
conduta só se leglluna se consticu1r meio nccessáno para a proteção de determmado
bem Jurídico"., CUJOS outros me10s de controle social revelaram-se msufic1entes. A
fragmentanedade e decorrência da intervenção mimma e da reserva legal, signifi-
cando que o direito penal "não deve sancrnnar condutas lesivas dos bens Juridicos,
mas tão somente aquelas condutas mais graves e mais pengosas praticadas contra
bens mais relevantes". Sem embargo, na atualidade, o discurso fácil do repressiv1s-
mo saneador fez com que o direito penal simbólico - de máxuna intervenção - se-
pultasse tais princíp10s, reforçando a necessidade de termos um processo penal
ainda mrus preocupado em resgatar a eficiicrn do sistema de garantias do mdivíduo.
48
1.4. Direito e dromologia: quando o processo penal se põe a
correr, atropelando as garantias
Vivemos numa sociedade acelerada. A dinâmica contemporânea
é impressionante e - como o nsco50 - também está regendo toda
nossa vida. Não só nosso emprego é temporário, pms se acabaram os
empregos vitalícios, como também cada vez é mais comum os em-
pregos em Jornada parcial. Da mesma forma nossas "aceleradas"
relações afetivas, com a consagração do ficar e do no fwure.
Que dizer então da velocidade da informação? Agora passada
em tempo real, via internet, sepultando o espaço temporal entre o fato
e a notícia. O fato, ocomdo no outro lado do mundo, pode ser pre-
senciado vütualmente em tempo real. A aceleração cio tempo nos leva
próximo ao mstantâneo, com profundas consequências na questão
tempo/velocidade. Também encurta ou mesmo elimina distâncias.
Por isso, Virilio" - teórico da Dromología (do grego clromos = velo-
c1clade)- afirma que "a velocidade é a alavanca do mundo moderno"
O mundo, aponta Virilio52, tornou-se o ela presença virtual, da
telepresença. Não só teleconrnmcação, mas também teleação ( traba-
lho e compra a distância) e até em telessensação (sentir e tocar a
distância). Essa h1permobilidade vlftual nos leva à mércia, além ele
contrair espaços e mtervalos temporais. Até mesmo a guerra nas
sociedades contemporâneas são confrontos breves, instantâneos e
virtuais, como se fossem wargames de computador, em que toda
carga de expectativa está lançada no presente.
Sob o enfoque econômico, o "cassmo planetáno" é formado
pelas bolsas de valores que funcionam 24 horas por dia, em tempo
real, com uma imensa velocidade ele circulação de capital especulati-
vo, gerando uma economia virtual, transnacional e 1mprev1síve1 - li-
berta cio presente e cio concreto. Isso fulmina com o elo sociai, p01s
50. Estamos nos refenndo ao nsco exógeno {soctoiogrn do nsco) e endógeno
(inerente ao processo, enquanto situação Jurídica dinâmica e 1mprev1sivel). Ambos
serão tratados na contmuação.
51. Sobre o tema: VIRILIO, Paul. A inércia polar.
52. A velocidade da libertação, p. 1 O.
49
aqueles que mvestem na economia real não têm como antecipar a ação,
desencorapndo mvestnnentos, destruindo empresas e empregos53
Nessa lógica de mercado, para consegmr lucros, é preciso ace-
lerar a circulação dos recursos, abreviando o tempo de cada operação.
Como consequência, a contratação de mão de obra também navega
nesse ritmo: ao menor smal de diminuição das encomendas, dispen-
sa-se a mão de obra. É a hiperaceleração levando o risco ao extremo.
mna
Ost" fala nos contratos de emprego temporários apontando para
heterogeneização do tempo social, manifestada em ritmos sempre mais
diversificados. Tempo conjugal e tempo parental dissociam-se55, ao
passo que a orgamzação fordista do trabalho dá lugar a uma flexibili-
dade das prestações, mas também a uma nova precariedade dos em-
pregos. A duração promete1ca dos Códigos e a promessa das mstitm-
ções dão então lugar a um tempo em migalhas que tem de ser recon-
qmstado a cada instante. Direito de visita negociado, estágio conse-
gmcto com dificuldade, emprego mtenno, tudo se passa como se rea-
parecesse o ant1quíssm10 imperativo imposto aos pobres: viver o dia
adia.
Sob outro enfoque, a aceieração obtida a partir do referencial
luz é impressionante e afeta diretamente nossa percepção de tempo.
Como aponta Virilio56, a tecnologia do final dos anos 1980 permitiu
que os satélites transmitissem a ,magem à velocidade da luz e isso
representou um avanço da mídia televisiva com relevante mudança
de paradigma.
53. OST, François. O tempo dn direlfo, p. 353.
54. Ibidem, p. 377.
55. No que se refere ao casamento, Ost {ob. cit., p. 390) aponta para um tem-
po c01uugal mais permanente, que sobrevive ao tempo do casamento. O casal pa-
rental sobrevive ao casal conjugal na medida em que - apesar de o elo conjugal ter
deixado de existtr- a filiação simbólica em relação à cnança permanece. A respon-
sabilidade educativa dos d01s cônjuges sobrevive ao tempo do casamento, sendo
mcondícmna1 e permanente. É possível divorciar-se do cônjuge, mas não dos filhos.
56. A velocidade da libertaçiio, p. 26.
50
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A imagem passa a ter visibilidade mstantânea com o novo refe-
rencial luz. O fascínio da 1111agen1 conduz a que "o que não é visível
e não tem imagem não é televisável, portanto,não existe m1diatica-
mente"
O choque emocional provocado pelas Imagens da TV - sobre-
tudo as de aflição, de sofnmento e mo1te - não tem comparação com
o sentimento que qualquer outro meio possa provocar. Suplanta assim
a fotografia e os relatos, a ponto de que, quando não há imagens,
ena-se. A "reconstituição" das Imagens não captadas passa a ser
fundamental para vender a emoção não ,apreendida no seu devido
tempo. Exemplos típicos são os programas policiais sensacionalistas
que proliferam nas televisões brasileiras, fazendo, mclus1ve, recons-
titmções ainda mais dramáticas dos crimes ocon-idos para "captura
psíqmca" dos telespectadores.
Mas a velocidade da notícza e a própria dinâmica de uma socie-
dade espantosamente acelerada são completamente diferentes da
velocidade do processo, ou seja, existe um tempo do direito que está
completamente desvmculado do tempo da sociedade. E o dirello
pmais será capaz de dar soluções à velocidade da luz.
Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada
com a velocidade da virtualidade não quer esperar pelo processo, daí
a paixão pelas pnsões cautelares e a visibilidade de uma imediata
pumção. Assim querem o mercado ( que não pode esperar, pois tem-
po é dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, pms está acostu-
mada ao instantâneo).
Isso, ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir,
expandindo o presente. Desse presenteísmo/imediatismo brota o
Estado de Urgêncw, uma consequência natural da mcerteza episte-
mológica, da mdetermmação democrática, do desmoronamento do
Estado sociai e da con-elativa subida da sociedade de risco, da ace-
leração e do tempo efêmero da moda. A urgência surge como forma
de correr atrás do tempo perdido.
Como explica Ost, isso significa que passamos dos "relógios ãs
nuvens", no sentido de que não estamos mais vivendo um modelo
mecânico (relóg10 ), linear e previsível de uma legislação piramidal,
senão o modelo das "nuvens", mterativo, recursivo e mcerto de uma
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regulação em rede. O direito em rede é flexível e evolutivo. Um con-
JUnto indefinido de dados em busca de um equilíbrio pelo menos
provisório. É a normatividade flexibilizada, própria de um direito
""moie, vago, no estado gasoso"57 .
A uroência - ou Estado correndo atrás - deixa de ser uma cate-
"' gana extraordinána para generalizar-se, com uma tendência de ali-
mentar-se de s1 mesmo, como se de alguma forma uma das suas
intervenções pedisse a seguinte. Ao não tratar do problema com a
devida maturação e profundidade, não há resultados duráveis.
As mtervenções de urgência parecem sempre chegar ao mesmo tempo
demasiado cedo e demasiado tarde: demasiado cedo porque o trata-
mento aplicado é sempre superficial; demasiado tarde porque, sem
urna ínversão de lógíca, o mal não parou de se propagar58_
Os planos urgentes e milagrosos para "conter" a violência ur-
bana são exemplos típicos disso: ao mesmo tempo demasiadamente
cedo (tratamento superficial) e demasiadamente tarde (diante da
gravidade Já assumida).
Nesse cenáno, juízes são press10nados para decidirem "rápido"
e as comissões de reforma, para criarem procedimentos maís "acele-
rados"59, esquecendo-se de que o tempo do direito sempre será outro,
por uma questão de garantia. A aceleração deve ocorrer, mas em
outras esferas. Não podemos sacrificar a necessária maturação, refle-
xão e tranquilidade do ato de julgar, tão unportante na esfera penal.
Tampouco acelerar a ponto de atropelar os direitos e as garantias do
acusado. Em última análise, o processo nasce para demorar (racio-
nalmente, é claro), como garantia contra JUigamentos imediatos,
precipitados e no calor da emoção.
Dizer que o processo é dinâmico significa reconhecer seu mo-
vimento. Logo, como todo movimento, está mscrito no tempo de
57. OST, Franç01s. O rempo do direito, p. 323.
58. Ibidem, p. 356.
59. Que não pode ser confundido com técnicas de sumanzação (honzontaJ e
vertical) da cogmçâo. Sobre o tema veJa-se nossa obra Direito processual penal e
sl/a confonmdade co11stiwcwnal.
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maneira irreversível, sem possibilidade de voltar atrás'º O que Já foi
feito não pode voltar a acontecer, até porque o tempo é in-eversível,
ao menos por ora. Se o processo, como a vida, é movimento, o equi-
líbrio necessário só pode ser dinâmico e, como taí, extremamente
difícil e eivado de riscos. É o que Raux61 define como o "equilíbno
de ciclista fundado sobre o movimento"
O processo penal também é acelerado em resposta ao deseJO de
uma reação imediata. Surgem os procedimentos sumários e até su-
mariíssimos (como previsto na Lei n. 9.099/95); proliferam os casos
de guilty plea nos Estados Unidos, de patteg,amento na Itália ou
transação penal no Brasil, até porque as chamadas wnas de consen-
so são ícones de eficiência (utilitarista) e celeridade (leiam-se: atro-
pelo de direitos e garantias individuais).
Retomando à situação do ciclista, o difícil é encontrar o equilí-
brio, p01s, se é verdade que um processo que se aiTasta assemelha-se
a uma negação da Justiça, não se deverá esquecer, mversamente, que
o prazo razoável em que a just:1ça deve ser feita entende-se igualmen-
te como recusa de um processo demasiado expedito'° O processo
tem o seu tempo, pois deve dar oportumdade pai·a as partes mostrarem
e usarem suas armas, deve ter tempo para oportumzar a dúvida, fo-
mentar o debate e a prudência de quem julga. Nesse terreno, parece-
nos evidente que a aceleração deve vir mediante inserção de tecno-
logia na admimstração da Justiça e, Jamais, com a mera aceleração
procedimental, atropelando direitos e garantias mdividums.
Infelizmente, na atualidade, assistimos a um velho direuo ten-
tando correr no ritmo da moderna urgência. Para tanto, em vez de
modernizar-se com a tecnologia, prefere os planos milagrosos e o
terror da legislação simbólica. A mflação leg1slat1va brasileira em
matéria penal é exemplo típico desse fenômeno.
Nesse complexo contexto, o direito é diretamente atmgido, na
medida em que é chamado a (re)insütuir o elo social e garantir a
60. RAUX, Jean-François. "Prefücio: elog10 da filosofia para constrmr um
mundo melhor". A soc1edade em busca de valores, p. 13.
61. Idem.
62. OST, François. O tempo do direito, p. 359.
53
segurança Jurídica. Multiplicam-se os direitos subjetivos e implemen~
tam-se ~ma séne de novos mstrumentos Jurídicos. O sistema penal e
utiiizado como sedante por meio do simbólico da panpenaliza~ão,_ do
utilitarismo processual e do endurecimento geral do sistema. E a tlu-
são de resgatar um pouco da segurança perdida por me10 do direito
penal, 0 eno de pretender obligar o futuro sobre a forma de ameaça.
Não se edifica uma ordem social apenas com base na repressão.
Acompanhando a síntese de Ost, o endurecimento da norma
penal é reflexo da urgência, que descmda do passado e fracassa na
pretensão de obngar o futuro. Os programas urgentes, COJ~tudo, per-
mitem resultados rápidos, visíveis e m1diat1camente rentaveis, mas
com certeza não se ínstltUJ nada durável em uma sociedade a partll',
umcamente, da ameaça de repressão.
Mas as condições para que se atue com a necessána reflexão e
maturacão desaparecem, uma vez que os discursos da segurança e do
urgent; (imediato) mvadiram o 1magmáno social.
Quando O direito se põe a coner no ritmo da urgência, opera-se
uma importante mudança de paradigma, em que "o transitóno ~o_mou-
se O habitual, a urgência tomou-se permanente"" O transitono era
antes visto como um elo entre d01s períodos de estabilidade norma-
Uva um articulador entre duas sequências hístóncas. Hoje isso tudo
mudou, a duração desapareceu, tornando inúteis os rearranjos. d_o
direito transitório. Todo o direlto se pôs em movimento e o transito-
no é O estado normal, com o direito em constante trânsito, impondo-
se a urgência como tempo normal. Ao genernlizar a exceção, o SIS-
tema entra emcolapso. Antes, a urgência era adm1t1da no dtreito com
extrema reserva e era sempre situac10nal, revogando-se tão logo
cessasse O estado de urgência. Hoje ela está em todo lugar e surge
mdependentemente de qualquer cnse.
Isso também se manifesta no processo legislativo.
A urgência implica não só aceleração, mas também mversão,
pois permite "ao unperiwn {a força) preceder aJi.msdict10 (o enun-
ciado da regra), imunizando o facto consumado relativamente a um
63. Idem.
54
1
t
1
1
request10namento Jurídico ulterior"64 É o que ocone, v.g., com o
chamado "contraditório diferido", em que primeiro se decide (poder),
para depois submeter ao contraditório (ilusório) de onde deve(na)
brotar o saber.
Outro exemplo seria a banalização das medidas m limme litís,
especialmente com a antecipação de tutela do CPC, e também das
prisões cautelares no processo penal, em que a pnsão preventiva -
típica medida de urgência - f01 generalizada, como um efeito sedan-
te da opmião pública.
A pnsão cautelar transformou-se em pena antecipada, com uma
função de imediata retribmção/prevenção. A "urgência" também
autonza(?) a admmistração a tomar medidas excepcionais, restrm-
gindo direitos fundamentais, diante da ameaça à "ordem pública" ..
vista como um perigo sempre urgente.
Leva, igualmente, a simplificar os procedimentos, abreviar
prazos e contornar as formas, gerando um gravíssimo problema, pois,
no processo penal, a forma é garantia, enquanto limite ao poder pu-
nitivo estatal. São inúmeros os mconvementes da tirama da urgência.
As medidas de urgência deveriam limitar-se a um caráter "con-
servatóno" ou "de preservação" até que regressasse à normalidade,
quando então sena tomada a decisão de fundo. Contudo, isso hoJe
foi abandonado e as medidas verdadeirmnente ''cauteJares" e uprov1-
síonais" (ou situac10nais e temporánas) estão sendo substituídas por
antec1patónas da tutela ( dando-se o que devena ser concedido amanhã.
sob o manto da artificial reversão dos efeitos, como se o direito pu-
desse avançar e retroagir com o tempo) com a natural defimtividade
dos efeitos.
Na esfera penal, considerando-se que estamos lidando com a
liberdade e a digmdade de alguém, os efeitos dessas alqmmias Jurí-
dicas em torno do tempo são devastadores. A urgência conduz a uma
mversão do eixo lógico do processo, pois, agora, pnmerro prende-se
para depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do pro-
cesso (que somente podena deconer de uma sentença, após decorn-
64. Ibidem, p. 362.
55
1I
' '
do o tempo de reflexão que lhe é merente), que jamais poderá ser
revertido, não só porque o tempo não volta, mas também porque não
voltam a dignidade e a mtim1dade violentadas no cárcere.
Ineqmvocamente, a urgência é um grave atentado contra a liber-
dade mdiv1duai, levando a uma erosão da ordem constitucional e ao
rompimento de uma regra básica: o processo nasceu para retardar,
pai·a demorar (clentro do razoável, é claro), para que todos possam
expressar seus pontos de vista e demonstrar suas versões e, princi-
palmente, para que o calor do acontecimento e das paixões aiTefeça,
permitindo uma rac10nal cognição. Em última análise, para que
possamos rac10nalizar o acontecimento e aproximar o julgamento a
um criténo mímmo de JUstíça.
O ataque da urgência é duplo, pms, ao mesmo tempo em que
impede a plenaJundicidade (e JUrisdic10nalidade), ela impede a rea-
lização de qualquer reforma séria, de modo que, "não contente em
destruir a ordem jurídica, a urgência impede a sua reconstrução"".
Surge um novo66 risco: o risco endógeno ao sistema jurídico em
decmTêncrn da aceleração e da (banalização) da urgência. Essa é uma
nova msegurança Jurídica que deve ser combatida, pois perfeitamen-
te contornável. Não há como abolir completamente a legislação de
urgência, mas tmnpouco se pode admitir a generalização desmedida
da técmca.
Entendemos que a esse novo nsco deve-se opor uma (renovada)
segurança Jurídica, enquanto mstrumento de proteção do mdivíduo.
Trata-se de recorrer a uma clara defimção das regras do Jogo para
evitar uso desmedido do poder, enquanto redutor do arbítrio, impon-
do ao Estado o dever ele obediência. No processo penal, é o que
convenc10namos charnar ele instrumenta/idade constztucional, ou seJa,
o processo enquanto instrumento a serviço da máxima eficácia elos
direitos e das garantias do débil a ele submetido. Afinal, o Estado é
uma reserva ética e ele legalidade, Jamais podendo clescumpnr as
regras elo Jogo democrático ele espaços ele poder.
65. OST, Franç01s. O tempo do direito, p. 366.
66. Ao lado do risco exógeno, inerente a nossa sociedade de risco.
56
Interessante é o exemplo trazido por Ost". de que o Tribunal de
Justiça Europeu decidiu pela "obrigação de não impor aos indivíduos
u1na 111udança normativa demasiado bruta]: por essa razão, a regra
nova deve ao menos comportar medidas trans1tónas em benefício de
destinatários que possam alegar uma expectativa legítima". Sena uma
espécie de "direito a medidas t1·ans1tónas", Importante limite a mu-
danças radicais de atitude é a necessidade de Justificação obJet1va e
razoável (motivação).
Por me10 ele proteções e contrapesos, a JUnspruclêncrn deve
tentar assegurar ao direito um papei garantidor e emancipador. Assim,
eleve ser repensado o conceito ele segurança Jurídica, enquanto freio
à ditadura ( estatal) ela urgência.
A noção ele "segurança" no processo (e no direito) eleve serre-
pensada, partindo-se da premissa ele que ela está na forma elo mstru-
mento Jurídico e que, no processo penal, adqmre contornos ele limita-
ção ao poder punitivo estatal e emancipador elo débil submetido ao
processo. O processo, enquanto ritual ele reconstrução elo fato histó-
rico, é úmca maneira de obter uma versão aproximada do que ocorreu.
Nunca será o fato, mas apenas uma aproximação ritualizada deste.
É fundamental definu- as regras desse Jogo, mas sem esquecer
que mais importante do que a definição está em (des)velar o conteú-
do axiológico das regras. A serviço do que ou de quem elas estão?
Voltamos sempre à pergunta: Um processo penal para quê(quem)?
Nessa linha, evidencia-se o cenáno ele risco e aceleração que
conduz a tirania da urgência no processo penal. Essa nova carga
ideológica elo processo exige especial atenção diante da banalização
da excepcionalidade. O contraste entre a dinâmica social e a proces-
sual exige uma gradativa mudança a partir de uma séria reflexão,
obviamente mcompatível com o epidérmico e simbólico tratamento
ele urgência.
O processo nasceu para retardar a decisão, na medida em que
exige tempo para que o Jogo ou a guerra se desenvolvam segundo as
67. O tempo do direuo, p. 371.
57
regras estabelecidas pelo próprio espaço democrático" Logo,Jamaís
alcançará a h1perace1eração, o nnediat1smo característico da virtua-
lidade.
Ademais, o JUIZ mterpõe-se no processo numa dimensão espa-
cial, mas principalmente temporal, situando-se entre o passado-cnme
e o futuro-pena, incumbmdo-se a ele ( e ao processo) a importante
missão de romper com o bmômio ação-reação69 , O processo nasceu
para dilatar o tempo da reação, nasceu para retardar.
Contudo, alguma melhora na dinâmica não só é possível, como
também necessária. Obviamente que não pela mera aceleração pro-
cedimental (e consequente supressão de garantias fundamentais), mas
sim por me10 da mserção de um pouco da ampla tecnologia à dispo-
sição, especialmente na fase pré-processual. Também devemos con-
siderar o referenciai "luz", a visibilidade. Nesse (des)velar, a luz é
fundamental, ainda que mdireta, como ensina Paul Virillo. Tal ques-
tão nos leva - também - a repensar a publicidade e a visibilidade dos
atos. A transparência do processo, mas sem cair no bizarro espetácu-
lo telev1s1vo. Esse é um ponto de dificílimo equilíbrio.
No que tange à duração razoável do processo, entendemos que
a aceleração deve produzir-se não a partir da visão utilitarista, da
ilusão de uma Justiça imediata, destmadaà imediata satisfação dos
deseJos de vingança. O processo deve durai· um prazo razoável para
a necessária maturação e cognição, mas sem excessos, pois o grande
preJudicado é o réu, aquele submetido ao ritual degradante e à angús-
tia prolongada da situação de pendência. O processo deve ser mais
célere para evitar o sofrimento desnecessário de quem a eíe está
submetido. É uma mversão na ótica da aceleração: acelerar para
abreviar o sofrimento do réu.
Também chegou o momento de aprofundar o estudo de um novo
direito: o direito de ser.1ulgado num processo sem dilações 111dev1das.
68. Democracia aqm é considerada cm uma dimensão substanctal, enquanto
sistema político e cultural que valoriza, fortalece, o mdivíduo entre todo feixe de
relações que ele mantém cum os demais e com o Estado.
69. MESSUTI, Ana. O tempo como pena, p. 103.
58
Trata-se de decorrência natural de uma série ele outros direitos fun-
damentais, como o respeito à dignidade da pessoa humana e à própria
garantia da Jurisdição. Na medida em que a Jurisdição é um poder,
mas também um direito, pode-se falar em verdadeira mora Jlirisdi-
ciona/ quando o Estado abusar do tempo necessário para prestar a
tutela.
Entendemos adequado falar-se em uma nova pena processual,
decorrente desse atraso, na qual o tempo desempenha uma funcão
punitiva no processo. É a demora excessiva que pune pelo sofnm~n-
to decorrente da angústia prolongada, do desgaste ps1cológ1co (o
processo como gerador de depressão exógena), do empobrecunen-
to do réu, enfim, por toda estigmatização social e Jurídica gerada pelo
simples fato de estar sendo processado.
O processo é uma cerimônia degradante e, como tal, o caráter
estigmatizante está diretamente relacionado com a duração desse
ritual punitivo.
Assumido o caráter punitivo do tempo, não resta outra cmsa ao
Juiz que (além da elementar detração em caso de pnsão cautelar)
compensar a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da pum-
ção já foi efetivada pelo tempo. Para tanto, fo1111almente, poderá
lançar mão da atenuante genérica do art. 66 do Código Penal.
O próprio tempo do cárcere deve ser pensado a partir da distin-
ção objetivo/subJetJvo, partmdo-se do clássico exemplo de Einstem 70 ,
a fim de explicar a relatividade: "quando um homem se senta ao lado
de uma moça bomta, durante uma hora, tem a 1111pressão de que
passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente
durante um mmuto somente - e esse minuto lhe parecerá mais com-
prido que uma hora. Isso é relatividade" O tempo na prisão" deve
ser repensado, pois está mumificado pela 111st1tu1ção e gera grave
defasagem enquanto tempo de involução.
70. EINSTEIN, Vida e pensamentos, p. 100.
7 l. Sobre o tema, consulte-se o trabalho de Giuscppe ~,foscom, "Ticmpo social
y ticmpo de cárcel" ln: BEIRAS, lfiaki Rivera; DOBON, Juan (orgs.). Secuesrros
msfltuc101wles y derechos humanos: la cárcel v et ma,11comto como tabermtos de
obediencws fingidas.
59
Em suma, uma infinidade de novas questões que envolvem o
bmômzo tempo/direito está posta e exige profunda reflexão.
1.5. Princípio da necessidade do processo penal em relação à
pena
A t!tulandade exclusiva por parte do Estado do poder de punir
( ou penar, se considerarmos a pena como essência do poder pumt,vo)
surge no momento em que é suprimida a vingança pnvada e são
unplantados os critérios de JUSt1ça. O Estado, como ente Jurídico e
político, avoca para s1 o direJto (e o dever) de proteger a comunidade
e também o próprio réu, como meio de cumprir sua função de pro-
curar o bem comum, que se vena afetado pela transgressão da ordem
Jurídico-penal, por causa de uma conduta delitiva72•
À medida que o Estado se fortalece, consciente dos pengos que
encerra a autoclefesa, assume o monopólio da justiça, ocorrendo não
só a revisão da natureza contratual do processo, senão a proibição
expressa para os particulares de tomar a justiça por suas próprias
mãos. Frente à violação de um bem1undicamente protegido, não cabe
outra at1v1clade73 que não a invocação da devida tutela jurisdicional.
Impõe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo
Estado - o processo penal - em que, mediante a atuação de um ter-
ceiro imparcial, cuJa designação não corresponde à vontade das
partes e resulta ela imposição da estrutura mstituc10nal, será apurada
a existência do delito e sanc10nado o autor. O processo, como insti-
tuição estatal, é a úmca estrutura que se reconhece como legítima
para a imposição da pena. Não há uma atividade propnamente subs-
titutiva, pms a pena pública nunca pertenceu aos particulares para
que houvesse a "substitujção". Por isso, é uma avocação para o Es-
taclo do pocler de punir, afastando as formas de vingança pnvada.
72. ALONSO, Pedro Aragoneses. lnsllt11c1ones de derecho procesal penal,
p. 7.
73. Salvo aquelas protegidas pelas causas de exclusão da ilicaude ou <la cul-
pabilidade jundicamenre reconhecidas pelo direito penal.
60
Isso porque o direito penal é despido de coerção direta e, ao
contrário do direito privado, não tem atuação nem realidade concre-
ta fora do processo correspondente.
No direito privaclo, as normas possuem uma eficácia direta,
imediata, pois os particulares detêm o poder de praticar atos Jmidicos
e negócios jurídicos, de modo que a incidência das normas de direi-
to mateiial - se1an1 civis, comerciais etc. -é direta. As partes matenais,
em sua vida diána, aplicam o direito pnvado sem qualquer interven-
ção dos órgãos 1unsdic10nais, que, em regra, são chamados apenas
pai·a soluc10nai· eventuais conflitos surgidos pelo mcumpnmento do
acordado. Em resumo, não existe o monopólio dos tribunais na apli-
cação do direito pnvado e "ní siquiera puede decirse que estatística-
mente sean sus aplicadores más importantes""
No entanto, totalmente distinto é o tratamento do direito penal,
pois, amda que os tipos penais tenham uma função de prevenção
geral e também de proteção (não só de bens jurídicos, mas também
do pm·tícular em relação aos atos abusivos do Estado), sua verdadei-
ra essência está na pena e essa não pode prescindir do processo penal.
Existe um monopólio da aplicação por parte dos órgãos JUrisdic,onms
e isso representa um enorme avanço da humamdacle.
Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que
exista um ÍnJUSto culpável, mas também que exista previamente o
devido processo penal. A pena não só é efeito Jurídico do delito75 ,
senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do
delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por me10 do
processo.
A pena depende da existência do delito e da existência efetiva
e total do processo penal, posto que, se o processo termina antes de
desenvolver-se compietamente ( arquivamento, suspensão condicional
etc.) ou se não se desenvolve de forma válida (nulidade), não pode
ser imposta uma pena.
74. AROCA, Juan Montero. Prmcipws dei pmceso penai - una exp/icación
basada en la razón, p. 15.
75. Corno explica ORBANEJA, Emilio Górnez. Comemanos a ta ley de
En1mcwm1enro Criminal, t. I, p. 27 e ss.
61
Existe uma íntima e 1mprescmdível relação entre delito, pena e
processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem
pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão
para determmar o delito e impor uma pena.
Assim, fica estabelecido o caráter mstrumental do processo
penal com relação ao direito penal e à pena, p01s o processo penal é
o cmninho necessário para a pena.
É o que Gómez OrbaneJa76 denomma principio ele la necesidacl
ele/ proceso penal, amparado no art. 12 da LECnm 77, pois ncio existe
delito sem pena, nem pena senz delito e processo, nen1 processo penal
sencio para cletenmnar o delito e atuar a pena. O pnncípio apontado
pelo autor resulta da efetiva aplicação no campo penal do adágio
latmo nulla poena et nu/la culpa s111e iuclicio, expressando o mono-
pólio da Jurisdição penal por parte do Estado e também a ínstrumen-
talidade do processopenal.
São três78 os monopólios estatais:
a) exclusividade do direito penal;
b) exclusividade pelos tribunais; e
c) exclus1v1dade processual.
Como explicamos, atualmente, a pena é estatal (pública), no
sentido de que o Estado subst1turn a vingança privada e, com isso,
estabeleceu que a pena é uma reação do Estado contra a vontade
mdividual. Estão proibidas a autotutela e a "justiça pelas próprias
mãos", A pena deve estar prevista em um tipo penal e cumpre ao
Estado definn- os tipos penais e suas consequentes penas, ficando o
tema completamente fora da disposição dos particulares (vedada,
assim, a "justiça negocrnda")'9
76. Comentanos a la Ley de E11;wcia1111ento Cnmmal, t. I, p. 27.
77. Norma processual penal espanhola - Ley de Enpt1c1mme11to Crumnal.
78. Seguindo AROCA, Juan Montem, Prmc1p1os del proceso penal, p. 16 e ss.
79. Apesar disso, cumpre destacar que o monopólio estatal de perseguir e
pumr está sendo questionado a cada dia com mais força, com o 1mptemento de
pnncíp10s, como oportumdade e conveniência da ação penal, aumento do número
de deiitos de ação penal pnvada ou pública condicrnnada, e com as possibilidades
62
Rogéno Launa Tucci'º aponta para a ünpos1ção de uma autoii-
m1tação do 111teresse pw11t1vo do Estado-adm1111stração, que somente
poderá realizar o direito penal mediante a açcio .1udic1ána dos Juízes
e tribunais.
Entendemos que a exc/11s1v,dacle dos tribuncus em maténa penal
deve ser analisada em conJunto com a exclus1vidade processual, pois,
ao mesmo tempo em que o Estado prevê que só os tribunais podem
deciarar o delito e impor a pena, tamb(jm prevê a imprescindibilida-
de de que essa pena venha por meio do devido processo penal. Ou
seja, cumpre aos juízes e tribunais declararem o clelito e determmar
a pena proporcional aplicável, e essa operação deve necessariamente
percoITer o leHo do processo penal válido com todas as garantias
constitucionalmente estabelecidas para o acusado.
Aos demais Poderes do Estado - Legíslal!vo e Executivo - está
vedada essa al!v1dade. Não obstante, como destaca Montero Aroca" ,.
absurdamente"[ ... ] se constata día a día que las leyes van perm1tien-
do a los órganos adn11111stral!vos 11nponer sanciones pecumanas de
tal magnitud, muchas veces, que 111 siqmera pueclen ser nnpuestas por
los t1ibunales como penas" Da mesma forma. na execução penal,
constata-se uma excessiva e pengosa admm1strativ1zação, em que
faltas graves - apuradas en1 proceditnentos adn1mistratiVOS 1nqu1s1-
tlvos - geran1 gravíss11nas consequências82
Por fim, destacamos que o processo penal constitui uma instân-
cia formal de controle do cnme83, e, para a Cnmmologia, é uma
reação formal ao delito e também pode ser considerado um 111stru-
mento de seleçcio, pnnc1palmente nos sistemas Jurídicos que adotam
de transação penal (plea bargammg). AJusttça negociada configura uma pengosa e
eqmvocada alternativa ao processo penal.
80. TUCCI, Rogério Launa. Teona do direito proccs.rnal penal, p. 25.
81. P1wc111ros dei proceso penal, p. l 9.
82. Sobre o tema, consultem os diversos trabalhos constantes na obra Critica
ã execução penal - dolltnna, 1unspmdê11cw e projetos lcg1slat1Fos, orgamzacta por
Sa"Jo de Carvalho e publicada pela Editora Lumen Juns.
83. Conforme explicam Figue!fedo Dias e Cosla Andrade na obra Cnm11zoío-
g10 - O homem delinquente e a sociedade cnm111ógena. p. 365 e ss.
63 'I L
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princíp10s como o da oportunidade, piea bargammg e outros meca-
msmos de consenso. Ademais, da mesma forma que o direito penal
é excludente (tanto quanto a sociedade), o processo e seu conteúdo
aflitivo só agravam a exclusão, eis que se trata de inegável cerimônia
degradante que possm seus "clientes preferenc1ms".
1.6. lnstrumentalidade constitucional do processo penal
Estabelecido o monopólio da Justiça estatal e do processo, tra-
taremos agora da instrumenta/idade. Desde logo, não devem existir
pudores em afirmar que o processo é um instrumento (o problema é
definir o conteúdo dessa mstrumentalidade, ou a serviço de que(m)
ela está) e que essa é a razão básica de sua existência. Ademms, o
direito penal carecena por completo de eficácia sem a pena, e a pena
sem processo é inconcebível, um verdadeiro retrocesso, de modo que
a relação e mteração entre direito e processo é patente.
A s1rumelllalità84 do processo penal reside no fato de que a
norma penal apresenta, quando comparada com outras normas Jurí-
dicas, a caracteiistica de que o preceito tem por conteúdo um deter-
mmado comportamento proibido ou imperativo e a sanção tem por
destmatáno aquele poder do Estado, que é chamado a aplicar a pena.
Não é possível a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem
mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele não pode se
submeter voluntariamente à pena, senão por meio de um ato judicial
(nulla poena sme wdicw ). Essa particularidade do processo penal
demonstra que seu caráter instrumental é mais destacado que o do
processo civil.
É fundamental compreender que a instrumentalidade do proces-
so não significa que ele seja um mstrumento a serviço de uma única
finalidade, qual seja, á satisfação de uma pretensão (acusatória).
Ao lado dela está a função constitucional do processo, como 111s-
trume11to a serviço da realização do projeto democrático, como
84. Como explica LEONE, Giovanm. Elemenfl di diri110 e procedura pena/e,
p. 189.
64
muito bem adverte Geraldo Prado85 • Nesse viés, insere-se a finalida-
de const1tuc10nal-garantídora da máxima eficácia dos direitos e ga-
rantias fundamentais, em especial da liberdade mdividual. Ademais,
a Constituição constitm, logo, necessanamente, onenta a mstrumen-
talidade do processo penal.
O termo "instrumentalidade", que sempre remeteu a algumas
lições parciais de Dínamarco86, deve ser rev1sJtado. Claro que nunca
pactuamos com qualquer visão "eficientista" ou de que o processo
pudesse ser usado como mstrumento político de segurança pública
ou defesa social.
Resulta imprescindível visualizar o processo desde seu ex tenor,
para constatar que o sistema não tem valor em s1 mesmo, senão pelos
objetivos que é chamado a cumprir (projeto democrát1co-constítucio-
nal). Sem embargo, devemos ter cuidado na definição do alcance de
suas metas, pms o processo penal não pode ser transformado cm
instrumento de "segurança pública". Nesse contexto, por exemplo,
insere-se a crítica ao uso abusivo das medidas cautelares pessoais,
especialmente a pnsão preventiva para "garantia da ordem pública"
Trata-se de buscar um fim alheio ao processo e, portanto, estranho à
natureza cautelar da medida. Trataremos novamente desse tema
quando analisarmos a presunção de mocência e as pnsões cautelares.
Nesse sentido, importante é a análise de Morais da Rosa87 quan-
do sublinha o perigo de - a transmitir-se mecanicamente para o
processo penal as lições de Dínamm·co - pautar a mstrnmentalidade
pela conjuntura social e política, demandando um "aspecto ético do
processo, sua conotação deontológica" (expressão de Dinamarco).
Explica Morais da Rosa que "esse chamado exige que o JlllZ
tenha os predicados de um homem do seu tempo, imbuído em reduzir
85. Imprescmdível a leitura de Geraldo Prado, na excepc10nal obra Sistema
acusatór10.
86. DINAMARCO, Cândido Rangel. A mslmmentalidade do processo.
87. ROSA, Alexandre Morais da. Direito mfracwnal: garanflsmo, psicanáli-
se e movw1enro antiterror, p. 135 e ss.
65
as desigualdades sociais"". baseando-se nas modificações do Estado
Liberal rumo ao Estado Social, mas
vmculada a uma posição especial do Juiz no con~ext~ democráttco,
dando-lhe poderes sobre-humanos, na linha de reahzaçao dos e~:opos
processums, com forte influência cta superada.filosofia da c01:~c1enc1a,
deslizando no lmagznâno e facilitando o surgimento de lw.:..es Justl-
ceiros da Sociedade.
E conclm o autor afirmando que a
pretensão de Dinamarca de que O juiz deve aspirar aos_ anseio: sociais
ou mesmo ao espínto das leis, tendoem vista uma vmc~]açao ax10-
lóg1ca, moralizante do jurídico, com ~ Objetivo de reah~ar o senti:
menta de JUSttça do seu tempo, não mais pode ser acolhida democra
t1camente89
Nenhuma dúvida temos do enorme acerto e valor d~ssas lições,
e de que esse pengo denunciado por Morais da Rosa e concr~to e
encontra em movimentos repressivos, como l~i _e ordem, tolerancia
zero e direito penal do 1111m1go, um terreno fertil para suas nefastas
construções. . .
A1~da mais danosas são as v1ragens linguísticas, os giros d1s-
curs1vos, pregados por lobos, que em pe~e de co_rde1ro l e alg~ns
amda dizem falar em nome da Const1tmçao .. :) seouze'.11 e mantem
em crenca uma multidão de ingênuos, cuJa frágil base_ teonca faz com
que seja~ presas fáceis, iludidos pelo discurso pseuooerud1~0 desse~
ilusíomstas. Cuidado leitor, mais pengosos do que os m1m1bos :ssu
nüdos (e, por essa assunção, até mereceriam algum respeito) _sao _os
que falando em nome da Const1tu1ção, operam num mundo de ilusao,
de ~parência, para seduzir os incautos. Como diz Jacinto Coutinho•~,
"parecem pavões, com belas plumas multicoloridas, mas com os pes
cl1e10s de craca"
Em suma, nossa noção de instrumenta/idade tem por conteúdo
a máx1111a eficác,a dos direitos e garantwsfundamentats da Constt-
88. Idem.
89. Idem.
90. No PrcfácIO da nossa obra Jmrodução crítica ao processo penal - fuuda-
mewos da msrrumenralidade const1tttcionai.
66
f
1
1
tuição, pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana subme-
tida à v10lência do ntual Judic1áno.
Voltando ao bmôm10 direito penal-processual. a mdependência
conce1tual e metodológica do direito processual em relação ao direi-
to matenal foi uma conquista fundamental. Direito e processo cons-
tituem dois planos verdadeiramente distintos no s1stema.1urídico, mas
estão relacionados pela umdade de objetivos sociais e políticos, o que
conduz a uma reiat1v1dade do bmôm10.dire1to-processo (substance-
-procedure).
Respeitando sua separação 111st1tuc1onal e a autonomia de seu
tratamento científico, o processo penal está a serviço do direito penal,
ou, para ser mais exato, da aplicação dessa parcela do direito obJell-
vo". Por esse motivo, não pode descuidar do fiel cumprimento dos
objetivos traçados por aquele, entre os quais está o de proteção cio
índividuo.
A autonomia extrema do processo com relação ao direito mate-
rial foi importante no seu momento, e, sem ela, os processuaiistas
não havenam podido chegar tão longe na construção do sistema
processual. Mas isso Já cumpriu com a sua função. A acentuada visão
autônoma está em vias de extinção e a instrumentalidade está servin-
do para relativizar o binômio direito-processo, para a liberação de
velhos conceitos e superar os limites que impedem o processo de
alcançar outros objetivos, além do limitado campo processual.
A ciência do processo Já chegou a um ponto de evolução que
lhe permite deixar para trás todos os medos e preocupações de ser
absorvida pelo direito material, assumindo sua função instrumental
sem qualquer menosprezo. O direito penal não pode prescindir do
processo, pois a pena sem processo perde sua aplicabilidade.
Com isso, concluímos que a instrumentalidade do processo
penal é o fundamento de sua existência, mas com uma especial ca-
racterística: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias
individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que
só se manifesta no processo penal, pois se trata de mstrumentalidade
91. SANTOS, Andrés Oliva. Na obra coletJva Derecho procesal penal, p. 6.
67
,1 1
li
[I ,
1
li ::
relac10nada ao direito penal e à pena. mas, prmcipalmente, um ins-
trumento a serviço da máxima eficácia das garantws constít11c1011ais.
Está leg1t1mado enquanto mstrumento a serviço do projeto constítu-
c10nal.
Trata-se de limitação do poder e tutela do débil a ele submetido
(réu, por evidente), CUJa debilidade é estrutural (e est:mturante do seu
lugar). Essa debilidade sempre existirá e não tem absolutamente ne-
nhuma relação com as condições econômicas ou sociopolíticas do
imputado, senão que decorre do lugar em que ele é chamado a ocupar
nas relações de poder estabelecidas no ritual Judiciário (pois é ele o
suJeito passivo, ou se3a, aquele sobre quem recaem os diferentes cons-
trangimentos e linutações impostos pelo poder estatal). Essa é a ms-
trwnentalidade constitucional que a nosso juízo funda sua existência.
1 .7. A necessária recusa à teoria geral do processo.
Respeitando as categorias próprias do processo penal.
Quando Cinderela terá suas próprias roupas?
Era uma vez três irmãs, que tinham em comum, pelo menos, um
dos progemtores: chamavam-se a Ciência do Direito Penal, a Ciência
do Processo Penal e a Ciência do Processo Civil. E ocorreu que a
segunda, em comparação com as demais, que eram belas e prósperas,
teve uma mfâncrn e uma adolescência desleixada, abandonada. Du-
rante mmto tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. A tercei-
ra, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atenções.
Assun começa Carnelutt1, que com sua genialidade escreveu em
1946 um breve, mas brilhante, artigo (infelizmente pouco lido no
Brasil), mtltulado "Cenerentola"" (a Cinderela, da conhecida fábula
mfantil).
O processo penal segue sendo a irmã pretenda, que sempre teve
de se comentar com as sobras das outras duas. Durante muito tempo,
foi visto como um mero apêndice do direito penal. Evolui um pouco
92. Ongmanamente publicado na Riv1sra di Dirlllo Pmcessuale, v. 1, parte 1,
p. 73-78. Em espanhol, f01 publicado com o título "La Cemc1enta", na obra Cues-
tlones sobre e! proceso penal. p. 15-21.
68
rumo à autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Basta
ver que não se tem notícia, na história acadêmica, de que o processo
penaJ tivesse sido mmistrado ao longo de dois anos, como costumei-
ramente o é o direito penal. Se compararmos com o processo civil
então, a distância é ainda maior.
Mas, em relação ao direito penal, a autonomia obtida é suficien-
te, até porque, como define Carnelutti, delito e pena são como cara e
coroa da mesma moeda. Como o são direito penal e processual penal.
Recorde-se o que falamos sobre o pnncípio da necessidade.
O problema maior está na relação com o processo cJVil. O pro-
cesso penal, como a Cinderela, sempre foi pretendo, tendo de se
contentar em utilizar as roupas velhas de sua mnã. Mais do que ves-
timentas usadas, eram vestes produzidas para sua irmã (não pm·a ela).
A irmã favonta aqm, corporificada pelo processo civil, tem uma
superioridade científica e dogmática inegável.
Tinha razão Bett10l, como reconhece Camelutti93 , de que assis-
timos inertes a um pancivilismo. E isso nasce na academia, com as
famigeradas disciplinas de "Teoria Geral do Processo", tradic10nal-
mente ministradas por processualistas civis que pouco sabem e pou-
co faJam do processo penal e, quando o fazem, é com um olhar e
discurso completamente viciado.
Nessa linha, no Brasil, entre os p10ne1ros críticos está Tucc1, que
principia o desvelmnento do fracasso da Teoria Geral do Processo a
part!f da desconstrução do conceito de lide (e sua consequente irre-
levância) para o processo penal, passando pela demonstração da
93. Carne1uttt teve uma produção científica bastante ampla, prolixa até, escre-
vendo do direito comercial ao direito penal, passando pelo processo civil e pelo
processo penal. Natural que cometesse, como de fato cometeu, diversos tropeços
nessa longuíssima caminhada dogmática. Também caiu diversas vezes em contradi-
ção. Em casos assim. é preciso conhecer também o autor das obras. para não fazer
equivocados JUízos a pnon. Fazemos essa advertência porque, em que pese no final
da vida ter feito verdadeiras declarações de amor ao direito penai e ao processo
penal, lutando por sua evolução e valorização, também foi ele um defensor da equi-
vocada teona unitána (teona geral do processo), pensando ser o concelto de lide
algo unificador. Logo, La Cemcienta deveser compreendida nesse contexto ( e
nesses conflitos científicos que ele mesmo vivia).
69
necessidade de se conceber o conceito de Jurisdição penal (para além
das categonas de Jurisdição voluntária e litigiosa) e o própno repen-
sar a ação (ação Judiciária e ação da parte).
Aponta o autor, amda criticando a Teoria Geral do Processo, que
esse, aliás, fm um dos (poucos, raros) aspectos negativos da grandio-
sa obra de José Frectenco Marques, ao transplantar (sem, ou, às vezes,
com modestos, avaros, retoques) mstitutos de processo cívil para o
processo penal, numa nítida adaptação dos Elementos de direito pro-
cessuai penal às Instituições de direito processual civil[ ... ] mcorpo-
rando-se numa prolixa e confusa concepção, que poderia ser denomi-
nada teoria civil cio processo penal [ ... ]9.i
Como adverte Coutmho95 , outro antigo crítico da Teoria Umtá-
ria, "teona geral do processo é engodo; teoria geral é a do processo
civil e, a partir dela, as demais". Ou seJa, pensam tudo desde o lugar
do processo civil, com um olhar viciado, que conduz a um engessa-
mento do processo penal nas estruturas do processo civil.
Todo um erro de pensar, que podem ser transmitidas e aplicadas
no processo penal as categorias do processo civil, como se fossem as
roupas da irmã mais velha, cuJaS mangas se dobram, para caber na
irmã pretenda. É a velha falta de respeito, a que se referia Goldsch-
midt, às categonas Jurídicas própnas do processo penal.
Contudo, há chegado o momento (e se vão mais de 60 anos do
trabalho de Carnelutti) de desvelai· a diversidade fenomenológica (e
metodológica) das duas irmãs processua,s96 e compreender que o
processo penal possuí suas categonas Jurídicas própnas, sua diversi-
dade inerente, e que não mais se contenta em usar as vestes da irmã.
Como explica Carnelutti, o processo civil é, nove de cada dez
vezes, um processo de SUJeÍtos que "têm", e, quando um dos dois não
tem, aspira mmto "ter". É o processo do "meu" e do "teu", o que
94. TUCCI, Rogério Launa. Teona do direao processual penal, p. 54.
95. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do proces-
so penal, p. 1 l 9.
96. No mesmo sentido, Andrés Oliva Santos, na obra coletiva Derecho proce-
sal penal, p. 51.
70
r
1
1
1
1
está em Jogo é a propnedade, é uma relação coisificada, dina Simme197
(mmto antes e muito além dos Jtmstas).
O processo civil é o cenário da riqueza ( de quem possuí), ao
passo que no processo penal, cada vez mais, é o processo de quem
não tem, do excluído. Isso contribui para o estigma da gata borralhe1-
ra, mas não justifica.
No processo penal, em (radical) câmbio, do que estamos tratan-
do? _Não é do ter, mas sim da liberdade. No lugar da coísa, pensa-se
n: hberdade, de quem, tendo, está na immência de perder, ou que Já
nao tendo pode recuperá-la ou perdê-la ainda mais. Trata-se de voltar
para casa ou ser encarcerado. Como adverte Carnelultl, é com a li-
berdade o que verdadeiramente se Joga no processo penal. "AI Juez
penal sele pide, como ai Juez civil, algo que nos falta y de lo cual no
podemos prescmdir; y es mucho más grave el defecto de libertad que
el defecto de propiedad"98 .
Significa dizer que ao JUlZ penal não se pede, como ao JUÍZ civil,
~lgo que nos falta, o tal "bem da vida" como se referem os civilistas.
E a própria vida que está em jogo. Para CarneJutti, tanto ao juiz penal
como ao JUiz civil, compete dar a cada um o seu. A (imensa) diferen-
ça está em que no penal é dispor do própno "ser'', ao passo que no
civil é o ''ter"_
Não se pode esquecer, amda, como adverte certeiramente Juarez
Cirino dos Santos99, de que
97. Aqm estamos fazendo alusão ao complexo pensamento de SimmeJ. quan-
do, já em 1896, escreveu sobre "O dinheiro na cultura moderna", demonstrando o
processo de c01sificação da humamdade. Importante, ainda, a leitura de Ruth Gaucr
(O reino da estupidez e o remo da razão, p. 146 e ss.), quando, abordando Simmel.
expl~ca que a "morte do homem" foi diagnosticada quando o autor analisou o papel
do dmhc1ro na sociedade e a separação entre as culturas subjetiva e objetiva. Essa
co1sificação do ser humano levou ao ctomímo da coisa sobre o homem. Como expli-
ca Gauer, o dinheiro é o Deus moderno, ompotentc e ompresente, uma umdacle e
referência, que une a todos. "Sua busca é a sua falta, produz o rttmo nervoso e o
estresse da vida moderna. Que novo tipo de vida o dinl1c1ro constitui?"
98. CARNELUITI, Francesco. La Cemc1enta. Cuestrones sobre el proceso
penal, p. 19.
99. Direito penal -Porte Geral, p. 655.
71
0 processo pena! não se const1tu1 processo ~e partes livr~s e _ígu~
1
1s -
como O processo civil, por exemplo, dommado pela lzbenfa~e de
partes, em situação de igualdade processual -, mas uma relaçao cte
poder rnstituída pelo Estado com a finalidade de descobnr a verdade
de fatos cnminosos e punír os autores considerados culpados.
São a ausência de liberdade e a relação de poder mstttuída (em
contraste com a liberdade e a igualdade) os elementos fundantes de
uma diferença msuperável entre o processo civil e o penal.
Em relação ao direito penal, a autonomia obtida é suficiente, até
porque, com~ define Carn~lutti, delito e pena são como cara e coroa
da mesma moeda. Como O são direito penal e processual p~nal, u1:_1-
dos pelo "pnncípio da necessidade" - ":'"~ poena síne wdzcw - t~o
bem definido por Gomez Orbanep. O direito c1v1l s~ realiza tod~ dia
sem processo civil (negócios jurídicos etc.), pms e autoexecutavel,
tem realidade concreta. O direito civil só chama o processo c1v1l
quando houver uma lide, carneluttianamente pen~ada como um :on-
flito de mteresses qualificado por uma pretensao res1st1da. Ja no
campo penal tudo é diferente. O direito penal ':ão é autoexecutáve'. e
não tem realidade concreta fora do processo. E castrado. Se alguem
for vítima de um crime, a pena não cai direta e 1mechatamente na
cabeca do agressor. O direito pena1 não tem eficácia imediata e pre-
cisa,, necessanamente, do processo penal para se efetivar, pois o
processo é tn11 caminho necessário e ínafastável para chegar na pena.
Por ,sso, 0 princípio da necessidade demarca uma diferenç_a
insuperável entre penal e civil, Já cobrando sua diferença nas condi-
ções da ação, como veremos.
Vepmos alguns rápidos exemplos (tena _muito mais ... ) da
(dis)torção conceitual-e'absurdos processuais realizados em nome da
Teona Geral do Processo:
72
a) No processo penai,fonna é garantia e limite de po_der, pois
aqm se exerce O poder de punir em detnmento da lrberdade.
É um poder limitado e condicionado, que precisa se leg1t1mar
peio respeito às regras do Jogo. Logo, não se dev~ importar
a tal "instrumentalidade das formas" e "informalismo pro-
cessual", pois aqui o fenômeno é completamente diferente.
b) Precisamos abandonar as teorias da ação, pois tudo o que se
escreveu desde a polêmica Windsche1d - Muther, passando
pelas teonas da ação como direito abstrato (Plosz), como
direito concreto (Wach) ou direito potestatívo (Ch10venda)
não pode ser aplicado ao processo penal sem mmto aJuste,
muita costura, quase uma roupa nova. Como afümar que ação
é um direito público, abstrato e autônomo? Se for assim, uma
pessoa pode processar outra diretamente, sem nada de provas,
de forma totalmente autônoma e abstrata? No processo civil,
sim. No processo penal, nem pensar, pars é preciso desde
logo demonstrar um mínimo de concretude, de mdíc10s ra-
zoáveis de autoria e matenalidade. E o Juízo de mérito, amda
que superficialmente, é feito desde logo. Portanto, os concei-
tos de autonomia e abstração têm de ser repensados, senão
completamente redesenhados. Mais do que isso, penso que
precisamos elaborar uma "teona da acusação", adequada à
realidade do processo penal.
c) Dizer que as condições da ação no processo penal são mte-
resse e possibilidade Jurídica do pedido é um erro, repetido
sem maior reflexão por grande parte da doutnna. Como falar
em "interesse" se aqui a regra é a necessidade?Discut1r "in-
teresse de agir" e outros crvilismos é desconhecer o que é
processo penal. Pior é tentar salvar o "interesse" por meio do
entulhamento conceituai, atribumdo um conteúdo a essa
categoria que ela não comporta. Esse é o erro mais comum:
para tentar saJ var uma madequada categona do processo civil,
vão metendo defimções que extrapolam os limites semânticos
e de sentidos possíveis. Par·a salvar uma categona madequa-
da não fazem outra coisa que matá-la, mas mantendo o
mesmo "nome", para fazer jus a "teona geral". E a tal "pos-
sibilidade jurídica do pedido"? O que é isso? Outra categona
inadequada, até porque, no processo penal, o pedido é sempre
o mesmo ... Mas e o que fazer para salvar um conceito erro-
neamente transplantado? Entupo-o de coisas que não lhe
pertencem. Falam em suporte probatóno mímmo, em mdíc1os
razoáveis de autoria e matenalidade etc., ou sep, de outras
coisas que nada têm a ver com possibilidade jurídica do pe-
73
74
dido. Enfim, temos de levar as condições da ação a séno, para
evitar essa enxurrada de acusações infundadas que presen-
ciamos, servmdo apenas para est1gmat1zar e pumr ilegítima-
mente. Juízes que operam na lógica civilista não fazem a
1mpresc111dível "filtragem" para evitar acusações mfundadas.
A Teona Geral do Processo (TGP) estunula o acusar infun-
dado (afinal, é direito "autônomo e abstrato") e o recebimen-
to burocrático, deixando a análise do "ménto" para o final,
quando, no processo penal, ab initzo precisamos demonstrar
o .fwnus comnuss,. de/ictÍ (abstrato, mas conexo instrumen-
talmente ao caso penal, diria Jacinto Coutmho).
d) Lide penal? Outro conceito imprestável e que não faz qualquer
sentido aqm. Inclusive, é um ei1·0 falar em "pretensão puni-
tiva", na medida em que o Ministério Público não atua no
processo penal como "credor" (cível) que pede a adjudicação
de um direito própno. Ao MP não compete o poder de punir,
mas de promover a pumção. Por isso, no processo penal não
existe lide, até porque não existe "exigência pumtiva" que
possa ser sat1sfe1ta fora do processo ( de novo o princípio da
necessidade). O MP exerce uma "pretensão acusatóna" e o
JUIZ o pode condicionado de punir. Sobre o objeto do proces-
so, tratare1nos adiante.
e) E o conceito de junsdição? Tem outra dimensão no processo
penal, para além do poder-dever, é uma garantia fundamental,
é limite de poder, é fator de legitimação, sendo que o papel
do JUIZ no processo penal é distinto daquele exercido no
processo civil. Por isso, a garantia do Jmz natural é mais
sensível aqm, até porque o JUIZ é o guardião da eficácia do
sistema de garantias da constitmção e que lá está para limitar
poder e garantir o débil submetido ao processo. Dessarte,
grave problema existe na matriz da TGP e suas noções de
competência relativa e absoluta, desconsiderando que no
processo penal não há espaço para a (in)competência relallva.
É por isso que estão manipulando a competência no proces-
so penal, esquecendo que o direito de ser julgado pelo "meu
JUIZ", competente em razão de matéria, pessoa e (principal-
mente) lugar, é fundamental. A dimensão do Julgamento
penal é completamente diferente do JUigamento civil, pois
não podemos esquecer que o "caso penal" é uma lesão a um
bem Jurídico tutelado em um determmado lugar. Ou alguém
vai dizer que o fato de umJún ser na cidade "A" ou na cida-
de "B" é melevante? Óbv10 que não. Mas o que sabe a TGP
de cnme e Júri?
f) Juiz natural e unparc,a/. A estrutura acusatória ou inquisitó-
na do processo penal (como veremos adiante) é nm dos ternas
mais relevantes e diretamente ligado ao princípio supremo
do processo: a imparcialidade do Julgador. A posição do .1u1z
é fundante no processo penal, desde sua perspectiva s1stêm1-
ca ( e, como tal, complexa) para garantia da 1mparc1aiidade.
Como ensmam os mais de 30 anos de Jurisprudência elo
Tribunal Europeu de Direitos Humanos,Jmz que vai atrás da
prova está contammado e não pode Julgar. Trata-se de nma
preocnpação específica do processo penal e desconhecida
pelo processo civil e pela TGP.
g) Jwz natural e unparc,al II. A prova da alegação mcurnbe a
quem alega? Claro que não! No Processo Penal não existe
"dist,ibuíção de carga probatóna", senão "at1ibu1ção" integral
ao acusador, pms operamos desde algo que os civilistas não
conhecem e tampouco compreendem: presunção de mocên-
cia.
h) .luiz natural e unparcial III. Jnlgar em dúvida razoável é um
dilema, especialmente quando os adeptos da TGP resolvem
"distribuir" cargas probatórias e, em dúvida, resolvem "ir
atrás da prova" Pronto, está cnado o problema. O at1v1smo
Judicial mata o Processo Penal. Jmz ator, que vai atrás da
prova, deseqnilibra a balança, mata o contraditório e fulmma
a imparcialidade. Sim, aqm a situação é bem complexa ...
Então o que fazer? Compreender que no processo penal
muita gente queimou na fogueira (a TGP não conhece Ey-
rnerich e o Directonun Inquisltorwn) para chegarmos no "'
dubw pro reo. Sem compreender esse complexo "caldo
cultural" e os valores em Jogo, especrnlmente o m du/Jzo pro
75
76
reo, como regra de Julgamento, e a presunção de inocência,
como regra de tratamento, é impossível anaJisar a questão.
i) Fumus boni iuris e penculum in mora? É impactante ver um
juiz (de)formado pela TGP decretar uma prisão preventiva
porque presentes o fwnus boní iuris e o periculwn in mora.
Ora, quando alguém é cautelarmente preso é porque praticou
um fato aparentemente criminoso. Desde quando isso é "fu-
maça de bom direito"? Crime é bom direito? Reparem no
absurdo da transmissão de categorias! E qual é o fundamen-
to da prisão? Pe1igo da demora? O réu vai "perecer"? Claro
que não ... Mas não faltará alguém para - incorrendo em
grave reduc10nismo - dizer que é apenas "palavra". Mais um
erro. Para nós, no direito penal e processual penal, palavra é
limite, palavra é legalidade, as palavras "dizem coisas" e
trabalhamos de lupa em cima do que diz a palavra e do que
o mtérprete diz que a palavra diz. Logo, nunca se diga que é
"apenas" palavra, pois a palavra é tudo.
j) Poder geral de cautela? De vez em quando, algumjmz "ena"
medidas restritivas de direitos fundamentais invocando o CPC
( ! ! ) e o "poder geral de cautela" (ilustre desconhecido pai·a
o CPP). Mais um absurdo de quem desconhece que o sistema
penal se funda no pnncípio da legalidade, na reserva de lei
certa, taxativa e estrita. Não se admite cnar "punição" por
analogia! Sim, mas é isso que fazem os que operam na lógi-
ca da TGP.
k) Vou decretar a revelia do réu! Não raras vezes ouvimos isso
em uma audiência. Gostaríamos de perguntar: vai inverter a
carga da prova também, Excelência? Biementai· que não. A
categona "revelia" é absolutamente madequada e mexisten-
te no processo penal, sendo figura típica do processo cívil,
carregada de sentido negativo, impondo ainda a "presunção
de veracidade" sobre os fatos não contestados e outras con-
sequências inadequadas ao processo penal. A inatividade
processuaJ (incluindo a omissão e a ausência) não encontra
qualquer tipo de reprovação Jurídica. Não conduz a nenhuma
presunção, exceto a de mocêncrn, que continua inabalável. O
não agir probatório do réu não conduz a nenhum tipo de
punição processual ou presunção de culpa. Não existe um
dever de agir para o imputado para que se lhe possa pumr
pela om1ssão100•
1) Esse recurso especiallextraordinárw não tem efeito suspen-
s1vo! Até recentemente, por culpa da TGP, as pessoas eram
"automaticamente" presas ao ingressar com esses recursos,
porque a Lei n. 8.038 (civilista ... ) diz que tais recursos não
têm efeito suspensivo. Mas desde quando prender alguém ou
deixai· em liberdade está situado na dimensão de efetto re-
cursa!? Desde nunca! É um absurdo gerado pela cultura da
TGP. que desconhece a presunção de inocência!
m) Nulidade relativa. Essa é a fatura mais alta que a TGP cobra
do processo penal: acabaram com a teona das nulidades pela
importação do pomposo pas nullité sonsgrief Tão pomposo
quanto inadequado e danoso. Imc1emos por um princípio
básico - desconhecido pela TGP, por elementar: forma é
garantia. O rítuaJ judiciário está constituído, essencialmente,
por discursos e, no sistema acusatório, forma é garantia, pois
processo penal é exercício de poder e todo poder tende a ser
autoritáno. Violou a forma? Como regra, v10lou uma garan-
tia do cidadão. E o taJ "preJuízo"? É uma cláusula genénca,
de conteúdo vago, impreciso e mdetermmado, que vm encon-
trar referencial naquilo que quiser o jmz (autoritarismo-de-
cisionísmo-espaços imprópnos de discricíonariedade, con-
forme Lenío Streck). Como dito, no processo penal existe
exercício condicionado e limitado de poder, sob pena de
autoritarismo. E esse limite vem dado pela "forma" Portan-
to, flexibilizar a forma é abrir a porta para que os agentes
estatais exerçam o poder sem limite, em franco detrimento
dos espaços de liberdade. É rasgar o pnncíp10 da legalidade
e toda a teoria da t1p1cidade dos atos processuais. É rasgar a
100. Sobre essa e as demais questões mencionadas neste tópico, sugenmos a
leitura de nossa obra Direlfo processual penai, publicada pela editora Saraiva, onde
esses temas são tratados com mais profundidade.
77
Constituição. Por culpa da TOP, está chancelado o vale-tudo
processu;l. O dec1s10msmo se legitima na TOP. Eu-tribunal
anulo o que eu qmser, quando eu qmser. E viva a teoria geral
do processo!
Portanto, em rápidas pmceladas (sim, tena mníto mais a dizer)
está demonstrada (e desenhada) a necessidade de se recusar a Teona
Geral do Processo e assimilar o necessáno respeito às categonas
Jurídicas próprias do processo penal.
Voltando ao míc10 carneluttiano, Cinderela é nma boa irmã e
não aspll"a uma supenondade em relação às outras, senão, umcamen-
te, uma afirmação de pandade. O processo civil, ao contráno do que
sempre se fez, não serve para compreender o qne é o processo penal:
serve para compreender o que não é. Daí por que, com todo o res-
peito, basta de Teona Geral do Processo.
1 .8. Inserindo o processo penal na epistemologia da incerteza
e do risco: lutando por um sistema de garantias mínimas
Como Já apontamos, vivemos em uma sociedade complexa, em
que o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atmge
a todos de forma indiscnmínada. Concomitantemente, é uma socie-
dade regida pela velocidade e dommada pela lógica do tempo curto.
Toda essa aceleração potencializa o risco.
Alheio a tudo isso, o direito opera com construções técnicas
artificiais, recorrendo a mltos como "segurança Jurídica"'º', "verdade
real", "reversibilidade de medidas" etc. Em outros momentos, parece
correr atrás do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acom-
panhar o "tempo da sociedade". Surgem então alquimias do estilo
"antecipação de tutela", "aceleração procedimental" etc.
IO L A crítica dinge-se à visão tradicwnal, paJeopos1t1v1sta e arraigada no
ctooma da completude Jóg1ca do sistema. Da mesma forma, a crítica estü dingtda à
~ .
ilusão de controle que emerge do conceito. Como exphcarcmos no final, a tal segu-
ranca Jurídica deve ser trc)pcnsada no atual contexto (de msegurança exógena e
endÓg~na) cnquant0 mstrurnento limitador do poder punitivo estatal e emancipador
do débil submetido ao processo penal.
78
O conflito entre a dinâmica social e a Jurídica é mevJtável, evi-
denciando uma vez mais a falência do monólogo científico diante ela
complexidade imposta pela sociedade contemporânea. Nossa abor-
dagem é introdutóna, um convite à reflexão pelo viés mterdisc1píinar.
com todos os pengos que encerra uma mcursão para além de um
saber compartimentado. Sem esquecer que, em me10 a tudo isso, está
aiguém sendo pumdo pelo processo e, se condenado, sofrendo uma
pena, concreta, efetiva e dolorosa.
1.8.1. Risco exógeno
Não há como iniciar uma abordagem sobre risco sen1 falar na
risk soc,et)• de Beck'm Obviamente que a análise perpassa essa visão,
que serve apenas como ponto 1111ciaí. A doutrina de Beck desempenha
uma importante missão na superação da compreensão de que o so-
fnmento e a m1séna eram apenas para o outro, pois haviam paredes
e fronteiras reais e simbólicas para nos escondermos. Isso desapare-
ceu com Chernobil. Acabaram-se as zonas protegidas da modernida-
de, "ha llegado e! final de los otros"'"', O grande desafio passa a ser
viver com essa descoberta do perigo. Caw o manto de proteção,
deixando descoberto esse desolador cenário.
A sociologia do nsco é firmada e defimda pela emergência dos
perigos ecológicos, caractenst1camente novos e problemáticos. Mas
a dimensão desse risco transcende a esfera ecológica e também afeta
o processo, pois alcança a sociedade como um todo, e o processo
penal não fica imune aos nscos.
Como aponta Becl<, as sociedades humanas sempre correram
riscos, n1as eram riscos e azares conhecidos, CUJa ocorrência podia
ser prevista e sua probabilidade, calcnlada. Os nscos das sociedades
industnais eram importantes numa dimensão local e frequentemente
devastadores na esfera pessoal, mas seus efeJtos eram iimítados em
102. Trabalhamos aqm com os conceitos de Beck contidos na obra La soC1edact
del rresgo; e também de Goldblatt, "A soc1ologrn de nsco - Ulnch Beck" Teona
SOC/al e ambiente.
103. BECK, Ulnch. La soctedad det nesga, p. 11.
79
termos espaciais, p01s não ameaçavam sociedades inteiras'D-l Atual-
mente, as novas ameaças ultrapassam limites espaciais e sociais e
também excedem limites temporais, pois são !freversíveis e seus
efeitos (toxinas) no corpo humano e no ecossistema vão se acumu-
lando. Os pengos ecológicos de um acidente nuclear em grande es-
cala. pela liberação de químicos ou pela alteração e manipulação da
composição genética da flora e fauna (transgênicos), colocam em
nsco o própno planeta. Existe um nsco real de autodestruição.
Outro problema é que nos nscos ecológicos modernos, segundo
Beck 'º', o ponto de impacto pode não estar obviamente ligado ao seu
ponto de ongem e sua transmissão e movimentos podem ser muitas
vezes inv1síve1s e insondáveis para a percepção quotidiana. É um
gravíssimo problema que dificulta ou impossibilita a identificação do
nexo causal, como ocoffeu, v.g., com as contaminações pelo Antraz.
Se, na sociedade pré-mdustnaí, o risco revestia a forma natural
(tremores, secas, enchentes etc.), não dependendo da vontade do
homem e, sendo por isso, inevitável, o nsco na sociedade industnal
clássica passou a depender de ações dos indivíduos ou de forças sociais
(ex.: perigo no trabalho em razão da utilização de máquinas e venenos;
no âmbito social, o pengo do desemprego e da penúna, ocasionado
pelas incertezas da dinânuca econômica etc.). Nesse momento, nas-
ce a ilusão do Estado Segurança.
Em que pese o fato de certos perigos e azares constantemente
ameaçarem determinados grupos, tais riscos eram conhecidos, cup
ocoffência poderia ser prevista e cuJa probabilidade poderia ser (ou
será?) calculada. Mas os nscos contemporâneos são qualitativa e
quantitativamente distintos, pois assumem consequências transgera-
c1onais (pois sobrevivem aos seus causadores) e marcados pelo que
Beclc chama de g/ocalidade (globais e locais ao mesmo tempo).
l 04. Invocando Beck, Goldblatt ("A socIOlogrn de nsco- Ulrích Beck", p. 232)
ena o exemplo da poluição causada por uma s1dernrgrn ou fundição, no século XIX
ou meados do sécu1o XX: o lixo produzido unha consequências relevantes em nível
local para ::is pessoas que trabalhavam lá e para a comunidade local, que bebia a água
e respirava o ar contamrnado. Conrndo, essa ameaça (mesmo considerando todas as
siderurgias do mundo) não alcançava populações mtem1s, nem o planeta no seu todo.
105. GOLDBLATI, "A sociologia de nsco - Ulrich Bcck", p. 233.
80
Ademais, é patente a desconstrução dos parâmetros culturais
traáicionais e as estruturas instituc10nms da sociedade mdustnal
(classe, consciência de classe, estrutura familiar e demarcação de
funções por sexo). Não há estratificaçãoeconômica rígida, funções
demarcadas por sexo e núcleo familiar. Todo o oposto.
O mito do Estado Segurança cai por teffa quando se verifica a
fragilidade de seus postulados. Beck'º6 Justifica o estado de insegu-
rança sustentando que
a dimensão dos nscos que enfrentamos é tal, e os meios pelos quais
temamos lutar contra eles, a nível polítíco e mst1tuc10nal, são tão de-
ploráveis, que a fina capa de tranquilidade e normalidade é constante-
mente quebrada pela realidade bem dura de perigos e ameaças inevi-
táveis.
Por conseguinte, as atuais formas de degradação do ambiente
atingem a todos indistintamente, ou seja, não há que se considerar
qualquer tipo de baneira social ou geográfica como meto de proteção
contra tais pengos. Os gases poluentes emitidos pelos automóveis
que circulam nas grandes cidades atmgem da mesma forma ncos e
pobres, causando-lhes os mesmos problemas respiratórios, assim
como o fato de morar na perifena de uma grande cidade ou em um
baiffo nobre não protege nmguém de uma catástrofe.
O risco também está no trabalho e manifesta-se pelo desempre-
go estrutural em larga escala e a longo prazo. Não há mais estrutura
de trabalho por sexo; há uma queda do trabalho por tempo mtegral e
o aumento das Jornadas parciais; operou-se um rompimento da es-
trutura tradicional do emprego regular (vitalício); flexibilidade geral
das relações. Tudo isso gera uma grande msegurança econômica que
se vai alastrar em todo feixe de relações dos mdivíduos.
Também na esfera das relações afetivas e na própria estrutura
familiar, o risco está mais presente do que nunca. No núcleo familiar,
não há mais a distinção entre trabalho doméstico (não remunerado e
educação dos filhos) e trabalho assalariado (pnvat1vo do homem).
Está consagrada a decadência do patriarcado. Intensificou-se a mdi-
vidualização com o rompimento das funções tradicionais (homem e
106. GOLDBLATI, David. "A sociologia de risco - Ulnch Beck", p. 240.
81
mulher) e das forças ideológicas que ajudavam a "prender" as pessoas.
A msegurança multiplicou-se em relação ao núcleo familiar com o
divórc10, patermdade ou matermdade unilateral e também implica
uma nova dinâmica das relações mterpessoais, em que o casar-se
passa a um segundo plano, valonzando-se mais a realização profis-
sional e o individualismo (logo, relac10namentos afetivos superficiais).
A dinâmica do tempo curto e a ditadura do mstantâneo poten-
cializam esse nsco das relações afetivas, pois não existem mais os
longos namoros, seguidos de noivado e casamento pai·a toda a vida.
As pessoas "ficam", o que significa a mms completa falta de co;11-
promisso com o passado e de comprometunento com o futuro. E o
presenteísmo em grau máximo.
Que dizer do "futuro"? É totalmente contmgente, pois - explica
Ost107 - se opera uma ruptura com a experiência vulgar do tempo -
enquanto simples recondução do passado - pots tudo se torna possí-
vel. O futuro é verdadeiramente contingente, indeterminado; o ms-
tante é verdadeiramente instantâneo, suspenso, sem sequência previ-
sível ou presenta. ProJetos e promessas (impulso prometeico) perdem
toda pertmêncta. É a mcerteza elevada ao quadrado.
Mms radical, Comte-Sponville 108 chama de nadificação. Mais do
que isso, é a nadificação do nada, pois o passado não existe, uma vez
que Já não é, nem o futuro, Já que ainda não é. E o presente se divide
num passado e num futuro que não existem. Logo, é o nada, pois,
ell/re dois nada: o tempo sena essa nadificação perpétua ele tudo.
Sob outro aspecto, mdo além nessa análise, é importante consi-
derar que vivemos numa sociedade em busca ele valores (parafrasean-
do a obra109 de Prigogine e Morin).
Nessa busca de valores, devemos considerar que estamos numa
sociedade pós-moralista"º, que, liberta da ética de sacrifíc10s, é do-
107. O tempo do diretto, p. 324.
108. COMTE-SPONVILLE. André. O ser-tempo, p. 18.
109. MORIN, Edgar; PRIGOGINE, Ilya et a!. "A sociedade cm busca de
valores". Para fugir à altemattva entre o cepticismo e o dogmatismo.
i 10. Gilles Lipovetsky ("A era do após-dever", p. 30-3 l) explica que existem
três fases essenciais na h1stóna da moral ocidental. A pmne1ra é marcada pelo mo-
82
mmada pela feiictdade, pelos deseJOS, pelo ego e pelos dire!los sub-
Jetívos, sem qualquer ideal de abnegação. E mais, tais benefícios
devem ser obtidos a curto prazo, pois igualmente 1nsendos na lógica
da aceleração, na qual qualquer demora é vista como um sofnmento
msuportável.
São fatores que conduzem a um individualismo sem regras, sem
limites, desestruturado e sem futuro. Esta é apenas (mais) uma das
faces das nossas sociedades, que não, sepultou a moral, senão gue a
desep no mesmo nível de complexidade (uma moral à la carte dína
Lipovetsky 111 , pots sentimental, intermitente, epidérmica, uma últuna
forma do consumo interativo de massa, eis que fortemente mfluen-
ciada pelo discurso midiático). Até mesmo em torno da moral rema
a mais absoluta mcerteza, pois evidente o estado de guen-a entre "os
vános ttpos de moral",
Outra face importante das nossas sociedades contemporâneas é
o mfantilis1110 11 2, externado pelo dese;o e pelo consunusmo, fazendo
despertar a cnança que existe em cada um de nós. Aliado ao deseJo
infantil de tudo possuir, não sabemos lidar com o tempo e a recusa.
Uma vez mais estamos msendos na urgência ( da sattsfacão do dese-
jo), na qual qualquer demora é um retardo doloroso e ,~suportável,
não queremos e não precisamos esperar, pms lançamos mão do cré-
dito, provocando um verdadeiro curto-c,rctuto no tempo, como defi-
ne Bruckner113 O crédito permite fazer desaparecer, como que por
passe de mágica, o mtervalo entre deseJo e satisfação, insenndo-nos
mento teológico da moral, cm que ela era mseparável dos mandamentos de Deus e
da Bíblia. A segunda fase, que imcia no final do século XVII, é la1co-moralista. em
que se busca fundar as b~scs de uma moral mdependente dos dogmas relig10s0s e
da autondade da 1greJa. E uma moral pensada a parur da racmnatidade, em que o
homem pode alcançar uma vida moral sem a aJuda de Deus e dos dogmas teológicos.
Por fim, a tercctra fase é a "pós-moralista" e contrnua com o processo de seculan-
zação posto em marcha nos séculos XVII e XVIII. É uma sociedade que cst1muia
mms os desejos, a felicidade e os dircttos subjetivos, sem a cultura da ética de sacn-
fícios.
111. LIPOVETSKY, Gilles. "A era do após-dever". p. 35,
112. BRUCKNER, Pascal. "Filhos e vítimas: o lempo da mocêncm"., p. 55.
113. Ibidem, p. 56.
83
numa perspect1va (imediatista) típicamente infantil, da criança que
não conhece a renúncia.
Como se não bastasse isso, os Jovens de 1968 ( do histórico maio
de 1968) cresceram, tornando-se, eles própnos, pais. E, quando isso
ocon-eu, não ensrnaram outra coisa aos seus filhos do que a recusa a
qualquer alllondade. É uma geração domrnada pela ideologia de
renunciar à renúncia. Isso, obviamente, acan-eta graves problemas,
na medida em que o conflito com o direito (limite e imposição de
renúncia) é inevitável e doloroso. Isso gera, ao mesmo tempo. vio-
lência e insegurança.
Desnecessáno seguir, país o rísco, a 1nce11eza e a insegurança
estão em tudo. Nem sequer o sexo virtual, tido como seguro, ficou
imune ao nsco. Os vírus da internet, cada vez mais sonate!fos e
destrutivos, acabaram com qualquer esperança de "segurança".
Vivemos mseridos na mais compíeta epistemologia da incerteza.
Como consequência desse cenário de risco total, buscamos no direi-
to penal a segurança perdida. Queremos segurança em relação a algo
que sempre ex1stm e sempre existirá: v10lência e insegurança.
Aqui devemos fazer uma pausa e destacar que mmto se tem
manipulado o discurso para utilizar esses novos riscos como legiti-
mante da mtervenção penal. Não é essa nossa posição.
Estamos de acordo com Carvalho1", de que o direito penal (e
também o processo penal), "ao assumir a responsabilidade de forne-
cer respostas às novas demandas (aos novos nscos), redimensiona,vez mais, sua estrutura" num "narcísísn10 infantil" 115, Surge do ""de-
líno de grandeza (messianismo) decorrente da autoatribuição do
papel de proteção dos valores mais caros à humamdade, chegando a
assumir responsabilidade pelo futuro da civilização (tutela penal das
gerações futuras); estabelece uma relação consigo mesma que a
transforma em objeto amoroso".
114. CARVALHO, Sala de ... A ferida narcís1ca do direito penal (pnmeiras
observações sobre as ( dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea)",
p. 189.
I 15. Ibidem, p. 206.
84
Esse cenáno conduz à onipotência que mcapacita o direito penal
a perceber seus própnos limites, inviabilizando uma relação madura
com os outros campos do saber (interdisciplinaridade). Ao não dia-
logar, o direito penal não percebe a falência do monólogo científico,
o que conduz ao agravamento da crise e do própno autismo jurídico.
Nossa abordagem situa-se nessa dimensão: reconhecer o nsco
para legitimar um sistema de garantias mínimas. É fazer um recorte
garantJdor e não penalizador na sociedade do nsco.
Para concluir, recordemos a lição de Gauer116 de que
v10lêncrn é um elemento estrutural, mtrínseco ao fato social e não o
resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extmção. Esse
fenômeno aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de
qualquer civilização ou grupo humano: basta atentar para a questão da
violência no mundo atual, tanto nas grandes cidades como também
nos recantos mais isolados.
1.8.2. Epistemologia da incerteza
Aliado a tudo isso, a epistemologia da incerteza e a relatJvidade
sepultam as "verdades reais" 117 e os "juízos de certeza ou segurança"
(categorias que o direito processual tanto utiliza), potencializando a
insegurança.
Com Einstem e a relatividade, sepultou-se de vez qualquer
resquíc10 dos Juízos de certeza ou verdades absolutas:
a mesma paisagem podia ser uma c01sa para o pedestre, outra cmsa
totalmente diversa para o motonsta, e amda outra coisa diferente para
o aviador. À verdade absoluta somente poctena ser determmada pela
soma de todas observações relativas 118
Hawking 119 explica que Einstein derrubou os paradigmas da
época: o repouso absoluto, conforme as experiências com o éter, e o
116. "Alguns aspectos da fenomenologia da v10lêncrn", p. 13 e ss.
117. Sobre o mito da verdade real e sua desconstrução, remetemos o leitor
para nossa obra Direito processual penal, publicada pela Editora Saraiva.
I 18. EINSTEIN. Vida e pe11same11tos. p. 16-18.
119. HAWKING, Stephen. O umverso numa casca de noz, p. 11.
85
tempo absoluto ou universal que todos relógios mediriam. Tudo era
relativo 120, não havendo, portanto, um padrão a ser segmdo.
Partmdo da premissa de que todo saber é clataclo, Einstein dis-
tin aue uma teoria verdadeira de uma falsa a partir do seu prazo de
~ . .
validade: maior tempo para a primeira, tal como décadas ou anos; Ja
d
. . !'li
para a desmistificação da segunda, bastam apenas ias ou mstantes - .
Nesse ínterim, "somente há uma verdade científica até que ou-
d . . H\ 2'J e On tra venha a ser descoberta para contra 1zer a anterior -. aso e -
120. Contudo, ensma Hawkíng ( ob. c1t., p. 79), "a relatividade geral falhou ao
tentar descrever os momentos m1c1ats do umverso porque não rncorporava o princí-
pio da mccrteza, o elemento aleatóno da teona quânttca a que Einste~n tmha se
oposto, como o pretexto de que Deus não Joga d_ados" (recordemos da celebre f~ase
de Einstem: "Deus não Joga dados com o Umverso"). Mas, ao que tudo mdtca,
prossegue Hawking, é que Deus scJa um grande Jogador, onde o Unn:erso não pas-
sa de um imenso cassmo, com dados sendo lançados e roletas girando a todo mo-
mento. Existe um grande nsco de "perder dinheiro" a cada lançamento de dados,
mas existe uma previsibilidade (probabilidade), senão os propnetános de Cassinos
não seriam tão ncos! O mesmo ocorre com o grande u111verso que temos hoJe, em
que existe um número enorme de lançamento de dados, cm que a média de resulta-
cios pode ser prevista. É aqui que as leis clássicas da física_ func10nam: para_ os
urandes sistemas. Sem embargo, quando o u111verso é mmúsculo, como o era prox1-
~no a época do big-bang, "o número de lançamentos de dados é pequeno, e o pn~-
cipio da mcerteza é mmto importante" Aqm está a falha da relat1~1ct__:1cte, ao n~o
mcorporar esse elemento alcatóno da mcerteza. Hoje, a_mcerteza esta tao arraigada
nas diferentes dimensões da vida (econo1ma, soc!Ologta, antropologia etc.) que a
discussão supera a fase da "probabilidade". para atmgir o nívei da "possibilidade'_',
ou amda das "propensões'': como defimu Karl Popper (_ao longo da obra Um ,mmdo
de propensões), para quem "a tendência para que as médias estatísticas se man~enham,
se as condições se mantiverem estave1s, é uma das características mais notavets do
nosso umverso. Sustento que isso só pode ser explicado pela teona da propensão
que são mais do que meras possibilidades, são mesmo tendências ou propensões
para se tornarem realidade; ou propensões para se realizarem a s~ mesmas, as quais
estão merentes a todas as possibilidades em vânos graus e que sao algo corno urna
força que mantém as estatísticas estáveis" ( ob. cH., p. 24). A propensão, entendemos,
poden·a ser defirnda como uma "possibilidade qualificada". conduzmdo assim ao
abandono da categona "probabilidade" diante do pnncip10 da mcerteza.
121. VIRILIO, Paul. A mércw polar, p. 19.
12:2. THUMS, Gilberto. Sistemas processums penms: tempo, dromologia,
tecnologia e garant1smo, p. 21.
86
tráno, a vida se resumma em reproduzir o conhecimento científico
dos antepassados, assim co1no não havería 111ot1vo para a ciência
buscar novas fronteiras.
Em síntese, a ciência estrutura-se a partir do pnncíp10 da mcer-
teza. E por causa dele
não haverá apenas uma históna do um verso contendo vida ínteiigen-
te. Ao contráno: as h1stónas no tempo 1magmáno serão toda uma
família de esferas ligeiramente defo'rmadas, cada uma corresponden-
do a uma h1stóna no tempo real na qual o universo mfla por um
Jongo tempo, mas não indefimdamente. Podemos então perguntar
qual dessas histónas possíveis é a mais provável L:3
Essa mcerteza também está mtimamente relac10nada com a
noção defutum cont111geHte, em que se opera uma ruptura com a ex-
periência vulgar do tempo - enquanto simples recondução do passa-
do-, p01s tudo se torna possível. O futuro é verdadeiramente contm-
gente, indetermmado, o instante é verdadeiramente instantâneo.
suspenso, sem sequência previsível ou presenta 124 • Pro1etos e promes-
sas (impulso promete1co) perdem toda pertmência. É a incerteza
elevada ao quadrado.
Como aponta Ost125 , "toda ciência começa por uma recusa [ ... ]
o espírito científico mede-se pela sua capacidade de requestionar as
certezas do sentido comum - tudo aquilo que Bacllelard designava
pelo nome de obstáculo ep,stemológico", pois "uma teoria nunca
pode ser provada positivamente, nem defi111tivamente: lá pelo facto
de termos contado milhares de cisnes brancos, como poderíamos ter
a certeza de não existir pelo menos um que fosse preto?" A ciência
está sempre em suspenso.
Nessa perspectiva de mcerteza, a ordem é, pois, excepcional: é
o caos que é regra.
A própna democracia é uma "política de mdetenmnação", pois
torna o poder mfiguráveL Ao contráno elo totalitarismo, explica
123. HAWKING, Slephen. O universo numa casca de noz., p. 94.
124. OST. Franç01s. O tempo do direito, p. 324.
125. Ibidem, p. 327.
87
Ost'", na democracia mnguém tem o direito natural de deter o poder.
Ninguém pode aspirar exercê-lo de forma durável. Nenhuma força
ou partido poderá apropnar-se do poder, senão por meio do abuso.
Enquanto o totalitarismo enadica o conflito e reduz toda espécie de
oposição, a democracia está baseada no pluralismo de opiniões e na
sua oposição conflitual (é uma visão de caos como regra). A demo-
cracia não elimina o conflito, apenas tenta garantir um desfecho ne-
gociável (por meio de procedimentosaceitos). Nunca há uma con-
clusão, n1as apenas uma decisão que gera um acordo apenas parcial,
uma verdade aproximada.
Inserida na epistemologia da mcerteza, a democracia está cen-
trada num conflito mterminável, pois ela é essencialmente transgres-
siva e desprovida de base estável. Recordemos que, ellmologicamen-
te, político não se refere apenas a polis, mas também apoiemos, isto
é, à guena, de forma que o espaço político não é apenas aquele re-
conciliado e harmônico, da ordem consensual, mas também do con-
flito. A arte consiste em transformar o antagonismo potencialmente
destrmdor em agonismo democrático'".
1.8.3. Risco endógeno: processo como guerra ou jogo?
Mas o nsco e a incerteza não estão apenas fora ou em torno do
processo. São merentes ao próprio processo, seja ele cJVil ou penal.
A noção de processo como relação jurídica, estruturada na obra
de Bülow 128, f01 fundante de equivocadas noções de segurança e
igualdade que brotaram da chamada relação de direitos e deveres
estabelecidos entre as partes e entre as partes e o juiz. O en-o foi o de
crer que no processo penal houvesse uma efetiva relação jurídica,
com um autêntico processo de partes.
A teona do processo como uma relação jurídica (a seguir ana-
lisada no Capítulo "Teonas acerca da natureza jurídica do processo
126. Ibidem, p. 332.
127. OST, François. O tempo do direuo. p. 335.
128. Desenvolvida na obra La teoría de Las e.xcepciones dilatonas y los pre-
sup11estos procesaies publicada (ongmaJ em aiemão) em 1868.
88
(penal)") é um marco relevante para o estudo do conceito de partes,
principalmente porque representou uma evolução de conteúdo demo-
crático-liberal do processo em um momento em que o processo penal
era visto como uma simples intervenção estatal com fins de "desm-
fecção social" ou "defesa social" 129 Com certeza, foi mmto sedutora
a tese de que no processo havena um snJe1to que exercitasse nele
direitos subjetivos e, plincipalmente, que poderia exig1r do JlllZ que
efetivamente prestasse a tutela Jurisdicional solicitada sob a forma de
resistência (defesa). Apaixonante, ainda, a ideia de que ex1stma uma
relação 3urídica, obrigatólia, do JUIZ com relação às pai-res, que tenam
o direito de lograr por meio do ato final um verdadeiro clima de le-
gaJidade e restabelecimento da "paz social"
Tal relação devena mstaurar-se entre as partes (MP e réu) e o
juiz, dando origem a uma rec1proc1dade de direitos e obrigações
processuais. Ademais, a existência de partes constitm uma exigência
lógica da mst1tmção, da própria estrutura dialética do processo, pois,
dogmaticamente, o processo não pode ser concebido sem a existência
de partes contrapostas, ao menos in potentw 130•
Mas a tese de Bülow gerou diversas críticas e, sem dúvida, a mais
apropriada veio de James Goldschmídt e sua teoria do processo como
situação jurídica, tratada na sua célebre obra Prozess ais Rechts/age,
publicada em Berlim em 1925 e posteriormente difundida em diversos
outros trabalhos do autor. Goldschm1dt ataca, primeiramente, os pres-
supostos da relação jurídica, em seguida, nega a existência de direitos
e obrigações processuais, ou seja, o própno conteúdo da relação e,
por fim, reputa defirntivamente como estática ou metafísica a doutn-
na vigente nos sistemas processuais contemporâneos. Nesse sentJdo,
os pressupostos processuais não representam pressupostos do pro-
cesso, deixando, por sua vez, de condicionar o nascimento da relação
Jurídica processual para ser concebidos como pressupostos da decisão
sobre o mérito. Interessa-nos, pois, a crítica pelo viés da inércia e da
129. BETIIOL, Guiseppe. lnstltt1c10nes de derecho penal y procesal penal,
p.243.
130. GUASP, Jaime. "Adm1msu·ación de justicrn y derechos de la personali-
dad". p. 180 e ss.
89
falsa noção de segurança que traz ínsita a teona do processo enquan-
to relação Jurídica. F01 Goldschrmdt quem evidenciou o caráter di-
nâmico do processo ao transformar a certeza própna do direito ma-
tenal na mcerteza característrca da atividade processual. Na síntese
do autor, durante a paz, a relação de um Estado com seus temtónos
de súditos é estática, constltm um impéno intangível.
Sem embargo, ensma Goldschmidt,
quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os di-
reitos maís intangíveis se convertem em expectativas, possibilidades
e obrigações, e todo direito pode se aniquilar como consequência d.e
não ter aproveitado uma ocasião ou descmdacto de uma obngação;
como, pelo contrár10, a guerra pode proporcionar ao vencedor odes-
frute de um direito que não lhe corrcsponde131 .
Ficamos apenas nessa mtrodução, pois a Teona de James Golds-
chmidt será analisada com profundidade no próximo capítulo, quan-
do trataremos da "natureza Jurídica do processo penal".
Essa rápida exposição do pensamento de Goldschm1dt serve
para mostrar que o processo - assim como a guerra - está envolto
por uma nuvem de incerteza. A expectatrva de uma sentença favorá-
vel ou a perspectiva de uma sentença desfavorável está sempre pen-
dente do aproveitamento das chances e da liberação de cargas. Em
nenhum momento, tem-se a certeza de que a sentença será proceden-
te. A acusação e a defesa podem ser verdadeiras ou não; uma teste-
munha pode ou não dizer a verdade, assim como a decisão pode ser
acertada ou não Uusta ou inJusta), o que evidencia sobremaneira o
nsco no processo.
O mundo do processo é o mundo da instabilidade, de modo que
não há que se falar em Juízos de segurança, certeza e estabilidade
quando se está tratando com o mundo da realidade, o qual possui
nscos que lhes são merentes.
É evidente que não existe certeza (segurança), nem mesmo após
o trânsito em JUigado, pois a cmsa JUigada é uma construção técmca
do direito, que nem sempre encontra abngo na realidade, algo assim
13 l. Pr111cíp1os gemrs do processo civil, p. 49.
90
como a matemática, na visão de Einstem 132. É necessário destacar
que o direito material é um mundo de entes irreais, vez que construí-
do à semelhança da matemática pura, enquanto o mundo do proces-
so, como anteriormente mencionado, identifica-se com o mundo das
realidades (concretização), pelo qual há um enfrentamento da ordem
Judicial com a ordem legal.
Por derrade!fo, tanto no Jogo (Calamanclrei) como na guerra
(Goldschmidt), importam a estratégia e o bom manuseio das armas
disponíveis. Mas, acima de tudo, são atividades de alto nsco, envol-
tos na nuvem de mcerteza. Não há como prever com segurança quem
saírá vitorioso. Assim, deve ser visto o processo, u1na situação Jurí-
dica dinâmica mserida na lógica do nsco e elo gi11oco. Reina a incer-
teza até o final. A consciência dessa realidade processual é funda-
mental para definirmos 11111 sistema de garantias mínimas e talllbém
demarcar o melhor possível o espaço dectsóno. Importante com-
preender que a assunção da incerteza e da msegurança diz respeito
à dinânlica do processo e não significa, em. hipótese algunza, que
este1a111os avalizando o "decis1oms1110 " 133
1.8.4. Assumindo os riscos e lutando por um sistema de
garantias mínimas
Em que pese o risco inerente ao Jogo ou à guen-a. em qualquer
dos dois casos é necessário definir um sistema (aincla que mínimo)
de regras (limites).
Diante desse cenário de nsco total em que o processo penal se
insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias
mínunas. Não é querer resgatar a ilusão de segurança, mas sim assu-
132. Ensrna Einstcm (ob. c1t., p. 66-68) que "o prmcíp10 criador reside na
matemática; a sua certeza é absoluta, enquanto se trata de matcnütJca, abstrata, mas
dimmm na razão direta de sua concretização( ... ) as teses matemâucas não são certas
quando relac1onactas com a realidade e, enquanto ccrlas, não se rc!ac10nam com a
realidade"
133. Sobre os pengos do ·'dec1s1omsmo" e o "solipsismo" recomendamos a
leitura de Lemo StrecK, entre outros, na obra O que é isto-deodo conforme a ,mnha
consciêncra?.
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m1r os nscos e definir uma pauta de garantias formais das quais não
podemos abnr mão. É partir da premissa de que a garantia está na
forma do instrumento Jurídico e que, no processo penal, adquire
contornos de lirrutação ao poder punitivo estatal e emancipador do
débil submetido ao processo.
Nessa linha, pensamos que se deve maximizar a eficácia das
garantias do devido processo penal"'·
a) }ltnsdicionalidade: especialmente no que tange ao juiz natu-
ral e à imparcialidade;
b) princípw acusatório (ou dispositivo): fundando o sistema
acusatóno em conformidade com a Constituição;
c) presunção de mocêncza: enquanto pré-ocupação de espaços
mentais ( do julgador) e, portanto, no viés de "dever de trata-
mento" e "regra de JUigamento";
d) ampla defesa e contraditório: ainda que distintas, são duas
garantias que mantêm íntima relação e interação, necessitan-
do ser maximizadas no processo penal;
e) monvação das decisões: especialmente no viés de legitimação
do poder JUnsdicional exercido e instrumento de controle
contra o "decis10nismo" e o arbítrio.
Não se trata de mero apego incondic10nal à forma, senão de
considerá-la uma garantia do cidadão e fator legitimante da pena ao
final aplicada.
Mas - é importante destacar- não basta apenas defimr as regras
do jogo. Não é qualquer regra que nos sen>e, pois, como sintetiza
Jacinto Coutmho135,. devemos ir para além delas (regras do jogo),
definindo comra quem se está jogando e qual o conteúdo ético e
axwlógzco do próprio Jogo.
134. Agm apenas vamos indicar a base pnncip1ológica. Sugenmos a leitura
da nossa obra Diretto processual penal, publicada pela editora Saraiva, onde apro-
fundamos a análise e problematização de todos e cada um deles.
135. COUTINHO, Jacmto Nelson de Miranda. "O papel do novo juiz no
processo penal" Crf1ica à teona geral do direito processual penal, p. 47.
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Nossa análise situa-se nesse desvelai· do conteúdo ético e axio-
lógico do jogo e de suas regras, indo muito além do mero (paleo)
positivismo. Estamos com Bueno de Carvalho 136 ao defender a posi-
tividade combativa, segundo a qual devemos lutai· pela máxnna efi-
cácia dos direitos e das garanl!as fundamentais, fazendo com que
tenham vida real. Como define o autor:
É o reconhecimento de que o direito positivado, por muitas vezes,
resume conquistas democrátícas (embora outras tantas vezes não seJa
aplicado). E, em tal acontecendo, há que se o fazer v1ger137
Tampouco podemos confillldir garantias com impzlllidade, como
insistem alguns defensores do terronsmo penal, subvertendo o eixo
do discurso. As garantias processuais defendidas aqui não são gera-
doras de 1mpumdade, senão legitrmantes do próprio poder punitrvo,
que, fora desses limites, é abusivo e perigoso.
A discussão, como muito, pode situar-se no campo da relação
ônus-bônus. Que preço estamos dispostos a pagar por uma "seguran-
ça" que, como apontado, sempre será mais simbólica e sedante do que
efetiva e que, obviamente, sempre terá uma grande margem de falha
(ausência de controle)? De que parcela da esfera de liberdade indivi-
dual estamos dispostos a abnr mão em nome do controle estatal?
É aceitável que - em situações extremas e observadas as garan-
tias legais - tenhamos de nos sujeitar a uma interceptação telefônica
judicialmente autorizada, por exemplo. Contudo, será que estamos
dispostos a permitir que essas conversas seJam reproduzidas e explo-
radas pelos meios de comumcação?
Em defimtlvo, é importante compreender que repressão e ga-
rantias processuais não se excluem, senão que coexistem. Radicalis-
mos à parte, devemos incluir nessa temática a noção de simulta11e1-
dade, em que o sistema penal tenha poder persecutóno-pumt1vo e,
136. BUENO DE CARVALHO, Amilton. Teorw e prática do direito alterna-
llvo, p. 56-57. Consulte-se, também. a excelente obra de Diego J. Duquelsky Gomez,
Entre a lei e o direito.
137. Idem.
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ao mesmo tempo, esteja limitado por uma esfera de garantias proces-
suais (e individuais).
Considerando que nsco, v10lência e insegurança sempre existi-
rão, é sempre melhor nsco com garantias processums do que risco
com autoritarismo.
Em última análise, pensamos desde uma perspectiva de redução
de danos, em que os princípios constitucionais não significam "prote-
ção total" (até porque a.falta, ensina Lacan, é consututiva e sempre lá
estará), sob pena de incidirmos na errônea crença na segurança (e
sennos vítimas de nossa própna crítica). Trata-se, assim, de reduzir os
espaços autontános e dimmuir o dano decotTente do exercício (abusi-
vo ou não) do poder. Uma verdadeira política processual de redução
de danos, pois, reptta-se, o dano, como a.falta, sempre lá estará.
Ademais, é preferível um sistema que falhe em alguns casos por
falta de controle ( ou de limitação da esfera de liberdade individual)
do que um Estado policzalesco e prepotente, pois a falha existirá
sempre. O problema é que, nesse último caso, o risco de mocentes
pagarem pelo erro é mfimtamente ma10r e este é um custo que não
podemos tolerar sem resistir.
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