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LETRAS (PORT) MANIFESTAÇÕES BARROCAS E ARCADISMO NA LITERATURA BRASILEIRA Djalma Rebelatto de Gouveia MANIFESTAÇÕES BARROCAS E ARCADISMO NA LITERATURA BRASILEIRA Apresentação Caro Aluno Vamos enveredar pelos caminhos do Barroco e do Arcadismo, dois importantes movimentos literários brasileiros, antes, porém, abordamos a literatura colonial, considerada prolongamento da literatura portuguesa. Se o barroco sintetiza a mentalidade medieval e a renascentista, cujo reflexo na produção literária evidencia angústia e oposição entre mundo material e espiritual; o arcadismo caracteriza-se pelo objetivismo e razão, abordando temáticas da vida simples e bucólica. Em nossos estudos, vamos verificar que essa não é a única diferença entre esses dois movimentos, pois em termos de uso de linguagem há uma dualidade, ou seja, no barroco, evidencia-se o emprego exagerado de metáforas, hipérboles, antítese; no arcadismo observamos uma linguagem mais simples. Professor Djalma Rebelato PLANO DE ENSINO MANIFESTAÇÕES BARROCAS E ARCADISMO NA LITERATURA BRASILEIRA Ementa: Contexto sociocultural e histórico da produção literária da América portuguesa (séculos XVI a XVIII). Autores, obras e questões relevantes para a compreensão da cultura letrada no período. Análise das principais características estilísticas dos textos selecionados. Situação da produção literária da América portuguesa, no quadro internacional. Objetivos Prover o aluno de um referencial teórico-estrutural que lhe permita identificar as principais manifestações artísticas e literárias do Brasil colonial e suas variações significativas ao longo da história. Desenvolver a capacidade analítica e crítica do aluno diante da obra literária, levando-se em conta também outros tipos de linguagem. Levar o aluno a compreender os fatos, a estrutura e o discurso literários, sob uma ótica que privilegia a história do seu desenvolvimento, expressa em textos literários selecionados Programa da Disciplina A Literatura de Informação e Catequética: Carta de Pero Vaz de Caminha, a obra de Anchieta. Barroco: contexto europeu e brasileiro; características; cultimo e conceptismo. O Barroco tardio na arquitetura, manifestações barrocas. A Lírica de Gregório de Matos Guerra, análise de poemas. Padre Antônio Vieira – análise do Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda. Arcadismo ou Neoclassicismo: contexto europeu e brasileiro; características. Inconfidência Mineira e Arcadismo. A obra de Tomás Antônio Gonzaga: Marília de Dirceu e Cartas Chilenas. Cláudio Manoel da Costa. Os Épicos Árcades: Basílio da Gama, O Uraguai; Santa Rita Durão, Caramuru. Pré-Romantismo. Metodologia Adotamos para a disciplina Manifestações Barrocas e Arcadismo no Brasil Colonial uma metodologia que alia a teoria à prática, propiciada por meio de atividades que permitam, a partir de exemplos, a reflexão sobre as manifestações literárias do período citado. Avaliação No sistema EAD, a legislação determina que haja avaliação presencial, sem, entretanto, se caracterizar como a única forma possível e recomendada. Na avaliação presencial, todos os alunos estão na mesma condição, em horário e espaço pré-determinados, diferentemente, a avaliação a distância permite que o aluno realize as atividades avaliativas no seu tempo, respeitando-se, obviamente, a necessidade de estabelecimento de prazos. A avaliação terá caráter processual e, portanto, contínuo, sendo os seguintes instrumentos utilizados para a verificação da aprendizagem: 1) Trabalhos individuais ou a partir da interatividade com seus pares; 2) Provas bimestrais realizadas presencialmente; 3) Trabalhos de pesquisa. As estratégias de recuperação incluirão: 1) Retomada eventual dos conteúdos abordados nas unidades, quando não satisfatoriamente dominados pelo aluno; 2) Elaboração de trabalhos com o objetivo de auxiliar a vivência dos conteúdos. Bibliografia Básica BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 44.ed. São Paulo: Cultrix, 2007. CANDIDO, A. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1989. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 7.ed. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993. 2 v. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2002. CANDIDO, A. Vários escritos. 4.ed. São Paulo e Rio de Janeiro: Duas Cidades e Ouro sobre Azul, 2004. MOISÉS, M. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1986. Bibliografia Complementar BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. Presença da literatura brasileira: das origens ao romantismo. São Paulo: DIFEL, 1974. DURÃO, S. R. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. GAMA, B. da. O Uraguai. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. GONZAGA, T. A. Marília de Dirceu. 27.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. MERQUIOR, J. G. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977. MOISÉS, M. História da literatura brasileira: das origens ao romantismo. São Paulo: Cultrix, 2009. OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A. (Org.). Cronistas do descobrimento. 3.ed. São Paulo: Ática, 2002. PICCHIO, L. S. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997. UNIDADE 1 - INTRODUÇÃO E ORIGENS DA LITERATURA BRASILEIRA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Propiciar conhecimentos sobre a literatura produzida no período colonial brasileiro. Nesta unidade, discutiremos a questão de a literatura colonial brasileira não ser propriamente brasileira e sim prolongamento da literatura portuguesa. Além disso, estudaremos as origens da literatura colonial, no período quinhentista, enfocando as duas mais representativas vozes da época: Pero Vaz de Caminha e o Padre José de Anchieta. ESTUDANDO E REFLETINDO O Brasil e toda a América inserem-se na tradição cultural artística ocidental. Dessa forma, quando a América e o Brasil foram descobertos, o acervo cultural ocidental já contava milhares de anos. Do século VIII a.C ao século V d.C, deu-se a Antiguidade Clássica antropocêntrica devido à expansão do Império Romano e ao apogeu da cultura grega. Foi um período de crença pagã, a mitologia greco-romana, tendo como maiores representantes o grego Homero, autor dos épicos Ilíada e Odisseia, além do latino Virgílio, autor da epopeia Eneida. Com o fim do Império romano, no século V d.C, foram se formando, gradativamente, os reinos, línguas e literaturas europeias. Trata-se do período da Idade Média, que consolidou a Igreja Católica, a qual impôs o teocentrismo à Europa. A forma de expressão literária típica dessa época foi a medida velha medieval, o emprego das redondilhas menor (versos de cinco sílabas) e maior (versos de sete sílabas), uma métrica popular e de fácil assimilação. A literatura medieval compreende dois estilos literários: o Trovadorismo das cantigas líricas e satíricas (séculos XII ao XIV), e o Humanismo (século XV), uma fase de transição para o Renascimento ou Classicismo, tendo, em Portugal, Gil Vicente e seu teatro, como grande representante. No século XVI, também denominado Quinhentismo, as navegações e os descobrimentos, fizeram renascer o antropocentrismo típico da Antiguidade Clássica. Surge o período do Renascimento ou Classicismo, que propagou o paganismo estético, o equilíbrio e o processo racional da criação literária por meio da medida nova clássica, os versos decassílabos empregados em sonetos, no gênero lírico. O grande nome do Classicismo português foi Luís Vaz de Camões, autor de poemas líricos e da grande epopeia Os Lusíadas. Portanto, se as navegações e os descobrimentos são o contextodeste período, foi durante o Renascimento ou Classicismo que a atividade cultural e literária começou a se desenvolver na América e, consequentemente, no Brasil. No entanto, durante os séculos XVI (Quinhentismo, Renascimento ou Classicismo), XVII (Seiscentismo ou Barroco) e XVIII (Setecentismo, Arcadismo ou Neoclassicismo), o Brasil era colônia de Portugal. Disso decorre um questionamento que tem gerado muita polêmica entre os críticos e historiadores literários: a produção literária colonial é literatura brasileira, já que o Brasil nem mesmo era um país independente? Optaremos pela posição de que a literatura colonial, embora seja de grande importância como fase de preparação para uma literatura nacional, não é propriamente brasileira. Você deve estar se perguntando, por quê? Embasaremos nossas respostas, principalmente, no posicionamento do crítico Antônio Cândido, cuja obra Literatura e Sociedade fica como sugestão de aprofundamento deste assunto. Mas vamos às argumentações. A literatura colonial não é propriamente brasileira pelos seguintes motivos: O Brasil- Colônia era constituído de “ilhas sociais”, pequenas cidades e vilarejos isolados pela extensa costa litorânea brasileira ou próximos ao litoral, o que dificultava a recepção das obras e a formação de uma identidade nacional, a qual até hoje é questionada, apesar da unidade linguística e territorial; O escritor ou era português ou descendente de portugueses que estudavam na Metrópole, ou seja, Portugal e, quando retornavam, traziam para cá uma extensão da cultura portuguesa ou europeia, o que também dificultava a formação de uma identidade nacional; O escritor não tinha uma função social, já que as formas de recepção da obra eram escassas. No Quinhentismo, primeiro século da colonização, havia textos que informavam a Metrópole sobre a terra descoberta e obras que visavam à catequese do índio. Os autores eram todos portugueses e o Brasil era apenas assunto dos textos. O nativismo, valorização da terra, tinha a finalidade de atrair colonos, isto é, propagava a dominação portuguesa e não a identidade nacional. No século XVII, período do Barroco, o púlpito das igrejas foi a forma mais utilizada de veiculação das ideias, inclusive dos sermões do Padre Vieira. Gregório de Matos teve sua obra difundida dispersa por Salvador ou cantada em tavernas para um pequeno público. No início do século XVIII, antes da consolidação do Neoclassicismo, houve as Academias dos Esquecidos e a dos Renascidos (Bahia), a dos Felizes e a dos Seletos (Rio de Janeiro), nas quais escritores medíocres eram autores e ouvintes de suas próprias obras. Em meados do século XVIII, consolidou-se o Arcadismo ou Neoclassicismo no Brasil, mais precisamente em Minas Gerais, onde poetas, ao lado de Tiradentes, em vão se rebelaram contra a Metrópole, na conhecida Inconfidência Mineira, buscando a independência de Minas e não propriamente de todo o território nacional. Nesta época, coube ao escritor mineiro Silva Alvarenga, estabelecido no Rio de Janeiro na sua adolescência, ser o criador da Sociedade Literária, que afinal começou a dar um papel social para o escritor, formando um grupo de intelectuais que iriam consolidar a independência do Brasil. Sendo assim, em 1822, quando Dom Pedro I dá o grito da independência, começa a delinear-se a função social do escritor, o qual, em pleno Romantismo, utiliza a obra literária como início da consolidação da nossa independência cultural e literária em relação à Metrópole e à Europa. Dessa forma, a literatura brasileira inicia propriamente no Romantismo, em meados do XIX, embora até hoje busquemos nossa identidade nacional. A questão da formação do nativismo, durante o período colonial, será estudado ao longo desta disciplina. No entanto, antes, é importante frisar que as questões cronológicas, ou seja, datas, que dão início e fim e a cada movimento, são apenas didáticas, pois cada movimento artístico vai se formando lenta e gradativamente. Contudo, apenas para fins didáticos, costuma-se dividir a literatura colonial da seguinte forma: Era Colonial (DE 1500 A 1808) Quinhentismo- início em 1500, com a Carta de Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha; Barroco ou Seiscentismo– início em 1601, com o poema épico Prosopopeia de Bento Teixeira; Arcadismo ou Setecentismo– início em 1768, com a publicação de Obras Poéticas de Cláudio Manuel da Costa e da fundação da Arcádia Ultramarina; Período de Transição (de 1808 a 1836) Envolve a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808; a independência política, em 1822; e o início do Romantismo, em 1836. Era Nacional (de 1836 até os nossos dias) Origens - Quinhentismo O primeiro século de nossa colonização constitui o ciclo do pau-brasil, planta nativa que não exigia cultivo e, por isso, o trabalho de extração era feito principalmente pelo índio por meio do escambo, ou seja, o trabalho em troca de objetos baratos que encantavam o nativo. Não havia ainda, portanto, a necessidade de escravizar o indígena e nem a presença de escravos negros. Dessa forma, as três raças formadoras da miscigenada população brasileira não estavam presentes na terra. O território estava escassamente sendo ocupado apenas na faixa litorânea ou próxima a ela, por meio de povoados e pequenas cidades, quase que totalmente sem contato entre si. É nesse contexto que se darão as origens de nossa literatura colonial, basicamente constituída de textos informativos e catequéticos, produzidos por autores portugueses, sendo O Brasil apenas o assunto. A Literatura de Informação Trata-se de textos, escritos por cronistas, visando a informar a Metrópole sobre a terra descoberta, além de atrair colonos. Não existe, portanto, uma intenção artística. Os principais cronistas foram Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães Gândavo, Gabriel Soares de Sousa e Ambrósio Fernandes Brandão. Também houve cronistas não lusitanos que aqui estiveram e descreveram a terra: Hans Staden e Jean de Lery. Centraremos nosso estudo no primeiro texto escrito em terras brasileiras: a Carta de Pero Vaz de Caminha. Carta de Achamento do Brasil – Pero Vaz de Caminha Foi escrita em 1500, com a chegada da esquadra de Cabral. Predomina no texto a função informativa da linguagem, caracterizada pela clareza e houvemos vista: pudemos ver, chã: plana, praia- palma: segundo o historiador português J. Cortesão, pode significar "toda praia, como a palma, muito chã e muito formosa",Entre Douro e Minho: nome de uma região de Portugal. preocupação com a verdade na descrição da fauna, flora, clima, potencial econômico e habitantes da terra. No entanto, a originalidade e o encantamento do cronista diante das novidades fazem, várias vezes, aflorar no texto também as funções poética e emotiva da linguagem. Esses aspectos quebram a frieza do texto informativo, o que veio a despertar o interesse dos europeus da época e dos leitores de hoje não só na carta de Caminha, mas também nas crônicas de viagens marítimas de outros autores. A função poética é verificada no trocadilho ou jogo de palavras, além de termos no sentido figurado ou conotativo. Já a função emotiva vem à tona, principalmente, pela adjetivação abundante. Estudaremos fragmentos da carta a partir de dois temas mais relevantes: a visão da terra e do índio. A Visão da Terra “Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa.(...) De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa.(...) Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados,como os de Entre-Douro e Minho5, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.” No primeiro período do excerto, observa-se a função informativa do texto, preocupada com a exatidão do relato, ao fornecer coordenadas geográficas e léguas No período seguinte, a frieza do caráter informativo começa a ser quebrada pela adjetivação e pelo advérbio de intensidade, fazendo emergir a função emotiva: “muito chã e muito formosa”. O segundo parágrafo explicita o interesse na exploração econômica da terra, com a intenção de encontrar metais preciosos ou minérios. Embora a busca de minerais tenha sido até então frustrada, o cronista ressalta as condições favoráveis á agricultura, salientando o bom clima e a abundância de água, o que culmina na afirmação: “e em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Esta informação de Caminha gerou a famosa frase usada até hoje por nós, brasileiros, sobre nosso potencial agrícola: “tudo o que se planta dá”. No entanto, ao exceder sobre a intenção de exploração econômica, Caminha logo se corrige, dizendo que a mais importante intenção da Metrópole é a dilatação da fé cristã. Será? Reflita sobre isso, caro aluno. É importante frisar que, ao referir-se à expansão do cristianismo, Caminha faz uso da conotação nos vocábulos “fruto” e “semente”, no sentido não agrícola mas de conversão do índio ao cristianismo. A Visão do Índio A Celebração da Primeira Missa E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.(...) E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.(...) Observe, ao narrar a celebração da primeira missa, a ingenuidade do índio, encantado com o ritual católico, imitando todos os gestos dos portugueses, sem questionar a nova crença, sem perceber o processo de aculturação que começaria a sofrer e que o levaria à escravidão. É o que fica sugerido na fala de Caminha: “E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza”. A Literatura Catequética Padre José de Anchieta 1534 - 1597 alexandreolsson.blogspot.com Trata-se de textos, visando à catequese do índio e à pregação cristão para os colonos. Seus representantes são os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, fundadores da cidade de São Paulo. Destaca-se a poesia e o teatro de Anchieta, de maior valor literário. Devido à essência doutrinária cristã da catequese, sua poesia apresenta conteúdo teocêntrico e, no plano da forma, a medida velha medieval, as redondilhas, de fácil memorização pelos colonos e índios. Portanto, em pleno Renascimento antropocêntrico e da medida clássica (versos decassílabos), sua obra se mantém medieval nos planos da forma e do conteúdo. Observe esses aspectos no excerto do poema A Santa Inês: “Cordeirinha santa, De Jesus querida, Vossa santa vida O Diabo espanta. Por isso vos canta Com prazer o povo, Porque vossa vinda Lhe dá lume novo. Seu teatro também revela o maniqueísmo teocêntrico medieval, pois os deuses indígenas representam o mal e o universo cristão, o bem. Verifique esse aspecto no Auto de São Lourenço em que o diabo, alegoria do mal, tem o nome indígena e São Lourenço, com os padres, alegorizam o bem: “Guaixará: _ Quem é forte como eu? Como eu, conceituado? Sou diabo bem assado. A fama me precedeu; Guaixará sou chamado.(...) São Lourenço: _ Mas existe a confissão, bem remédio para a cura. Na comunhão se depura da mais funda perdição a alma que o bem procura. Se depois de arrependidos os índios vão confessar dizendo: "Quero trilhar o caminho dos remidos". - o padre os vai abençoar.” O modernista Oswald de Andrade, em seu Manifesto Antropófago, viu, na obra de Anchieta, uma forma de aculturar o índio: “Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.” Oswald ironiza Anchieta, ao dizer que este idolatra a Virgem Maria, em suas inúmeras denominações no catolicismo, em plena terra da virgem índia Iracema, personagem do romântico José de Alencar. A protagonista de Alencar deixou-se seduzir pelo português Martim, alegoria da civilização europeia, com ele teve um filho e morreu. O modernista sugere que o destino de Iracema foi o mesmo do índio aculturado por Anchieta: a morte de sua cultura e de sua identidade. A crítica torna-se mais forte ao comparar Anchieta a João Ramalho, português que se casou com a índia Bartira, com a qual teve inúmeros filhos, mas, mesmo assim, escravizou índios. BUSCANDO CONHECIMENTO A carta de Caminha e dos demais cronistas serviu de fonte para os românticos do século XIX e modernistas do século XX. Com a independência do Brasil, no século XIX, os românticos utilizaram a literatura de informação como fonte de pesquisa, visando ao nacionalismo ufanista, ou seja, à idealização da terra e do índio. Já os modernistas do século XX resgataram as crônicas de viagem como forma de criticar o processo de colonização, sob o viés do diálogo intertextual satírico. Observe os textos abaixo e pesquise mais textos destes períodos que retratam a colonização e o índio: I – JUCA PIRAMA “Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo,sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.” (Gonçalves Dias- poeta romântico) A CARTA DE PERO VAZ A terra é mui graciosa, Tão fértil eu nunca vi. A gente vai passear, No chão espeta um caniço, No dia seguinte nasce Bengala de castão de oiro. Tem goiabas, melancias, Bananas que nem chuchu. Quanto aos bichos, têm-nos muitos, De plumagens mui vistosas. Tem macaco até demais Diamantes tem à vontade Esmeraldas é para os trouxas. ( Murilo Mendes, poeta modernista ) UNIDADE 2 - BARROCO - CONTEXTO E CARACTERÍSTICAS CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Contextualizar o momento histórico do Barroco; Explicitar as características do movimento. Nesta unidade, efetuamos o estudo do contexto histórico europeu que desencadeou o estilo barroco e as principais características deste estilo de época, ressaltando os recursos estilísticos. ESTUDANDO E REFLETINDO Século XVII Contexto Histórico Europeu Embora o Barroco seja a arte do século XVII, suas causas históricas começam a delinear-se no século XVI, com o surgimento da Reforma Protestante, gerada por católicos excomungados pelo Papa. Esses católicos que criaram o Protestantismo foram Martinho Lutero e João Calvino que definiram os seguintes preceitos que se opunham à Igreja católica da época: a) oposição à venda de indulgências, por entenderem que a salvação da alma só se dá pelas boas ações espirituais; b) interpretação individual da Bíblia, sem a intervenção do Papa; c) visão do lucro material como um benefício divino e não um pecado, o que atraiu grande parte da burguesia. Por estar perdendo muitos fiéis, a Igreja Católica empreendeu uma reação denominada Contrarreforma, que se definiu no famoso Concílio de Trento, realizado na cidade italiana de mesmo nome. O objetivo do Concílio era conter a expansão do protestantismo e do antropocentrismo clássico. As principais decisões tomadas no concílio foram: a) censura a livros e autores considerados heréticos; b) reaparecimento, com força total, do Tribunal do Santo Ofício ou Santa Inquisição que tinha o poder de prender os hereges, confiscar os seus bens e até mesmo condená-los à morte na fogueira; c) criação da Companhia de Jesus, cujos membros eram os jesuítas, visando expandir o catolicismo de tendência medieval às terras recém-descobertas. d) determinação da lição tridentina, baseada na Bíblia, visando conter o antropocentrismo clássico. A lição tridentina consistia na seguinte máxima bíblica: “O homem veio do pó e para o pó voltará”; ou seja, a Igreja desejava demonstrar a insignificância do homem diante de Deus. Veja a influência da lição tridentina num fragmento da poesia lírico-sacra do poeta barroco brasileiro Gregório de Matos Guerra: “Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te, Te lembra hoje Deus por sua Igreja, De pó te faz espelho, em que se veja A vil matéria, de que quis formar-te.” Consequências do contexto histórico nas artes É evidente que o Concílio de Trento e a Contrarreforma vão influenciar o homem do século XVII, principalmente em países muito enraizados no catolicismo, como Itália, Espanha, Portugal e suas colônias, especificamente o Brasil, já que o homem do século XVII desejava continuar suas grandes conquistas mercantilistas, materialistas, embora a Igreja o forçasse a voltar-se para os valores espirituais, medievais e teocêntricos. Isso fará surgir um artista em conflito, desequilibrado, ora preso aos valores mundanos (antropocêntricos), ora temente a Deus (atitude teocêntrica). Todo esse conflito e desequilíbrio gerará uma arte rebuscada, hermética que se denomina Barroco, nome originado de uma “pérola de formato irregular”; e, em italiano, significa “acumulação”. Como vimos, a arte deste período é irregular e rebuscada. Principais Características Barrocas 1) Fusionismo (Bifrontismo ou Dualismo): tentativa de conciliação do teocentrismo medieval e do antropocentrismo clássico, fazendo aflorar, no texto, ideias antagônicas: céu x terra; homem x Deus, pecado x perdão, carne (flor) x espírito (Anjo), efêmero (flor) x eterno (Anjo). O fusionismo contaminará o texto literário de antíteses e paradoxos ou oxímoros; 2) Pessimismo, Desequilíbrio, Conflito: a lição tridentina levará o artista à consciência da efemeridade das coisas boas da vida e, consequentemente, à valorização do carpe diem: “Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trota a toda ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh, não aguardes, que a madura idade Te converta em flor, essa beleza Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.” (Gregório de Matos Guerra) 3) Intensidade e Feísmo: referência aos aspectos cruéis e dolorosos; desejo de exprimir intensamente o sentido da existência, expressa no abuso da hipérbole, na exacerbação das paixões e sentimentos. 4) Rebuscamento Linguístico: assimilado da pintura, escultura e arquitetura, o rebuscamento se verifica no excesso de figuras de linguagem: metáfora, metonímia, antítese, paradoxo ou oxímoro, hipérbole, hipérbato, anáfora, gradação, quiasmo,etc. Também se difunde a técnica da disseminação e recolha, em que as palavras são disseminadas pela estrofe para serem recolhidas num só verso. Na poesia, a medida nova clássica (decassílabos em soneto) continua sendo a principal forma de expressão. Vamos, portanto, revisar as principais figuras de linguagem que compõem o tecido literário do texto barroco. Figuras de Palavras ou Tropos e o Estilo Barroco As figuras de palavras consistem no emprego de um termo em um sentido diferente daquele em que esse termo é convencionalmente em pregado. No estilo barroco, as mais empregadas são: metáfora, sinestesia, metonímia ou sinédoque. Metáfora Metáfora é a figura de palavra em que um termo substitui outro em vista de uma relação de semelhança ou similaridade entre os elementos que esses termos designam. Essa similaridade é resultado da imaginação, da subjetividade de quem cria a metáfora, pois envolve elementos de universos diferentes. A metáfora também pode ser entendida como uma comparação abreviada, em que o conectivo comparativo e até mesmo a qualidade comum não estão expressos, mas subentendidos. Observe: Minha amada é tão bela quanto aquela garota. (comparação simples) Minha amada é bela como uma flor. (comparação metafórica ou símile) Minha amada é uma flor. (metáfora) Do ponto de vista lógico, a amada é uma pessoa e a flor é uma planta. Mas do ponto de vista da linguagem, o que ocorreu foi a atribuição de determinadas características do elemento B (flor) ao elemento A (amada). De todas as qualidades da flor, destacamos apenas aquelas que consideramos semelhantes às qualidades da amada. No estilo barroco são comuns as seguintes metáforas: a) Anjo – mulher inacessível, pura, platonizada; b) Flor (rosa, planta) – erotismo, prazeres terrenos porém efêmeros; c) Marfim – dentes; d) Sóis – olhos e) incêndio, fogo, ardor – paixão, erotismo; f) mar, água, neve – distanciamento Também verbos têm valor metafórico como em: “Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai, manso Cordeiro.” (Gregório de Matos) A forma verbal “anoitecer” tem valor metafórico, pois subentende morte. Vale ressaltar que as metáforas bíblicas, como “manso cordeiro” (Jesus), são muito comuns no Barroco. Metonímia Substituição de uma palavra por outra mantendo uma relação de contiguidade (proximidade), sendo, portanto, mais objetiva que a metáfora. “Meu Deus, que estais pendente em um madeiro” (Gregório de Matos) Pelo contexto, “madeiro” significa a cruz. Trata-se de uma metonímia, pois a cruz é feita de madeira; portanto, a relação entre cruze madeiro é de proximidade. “A vós correndo vou, braços sagrados,” Nessa cruz sacrossanta descobertos” (Gregório de Matos) Neste contexto, o eu lírico emprega a parte “braços” pelo todo “Cristo”. Alguns autores denominam sinédoque a metonímia que implica a parte pelo todo. “A serpe, que adornando várias cores, com passos mais oblíquos, que serenos, entre belos jardins, prados amenos, é maio errante de torcidas flores;” (Manuel Botelho de Oliveira) No poema barroco acima, a “serpe” (serpente) é metáfora da primavera, que, na Europa, inicia em maio. Logo, “maio” é metonímia ou sinédoque, pois apenas um dos meses que compõem a primavera (a parte pelo todo). O poeta quer dizer que a primavera (maio) é como uma colorida serpente que rapidamente vai enchendo de cores os campos e jardins. BUSCANDO CONHECIMENTO Procure pesquisar as características barrocas em outras modalidades artísticas como a arquitetura, a pintura e a escultura. Veja abaixo exemplos na pintura e escultura. Observe, na pintura do espanhol El Grego, além do excesso de detalhes, a fusão dos planos terreno (morte) e celestial: O Enterro do Conde de Orgaz – El Greco pt.wikipedia.org/.../O_Enterro_do_Conde_de_Orgaz Observe a intensidade dos sentimentos na escultura O Êxtase de Santa Teresa do italiano Bernini. Atente ao rosto da santa, à sinuosidade e ao contorcimento de suas vestes: grupos.emagister.com UNIDADE 3 - FIGURAS DE PENSAMENTO E O ESTILO BARROCO CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Estudar os recursos estilísticos do barroco. Nesta unidade, enfocamos os recursos estilísticos do texto barroco e das correntes cultista e conceptista. ESTUDANDO E REFLETINDO As figuras de pensamento consistem numa alteração anterior ao plano da expressão, ou seja, no próprio processo de elaboração mental da expressão, por exemplo, Você é muito bonita (no plano da expressão não há desvio algum; no plano do pensamento, pode expressar justamente o contrário – ironia). As figuras de pensamento mais empregadas pelos poetas barrocos são: Antítese Emprego de termos de significado diferente, sem gerar uma ideia absurda, por não sugerir simultaneidade. “Nasce o sol e não dura mais que um dia Depois da luz se segue a noite escura.” (Gregório de Matos) Note que os vocábulos “depois”, “se segue” quebram a ideia de simultaneidade e tornam o enunciado facilmente compreensível, pois é natural que, depois da luz do dia, venha a escuridão da noite. Paradoxo ou Oxímoro Ideias contrárias, aparentemente inconciliáveis, absurdas, por apresentar simultaneidade. “Sois anjo que me tenta e não me guarda” (Gregório de Matos) A expressão “sois anjo” é apenas uma metáfora da amada. No entanto, ao contraí-la com “que me tenta e não me guarda”, aflora o paradoxo, pois o natural é um anjo guardar e não tentar, já que a tentação é característica do demônio. Hipérbole É o emprego exagerado de uma ideia ou metáfora que exagera: “Pranto por belos olhos derramados Rio de neve em fogo convertido” (Gregório de Matos) A expressão “rio de neve” é hipérbole, pois implica que as lágrimas da amada são tão intensas que se equiparam a um rio. Gradação ou Clímax Sequência de palavras que intensificam uma ideia. “O trigo nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se” (Padre Antônio Vieira) Apóstrofe Interpelação, invocação, indicando o interlocutor do eu lírico. “Meu Deus, que estais pendente em um madeiro “ Ironia Consiste em sugerir o contrário do que se afirma: “Holanda (protestantismo) vos dará os pregadores evangélicos, que semeiam nas terras dos Bárbaros a doutrina católica (...)” (Padre Antônio Vieira ) Figuras de Construção e o Estilo Barroco As figuras sintáticas ou de construção dizem respeito a desvios em relação à concordância entre os termos da oração e à ordem em que estes termos aparecem, ou ainda a possíveis repetições ou omissões de termos. Zeugma Omissão de um termo citado anteriormente: “Em tristes sombras morre a formosura Em contínuas tristezas a alegria”. (Gregório de Matos) Perceba que o último verso subentende “Em contínuas tristezas (morre) a alegria”. Anáfora Repetição de um vocábulo ou expressão no início do verso ou da oração: “Em cuja lei protesto de viver, Em cuja santa lei hei de morrer” (Gregório de Matos) “Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus, os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome...” (Padre Antônio Vieira) Observe a repetição de “senhores” e “escravos” no início de cada oração, constituindo a anáfora. Contudo fica evidente também a sucessão de antíteses. Hipérbato ou Inversão Alteração da ordem direta dos termos na oração, ou das orações no período (Ordem direta: sujeito – verbo – complementos). Na estrofe abaixo, em todos os versos ocorre hipérbato: “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria.” (Gregório de Matos) Na ordem direta teríamos: O sol nasce e não dura mais que um dia, A noite escura se segue depois da luz, A formosura morre em tristes sombras, A alegria em contínuas tristezas. Quiasmo ou Conversão Repetição, com os termos invertidos em forma de “X”. Observe as antíteses “madrasta” x “madre”; “naturais” x “estrangeiros” na posição de quiasmo: “Senhora dona Bahia, (...) Madrasta dos naturais Dos estrangeiros madre” (Gregório de Matos) Anadiplose É a repetição de palavra ou expressão de fim de um membro de frase no começo de outro membro de frase. “Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade É verdade que vos hei delinquido.” (Gregório de Matos) Correntes Barrocas – Cultismo e Conceptismo No interior da estética barroca, observam-se duas correntes distintas, mas que podem estar presentes em um mesmo texto: o cultismo ou gongorismo e o conceptismo ou quevedismo. Gôngora e Quevedo foram poetas espanhóis que criaram tais estilos. a) Cultismo: relacionado à forma, consistindo no “parecer culto”, apresentando as seguintes características: emprego excessivo de figuras de linguagem, de inversões e pela construção de imagens que envolvem o leitor por meio de estímulos sensoriais (sons, cores, olfato, etc.). Logo, a sinestesia também é figura constante no barroco cultista. predomínio no texto descritivo. agudeza: estilo extremamente conotativo ou figurado. Sobre o Cultismo ou Gongorismo afirmaram os críticos Massaud Moisés e Domício Proença Filho: Em resumo, era a luta por conciliar o claro e o escuro, a matéria e o espírito, a luz e a sombra, no esforço de anular pela unificação a dualidade básica do Homem, dividido entre os apelos do corpo e os da alma. Esse embate encarniçado entre os dois polos, de resultado sempre negativo pois a antinomia permanece ao fim e ao cabo, radica no problema do conhecimento da realidade. Entendendo que conhecer é identificar-se com, assimilar o objeto ao sujeito, parece evidente que a dicotomia barroca (corpo e alma, luz e sombra,etc.) corresponde a dois modos de conhecimento. Primeiro, o conhecimento se faria pela descrição dos objetos, num estado de verdadeiro delírio cromático, em que se procurava saber o como das coisas. Conhecer seria descrever. Visto o processo criativo implicar a utilização de metáforas e imagens para todos os sentidos (a chamada sinestesia), e a poesia se exprimir sobretudo por meio de metáforas e imagens, resulta que essa tendência se manifesta notadamente em poesia. E recebe o nome de Gongorismo por ser o poeta espanhol Gôngora seu grande representante. Seus adeptosprocuram uma linguagem rebuscada, especiosa e rica, e, para consegui-la, consideram de bom tom o emprego de neologismos, hipérbatos, trocadilhos, dubiedades e todas as demais figuras de sintaxe que tornam o estilo pesado, alambicado e tortuoso. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa Há uma preocupação com tornar a linguagem culta. O artista utiliza o latim para criar novas palavras, que acabarão por incorporar-se deliberadamente ao idioma; há uma tentativa de aristocratizar a expressão literária. O uso do hipérbato, isto é, da inversão da frase, é imitação da sintaxe latina, e obedece à mesma preocupação.(...) Na metáfora o autor encontra uma forma de poetizar os objetos vulgares através de objetos poéticos, dentro da intenção geral de aristocratizar a linguagem. Acrescente-se ainda a exibição de um amplo conhecimento da mitologia. PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de Época na Literatura b) Conceptismo: jogo de ideias, de raciocínio, portanto relacionado ao conteúdo, buscando seduzir o leitor pela construção intelectual, formada por meio de: argumentações; analogias ou comparações; diálogos intertextuais, principalmente com a Bíblia; relação causa e efeito; adaptação do silogismo cartesiano para justificar o antropocentrismo e o pecado humano como um bom valor, embora isso acabe implicando sofismas, ou seja, argumentos apenas aparentemente válidos. Sobre a corrente barroca conceptista, afirmou o crítico Massaud Moisés: O segundo modo (de expressão barroca) pressupunha a análise dos objetos no encalço de lhes conhecer a essência, ou melhor, saber o que são as coisas, conceituá-las. Para alcançá-lo, utilizam-se da inteligência e da Razão, mais do que dos sentidos. Ao caos plástico que resulta da descrição gongórica, opõe-se a ordem racionalista, lógica, discursiva, própria de quem procura estabelecer silogismos em torno da vida e das coisas.(...) Recebeu a denominação de Conceptismo, e seu representante típico foi Quevedo. Entenda-se, porém que Gongorismo e Conceptismo, constituem tendências interinfluentes e contemporâneas, inclusive num mesmo escritor.(...) Em muitos casos, torna-se mesmo difícil estabelecer uma nítida distinção entre os dois procedimentos.” MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. Observe que, no trecho final de Massaud, há a referência ao entrelaçamento de cultismo e conceptismo num mesmo texto. A argumentação (conceptismo), por meio de muitas figuras de linguagem (cultismo) denomina-se estilo engenhoso. BUSCANDO CONHECIMENTO A análise da argumentação conceptista barroca exige o conhecimento do conceito e depreensão do silogismo. O silogismo é uma forma de argumentação dedutiva, partindo de uma premissa geral para uma conclusão particular. O silogismo mais famoso é o cartesiano, ou seja, do filósofo René Descartes (1596 – 1650), também conhecido pelo seu nome latino Renatus Cartesius. Vamos examinar o Silogismo Cartesiano (de Descartes): Premissa Maior: Todo ser que pensa existe Premissa Menor: Eu penso Conclusão: Logo existo. O silogismo pode ser utilizado para expor um sofisma, ou seja, uma argumentação enganosa. O silogismo que leva ao sofisma possui premissas verdadeiras mas conclusão falsa. No caso dos textos barrocos, como estudaremos a seguir, o sofisma se dá por obter conclusões incorretas, a partir das semelhanças entre dois conceitos, desprezando-se as diferenças que os separam, como podemos verificar no exemplo: Premissa Maior: Os cidadãos brasileiros devem dirigir os destinos do Brasil. Premissa Menor: Os militares são cidadãos brasileiros. Conclusão: Logo os militares devem dirigir os destinos do Brasil. UNIDADE 4 - BARROCO BRASILEIRO - CONTEXTO BRASILEIRO E PADRE ANTÔNIO VIEIRA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Estudar as manifestações barrocas no Brasil; Propiciar conhecimentos sobre a oratória de Vieira. Nesta unidade, dedicamo-nos ao estudo do contexto das manifestações barrocas no Brasil e da oratória do Padre Antônio vieira. ESTUDANDO E REFLETINDO No Brasil, o movimento barroco iniciou em 1601, com a publicação do poema épico Prosopopeia de Bento Teixeira, português de nascimento. Contexto Histórico Brasileiro O Barroco no Brasil dá-se, portanto, no século XVII (Seiscentismo), apresentando o seguinte contexto histórico local: a) ciclo da cana-de-açúcar no nordeste, tendo, portanto, Bahia e Pernambuco como centros culturais e econômicos, além de Salvador como capital da colônia. b) Início do processo de formação da sociedade e da miscigenada raça brasileira, visto que a atividade açucareira exigia muito trabalho braçal. Disso decorre o início da escravidão do negro. No território, portanto, estavam presentes, agora, as três raças que, miscigenadas, formarão a sociedade brasileira: o branco, o negro e o índio. c) Invasão holandesa no nordeste, desencadeando o primeiro movimento da sociedade local em defesa do território. Disso decorre o início de um sentimento nativista mais forte, porém sem rebeliões contra a metrópole, que só se darão no próximo século. Vale ressaltar que se tratou não só de uma disputa política pelo território mas também religiosa, uma vez que os invasores holandeses eram protestantes e o colonizador português, católico. d) Processo de ocupação do território pela doação de capitanias hereditárias e de grandes extensões de terras, gerando os latifúndios. . e) Tentativa de criar centros culturais, ocorrendo na Bahia, já no final do período Barroco, em pleno século XVIII, a fundação da Academia dos Esquecidos e da Academia dos Renascidos. Como já vimos na aula introdutória, essas Academias produziram obras medíocres e pouco contribuíram para a criação de um público local, já que seus membros escreviam para si próprios. Principais Representantes no Brasil Nascido em Lisboa, mudou-se para o Brasil, com seis anos de idade, quando começou a cursar o Colégio dos Jesuítas de Salvador. Ingressou na Companhia de Jesus como noviço em maio de 1623. No ano seguinte ocorreu a invasão holandesa de Salvador. Ordenou-se padre em 1634. Nesta época já era conhecido pelos seus primeiros sermões, tendo fama de notável pregador. Em 1640, os holandeses são expulsos da Bahia. Vieira parte para Portugal, onde conquista a admiração de D. João IV ,sendo por ele nomeado embaixador e posteriormente pregador régio. Vieira passa a fender os cristãos-novos ( judeus que apenas na aparência se convertiam ao catolicismo para fugirem da perseguição da Inquisição ). Essa defesa aos cristão-novos o fez entrar em conflito com o Santo Ofício, ou seja, a Inquisição. Na verdade,Vieira defendia os judeus pois considerava o poderio econômico destes importante para o enriquecimento do reino português. Voltou para o Brasil onde permaneceu de 1652 a 1661, como missionário no Maranhão e no Grão-Pará, sempre defendendo a liberdade dos índios, os quais o chamavam de “Paiaçu” (Padre Grande). Já quanto ao negro, Vieira posicionava-se favorável à escravidão mas não admitindo os maus tratos. Novamente retorna a Portugal e, anos mais tarde, viaja para Roma, onde fica por seis anos. Com seus sermões, ganha a simpatia do Papa e consegue, com o apoio deste, o fim da Inquisição em Portugal, para onde novamente retorna. Em 1681, regressa ao Brasil, onde se dedicou à tarefa de continuar a coligir os seus escritos, visando à edição completa em 16 volumes dos seus Sermões, iniciada em 1679. As suas obras começaram a ser publicadas na Europa, onde foram elogiadas até pela Inquisição. Em 1694, já não conseguia escrever pelo seu próprio punho. Em 10 de junho começou a agonia, perdeu a voz, silenciaram- se seus discursos. Morre na Bahia a 18 de julho de 1697, com 89 anos. Portanto, Vieira é representante tanto da literatura portuguesa quanto da literatura brasileira. Assim como os poemassatíricos de Gregório de Matos, os sermões de Vieira constituem um importante painel do Brasil no século XVII. Centraremos nossos estudos nos dois maiores representantes deste período: Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra. Padre Antonio Vieira 1608 - 1697 portalsaofrancisco.com.br Estilo Como a essência da oratória ou dos sermões é a argumentação, predomina na obra de Vieira a corrente conceptista. No entanto, pelo estilo engenhoso do orador, ou seja, a adequada aplicação da agudeza (linguagem figurada, figuras de linguagem) à argumentação, afloram em seu discurso fortes traços cultistas, embora Vieira tivesse criticado essa corrente em sua obra prima, o Sermão da Sexagésima, pregado em Portugal. Observe um fragmento deste sermão: “Este desventurado estilo que se usa hoje, os que querem honrar chamam-lhe culto, os que condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra.O estilo culto não é escuro, mas negro braçal e muito cerrado.(...) os pregadores cultistas ficam a motivar desvelos, a acreditar empenhos, e requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras e outras mil indignidades destas(...)" “Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está branco, da outra há de estar negro: se de uma parte está dia, outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver um sermão de duas palavras em paz? todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário?(...) Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro." Vieira adotava o método parenético em seus sermões, o qual consiste em justificar os fatos da época por meio das sagradas escrituras, o Velho e o Novo Testamento, citados em latim, para dar efeito de autoridade. O método parenético faz emergir o fusionismo barroco, visto que os fatos da época, promovidos pelo homem (invasão holandesa, escravidão do negro e do índio, latifúndio açucareiro, perseguição aos judeus, etc.) são de caráter antropocêntrico; já o diálogo intertextual com as sagradas escrituras constitui a vertente teocêntrica. No Brasil colonial seiscentista, o púlpito era um dos raros locais onde se discutiam as grandes questões da comunidade diante de uma grande quantidade de fiéis. Logo os sermões de Vieira apresentam um amplo painel político, econômico e social da época, embora sempre privilegiando a Metrópole. Isso gerou, no século XX, reação do modernista Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago: Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia(...) Vale ressaltar que, em seus sermões, Vieira também estabelece diálogo intertextual com o universo clássico-pagão, mas para justificar as fraquezas humanas. Observe este aspecto no Sermão dos Demônios do Mundo: A formosura é um bem frágil, e quando mais se vai chegando aos anos, tanto mais vai diminuindo e desfazendo em si e fazendo-se menor. Seja exemplo desta lastimosa fragilidade, Helena, aquela famosa e formosa grega, filha de Píndaro, rei da Lacónia, por cujo roubo foi destruída Troia.Durou dez anos a guerra;e,ao passo que ia durando e crescendo a guerra, se ia juntamente com os anos diminuindo a causa dela. Era a causa a formosura de Helena, flor enfim da terra, e cada ano cortada com o arado do tempo.Estava já tão murcha, e a mesma Helena tão outra,que,vendo-se ao espelho, pelos olhos , que já não tinham viveza,lhe corriam as lágrimas;e,não achando a causa por que duas vezes fora roubada, ao mesmo espelho e a si perguntava por ela. Em seguida, analisaremos fragmentos do Sermão Pelo Bom Sucesso Das Armas De Portugal contra as De Holanda: (...)Considerai, Deus meu – e perdoai-me, se falo inconsideradamente – considerai a quem tirais as terras do Brasil e a quem as dais. Tirais estas terras aos portugueses a quem nos princípios as destes; e bastava dizer a quem as dais, para perigar o crédito de vosso nome, que não podem dar nome de liberal mercês com arrependimento. Para que nos disse S. Paulo, que vós, Senhor, “quando dais, não vos arrependeis”: Sine paenitentia enim sunt dona Dei? (por que os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis?). Mas deixado isto à parte: tirais estas terras àqueles mesmos portugueses a quem escolhestes entre todas as nações do Mundo para conquistadores da vossa Fé, e a quem destes por armas como insígnia e divisa singular vossas próprias chagas. E será bem, Supremo Senhor e Governador do Universo, que às sagradas quinas de Portugal e às armas e chagas de Cristo, sucedam as heréticas listas de Holanda, rebeldes a seu rei e a Deus? Será bem que estas se vejam tremular ao vento vitoriosas, e aquelas abatidas, arrastadas e ignominiosamente rendidas? Et quid facies magno nomini tuo? (E então que farás ao teu grande nome?) E que fareis (como dizia Josué) ou que será feito de vosso glorioso nome em casos de tanta afronta? Tirais também o Brasil aos portugueses, que assim estas terras vastíssimas, como as remotíssimas do Oriente, as conquistaram à custa de tantas vidas e tanto sangue, mais por dilatar vosso nome e vossa Fé (que esse era o zelo daqueles cristianíssimos reis) que por amplificar e estender seu império.(... ) Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no Oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes,ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhamos, as hajamos de perder assim? Oh! Quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentartais empresas! (...) Entregai aos holandeses o Brasil, entregai- lhes as Índias, entregai-lhes as Espanhas (que não são menos perigosas as conseqüências do Brasil perdido); entregai- lhes quanto temos e possuímos (como já lhes entregastes tanta parte); ponde em suas mãos o Mundo; e a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais.(...) Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que algum dia queirais espanhóis e portugueses, e que os não acheis. Holanda vos dará os apostólicos conquistadores, que levem pelo Mundo os estandartes da cruz; Holanda vos dará os pregadores evangélicos, que semeiem nas terras dos bárbaros a doutrina católica e a reguem com o próprio sangue; Holanda defenderá a verdade de vossos Sacramentos e a autoridade da Igreja Romana; Holanda edificará templos, Holanda levantará altares, Holanda consagrará sacerdotes e oferecerá o sacrifício de vosso Santíssimo Corpo; Holanda, enfim, vos servirá e venerará tão religiosamente, como em Amsterdão, Meldeburgo e Flisinga e em todas as outras colônias daquele frio e alagado inferno se está fazendo todos os dias.(...) Análise do Sermão No que diz respeito ao plano da forma, verifica-se o estilo grandiloquente, típico do gênero sermonístico,caracterizado pela oralidade, por ser veiculado, a princípio, nos púlpitos. A oralidade grandiloquente, neste caso, estrutura-se principalmente nas anáforas e nas ansiosas apóstrofes, que indicam Deus como interlocutor do orador. No entanto, a grandiloquência revela também as funções emotiva e apelativa da linguagem, uma vez que o pregador sente-se indignado com Deus, ao ver o território de domínio católico, sendo subjugado pelos protestantes, e deseja uma atitude. Mas atitude de quem? Isso veremos mais à frente. A função emotiva se explicita, de maneira mais convincente, por meio da ironia, presente em todo o último parágrafo do excerto. Quanto ao plano do conteúdo, vamos tomar como referência as palavras do crítico Alfredo Bosi: De Vieira ficou o testemunho de um arquiteto incansável de sonhos e de um orador complexo e sutil, mais conceptista do que cultista, amante de provar até o sofisma, eloquente até à retórica, mas assim mesmo, ou por isso mesmo, estupendo artista da palavra.” BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira Já no primeiro parágrafo, constata-se o que disse o mestre Alfredo Bosi. Vieira recorre ao sofisma, uma verdade falsa, ao culpar Deus pela invasão e domínio holandeses e protestantes. Essa argumentação pode ser verdadeira para a doutrina católica mas na essência é falsa, uma vez que funde universos diferentes: fé com questões políticas e econômicas. Afinal, Deus não criou o conceito de Estado, de divisão territorial, e sim o homem. Esse sofisma advém do fusionismo ou bifrontismo barroco: fusão de fé ( teocentrismo ) e atitudes humanas ( antropocentrismo ). Vieira procura provar como verdadeiro seu sofisma por meio do silogismo fundamentado no discurso de autoridade, nas palavras de São Paulo, inclusive citado em latim, o que enfatiza a argumentação como verdadeira. O silogismo pode ser estruturado da seguinte forma: Premissa Maior: Todos os atos divinos são irrevogáveis (“vós, Senhor, “quando dais, não vos arrependeis” ). Premissa Menor: Deus deu o Brasil aos portugueses católicos (“tirais estas terras àqueles mesmos portugueses a quem escolhestes entre todas as nações do Mundo para conquistadores da vossa Fé”). Conclusão: Logo o Brasil tem de pertencer aos portugueses, caso contrário Deus cai em descrédito (“e bastava dizer a quem as dais, para perigar o crédito de vosso nome”) Nos dois parágrafos seguintes, o tom de ameaça a Deus se intensifica, por meio das anáforas, pois o orador expõe ao Criador os sofrimentos vividos pelos portugueses no processo de dilatação da fé católica pela América e pelo Oriente. Conclui os parágrafos num tom afrontoso de revolta para com o interlocutor, fazendo com que o antropocentrismo se sobreponha ao teocentrismo: “ Oh! Quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!” (...) “Mas só digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais”. O último parágrafo expõe o tom irônico do pregador em relação a Deus. Fica evidente o espírito contrarreformista de Vieira, para quem só o catolicismo representa Deus e o cristianismo. Esta visão se concretiza linguisticamente por meio do paradoxo “como em Amsterdão, Meldeburgo e Flisinga e em todas as outras colônias daquele frio e alagado inferno se está fazendo todos os dias”. Resta-nos questionar de quem Vieira está cobrando de fato uma atitude: de Deus? Não. Não somente de Deus, mas principalmente dos ouvintes católicos. O tom afrontoso promovido pelos recursos cultistas (anáforas, apóstrofes, ironia, paradoxo) é apenas um recurso para fazer prevalecer o aspecto conceptista, ou seja, a argumentação emotiva, grandiloquente, e simultaneamente apelativa que inflamava os receptores da pregação, e os fazia pegar em armas para defender o sonho do pregador: a manutenção do grande império católico lusitano. Mantuano: Virgílio de Mântua, poeta latino, autor da Eneida. Nesta obra, o herói Enéias desce ao inferno. BUSCANDO CONHECIMENTO Pesquise sobre o poema Prosopopeia de Bento Teixeira. Tal obra segue à risca o modelo camoniano, por ser escrito em versos decassílabos empregados em oitavas rimas, estrofes de oito versos com rimas dispostas em: ab ab ab cc. Trata-se de uma homenagem a Jorge de Albuquerque Coelho, donatário da capitania de Pernambuco. A obra consiste apenas num marco inicial, apresentando pouca originalidade. Vejamos um fragmento desta epopeia: “Cantem poetas o poder romano Submetendo nações ao jugo duro O Mantuano pinte o rei troiano Descendo à confusão do Reino escuro Que eu canto um Albuquerque soberano Da Fé, da cara Pátria firme muro Cujo valor, e ser, que o Céu lhe inspira Pode estancar a lácia e grega lira.” UNIDADE 5 - GREGÓRIO DE MATOS GUERRA: LIRISMO AMOROSO E REFLEXIVO CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Propiciar conhecimentos a respeito das obras de Gregório de Matos. Gregório de Matos, grande representante do Barroco, possui obra efetivamente sólida, seguindo, com genialidade os cânones poéticos de sua época em obras satíricas, líricas de cunho filosófico e religioso. ESTUDANDO E REFLETINDO Gregório de Matos Guerra 1636 – 1695 pt.wikipedia.org/wiki/Gregório_de_Matos Aspectos Biográficos Gregório de Matos Guerra nasceu na Bahia, em l633, e morreu em Recife, em l696. Filho de família abastada e não miscigenada com árabes, judeus ou mulatos, após os primeiros estudos no Colégio dos Jesuítas, vai, com 14 anos de idade, para Portugal, onde, anos mais tarde, matricula-se na universidade de Coimbra. Forma-se em Direito. A questão racial foi uma tônica em sua poesia: “Não sei, para que é nascer Neste Brasil empestado Um homem branco, e honrado Sem outra raça” Viveu alguns anos em Lisboa exercendo a profissão. Em Portugal, casa-se com Micaela de Andrade, que veio a falecer em 1678. Devido a suas sátiras, foi obrigado a retornar à Bahia. Passou a levar uma vida boêmia, compondo canções, que agradavam ao povo. Escreveu sátiras ao governador Antônio de Souza Menezes, o “Braço de Prata”. Eis um fragmento de sátira a este governador: “Xinga-te o negro, o branco te pragueja, E a ti nada te aleija, E por teu sensabor, e pouco graça És fábula do lar, riso da praça, Té que a bala, que o braço te levara, Venha segunda vez levar-te a cara”. Na Bahia, casou-se com a viúva Maria dos Povos. Consta que com ela tivera seu único filho, Gonçalo. Ainda devido a suas sátiras, foi degredado para Angola; já bastante doente, retornou ao Brasil, mas sob duas condições: estava proibido de pisar a terra baiana e de apresentar as suas sátiras. Devido à veia satírica, recebeu a alcunha de Boca do Inferno e não se sabe se todos os poemas de sua antologia são de fato de sua autoria, uma vez que, proibida a imprensa na colônia, sua obra se difundiu dispersa. O crítico Varnhagen, em 1850, foi o primeiro a publicar poemas de Gregório de Matos, no livro Florilégio da Poesia Brasileira. A antologia disponível atualmente foi feita por James Amado com o título de Obras Completas. No entanto, como já foi dito, não há total certeza se de fato Gregório de Matos seja o autor de todos os poemas publicados. Gregório militou em vários tipos da poesia (satírica, lírico-sacra, lírico- amorosa, lírico-reflexivo-filosófica, encomiástica e obscena). Lirismo-Amoroso Gregório de Matos abordou, em seus versos, mulatas, freiras e damas da sociedade baiana. Quanto à forma, ao dirigir-se às freiras e mulatas, deu preferência ao metro popular, à medida velha medieval o que se dá também nos poemas obscenos. Isso porque muitos desses temas foram feitos com a finalidade de serem cantados nas praças e tavernas. O nativismo de sua poesia lírica reside,justamente, nas canções compostas para as mulatinhas lindas (Brites, Bartola, Joana Gafeira, Damásia, etc.). Ao dirigir- se às mulatas e às freiras opta pela abordagem do amor carnal, pela sensualidade feminina, chegando, às vezes, à obscenidade. Cançoneta Ao som de uma guitarrilha, que tocava um colomim vi bailar na Água Brusca as Mulatas do Brasil: Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi! (...) Atadas pelas virilhas cuma cinta carmesim, de ver tão grandes barrigas lhe tremiam os quadris. Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi. Assim as saias levantam para os pés lhes descobrir, porque sirvam de ponteiros à discípula aprendiz, Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi. Observe, já no título, a intenção para o canto, o que justifica a estrutura poemática: versos em redondilha maior, metro bastante musical e popular, com acento rítmico predominante nas 3ª e 7ª sílabas; bem como a presença de refrão nos dois últimos versos de cada estrofe. No plano do conteúdo, trata-se da exaltação à beleza sensual das mulatas brasileiras, configurando também o aspecto nativista, a cor local, além de ser registro do início da miscigenação no Brasil colonial. Na primeira estrofe, destaca-se a habilidade corporal das mulatas que, ao som do ritmo musical “colomim”, bailam um estilo de dança popular da época o Paturi. Nas estrofes seguintes, emerge a sensualidade, sugerida na cor “carmesim” ( vermelha) e explicitada nos vocábulos “virilhas”, “barrigas”, “quadris”, “pés”. Finalizando a temática explicitamente erótica de Gregório de Matos, divirta-se com a oitava abaixo, também composta na redondilha maior: O amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias Uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um reboliço de ancas, quem diz outra coisa é besta Já, ao dirigir-se às damas da sociedade, optou pela sofisticada medida nova clássica, os versos decassílabos em soneto.. Ao exaltar as damas da sociedade, como Ângela, Maria e Catarina, assimila o platonismo amoroso ou o conflito carne x espírito. Percebe-se em alguns de seus versos o declínio do processo de composição com material extraído da natureza, prenunciando o retrato de Marília de Dirceu: “Deixa o prado; vem cá, minha adorada, Vês de esse mar a esfera cristalina Em sucessivo aljôfar desatada? Parece aos olhos ser de prata fina? Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada À vista do teu rosto, Catarina.” A Dona Ângela Anjo no nome, Angélica na cara. Isso é ser flor, e Anjo juntamente, Ser Angélica flor, e Anjo florente, em quem, senão em vós se uniformara? Quem veria uma flor, que a não cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira tão luzente, Que por seu Deus, o não idolatrara? Se como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu custódio, e minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo, que tão bela, e tão galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. Observe a estrutura poemática clássica, os versos decassílabos em soneto, com rimas dispostas em abba abba cdc dcd. Ainda no que tange ao plano da forma, verifica-se a rebuscada linguagem cultista barroca, visto que as metáforas “anjo” e “flor”, combinadas no texto, acabam gerando antíteses que se convertem em paradoxo. Quanto ao conteúdo, verifica-se o fusionismo barroco pela temática do conflito entre o erotismo, metaforizado na flor, e o platonismo, metaforizado no anjo. Por ser fisicamente bela, Ângela é flor, é angélica (nome de uma for), mas, por ser inacessível, Ângela é comparada ao anjo. A primeira estrofe é predominantemente cultista, por ser descritivo. A partir da segunda estrofe, surgem questionamentos do eu lírico, representados nas interrogações. Esses questionamentos, já tendendo às argumentações conceptistas, podem ser interpretados da seguinte forma: Sendo fisicamente bela como uma flor, o eu lírico fica tentado a tocá-la, possuí-la, a “arrancá-la da rama” e, dessa forma, ele satisfaria seus desejos físicos de homem, caráter antropocêntrico, mas poderia desgastar a ideia de perfeição contida na amada, além de cair em pecado “diabólicos azares”. Pelo conceito platônico, o ideal, se concretizado, desgasta-se. Dessa forma, o eu lírico passa a questionar se não seria melhor idolatrá-la, ou seja, mantê-la a distância, como um anjo, caráter teocêntrico, para assim sempre tê-la perfeita em sua mente e não cair em pecado. No entanto, a última estrofe, iniciada com a conjunção adversativa “mas”, revela o eu lírico mais propenso a tocá-la, fechando o soneto com a chave de ouro do paradoxo “Sois anjo, que me tenta, e não me guarda”, ou seja, Ângela é anjo demoníaco, que, como o demônio, tenta e, ao contrário de um anjo, não o protege. Logo, em pensamento, o eu lírico já é um pecador. Este soneto ilustra, portanto, a dificuldade, muitas vezes, de identificar a predominância de cultismo e conceptismo, num mesmo texto. Lirismo Reflexivo-Filosófico As temáticas reflexivas gregorianas apresentam o pessimismo devido à efemeridade do tempo, à instabilidade (efemeridade, transitoriedade, fugacidade) dos bens da vida, o conflito essência (o que realmente somos) e aparência (o que parecemos ser). É evidente que a preocupação com a brevidade da vida leva o poeta a aproveitar o tempo (carpe diem, aspecto antropocêntrico). O carpe diem convive com a consciência de que “in pulvere homo revertetur” (o homem se converterá em pó, o homem veio do pó e para o pó retornará, caráter teocêntrico), gerando o típico feísmo barroco: “cinzas”, “cadáveres”, “campa fria”, “sepultura”, etc. Vamos à análise de um soneto reflexivo do poeta: Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria. Porém se acaba o Sol, por que nascia? Se formosa a Luz é, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria sinta-se tristeza. Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstância. Observe, mais uma vez, a estrutura poemática clássica, os versos decassílabos em soneto, com rimas dispostas em abba abba cdc dcd. Ainda no que diz respeito ao plano da forma, verifica-se a rebuscada linguagem cultista barroca, já que, além da forte presença de hipérbatos, as metáforas “sol”, “luz”, “formosura”, “noite escura” e “sombras”, combinadas no texto, acabam gerando antíteses. No entanto, o caráter reflexivo faz predominar a argumentação conceptista, fundamentada na efemeridade da alegria. Na primeira estrofe, a alegria, metaforizada no sol, na luz, na formosura, morre ou acaba sempre em tristeza, metaforizada na noite escura e nas tristes sombras. Essa constatação leva o eu lírico a questionar, na segunda estrofe, o porquê de a alegria surgir se logo ela acabará, o que culmina, na terceira estrofe, no paradoxo “e na alegria sinta-se tristeza”, ou seja, ao estarmos alegres, já devemos ficar tristes, por termos consciência de que a alegria acabará. O soneto traz novamente, na chave de ouro, o paradoxo “A firmeza somente na inconstância”, interpretado como: a única coisa constante na vida é que nada é constante. BUSCANDO CONHECIMENTO A temática da efemeridade do tempo relacionada à morte é uma constante na cultura ocidental. Fica aqui a sugestão de ouvir e traduzir a bela canção Dust in The Wind: Dust In The Wind Kansas Composição : Kerry Livgren letras.terra.com.br › ... › Kansas › Dust In The Wind I close my eyes Only for a moment And the moment's goneAll my dreams Pass before my eyes, a curiosity Dust in the wind All they are is dust in the wind Same old song Just a drop of water In an endless sea All we do Crumbles to the ground Though we refuse to see Dust in the wind All we are is dust in the wind, ohh Now, don't hang on Nothing lasts forever But the earth and sky It slips away And all your money Won't another minute buy Dust in the wind All we are is dust in the wind Dust in the wind Everything is dust in the wind The wind UNIDADE 6 - LIRISMO-SACRO E POESIA SATÍRICA CONHECENDO A PROPOSTA DO TEMA Objetivos: Explicitar as características do lirismo sacro de Gregório de Matos. Dando sequência no estudo sobre Gregório, nesta unidade, estudamos a poesia lírico-sacra, satírica e fescenina de Gregório de Matos Guerra. ESTUDANDO E REFLETINDO É no lirismo-sacro que o poeta se vê frente a frente face a face com os problemas da vida espiritual, muitas vezes trazendo à tona o fusionismo barroco, predominantemente conceptista, mas sem deixar de apresentar fortes traços cultistas, no plano da linguagem. Gregório de Matos tinha consciência de seus pecados (aspecto antropocêntrico) e certeza do perdão divino (caráter teocêntrico) por ser a misericórdia a maior graça de Deus. Essa argumentação se fundamenta no diálogo intertextual com as sagradas escrituras, gerando silogismo e até mesmo sofismas. Vamos à análise de um dos mais representativos poemas sacros deste poeta. www.jesusvoltara.com.br/wallpaper “Então ele (Jesus) lhes propôs esta parábola: qual de vós é o homem que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto, e não vai após a perdida até que a encontre? E achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo; e chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos e lhes diz: Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia perdido. Digo-vos que assim haverá maior alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” (Lucas, capítulo 15) Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, da vossa alta clemência me despido; porque quanto mais tenho delinquido, vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto um pecado, a abrandar-vos sobeja um só gemido: que a mesma culpa, que vos há ofendido, vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma orelha perdida e já cobrada, glória tal e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na sacra história, eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, cobrai-a; e não queirais, pastor divino, perder na vossa ovelha a vossa glória. Gregório de Matos Guerra No lirismo-sacro gregoriano também predomina e estrutura poemática clássica, os versos decassílabos em soneto, com rimas dispostas em abba abba cde cde. Quanto à linguagem, verifica-se o rebuscamento cultista, justificado pela presença de antíteses: “pecado” x “clemência”; “delinquido” x “perdoar”; “irar” x “abrandar”; “ofendido” x “lisonjeado”. Também se nota a presença de metáforas bíblicas: “ovelha perdida”, “ovelha desgarrada” (pecador), “pastor divino” (Deus). Contudo, pela análise do conteúdo, constata-se o predomínio da argumentação conceptista, que se estrutura, a partir do diálogo intertextual com a parábola bíblica. Nos primeiro quarteto, vem à tona o fusionismo barroco, visto que o eu lírico assume-se pecador “Pequei, Senhor, “aspecto antropocêntrico, porém deseja o perdão de Deus “mas não porque hei pecado, / da vossa alta clemência me despido;” (aspecto teocêntrico). No segundo quarteto, começa a se armar a argumentação com o interlocutor, Deus, pela obtenção da misericórdia divina: “porque quanto mais tenho delinquido, / vos tenho a perdoar mais empenhado.” No primeiro terceto, inicia-se o diálogo intertextual com a parábola bíblica, fundamentada na seguinte argumentação pelo eu lírico: toda a glória de Deus só existe devido ao fato de o homem pecar. Segundo o poeta, se todos nós homens nos mantivéssemos sempre puros, seríamos perfeitos e, portanto, não haveria a necessidade de Deus, pois passaríamos a ser Deus. Essa argumentação do poeta toma como referência a própria Bíblia, ou seja, a “sacra história”, pois o próprio Jesus disse: “Digo-vos que assim haverá maior alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” A argumentação pode ser enquadrada no seguinte silogismo: Premissa Maior: A glória ou a grandeza de Deus está em perdoar (cobrar) ao pecador ( “ovelha perdida ou desgarrada”); Premissa Menor: eu sou pecador (“eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada”); Conclusão: Logo serei perdoado (caso contrário Deus perde sua glória e grandeza: “não queirais, pastor divino, / perder na vossa ovelha a vossa glória.” Perceba que, neste silogismo, o poeta ameaça Deus, pois, segundo seu raciocínio, se o homem não pecasse, Deus não existiria. Portanto, no fusionismo barroco, na tentativa de conciliação entre teocentrismo e antropocentrismo, sobressai, no soneto, o antropocentrismo. Entretanto esse silogismo contém um sofisma, pois omite um dado bíblico: a necessidade de penitência da parte do pecador, ou seja, do esforço de não voltar a pecar. Veja o texto bíblico: “Digo-vos que assim haverá maior alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” Se tomássemos as palavras do poeta como verdadeiras, a humanidade cada vez mais se tornaria uma barbárie. O homem jamais será santo ou perfeito como Deus, porém, quanto menos ele incorrer em erros, mais humana será a humanidade. Contudo, vale ressaltar que o poeta sofisma para justificar sua vil condição humana, enquanto a Igreja sofismava, na época, justificando com as sagradas escrituras a punição aos hereges no Tribunal do Santo Ofício ou Santa Inquisição. Inquisição espanhola - repressão à homossexualidade. pt.wikipedia.org/wiki/Inquisição Poesia Satírica e Fescenina Gregório de Matos foi o introdutor da sátira no Brasil. Sua poesia satírica e fescenina (pornográfica) é consequência do meio em que viveu, da conjuntura política, religiosa e econômica da época (século XVII), constituindo, portanto, um amplo painel desse período da história brasileira. Segundo o crítico Alfredo Bosi, seu populismo é chulo e, antes de significar uma atitude antiaristocrática, nada mais é que válvula de escape para velhas obsessões sexuais ou arma para ferir os poderosos por ele invejados, já que o Boca do Inferno, de raça branca e formado em Coimbra, não admitia ver mestiços se tornando ricos no Brasil. Em Gregório de Matos, o desejo de ascensão é marcado por um discurso moralizante, embora ele próprio fosse um imoral, como afirma o crítico Araripe Junior: “ desconhece que é fruto do meio a que pertence, pensa reagir e apenas traduz a sociedade, cuida moralizar e apenas se enlameia.” Para Gregório, calar era um silêncio de morte: “Se o que fui, sempre hei de ser, “paiaiá” = pajé “cobepá” = idioma da tribo Cobé, que habitava os arredores de Salvador Eu falo, seja o que for.” No último verso acima, depreende-se a justificativa de sua alcunha de Boca do Inferno. Foram alvo de sua crítica: o mau clero, os maganos (degredados de Portugal), que aqui chegavam na miséria e partiam ricos, o mulato, os políticos corruptos, os fidalgos caramurus (nobreza indígena que se dizia, segundo a lenda, descendente de Diogo Alvarez Correia): “Há cousa como ver um Paiaiá Mui prezado de ser Caramuru, Descendente de sangue de tatu, Cujo torpe idioma é cobepá.” “Que os brasileiros são bestas E estão sempre a trabalhar Toda a vida por manter Maganos de Portugal” Também criticou os governadores, a fidalguia
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