Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PROBLEMAS E DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA INFÂNCIA Professora Dra. Gescielly Barbosa da Silva Tadei Professora Me. Juliana da Silva Araujo Alencar Professora Me. Márcia R. Sousa Storer GRADUAÇÃO Unicesumar C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância; TADEI, Gescielly Barbosa da Silva; ALENCAR, Juliana da Silva Araujo ; STORER, Márcia R Sousa. Problemas e diiculdades de aprendizagem na infância. Gescielly Barbosa da Silva Tadei; Juliana da Silva Araujo Alencar; Márcia Regina Sousa Storer. Reimpressão - 2019 Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. 216 p. “Graduação - EaD”. 1. Problemas. 2. Aprendizagem . 3. Infância 4. EaD. I. Título. ISBN 978-85-459-0867-8 CDD - 22 ed. 370 CIP - NBR 12899 - AACR/2 Ficha catalográica elaborada pelo bibliotecário João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Impresso por: Reitor Wilson de Matos Silva Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor Executivo de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva Pró-Reitor de Ensino de EAD Janes Fidélis Tomelin Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi NEAD - Núcleo de Educação a Distância Diretoria Executiva Chrystiano Minco� James Prestes Tiago Stachon Diretoria de Graduação e Pós-graduação Kátia Coelho Diretoria de Permanência Leonardo Spaine Diretoria de Design Educacional Débora Leite Head de Produção de Conteúdos Celso Luiz Braga de Souza Filho Head de Curadoria e Inovação Jorge Luiz Vargas Prudencio de Barros Pires Gerência de Produção de Conteúdo Diogo Ribeiro Garcia Gerência de Projetos Especiais Daniel Fuverki Hey Gerência de Processos Acadêmicos Taessa Penha Shiraishi Vieira Gerência de Curadoria Giovana Costa Alfredo Supervisão do Núcleo de Produção de Materiais Nádila Toledo Supervisão Operacional de Ensino Luiz Arthur Sanglard Coordenador de Conteúdo Marcia Maria Previato de Souza Designer Educacional Ana Claudia Salvadego Iconograia Isabela Soares Silva Projeto Gráico Jaime de Marchi Junior José Jhonny Coelho Arte Capa Arthur Cantareli Silva Editoração Luís Ricardo P. Almeida Prado de Oliveira Arthur Cantareli Silva Qualidade Textual Hellyery Agda Alisson Pepato Em um mundo global e dinâmico, nós trabalha- mos com princípios éticos e proissionalismo, não somente para oferecer uma educação de qualida- de, mas, acima de tudo, para gerar uma conversão integral das pessoas ao conhecimento. Baseamo- -nos em 4 pilares: intelectual, proissional, emo- cional e espiritual. Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cur- sos de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de 100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil: nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba, Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e pós-graduação. Produzimos e revi- samos 500 livros e distribuímos mais de 500 mil exemplares por ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos educacionais do Brasil. A rapidez do mundo moderno exige dos educa- dores soluções inteligentes para as necessidades de todos. Para continuar relevante, a instituição de educação precisa ter pelo menos três virtudes: inovação, coragem e compromisso com a quali- dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de Engenharia, metodologias ativas, as quais visam reunir o melhor do ensino presencial e a distância. Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é promover a educação de qualidade nas diferen- tes áreas do conhecimento, formando proissio- nais cidadãos que contribuam para o desenvolvi- mento de uma sociedade justa e solidária. Vamos juntos! Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quando investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou proissional, nos transformamos e, consequentemente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu- nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de alcançar um nível de desenvolvimento compatível com os desaios que surgem no mundo contemporâneo. O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con- tribuindo no processo educacional, complementando sua formação proissional, desenvolvendo competên- cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessá- rios para a sua formação pessoal e proissional. Portanto, nossa distância nesse processo de cresci- mento e construção do conhecimento deve ser apenas geográica. Utilize os diversos recursos pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis- cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui- lidade e segurança sua trajetória acadêmica. A U T O R A S Professora Doutora Gescielly Barbosa da Silva Tadei Doutora em Educação Escolar pelo PPE/UEM (2016). Mestre em Educação Escolar pelo PPE/UEM(2008). Especialista em Teoria Histórico-Cultural (2007). Gestalterapeuta pelo Instituto Maringaense de Gestalt-terapia - IMGT (2010). Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2005). Trabalha na Poimenika - Psicologia Escolar e Clínica em Maringá. Experiência na área da docência (superior) e pós-graduação. Experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia da Educação, atuando nos seguintes temas: teoria histórico- cultural, processo ensino aprendizagem, atuação do psicólogo escolar, história da educação brasileira, história da psicologia no Brasil, disciplinas curriculares e formação docente. Para informações mais detalhadas sobre sua atuação proissional, pesquisas e publicações, acesse o currículo, disponível em: <http://lattes.cnpq. br/2933576373897026>. Professora Mestre Juliana da Silva Araujo Alencar Mestre em Psicologia pelo PPI/UEM (2012). Especialista em Saúde Mental e Intervenção Psicológica (2008). Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2005). Atuou como Psicóloga Escolar na rede de ensino público, privado e como clínica na educação especial na APAE de MARILENA. Atualmente, atua como docente na União de Faculdades Metropolitanas de Maringá - FAMMA e no Centro Universitário Cesumar - Unicesumar, ministrando aulas nas áreas de Desenvolvimento Humano, Psicologia da Educação, Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento de Pesquisa para os cursos de Psicologia e Licenciaturas. Para informações mais detalhadas sobre sua atuação proissional, pesquisas e publicações, acesse o currículo, disponível em: <http://lattes.cnpq. br/1381959180505623>. Professora Mestre Marcia Regina de Sousa Storer Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2003). Graduada no curso de Pedagogia pela FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ (1988). Atualmente, é docente em disciplinas nos cursos de pós-graduação do Instituto Paranaense de Ensino e da Unicesumar, ambas localizadas em Maringá - Paraná, e palestrante nos diversos temas do desenvolvimento infantil nos transtornos da aprendizagem e afetividade. Psicopedagoga especializada pelo Centro de Estudos Psicopedagógicos- CEP- Brasil, atuando no NÚCLEO ESPECIALIZADOEM DESENVOLVIMENTO & APRENDIZAGEM com as áreas de distúrbios de aprendizagem, deiciências e educação, e capacitadora do Método Panlexia Plus e do Sistema de Triagem Pré-Escolar (Preschool Screening System PSS) pelo Instituto Pamela Kvilekval. Para informações mais detalhadas sobre sua atuação proissional, pesquisas e publicações, acesse o currículo, disponível em: <http://lattes.cnpq. br/4398834035912317>. SEJA BEM-VINDO(A)! Olá Aluno(a) da Unicesumar, seja bem-vindo(a)! Este livro foi especialmente elaborado por nós com o objetivo de disponibilizar um material didático de fácil acesso, com in- formações claras e atualizadas acerca dos conteúdos implicados na disciplina de Proble- mas e Diiculdades de Aprendizagem. Esta é uma disciplina que engloba conhecimentos da área da Psicologia da Educação, Psicologia da Aprendizagem e Psicologia do Desenvolvimento. Por isso, retomaremos aspectos do desenvolvimento humano, da aprendizagem e do processo de escolariza- ção, de modo a estabelecermos os parâmetros necessários para compreendermos o que são os problemas e as diiculdades de aprendizagem. Nosso livro está organizado em 5 Unidades, nas quais apresentaremos o contexto his- tórico que possibilitou a construção da infância como objeto de pesquisa e a necessida- de de se pensar sobre os problemas de aprendizagem, decorrentes de transtornos do desenvolvimento e do comportamento. Essa sistematização foi pensada para que você adquira o conhecimento necessário para analisar as diiculdades de aprendizagem que surgirão no cotidiano de sua futura prática laboral, e principalmente para formar um docente capaz de pensar de forma articulada sobre a teoria e a prática, analisando os fenômenos da aprendizagem. Na Unidade I, “INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS”, iniciamos nossa jornada percorrendo o trajeto histórico da for- mação do conceito de infância, demonstrando como ele está atrelado ao processo de educação e escolarização. Propomos uma análise cuidadosa da história da infância, pois somente ao entendermos as características intrínsecas a esse momento do desenvol- vimento seremos capazes de destacar quais são os aspectos que devemos considerar, com o objetivo de avaliar tanto o desenvolvimento quanto a competência para apren- dizagem de uma criança. Destacaremos a inluência organicista na visão de infância e consequentemente na concepção de aprendizagem, além das diiculdades que possam surgir no processo de aprender. Para analisarmos de modo global os indivíduos e sua relação com o processo de apren- dizagem, temos na Unidade II, “TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E DA APREN- DIZAGEM”, a apresentação das teorias psicológicas de Jean Piaget, Lev S. Vigotsky, Henry Wallon e Sigmund Freud. Iremos retomar as bases de suas teorias e compreender sua repercussão no contexto escolar e na prática docente. Esse percurso objetiva evidenciar como as diiculdades e problemas de aprendizagem podem ser pensados, analisados e manejados de formas diferentes, conforme o viés teórico adotado, para analisar os casos de alunos com aprendizagem comprometida que por ventura cruzem seu caminho. A partir da compreensão alcançada nesta etapa de seus estudos, você será capaz de compreender os malefícios e a limitação de análise de se reputar ao aluno a responsabilidade individual de seu desempenho acadêmico, seja ele adequado ou não. APRESENTAÇÃO PROBLEMAS E DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA INFÂNCIA Neste ponto, a Unidade III, “ASPECTOS NEUROLÓGICOS DA APRENDIZAGEM E A FOR- MAÇÃO DA ATENÇÃO” tem o objetivo de discorrer sobre os aspectos neurológicos envolvidos na aprendizagem humana e o papel da atenção no desenvolvimento cognitivo. Para tanto, abordaremos a estrutura cerebral e seu funcionamento, bem como a compreensão de Alexander Luria sobre a articulação da base neurológica e a experiência social para o desenvolvimento cognitivo e da atenção nos homens. Avançando em nossos estudos, cientes de todos os aspectos implicados para o de- senvolvimento cognitivo adequado dos indivíduos, apresentaremos os Problemas de aprendizagem propriamente ditos. Na Unidade IV, “DIFICULDADES DE APREN- DIZAGEM: ENTENDENDO TERMINOLOGIAS E CONCEITUAÇÕES”, apresentaremos os Transtornos Especíicos de Aprendizagem na área da linguagem, escrita e matemá- tica. Familiarizados dos elementos que caracterizam os transtornos de aprendiza- gem, discutiremos a quem cabe o diagnóstico destes quadros e o papel do profes- sor nesse processo. Na Unidade V, “TRANSTORNOS DO COMPORTAMENTO: DEFINIÇÕES, MANEJO E ALGUMAS REFLEXÕES”, trazemos à discussão os transtornos de comportamento e desenvolvimento que repercutem na aprendizagem acadêmica de seus portadores. Apresentaremos o Transtorno de Déicit de Atenção e Hiperatividade, o Transtorno de Conduta e o Desaiante de Oposição. Estes quadros têm se tornado frequentes na escola, e por isso precisamos estar cientes de suas especiicidades para evitarmos encaminhamentos apressados e estereótipos. Você notou que a palavra histórico permeou todo os elementos tomados para dis- cussão deste livro? Tal postura se justiica, pois ao trabalharmos com crianças em desenvolvimento, precisamos ter clareza de que somos responsáveis pelo seu pleno desenvolvimento emocional, cognitivo e social. Nesse sentido, a escola e o sucesso escolar são de suma relevância, pois são aspectos estruturantes do sentimento de autoestima e valor social. Cientes do caminho a percorrer, vamos juntos iniciar nossa jornada. Bons Estudos! APRESENTAÇÃO SUMÁRIO 11 UNIDADE I INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS 17 Introdução 18 A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo 30 Desenvolvimento Infantil e a Questão da Maturidade para Aprendizagem 37 Aprendizagem: Deinição, Relevância e Trajeto Histórico 42 Diiculdades de Aprendizagem: Percurso Histórico da Formação do Conceito e Deinições 51 Considerações Finais 58 Refêrencias 60 Gabarito UNIDADE II TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E DA APRENDIZAGEM 63 Introdução 64 A Epistemologia Genética de Jean Piaget 75 A Teoria Psicogenética de Henri Wallon 82 A Psicanálise de Sigmund Freud 91 A Psicologia Sócio-Histórica de Lev Seminovich Vigotsky 96 Considerações Finais 102 Referências 104 Gabarito SUMÁRIO 12 UNIDADE III ASPECTOS NEUROLÓGICOS DA APRENDIZAGEM E A FORMAÇÃO DA ATENÇÃO 107 Introdução 108 Base Neurológica da Aprendizagem: Alguns Apontamentos. 116 Desenvolvimento Cognitivo Segundo Luria 121 A Formação Neuropsicológica da Atenção 127 O Papel da Linguagem no Desenvolvimento da Atenção 132 Considerações Finais 139 Referências 141 Gabarito UNIDADE IV DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: ENTENDENDO TERMINOLOGIAS E CONCEITUAÇÕES 145 Introdução 146 Diiculdades e Problemas de Aprendizagem: Quais as Diferenças? 152 Transtornos Especíicos das Habilidades de Aprendizagem 158 Atuação dos Proissionais no Suporte à Criança com D.A.: Alguns Apontamentos e Relexões 167 Pré-Requisitos para Aquisição da Leitura e Escrita 172 Considerações Finais 178 Referências 180 Gabarito SUMÁRIO 13 UNIDADE V TRANSTORNOS DO COMPORTAMENTO: DEFINIÇÕES, MANEJO E ALGUMAS REFLEXÕES 183 Introdução 184 Transtorno de Déicit de Atenção/Hiperatividade (Tdah) 199 Transtornos de Oposição Desaiante e da Conduta: Indicativos e Manejo no Contexto Escolar 203 Afetos e Aprendizagem Escolar: Breves Apontamentos 206 Considerações Finais 212 Referências 215 Gabarito 216 CONCLUSÃO U N ID A D E I Professora Dra. Gescielly B. da Silva Tadei Professora Me. Juliana da Silva Araujo Alencar Professora Me. Márcia R. Sousa Storer INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS Objetivos de Aprendizagem ■ Compreender a construção da infância enquanto objeto de estudo. Problematizar a noção de normalidade. Discutir ainluência da maturidade para a aprendizagem infantil. ■ Deinir Aprendizagem. Apresentar as diferentes inluências ilosóicas na conceituação da aprendizagem. ■ Historicizar a aprendizagem e o fracasso escolar como objeto de estudo. Pontuar o impacto do desenvolvimento cientíico e econômico na noção de desempenho escolar. ■ Apresentar o histórico e as possíveis etimologias das Diiculdades de Aprendizagem. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ A História da Infância: a construção de um objeto de estudo ■ Desenvolvimento Infantil e a Questão da Maturidade para aprendizagem ■ Aprendizagem: deinição, relevância e trajeto histórico ■ Diiculdades de Aprendizagem: percurso histórico da formação do conceito e deinições INTRODUÇÃO Caro(a) aluno(a), para iniciarmos nossos estudos sobre Problemas e Diiculdades de Aprendizagem, precisamos evidenciar como a infância tornou-se um objeto de estudo para diferentes áreas da ciência. Surpreso com a informação? Acreditava que a noção de infância tivesse ocupado lugar de destaque na história do sujeito e da humanidade desde sempre? Pois bem, a ideia de infância passível de cui- dado e olhar diferenciado, como uma fase do desenvolvimento sensível, de suma importância para o crescimento biopsicossocial do sujeito, é certamente algo recente na história da humanidade. Tendemos a naturalizar processos históricos, pois a rotina nos envolve de tal forma que não exercitamos a capacidade relexiva de análise das transformações sociais e sua inluência na vida dos indivíduos, logo no processo de constituição de novos campos de pesquisa. Por isso, propomos um breve resgate da constru- ção histórica do conceito de infância, evidenciando como a noção de educação e o processo de escolarização foram fundamentais para se pensar a criança em desenvolvimento. Discutiremos, além disso, a inluência organicista na visão de infância e consequentemente na concepção de aprendizagem, que por sua vez ajudaram a estabelecer a infância como categoria de estudo, além de fortalecer a ideia de que a aprendizagem estava vinculada a aptidões puramente biológicas. Para tanto, problematizaremos as noções de normalidade e maturidade relacionadas à criança, deinindo o que é aprendizagem à luz de alguns ilósofos, e pontuando como este conceito está vinculado à necessidade de adaptação dos indivíduos. Por im, analisaremos o contexto em que surgem as preocupações e os pri- meiros estudos sobre as diiculdades de aprendizagem, para compreender a importância de analisar de forma contextualizada o desenvolvimento da apren- dizagem dos indivíduos, nos tornando mais aptos a identiicar e trabalhar com as consequências que essas diiculdades acarretam para os sujeitos no contexto escolar e fora dele. Introdução R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 17 INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E18 A HISTÓRIA DA INFÂNCIA: A CONSTRUÇÃO DE UM OBJETO DE ESTUDO O primeiro grande estudo sobre a construção histórica da categoria de infância foi a iconograia elaborada por Philippe Ariès (1914-1984). Ariès publicou em 1968 o Livro “História Social da Criança e da Família”, no qual analisou, a par- tir da representação das crianças nas obras de artes produzidas na Idade Média, como esta população era vista e como era entendido seu papel na dinâmica social, desvelando sobre o sentimento de infância atribuído pelos adultos, as relações familiares e a conduta dos mesmos nos contextos sociais (POSTMAN, 1999). A construção do sentimento e da categoria de infância, segundo Postman (1999), pode ser considerada uma das grandes invenções da Renascença (Séc. XIV a XVI). O autor destaca que as primeiras aparições desse termo surgiram atreladas a noções de educação e moral que ganharam destaque no im da idade média. Todavia, somente no século XVI foi entendida como uma estrutura social e como uma condição psicológica diferenciada. Inclusive a nomenclatura não era precisa para se referenciar esta faixa etária. Desde o período Clássico da Grécia Antiga, as crianças eram entendidas como sendo sujeitos que não haviam sido alfabetizados. Postman (1999) pontua que A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 19 os gregos não se preocuparam em teorizar acerca desta faixa etária, mas a paixão desse povo pela educação fez com que se aproximasse muito desta concepção. As primeiras escolas que se tem registro são datadas desse período. Se desta- cam os estudos de Platão sobre a importância de se ensinar virtude de coragem para as crianças e jovens, pois contrapondo-se ao modelo classista aristocrá- tico da grécia antiga, o ilósofo defendia que as ideias eram inatas, e por isso a educação era o modo pelo qual os sujeitos poderiam conhecer sua verdadeira essência (FREIRE, 2014). Entretanto, o sentimento de empatia com a condição diferenciada de desen- volvimento não estava presente neste momento. As crianças eram vistas como aquelas que precisavam ser corrigidas a qualquer custo, inclusive por meio de castigos físicos intensos, para tornarem-se educadas segundos os critérios sociais da época (POSTMAN, 1999). No entanto, com a invasão do império Romano, séculos de desenvolvi- mento foram soterrados em seus escombros ou escondidos nos porões da Igreja Católica. Neste processo, a ideia de alfabetização social foi perdida, bem como as noções de educação e vergonha até ali desenvolvidas. Entende-se por alfabe- tização social ou socializado, como a condição social em que a maioria do povo tem acesso à leitura e escrita, dominando de fato o código. Segundo Postman (1999), a alfabetização social foi substituída pela alfabetização corporativa, na qual poucos têm acesso a esta modalidade e formam a corporação de Escribas, por conseguinte privilegiados. Postman (1999) nos alerta para o impacto social decorrente da ruptura na cultura letrada do período romano. O autor defende a ideia de que, se por cul- tura letrada entendemos a quantidade de pessoas que dominam sem embaraço a leitura e escrita, e não simplesmente a capacidade de se decodiicar o alfabeto, podemos entender como uma questão de dominação o desaparecimento da capacidade de ler e escrever. Esse aspecto é relevante, pois em uma sociedade não letrada a discussão acerca da diferença entre crianças e adultos não existe. Jacques Rousseau toma essa prerrogativa como ponto central em sua obra Emílio, airmando que “ler é o lagelo da infância porque, em certo sentido, os livros nos ensinam a falar de coisas das quais nada sabemos” (apud POSTMAN, 1999, p. 27). INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E20 Rousseau foi importante nesse momento para evidenciar que a noção de infância só foi forjada como um contraponto da vida adulta. No mundo dos letrados, a criança passa a ser reconhecida como aquela que precisa se tornar adulta. Entretanto, essa compreensão, baseada na comparação com o adulto, acaba por não lhe conferir a profundidade subjetiva e social única e sim como sujeito incompleto, a espera do tornar-se alguém quando atingir o desenvolvi- mento esperado, ou seja, ser adulto. De acordo com Castro (2013), esta ideia ganha ainda mais forçana idade moderna, pois a concepção de criança nesse período, e até hoje, “apresentou-se como uma fase de preparação para a vida pro- dutiva, determinando um dever ser desses sujeitos como indivíduos ainda não prontos, imaturos e não ainda socializados para participar integralmente da vida em sociedade” (CASTRO, 2013, p. 17, grifos da autora). Como dito, dez séculos se passaram até a noção de infância voltar a ter des- taque no círculo acadêmico. Na pesquisa de Ariès (1978), dois sentimentos de infância são evidentes durante a alta e baixa Idade Média: o de paparicação e o de exasperação. O primeiro estava relacionado a ingenuidade, gentileza e graça, que tornava a criança uma espécie de bobo da corte para os adultos circundan- tes, pois se distraiam com as peripécias decorrentes da inabilidade social dos pequenos. Em contrapartida, o sentimento de exasperação decorreu da vertente moralista, principalmente da Igreja, que passou a questionar os mimos ofereci- dos às crianças, pois entendia como forma de favorecer a falta de educação dos pequenos sujeitos. Para exempliicar a dualidade destes sentimentos de infân- cia, Ariès recorre aos escritos de Montaigne: Quando os adultos fazem-nas [as crianças] cair numa armadilha, quando elas dizem uma bobagem ao tirar uma conclusão acertada de um princípio impertinente que lhes foi ensinado, os adultos dão garga- lhadas de triunfo por havê-las enganado, beijam-nas e acariciam-nas como se eles tivessem dito algo correto [era a paparicação]. É como se as pobres crianças fossem feitas apenas para divertir os adultos, como cãezinhos ou macaquinhos [os macacos de Montaigne] (apud ARIÈS, 1978, p. 161-162). A noção de apego, tão familiar na contemporaneidade, não era usual no período medieval. Isso porque o índice de natalidade e mortalidade era muito alto. Ariès (1978) relata em seus estudos que as famílias na Idade Média tinham muitos ilhos, A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 21 pois já contavam com o fato de que a maioria iria morrer. As precárias condi- ções de saneamento, higiene e de armazenamento da comida favoreciam doenças que provocavam a morte das crianças. A taxa de mortalidade caiu efetivamente em meados do século XIX, graças aos avanços da medicina, em decorrência da esterilização do leite (DAVIDSON; MAGUIN, 1983 apud MATIOLLI, 1998). Outro aspecto fundamental para a construção da infância foi a noção de vergo- nha. Foram os romanos que se atentaram pela primeira vez que a criança não estava preparada para conviver com todo o repertório social dos adultos e pre- cisavam ser protegidas, principalmente no que tange à sexualidade. O destaque dado a vergonha é de suma relevância, pois traz a real dimensão de que crianças e jovens não apresentam condições físicas e emocionais para lidar com ques- tões adultas, tal como a experiência sexual (ÀRIES, 1978; POSTMAN, 1999). Durante a Idade Média, o princípio educativo foi o da oralidade. Crianças e adultos viviam todos juntos sem a menor diferenciação. Ariès (1978), ao anali- sar as obras de artes produzidas entre o século XII e XV, apresenta que a criança, quando retratada, era em meio aos adultos. Cenas de prevaricação, excreção e alimentação aconteciam simultaneamente, sem a menor noção de pudor e ver- gonha que temos hoje. O autor relata inclusive que as noções que temos hoje de higiene pouco faziam sentido na época, portanto não eram ensinados. Manipular os órgãos genitais das crianças por prazer era uma prática comum dos adultos da época, e hoje renderia bons anos de cadeia (POSTMAN, 1999). Tamanha era a invisibilidade social das crianças até o século XIV que elas não eram mencionadas em legados e testamentos, como um indicativo de que não se tinha grandes expectativas de sobrevivência. Por essa razão, em algumas partes da Europa as crianças eram tratadas como se tivessem o gê- nero neutro. Fonte: adaptado de: Postman ( 1999). INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E22 Nas representações clássicas da época, a criança aparecia como um mini adulto. Suas roupas e feições em nada se diferenciavam dos adultos retratados. As crianças e jovens conviviam cotidianamente com os adultos, com a inali- dade de aprender os usos e costumes da época, entendendo que a vida privada do adulto também deveria ser partilhada como modalidade de aprendizagem (ARIÈS, 1978). A aprendizagem pela oralidade acontecia essencialmente na prática de algum serviço, conforme Postman (1999), um estágio de trabalho. A idade então que marcava a entrada no mundo adulto era aos sete anos, quando a criança já podia ser apartada de sua família e ir aprender um ofício, pois já dominava a palavra. Na Idade Média existiam escolas, mas estas não tinham a representatividade dada no período grego e eram destinadas somente a pessoas das classes abastadas. As salas comportavam pessoas de todas as idades, e era comum a retomada das lições, pois não havia tempo certo de início do processo escolar. Neste sentido, é correto airmar que, no mundo medieval, “[...] não havia nenhuma concepção de desenvolvimento infantil, nenhuma concepção de pré-requisitos de aprendi- zagem sequencial, nenhuma concepção de escolarização como preparação para o mundo adulto” (POSTMAN, 1999, p. 29). Para Ariès (1978), o que caracteriza a forma de se lidar com a criança como um adulto logo após o desmame tardio - na época era costume o desmame acon- tecer por volta dos 7 anos - era justamente a falta de conhecimento a respeito da educação. Para o autor: A civilização medieval havia esquecido a pandeia dos antigos, e ainda ignorava a educação dos modernos. Este é o fato essencial: ela não ti- nha idéia da educação. Hoje, nossa sociedade depende e sabe que de- pende do sucesso de seu sistema educacional (ARIÈS, 1978, p. 276). Retomaremos a ideia do sucesso educacional moderno quando discutirmos os problemas de aprendizagem enquanto objeto de estudo. Neste momento, devemos nos ater ao fato de que é a noção de educação que vai dar a infância a categoria de objeto de estudo. A partir do século XVI, o ímpeto moralizador passou a ganhar mais força, con- comitantemente às transformações das instituições escolares da Idade Medieval orientadas pela Igreja. Segundo Ariès (1978), foram os eclesiásticos e os homens A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 23 da lei, preocupados com as noções de disciplina e de racionalidade dos costu- mes, que forjaram o conceito de infância que temos até hoje. Gerson, à luz de Ariès (1978), foi o precursor dos estudos sobre a infância, destacando a relevância de proteger as crianças da violência, intrigas e expe- riências sexuais adultas. Para tanto, era necessário retirá-las dos círculos de convivência promíscuas dos adultos. Esse olhar diferenciado visava despertar o sentimento de nojo e pudor em relação ao sexo. Entre suas recomendações, estava dirigir aos pequenos uma linguagem especíica a elas, com o objetivo de educá-las e protegê-las das questões adultas. Conforme defendido pelos autores citados, a noção de educação foi determi- nante na mudança do sentimento de infância, bem como na sua transformação em categoria de estudo. O contínuo processo de escolarização passou, no século XVI, a mobilizar outros educadores, de modo a estabelecerem a divisão de clas- ses seguindo o critério de idade e não de habilidadede leitura. Este processo é signiicativo, pois começa-se a identiicar a necessidade de se pensar esta popu- lação como um grupo com características únicas de desenvolvimento. Além de salas separadas, a seleção de material adequado às crianças também se tornou alvo de preocupação. Essas mudanças devem ser analisadas de modo multidisciplinar. Tomemos agora algumas das transformações socioeconômicas como parâmetros de com- preensão do surgimento da infância como categoria de estudo. Matiolli (1998) evidencia, amparada nos estudos de Adorno e Horkeimer (1956), os seguintes aspectos: As transformações sócio-econômicas ocorridas na sociedade ocidental a partir do século XVIII, caracterizadas pelo sistema capitalista mo- nopolista e depois concorrencial substituindo o sistema feudal, e com o início da revolução industrial, trouxeram como consequência uma nova ordenação das estruturas de poder (Estado) e, tiveram também seus desdobramentos em relação à família (ADORNO; HORKHEI- MER, 1956 apud MATIOLLI, 1998, p. 153). A história da família representa a história econômica e política de um dado período. Esta informação é relevante para entendermos como o estado passou progressivamente a assumir a questão da educação da criança e com qual inali- dade. Por hora, vamos destacar como esses fenômenos se entrelaçam. INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E24 A família no período feudal, modelo econômico da alta Idade Média, era patriarcal e extensa. Todos se organizavam em torno do senhor feudal, e para além dos vínculos consanguíneos viviam mais de duzentas pessoas num mesmo ambiente. Eram os pais, irmãos, avós, tios, primos, agregados, escravos e ser- vos. Em meio a tantas pessoas e sem as noções de nojo e pudor supracitadas, os laços de afeição não eram obrigatórios (MATTIOLI, 1998). Esse modelo fami- liar ainda pode ser encontrado em núcleos eminentemente rurais, nos quais os membros da família são a mão de obra de trabalho. Com as descobertas cientíicas da renascença (microscópio, telescópio e a bússola), juntamente com o movimento das cruzadas, o modelo feudal começa a ruir, pois surgiu a sobra de produção. Com o excesso, começaram a se esta- belecer relações de troca entre os feudos, que gradualmente se especializaram nos produtos que produziam. Não tardou a ressurgir a moeda como mercado- ria de troca, constituindo aí a burguesia e a origem do capitalismo (PEREIRA; GIOIA, 1988). A burguesia era a classe social constituída por trabalhadores do campo que se destacaram na arte da negociação, enriquecendo mediando as trocas de produ- tos. Esses se organizaram ao redor dos burgos em casas menores, com cômodos separados, estruturando o que foi chamado de família nuclear, constituída por pai, mãe e ilhos, estes em número bem menos expressivos (MATTIOLI, 1998; ARIÈS, 1978). Vivendo mais próximos, o sentimento de intimidade se desen- volve, fortalecendo a preocupação para com as crianças, e consequentemente a ideia de atendimento diferenciado a ser dispensado a elas. Enim, quando esse modelo de infância a ser protegido e educado com a ina- lidade de desenvolvimento moral rígido se estabeleceu, para Postman (1999), o modelo de família moderno também se efetivou. Nesse contexto, a educação formal tem seu lugar de destaque. Havia a cobrança social tanto da garantia da sobrevivência das crianças quanto de seu desenvolvimento moral. A família então passou a ter o papel de educadora dos princípios do Estado e da religião. Nas palavras de Postman (1999, p. 58): “suas expectativas e responsabilidades tornaram-se mais sérias e mais numerosas quando os pais passaram a ser tutores, guardiães, protetores, mantenedores, punidores, árbitros do gosto e da retidão”. A ênfase dada a escolarização passou a nortear toda a forma de pensar e A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 25 agir sobre a criança. Da liberdade irrestrita da Idade Média, a criança passa a ser objeto de constante vigilância do olhar do adulto, pois esta precisa ser cui- dada e orientada para cumprir com os preceitos da nova organização social. As crianças passam a ser vistas como a promessa do porvir melhor. Seu papel passa a ser garantir um futuro melhor, o da grandeza, da prosperidade, da evolução da sociedade (CASTRO, 2013). Esse processo se daria pelo investimento na educação formal da criança. A demanda de escolarizar, com materiais adequados à idade, em conjunto com as salas seriadas trouxeram consigo a ideia de estágio da infância, considerando, a partir do olhar educacional e do adulto, o que uma criança de determinada idade deve ou não aprender, formulando a lógica e também os pré-requisitos da aprendizagem (POSTMAN, 1999). O requisito para se entender o amadurecimento da criança para a idade adulta, passa a ser então o domínio progressivo das competências acadêmicas. Para adentrar neste mundo, é necessário então: “um forte senso de individu- alidade, a capacidade de pensar lógica e seqüencialmente, a capacidade de se distanciar dos símbolos, a capacidade de manipular altas ordens de abstração, a capacidade de adiar o prazer” (POSTMAN, 1999, p. 60). Como podemos notar, desempenhar tais funções não é fácil! Vai contra toda a energia livre e exuberante que a criança e o jovem tem a seu favor. Disciplinar o corpo foi preciso para que esta expectativa fosse cumprida. Desse modo as com- petências intelectuais, a quietude, a imobilidade, a habilidade de contemplação, ou seja, todo o controle sobre as funções corporais passou a ser valorizado. Para tanto, a noção social de vergonha foi de suma importância, pois, por meio dela, as questões do corpo eram cerceadas por serem vexatórias socialmente. Simultaneamente a esse processo, não podemos esquecer que a base das trans- formações sociais estão atreladas à mudança do modo de produção. No sistema capitalista, pós revolução industrial, houve-se a necessidade de educar as massas para atender às necessidades de mão-de-obra nas fábricas e posteriormente nas indústrias. Desta forma, analisar a história das instituições de ensino também é analisar a história da formação do proletariado e da mulher na sociedade, e con- sequentemente das instituições de atendimento à criança (MATTIOLI, 1998). Com o desenvolvimento do capitalismo, instaurou-se a necessidade de formar INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E26 os jovens para sua inserção no mercado de trabalho. Demanda esta que foi refor- çada pelos princípios higienistas crescentes na época, que por sua vez defendiam a importância de proteger a saúde física (vacinas, remédios, higiene) e psicológica (entendida como formação moral). Sob este discurso, de acordo com Mattioli (1998), a escolarização surge como tábua da salvação, pois retiraria as ingênuas e desprotegidas crianças das inluências maléicas do mundo externo. As primei- ras instituições destinadas a crianças surgem no século XVIII, atendendo a duas necessidades sociais da época: liberar as camponesas para trabalhar nas fábri- cas e diminuir a mortalidade infantil. Com esta ação, o Estado passa a assumir a responsabilidade pela garantia de direitos das crianças. A inluência higienista não interfere somente na construção das escolas. Toda a arquitetura urbana sofreu seu impacto. Antes, lugares destinados à recreação coletiva emomentos de socialização, como praças públicas, passam a ser evitados, em razão da crescente violência social e a facilidade de disseminação de patolo- gias. Colocar as crianças na escola, nesse sentido, abarcou também a dimensão de experiência lúdica, servindo de palco para as brincadeiras (MATTIOLI, 1998). No que tange ao papel da mulher no processo de produção e educação das crianças, amparados em Mattioli (1998), podemos perceber claramente a inlu- ência socioeconômica no desempenho de suas funções. É inegável a importância da relação mãe-ilho para o desenvolvimento infantil. No entanto, de acordo com a demanda societária, seu exercício era mais ou menos destacado. No período de guerras, os homens, estando nos campos de batalhas, não poderiam ocupar as vagas nas indústrias em franca produção, e as mulheres foram convocadas a assumir esse lugar. Desse modo, o cuidado dos ilhos passou a ser delegado às instituições como creches e escolas, que tinham proissionais capa- citados para o cuidado e formação de sujeitos íntegros. Todavia, nos períodos de trégua os homens retornavam às suas cidades de origem, e estando desem- pregados se tornavam um problema social. Com o intuito de minimizar esses problemas, as agências governamentais iniciaram campanhas justiicando, inclu- sive biologicamente, a importância das mulheres retomarem os cuidados dos ilhos (MATTIOLI, 1998). A ciência psicológica foi requisitada para fortalecer os argumentos a serem utilizados para cumprir tal intento, ou seja, foi utilizada como instrumento A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 27 ideológico. Nos Estados Unidos da América, o psicanalista John Bowlby, estudioso da teoria do apego, descreveu a inluência do cuidado materno na formação da subjetividade infantil, ressaltando os danos irreversíveis que sua ausência pode- ria acarretar no desenvolvimento da criança. Seus efeitos podem ser percebidos ainda hoje, quando pensamos sobre a diiculdade que os pais enfrentam em esta- belecer um vínculo de coniança com as instituições escolares. Consegue perceber como o discurso político muda de acordo com as neces- sidades socioeconômicas? Quando é necessário a mulher no campo de trabalho, a educação pode ser terceirizada sem problemas. Entretanto, quando seus servi- ços não são mais essenciais, se difunde a necessidade que cada uma tome para si os cuidados e a educação de seus ilhos. Mas a discriminação social e a inluência ideológica do Estado não para por aí. Matiolli (1998) destaca que os jardins de infância criados no século XIX, com inalidade educativa/formativa, atendiam as crianças oriundas das classes sociais mais abastadas. Diferentemente das pré-escolas, que surgiram com o objetivo de educar as crianças de origem proletárias, dentro dos princípios burgueses mora- lizadores, além de disciplinar a pobreza. O papel do Estado como representante dos direitos das crianças foi fortale- cido com a promulgação de um tratado estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), visando à proteção infantil. No contexto político brasileiro, foi somente com a aprovação da Constituição Federal de 1988 que o sis- tema de garantia de direitos da criança e do adolescente foi salvaguardada por lei. O Brasil apresenta, ao menos em lei, um grande diferencial, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal de nº. 8069 de 13/07/1990), no qual é implementado toda uma rede de Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, além dos Conselhos Tutelares que são órgãos executores (MATTIOLI, 1998). INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E28 Figura 1 - ONU Mattioli (1998) destaca ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), redi- gida em 1996 pelo Ministério da Educação (MEC). Esta lei versa que o sistema de educação ofertado para a população de zero a seis anos deveria ser nome- ado educação infantil e, portanto, deveria atuar em duas frentes: as creches para crianças de até três anos e as pré-escolas para as crianças de quatro a seis anos de idade, sendo ambas atuantes com o mesmo princípio, qual seja: o desenvol- vimento integral da criança. Com este breve recorte histórico, esperamos que você tenha compreendido a interrelação entre os processos sociais e a construção da infância como um objeto de estudo. Conforme apresentamos as inluências político-econômicas na constituição de novos campos de pesquisa, podemos airmar que nenhuma pesquisa é neutra, pois estará permeada pelos interesses de seus inanciadores. No caso especíico de nosso objeto de estudo, podemos airmar que a Psicologia passou a ter um lugar de destaque na avaliação e na análise da infância, justa- mente para dar resposta a necessidade de situar o lugar social da criança nas sociedades industriais. Isso porque: A História da Infância: A Construção de um Objeto de Estudo R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 29 A cronologização do curso da vida torna-se aspecto relevante nessas sociedades, ordenando diferencialmente os momentos da biograia de acordo com a centralidade do trabalho no sistema capitalista mo- derno, que direciona as oportunidades de participação dos indivíduos (MEYER, 1986; SORENSEN, 1986 apud CASTRO, 2013, p. 17). Esta forma racionalizada de pensar as etapas da vida acaba por criar toda uma expectativa sobre a inserção social do sujeito. O que devemos esperar da criança? Como ela se torna apta a desenvolver ou não determinada competência? E qual o ponto de comparação para análise de comportamentos e desempenhos? Estas questões nos remetem à formação de disciplinas especíicas para a aná- lise da infância. Castro (2013) destaca, assim como Mattioli (1998) e Postman (1999), que a Psicologia do Desenvolvimento se forma como uma disciplina da Psicologia justamente para dar conta desta demanda social, “[...] impulsionada pelo movimento crescente da escolarização obrigatória nas nações ocidentais” (ROSE, 1985 apud CASTRO, 2013, p. 24). A escolarização impulsiona o nascimento de mais uma disciplina especíica da Psicologia: a Psicologia da Aprendizagem. Como este processo ocorre? Por que há crianças que não aprendem? O caminho traçado para responder estas questões será objeto de nossos estudos. Ciente desse trajeto histórico, espera- mos que você consiga compreender a importância desta disciplina, e também a responsabilidade enquanto educador de analisar de forma contextualizada seus alunos na sua práxis docente. INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E30 DESENVOLVIMENTO INFANTIL E A QUESTÃO DA MATURIDADE PARA APRENDIZAGEM Ainal, o que é desenvolvimento? Segundo José e Coelho (2009), quando fala- mos em desenvolvimento, é comum lembramos facilmente das mudanças físicas que experienciamos, tais como: altura, peso e habilidades motoras. No entanto, este termo é muito mais amplo, pois deine “o processo ordenado e contínuo que principia com a própria vida, no ato da concepção, e abrange todas as modii- cações que ocorrem no organismo e na personalidade” (JOSÉ; COELHO, 2009, p. 10). Nesta perspectiva, não nos atemos somente aos aspectos biológicos, mas analisamos também os comportamentos mais soisticados, decorrentes docres- cimento e amadurecimento físico e dos estímulos ambientais. Todavia, conforme apresentamos no item anterior, os primeiros estudos acerca da infância foram concebidos a partir de um olhar evolucionista. A lógica de periodização do ciclo da vida, e de se ater ao que é esperado de cada faixa etária, coloca ênfase maior na inluência de aspectos biológicos sobre o desenvolvimento. Essa concepção ofereceu base para a construção das teorias inatistas-maturacio- nistas (FONTANA; CRUZ, 1997). Desenvolvimento Infantil e a Questão da Maturidade para Aprendizagem R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 31 Esta abordagem de desenvolvimento parte do pressuposto que os fatores hereditários ou de maturação são mais signiicativos para o desenvolvimento da criança, para determinar suas capacidades, do que os aspectos relacionados à aprendizagem e experiência. Mas ainal, o que podemos entender por heredi- tariedade ou maturação? Fontana e Cruz (1997) deinem hereditariedade como sendo o conjunto de qualidades ou características que são determinadas na criança já ao nascimento, tais como: cor dos olhos, cor da pele, formato da orelha, tipo sanguíneo etc. Já maturação são os padrões de mudanças que todos os sujeitos de uma espécie vivenciam em idades aproximadas, como a transformação do corpo, o cresci- mento de órgãos e o domínio do corpo. Sob esta perspectiva teórica, tanto a cor dos olhos quanto as característi- cas individuais e inteligência seriam herdadas biologicamente dos pais. Então, desde o nascimento a criança já estaria determinada a ser ou não apta a exe- cutar determinadas atividades, não sendo inluenciadas pela aprendizagem ou pelas experiências vividas. A disciplina de Psicologia do Desenvolvimento, bem como sua intrínseca relação com o processo de escolarização, favoreceu e fortaleceu, no contexto esco- lar, a ideia de que a aprendizagem dependeria do desenvolvimento da criança, de modo que não se deveria adiantar determinados conhecimentos para elas, que não estariam aptas a compreender em razão de sua imaturidade biológica para assimilar. A escolarização, segundo estes preceitos, teria por competên- cia propiciar aos seus alunos condições para um desenvolvimento harmonioso (FONTANA; CRUZ, 1997). Esta visão permeia também os primeiros questionamentos sobre os problemas de aprendizagem. Alfred Binet (1857-1911) foi o primeiro proissional a siste- matizar um modo de avaliar o Coeiciente Intelectual das crianças (FONTANA; CRUZ, 1997). Médico por formação, se interessou pela psicologia da criança dei- ciente com o objetivo de averiguar o nível de inteligência, de modo a auxiliar os proissionais da educação a elaborarem um plano de escolarização adequado ao peril da criança. De acordo com Fontana e Cruz (1997), as capacidades que compõem a inteligência, ou seja, atenção, julgamento, compreensão e raciocí- nio, para Binet não eram aprendidas, e sim determinadas pela herança genética INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E32 do sujeito. A escala de inteligência elaborada por Binet foi amplamente utili- zada como respaldo para determinar os aptos e os não aptos à aprendizagem. Todavia, graças a diversidade de pensamento e correntes ilosóicas, que respaldam os estudos acerca dos fenômenos humanos, surgiram outras corren- tes que ampliaram o conhecimento e os critérios de análise sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem. Para prosseguirmos, cabe deinirmos apren- dizagem como correspondendo ao “processo de mudança de comportamento decorrente da experiência construída por fatores emocionais, neurológicos, rela- cionais e ambientais. Logo, aprender é o resultado do interjogo entre estruturas mentais e o meio ambiente” (HAMZE, 2010, on-line)1. As novas correntes ilosóicas destacaram que o processo de desenvolvi- mento humano necessitava ser observado a partir de algumas vertentes, sendo elas: a biológica, psicológica, histórica, social e a cultural. Dentre as teorias psicológicas que problematizam esses aspectos, ressaltamos o posicionamento da histórico-cultural, por airmar que a criança nasce em um mundo humano, e não em um mundo “natural”. De acordo com Fontana e Cruz (1997, p. 57) a criança “[...] começa a sua vida em meio a objetos e fenômenos criados pelas gerações que a precederam e vai se apropriando deles conforme se relaciona socialmente e participa das atividades e práticas culturais”. Ainda res- paldadas nas ideias expostas pelas referidas autoras, podemos compreender que: [...] desde o nascimento, a criança está em constante interação com os adultos, que compartilham com ela seus modos de viver, de fazer as coisas, de dizer e de pensar, integrando-a aos signiicados que foram sendo produzidos e acumulados historicamente. As atividades que ela realiza, interpretadas pelos adultos, adquirem signiicado no sistema de comportamento social do grupo a que pertence (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 57). Então, podemos inferir que o processo de desenvolvimento de uma criança depende diretamente de seu contexto social, histórico e cultural. Mas, isso sig- niica airmar que o biológico não tem importância alguma? Não! De forma alguma podemos descartar a esfera biológica. O que procuramos evidenciar é que a cultura e as demais categorias, mencionadas anteriormente, inluenciam no processo de formação e de desenvolvimento do indivíduo. É um processo interativo entre as reações naturais, herdadas biologicamente (a Desenvolvimento Infantil e a Questão da Maturidade para Aprendizagem R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 33 percepção, as ações relexas, as reações automáticas e as associações simples), que por sua vez unem-se aos processos organizados pela sociedade e expressos de maneira cultural e transformam-se em modos de ação, de relação e de repre- sentação, características essas notadamente humanas (FONTANA; CRUZ, 1997). Podemos airmar então que o homem não se adapta ao meio, ele o internaliza, o modiica e o estrutura. O homem se desenvolve nessa relação intrínseca entre ele e a cultura, pois desde o seu nascimento o indivíduo tem com o mundo uma relação mediada pelo outro, pela linguagem, pela internalização de um mundo que, a priori não tem sentido, mas que passa a ter pela ação de alguém mais experiente para com a criança. Então, o desenvolvimento é entendido, segundo Fontana e Cruz (1997, p. 63; aspas das autoras) como: [...] um processo de internalização de modos culturais de pensar e agir. Esse processo de internalização inicia-se nas relações sociais, nas quais os adultos ou as crianças mais velhas, por meio da linguagem, do jogo, do ‘fazer junto’ ou do ‘fazer para’, compartilham com a criança seus sistemas de pensamento e ação. Entendemos que desenvolver-se é apropriar-se da cultura de um mundo humano sistematizado em volta da criança. Nesse sentido, nossa concepção é de que há uma base material em desenvolvimento ao longo da vida do indivíduo e da espécie humana, que lhes confere os norteadores para o seu processo de desen- volvimento. Nas palavras de Oliveira (1997, p. 24; grifos nossos): [...] o homem transforma-se de biológico em sócio-histórico, num processo em que a cultura é parte essencial da natureza humana. Não podemos pensar o desenvolvimento psicológico como um processo abstrato, descontextualizado, universal: o funcionamento psicológi- co, particularmente no que se refere às funções psicológicas superiores, tipicamente humanas, está baseado fortementenos modos cultural- mente construídos de ordenar o real. Estamos ainda engatinhando na concepção de homem e de mundo apresen- tada pela Teoria Histórico-Cultural, cujo principal expoente é Lev Seminovich Vygotsky. Essa visão de um desenvolvimento humano imerso nas condições sócio-históricas é o centro das discussões realizadas por esse estudioso da psico- logia. Ao falar em processo de desenvolvimento, Vygotsky destaca a importância do processo de escolarização na vida de uma criança, pois possibilita o contato INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E34 sistematizado e intenso dos indivíduos com sistemas organizados de conheci- mentos, além de fornecer instrumentos para elaborar e mediatizar seu processo de desenvolvimento (FONTANA; CRUZ, 1997). Sob o olhar da abordagem histórico-cultural, a concepção de maturidade é ampliada, transpondo as bases biológicas ao compreendê-la como o esforço para se conseguir atingir algo, impulsionado pelo processo de mudança pelo qual passa o indivíduo. Queremos deixar claro aqui que maturação não signiica “estar pronto para”, mas sim uma condição pela qual passamos durante nosso desenvolvimento. É a busca pela autonomia, pela independência em: “comer sozinho”, “amarrar o sapato sozinho”, “vestir-se sozinho”, “ser capaz de decodiicar as letras do alfa- beto”, “entrar no mundo da leitura e da escrita”, “conseguir resolver operações matemáticas que exigem um nível de abstração considerável”, “conseguir dirigir um automóvel (quando adulto, claro!)”, dentre inúmeros outros exemplos que exprimem a condição humana para o crescimento. Você pode estar se perguntando agora: mas se maturidade não tem a ver com processos puramente biológicos, poderíamos ensinar uma criança de 4 anos a ler sem problema algum? Ou então, por que existem crianças que apresentam diiculdades de se apropriarem dos códigos de leitura, escrita ou matemático? São questões pertinentes e serão respondidas no decorrer do livro de diversas formas. Entretanto, neste momento buscamos discutir a airmação amplamente difundida no âmbito escolar, respaldada na visão evolucionista, de que a não aprendizagem esperada da criança é decorrente de suas imaturidade biológica, pois ainda não estariam preparadas para se apropriarem de forma tranquila dos requisitos acadêmicos. Por hora, pontuaremos a visão vygotskyana acerca desta problemática. À luz dessa abordagem, uma criança imatura corresponde àquela que precisa do auxí- lio de um par educativo mais desenvolvido que ela, para que consiga na relação de troca e mediação, internalizar a lógica intrínseca ao processo em questão, de tal modo que gradualmente consiga realizar a atividade sem auxílio posterior. Em termos conceituais, estamos falando da Zona de Desenvolvimento Proximal. Mas ainal, o que signiica isso? Desenvolvimento Infantil e a Questão da Maturidade para Aprendizagem R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 35 Vygotsky, ao trabalhar com a área de desenvolvimento humano, denomina duas grandes áreas de desenvolvimento: a Zona de Desenvolvimento Real e a Zona de Desenvolvimento Proximal. ■ A Zona de Desenvolvimento Real diz respeito a todas as coisas que a criança consegue realizar sozinha, sem a intervenção de um par mais desenvolvido que ela (uma criança mais velha ou um adulto). ■ A Zona de Desenvolvimento Proximal signiica que existem atividades que a criança não conseguirá realizar sem a mediação de um par mais experiente ou de um adulto. Essa “imaturidade” que a literatura traz denota as atividades que a criança ainda não desempenha sem o devido auxílio. Por isso, nós educadores precisaremos atuar na Zona de Desenvolvimento Proximal, para que possamos auxiliar real- mente o processo de desenvolvimento humano. A compreensão parece difícil? Então vamos a um exemplo: E aí? Qual foi a sua escolha? Caso você tenha optado pela letra B, você compreendeu de maneira satisfa- tória o que é atuar sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal. Se a professora deixasse Ana em um grupo de crianças com diiculdade de aprendizagem como aquelas apresentadas pela aluna, Ana continuaria com a mesma diiculdade, ou Ana não consegue decodiicar as letras do alfabeto. O que a professora deve fazer então? Examine as alternativas abaixo e, antes de continuar a leitura, faça uma opção pela letra A ou pela letra B. Não vale deslizar os olhos para o parágrafo seguinte hein! Seja sincero com o seu processo de apreensão do conteúdo sistematizado. Vamos lá? As alternativas da professora de Ana são as seguintes: a. Colocar Ana junto aos alunos que não conseguem realizar essa ati- vidade, para que possa dar auxílio de maneira mais direta para essas crianças a im de que elas aprendam a decodiicar as letras; b. Montar grupos na sala de aula. Cada grupo a professora colocará crianças que têm muita facilidade quanto a decodiicação de letras e crianças com diiculdade, como é o caso de Ana. INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E36 avançaria de maneira lenta. Agora, se a professora organizar um grupo misto, como o indicado pela letra B, Ana pode ter a chance de entrar em contato com pares mais desenvolvidos que ela o que, segundo Vygotsky, auxilia no processo de desenvolvimento humano e na apropriação do conhecimento cientíico sis- tematizado historicamente pelos seres humanos que nos antecederam. Apesar de estarmos enfatizando o período da infância para problematizar a questão da maturidade e aprendizagem, cabe ressaltar que estes processos não ocorrem somente nesta etapa da vida. Dar ênfase a infância justiica-se, pois ela representa, por assim dizer, o centro da pré-história do desenvolvimento cul- tural, devido ao processo de internalização dos instrumentos e da fala social (REGO, 2007). Aprendizagem: Deinição, Relevância e Trajeto Histórico R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 37 APRENDIZAGEM: DEFINIÇÃO, RELEVÂNCIA E TRAJETO HISTÓRICO Conforme apresentado anteriormente, aprendizagem corresponde ao processo de mudança de comportamento decorrente da experiência forjada por aspectos emocionais, neurológicos, relacionais e ambientais, evidenciando o aspecto dinâ- mico entre as estruturas mentais e o meio ambiente (HAMZE, 2010, on-line)1. Para compreender como o processo de aprendizagem ocorre, é necessário esclarecer o modo pelo qual o homem se desenvolve e se apropria do mundo em que vive, organizando a sua conduta e se ajustando ao meio físico e social, pois é pela aprendizagem “[...] que o homem se airma como ser racional, forma a sua personalidade e se prepara para o papel que lhe cabe no seio da sociedade” (CAMPOS, 2011, p. 16). A aprendizagem é fundamental para a vida do indivíduo. Precisamos apren- der, pois nosso equipamento inato não dá conta da complexidade encontrada no mundo em que vivemos. Imagine se não houvesse este recurso. Tal como nasce- mos, permaneceríamos, ou seja, sem condições de discriminar fome de sede, de buscar meios para satisfazer nossas necessidades, não falaríamos, e consequen- temente todo o desenvolvimento decorrente desse processo não seria possível. INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o Pe n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E38 Assim, não teríamos nome, não pensaríamos de forma abstrata, não teríamos noção de tempo nem espaço para além do momento presente. Tamanha a relevância deste processo na formação da individualidade humana que a humanidade foi, ao longo da história, organizando meios educacionais e ins- tituições como as escolas, para tornar a aprendizagem mais eiciente (CAMPOS, 2011). A historicidade permitiu ao homem se apropriar das descobertas das gerações anteriores, de modo a poder superar o que estava posto ao invés de precisar reinventar os objetos e instituições sociais. Essa apropriação permite ao homem complexiicar cada vez mais sua aprendizagem e formação intelec- tual, emocional e social. Aprender é considerado por algumas correntes teóricas como o produto natural dos indivíduos. No entanto, pense conosco: a complexidade de tarefas como somar, ler, digitar e ser empático com as pessoas, denota que são fenô- menos que não podemos aprender de forma natural, pois são de ordem social e relacional. Amparadas nas palavras de Bossa (2008, p. 29), a “incursão pela história das idéias de nossos antepassados é condição para estudar o presente e planejar o futuro”. Recuperando o trajeto histórico sobre a construção da aprendizagem como uma preocupação acadêmica, desde a antiguidade os ilósofos e os pensadores questionavam-se sobre o que seria e como aconteceria a aprendizagem. A prin- cípio, as teorias elaboradas pelos ilósofos gregos confundiam as explicações dos processos lógicos com as teorias do conhecimento, tanto que “a noção de aprender se confundia com a ação de captar ideias, ixar seus nomes, retê-los e evocá-los” (CAMPOS, 2011, p. 16), ações posteriormente diferenciadas entre conhecer e aprender. Nesse percurso, Campos (2011) airma que as primeiras concepções de apren- dizagem nos remetem ao período da ilosoia clássica iniciada com os estudos de Sócrates (436-336 a.C.) Segundo a autora, Sócrates concebia o conhecimento como pré-existente no espírito do homem, e a aprendizagem seria a maneira de despertar tais conteúdos por meio do método da maiêutica, revelando assim as verdades universais. Maiêutica consiste na argumentação por meio do diálogo, que proporcionaria ao sujeito o desvelar de seus conhecimentos ou mesmo de suas limitações (FREIRE, 2014). Aprendizagem: Deinição, Relevância e Trajeto Histórico R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 39 Platão (427-347 a.C.), por sua vez, postulou a teoria dualista, separando o mundo das coisas do mundo das ideias, ou em outras palavras, a mente do corpo. Seguidor de Sócrates, manteve a concepção de que a aprendizagem resgataria os princípios de conhecimento que o sujeito já teria no âmbito mental; a aprendi- zagem nada mais seria do que reminiscências (CAMPOS, 2011). Freire (2014) esclarece que essa divisão fortaleceu a divisão entre trabalho intelectual e traba- lho material, criando um abismo entre ambas e desvalorizando a importância tanto do corpo quanto do trabalho manual. Em contraposição à concepção platoniana, Aristóteles (384-322 a.C.) inau- gurou a corrente empirista. Para o ilósofo, o conhecimento começava a partir dos órgãos dos sentidos. Sistematizou métodos cientíicos como o dedutivo e o indutivo, aplicando-os em suas observações, experiências e hipóteses. Estas concepções demonstram, à luz de Bossa (2008), que a preocupação neste momento histórico não era se o sujeito era ou não capaz de conhecer ou apren- der, o foco estava em compreender como o sujeito conheceria o mundo real. No período Medieval, a ênfase na educação estava voltada para os princí- pios teológicos. Destacaram-se nesse período Santo Agostinho (354-430), por reviver os princípios platônicos como explicação do conhecimento, e São Tomás de Aquino (1225-1274), por defender as verdades cientíicas baseadas na ilo- soia de Aristóteles, além das verdades religiosas fundamentadas na autoridade divina, enfatizavam a importância do trabalho e da rotina para o desenvol- vimento da aprendizagem, considerando-a como um processo inteligente e dinâmico (FREIRE, 2014). A modernidade nasce com o propósito de desmistiicar toda forma de conhe- cimento em razão dos grandes avanços cientíicos da época. A ciência moderna foi fundada por meio das descobertas de Copérnico (1473-1543), Bacon (1561- 1642), Galileu (1564-1642), Descartes (1596-1650), Locke (1473-1543) entre outros, que se voltaram para a utilização do método empírico para analisar os fenômenos sociais e naturais (CAMPOS, 2011). A noção de sujeito nasce com a modernidade, pois a grande questão moderna a ser respondida, seja pela corrente empirista - defende a experiência sensível para a construção do conhecimento - ou a corrente racionalista - crê na razão como única forma de conhecer - é como o sujeito é capaz de conhecer o real (BOSSA, 2008). INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E40 Nesse período, destaca-se os estudos de René Descartes (1596-1650). Conhecido como pai do racionalismo, postulou que a prevenção - entendida como a facilidade em se deixar envolver por opiniões alheias - e a precipitação - rapidez em emitir juízos norteados pelas nossas vontades e não pela relexão intelectual - seriam características que denotariam falta de amadurecimento inte- lectual, nomeada por ele como condição infantil. Suas formulações ilosóicas contribuíram para o fortalecimento da infância como algo negativo, devendo ser superado por meio da educação toda a condição de menoridade da razão, aspecto enaltecido pelo período Iluminista (BOSSA, 2008). Rousseau (1717-1778), contrapondo-se a concepção cartesiana de Descartes, traz no século XVIII um novo olhar para a infância e a aprendizagem. Para este ilósofo, segundo Bossa (2008), a ingenuidade infantil permitia que a criança fosse capaz de aprender de forma mais signiicativa antes de ser corrompida pela supericialidade da civilização. Descartes representa a pedagogia iluminista baseada na universalidade do sujeito, que alcançaria o conhecimento puro ao se despir de toda a sua memória histórica e cultural, atendo somente aos fatos. Rousseau, por sua vez representa- ria a pedagogia romântica, na qual a concepção de homem o concebe como ser autêntico e capaz de se desenvolver de forma harmoniosa e criativa (BOSSA, 2008). Nos últimos três séculos, surgiram vários teóricos que se dispuseram a pen- sar a relação desenvolvimento e aprendizagem, alguns deles vamos estudar mais adiante no livro. No entanto, a discussão até a atualidade ainda é permeada fundamentalmente pelas concepções até aqui apresentadas. Os princípios carte- sianos sustentariam a pedagogia tradicional “que pressupõe um sujeito racional, bem como um ensino centralizado na igura do professor, que detém o saber” (GHIRALDELLI Jr. apud BOSSA, 2008, p. 44). Essa visão adultocêntrica de educação lança sob a infância um olhar de transitoriedade, imposta por sua condição de imaturidade, que precisa ser supe- rada por meio da aprendizagem direcionada e disciplinarizada, de modo a alcançar o status de adulto ideal. Nesta perspectiva podemos airmar, ampara- dos em Bossa (2008), que a sociedade moderna, tendo a racionalidade como o valor primordial, desenvolveu mecanismos cientíicos-disciplinares, tais como observações, medidas comparativas e iscalizações com a inalidade de forjar o Aprendizagem: Deinição, Relevância e Trajeto Histórico R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l eL e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 41 indivíduo disciplinado, calculado e normalizado. É sob esse olhar normalizante que começa a forjar o conceito de uma infância normal, em contraposição às noções de crianças portadoras de diiculdades de aprendizagem como sendo doentes ou indisciplinadas. Antes de debatermos de forma mais sistemática sobre o conceito de nor- malidade e patologia na sociedade contemporânea, vamos entender como as mudanças socioeconômicas determinaram a criação de um novo campo de estu- dos, qual seja: os problemas de aprendizagem. INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E42 DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: PERCURSO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DO CONCEITO E DEFINIÇÕES Ao estudar o nascimento da categoria de infância como objeto de estudo, destacamos as inluências socioeconômicas neste processo. O mesmo processo deve ser aplicado no que tange às diiculdades de aprendizagem, pois compartilhamos da concepção de Cordié (1996), de que as questões acerca da aprendizagem só tiveram evidên- cia frente às novas exigências da sociedade capitalista, em razão do peril de sujeito necessário para suprir a demanda de mão de obra por um lado, e a de investimento social na prole da classe burguesa (POSTMAN, 1999). Cordié (1996) pontua que as rápidas transformações do mundo do traba- lho e o seu processo de tecnização foram determinantes no destaque dado ao não aprender. A psicologia fortaleceu esse contexto, dando ênfase no fracasso escolar, justiicando-o nos estudos métricos da inteligência iniciados por Binet, conforme exposto anteriormente. Bossa (2008) ressalta a importância de compreendermos como um sintoma social as diiculdades de aprendizagem, pois estas são a base para discussão do que se tornou usual ser nomeado como fracasso escolar. Para a autora, na Diiculdades de Aprendizagem: Percurso Histórico da Formação do Conceito e Deinições R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 43 contemporaneidade, o fracasso na escolarização se impõe de forma alarmante e persistente, uma vez que o sistema escolar brasileiro ampliou signiicativa- mente o número de vagas, mas não conseguiu implementar ações que tornassem a escolarização eiciente e, consequentemente, não garantiu o cumprimento de seu objetivo básico, qual seja: acesso à cidadania. Cordié (1996) fez um apanhado histórico com a inalidade de analisar o fra- casso escolar como uma patologia recente. De forma sucinta, a autora pontua que os problemas de aprendizagem só puderam surgir: [...] com a instauração da escolaridade obrigatória no im do século XIX e tomou um lugar considerável nas preocupações de nossos contemporâ- neos em conseqüência de uma mudança radical da sociedade. Também nesse caso, não é somente as exigências da sociedade moderna que causa os distúrbios, como se pensa muito frequentemente, mas um sujeito que expressa seu mal-estar na linguagem de uma época em que o poder do dinheiro e o sucesso social são valores predominantes. A pressão social serve de agente de cristalização para um distúrbio que se inscreve de for- ma singular na história de cada um (CORDIÉ, 1996, p. 17). A escola surgiu com a proposta de disciplinar e melhorar as condições de vida na sociedade moderna e acabou, na contemporaneidade, por ocupar o papel de repetição da marginalização ao reputar o insucesso acadêmico a milhares de crianças e jovens. Calcada nos ideais Iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade, acabou por fortalecer a divisão de classes e exasperar os sentimen- tos de não pertencimento e merecimento disseminados pela classe dominante (BOSSA, 2008; POSTMAN, 1999; CASTRO, 2013). Para termos clareza de quão novo é a problematização das diiculdades de aprendizagem, segundo Lajonquière (1999), o verbete “fracasso escolar” não consta no “Dictionnaire de Pédagogie” de Ferdinand Buisson, publicado em 1887. Essa data não é sem propósito. De acordo com Cordié (1996), Jules Ferry (1832-1893), então ministro da educação na França, estabeleceu a instrução laica e obrigatória em 1880. Sua visão de educação pretendia superar a divisão de classes sociais, permitindo que as crianças pobres tivessem acesso à educação formal. Entretanto, esse acesso icou restrito ao que se convencionou chamar de primário, pois este era o suiciente para que os menos abastados conseguissem manusear as máquinas cada vez mais frequentes nas fábricas. INFÂNCIA E APRENDIZAGEM: UM BREVE HISTÓRICO E APROXIMAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt. 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e Le i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e fe v e re iro d e 1 9 9 8 . IU N I D A D E44 Até então, a condição de não alfabetizado ou não letrado não era vista como um problema social ou clínico, pois as pessoas que não tivessem instrução for- mal poderiam exercer diversos ofícios que precediam desse atributo, e o valor recebido por seu trabalho não os tornavam fatalmente excluídos da sociedade (CORDIÉ, 1996). Todavia, acompanhando o ritmo acelerado das mudanças do modo de produção, esta concepção mudou de forma drástica a partir do inal do século XIX e continua em ritmo acelerado. A escolarização passou a ser entendida como fundamental para a execução de atividades inclusive artesanais, pois os artesãos precisavam aprender como gerenciar uma loja antes de abrir seu negócio. O desemprego, condição inerente ao modo de produção capitalista, passou a ser justiicado pela diiculdade de se empregar pessoas que não fossem escolarizadas. Nas sociedades ocidentais, os valores que são apregoados como essenciais são todos relacionados ao sucesso inanceiro, tais como dinheiro, posses de bens materiais e o poder que repre- sentam socialmente esses bens. Por essa razão, a autora airma que: aqueles deixados à margem do conhecimento se tornaram o refugo da sociedade; sem diploma, sem trabalho, sem dinheiro. Ora, a pobreza na sociedade dita “de consumo” gera uma frustração que o campesinato pobre do século passado seguramente não conhecia. No contexto atual, podemos dizer que o fracasso escolar se tornou sinônimo de fracasso na vida (CORDIÉ, 1996, p. 20, aspas da autora). Apesar da análise de Cordié se remeter à realidade francesa, podemos trans- por essa discussão para o cenário brasileiro sem problemas, pois os valores de posse e consumo foram difundidos em escala mundial em razão do processo de globalização. Bossa (2008), ao analisar a realidade da escolarização no Brasil e a origem do fracasso escolar, pontua que vivemos em um país em que a distri- buição de conhecimento é tida como fonte de poder social, logo é realizada de modo a privilegiar alguns e discriminar muitos. Diiculdades de Aprendizagem: Percurso Histórico da Formação do Conceito e Deinições R e p ro d u çã o p ro ib id a . A rt . 1 8 4 d o C ó d ig o P e n a l e L e i 9 .6 1 0 d e 1 9 d e f e v e re ir o d e 1 9 9 8 . 45 No âmbito escolar e de investigação das diiculdades de aprendizagem, o enfo- que dado pelos estudiosos sofreu a inluência do grande desenvolvimento das ciências médicas e biológicas, principalmente da psiquiatria, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX. Estudos de neurologia, neuroisiologia e neuropsiquiatria, realizados em laboratórios anexos as instituições asilares como os hospícios, for- jaram o conceito de anormalidade para se referenciar os internos. Não tardou para essa nomenclatura extrapolar os muros das instituições hospitalares e pene- trar as instituições escolares, uma vez que os alunos que não acompanhavam
Compartilhar