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g7 O Canto Novo de uma Raça Pré-Modernismo e Modernismo Raymundo Nettol i t e r a t u r a CURSO c e a r e n s e Realização Parnaso Montanha grega, morada de Apolo e das musas inspiradoras dos artistas. 1. DO RIGOR DA DISCIPLINA ÀS VAIAS ualquer aluno do en- sino médio em Litera- tura já ouviu falar em Parnasianismo. Possí- vel saber também que dois autores franceses, Théophile Gautier e Leconte de Lisle, lan- çaram O Parnaso con- temporâneo (1866), uma antologia de poemas na qual predominava uma reação antirromântica, ou seja, que procura- va resgatar a visão de arte como sinônimo de beleza formal alcançada por meio de trabalho cuidadoso e detalhista – comba- tiam o sentimentalismo excessivo dos poe- tas românticos que, criam, haviam abando- nado os rigores formais na sua composição, comprometendo a sua qualidade artística. Alguns desses poetas do “Parnaso” europeu se destacariam, mais tarde, no Simbolismo. SABATINA Théophile Gautier, além de poeta era um excelente contista, seguidor de E.T.A Hoffmann. Sua profana “A morte amorosa” é um dos contos fantásticos mais encontrados em antologias do gênero. Gautier afirmava que “a arte não existe para a humanidade, para a sociedade ou para a moral, mas para si mesma”. Passando a régua no século XIX, no Brasil, Canções românticas (1878), de Al- berto de Oliveira – apesar do título –, marca o início do Parnasianismo, que recebeu adesões, como Olavo Bilac, Rai- mundo Correia, Alberto de Oliveira e Vi- cente de Carvalho, embora, numa atitude irreverente, diz Bilac, que viria a ser o seu expoente maior no país: “No Brasil nunca houve Parnasianismo. O que há entre nós atualmente é a febre da Perfeição, a bata- lha sagrada da Forma, em serviço da Ideia e da Concepção. [...] Nenhum dos poetas da nova geração quer fazer do verso um instrumento sem vida; nenhum deles quer transformar a Musa num belo cadáver. O que eles não querem é que a Vênus grega seja coxa e desajeitada e faça caretas em vez de sorrir” (CASTELLO, 1999, v.1, p. 299) O certo é que a estética parnasiana, mes- mo sem adotar a objetividade da escola fran- cesa – o “amordaçamento das emoções”, como se refere Ivan Junqueira –, abraçou o cuidado com a criação dos versos perfeitos (gramática e métrica), a manutenção do rit- mo, a escolha intransigente das rimas e o olhar voltado para a antiguidade clássica. O Simbolismo, levando em considera- ção as obras de Cruz e Sousa de 1893 como marco da escola no país, chegaria apenas quinze anos depois, com fria recepção do público, ao contrário de sua antecessora. É nesse ponto que Sânzio de Azevedo nos chama a atenção para uma singula- ridade na historiografia da Literatura Cea- rense. No Ceará, o Simbolismo nos chega antes do Parnasianismo, pois como vi- mos no módulo anterior, ele viria no vapor, diretamente de Portugal, com influência de Antônio Nobre, e não de Cruz e Sousa ou de outros anteriores a ele no Brasil. Aqui, ainda no século XIX, quando o Simbolismo já figurava em, pelo menos, Lí- vio Barreto (Dolentes) e Lopes Filho (Phan- tos), Álvaro Martins publica, em 1903, o soneto “A aranha”, “manifestação verdadei- ramente inaugural da arte marmórea entre 98 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE SABATINA Sugestões de leitura: Bilac vê estrelas (Companha das Letras, 2000), romance de Ruy Castro, misto de ficção e realidade; Roteiro da poesia brasileira: parnasianismo (Global, 2006) e Alberto de Oliveira (série Essencial da ABL, 2011), ambos de Sânzio de Azevedo.” Muitos autores apontam Fanfarras (1882), de Teófilo Dias, como a estreia do Parnasianismo brasileiro. Contudo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, em sua Poesia simbolista, caracteriza a obra como precursora não do Parnasianismo, mas do Simbolismo, critério também aceito por Sânzio de Azevedo em sua historiografia. CONFEITOS nós [cearenses]” (AZEVEDO, 1976, p.287). Entretanto, mesmo com tal aracnídea poe- sia, de “parnasiano puro” Martins nos deixa- ria somente este soneto. Entre alguns nomes do Parnasianismo cearense: Antônio Sales (especialmente em Poesias e Minha terra), o pernambucano Alf. Castro (considerado por Azevedo o iniciador do Parnasianis- mo no Ceará, principalmente no inédito Ocaso em fogo), Júlio Maciel (que Azevedo assim enquadra: “Sua feição definitiva é a de poeta parnasiano, com notas simbolistas, mas compôs versos à moda futurista, sob o pseudônimo de ‘Lúcio Várzea’”), Cruz Filho (parnasiano, mas com matizes românticos e simbolistas), Carlos Gondim, Otacílio de Azevedo (seu poema “Carro de bois” seria premiado em concurso lançado pela revista Ilustração Brasileira (RJ) e mereceu desta- que na História da Literatura Cearense, de Dolor Barreira) e Mário Linhares. MALACA CHETAS Emílio de Menezes fez publicar, na revista Fon-Fon (RJ), um soneto de Júlio Maciel (“Aeternum Vale”), que foi estampado com destaque e em página inteira, acompanhado de um bilhete elogioso do consagrado parnasiano, que afirmava, a respeito do jovem poeta cearense: ‘Júlio Maciel, dos poetas novos, é, sem contestação, um dos melhores pela emoção, pelo contorno do verso e pela justa, sóbria e precisa feição de sua vernaculidade.’” (AZEVEDO, 1976, 316) CURSO literatura cearense 99 MALACA CHETAS Álvaro Martins, o “Alvarins” do Liberta- dor, é um dos fundadores da Padaria Es- piritual e, saindo da primeira, do Centro Literário. Chegou a publicar no Rio de janeiro, ao lado de José do Patrocínio. Sua obra de estreia é Os pescadores da Taíba (1895), já no Centro Literário. A importância de Alf. Castro reside não somente na qualidade de sua po- esia, mas também e principalmente no fato de situar-se no mais genuíno e puro Parnasianismo, no sentido fran- cês do termo, o que é raro na literatura nacional. (AZEVEDO, 1976, 301) BOLACHINHAS A seguir, dois exemplos de sonetos parnasianos: Aos pinchos, pela sombra, indolente e moroso, O batráquio estacou do fundo poço à borda, E um momento quedou, como quem se recorda, Surpreso ante a visão do poço silencioso... Ao fundo, onde do céu, que de nuvens se borda, Reflexa a imagem vê – pelo céu luminoso Vê da Lua pairar o áureo disco radioso: E o disforme animal de júbilo transborda... Um momento quedou, mudo e perplexo. Ao centro A tentá-lo, a ilusão do astro de ouro flutua, E o monstro eis que se arroja, a súbitas, lá dentro... E a água convulsionou-se, em círculos ondeantes, Num naufrágio de luz, em que perece a Lua, Dissolvida em rubis, topázios e diamantes. Cruz Filho, “A ilusão do sapo”. Há uma ressurreição no Sertão rudo. Uma ressurreição! – Verde e risonho É o vale, verde a serra, é verde tudo Em que os meus olhos, deslumbrado, ponho. Bruto alcantil de aspecto mau, desnudo Esvão de terra, ríspido e tristonho, – Agora têm branduras de veludo, Verdes agora os vejo, como em sonho! Em cisma, a sós, contemplo verde liana, Verde, tão verde, com carícia humana As ruínas afagando a uma tapera. E na contemplação que me não cansa, Sinto quão doce és tu, cor da Esperança, – Até nos olhos de quem nada espera... Júlio Maciel, “Verde”. 100 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Eu sei que tudo é como o fumo leve: Foge: mas, porque a vida seja breve, Há sempre um dia mais para quem ama. Mário da Silveira, em Coroa de rosas e de espinhos (1921). uita gente discute o que afinal é o Pré-Moder- nismo. Eu mesmo sem- pre tive a impressão de ser “pré” ou “pós”, assim como “para”, algo indefi- nível, indeterminado, ou mesmo de menor impor- tância. Ou seja, o que vem “antes” (pré), depois (pós) ou “ao lado” (para) de. É como a linha imagi- nária do Equador: concretamente não exis- te, mas todo mundo sabe onde fica. Devido a grandes mudanças sociais da época, o foco e os interesses da produção literária eram diversos e, por vezes, diver- gentes, o que é percebido nas característi- cas estéticas das publicações no período. E justamente por não existir um critério estéticoque reúna e defina a produção denominada pré-modernista, nem mes- mo que a classifique como escola literária (reunia realistas, parnasianos, simbolistas e algumas antecipações modernistas), al- guns autores definem esse “período de transição” baseados em um princípio cro- nológico. Daí, são consideradas obras pré- -modernistas, aquelas que nos chegaram depois de 1902, data de publicação de Os sertões, de Euclides da Cunha, até 1922, ano da Semana de Arte Moderna, marco do Modernismo brasileiro. BOLACHINHAS Alfredo Bosi, a respeito da questão, em seu Pré-Modernismo, admite que o termo pode ser entendido em 2 sentidos que nem sempre coincidem: (1) dando ao prefixo “pré” uma conotação meramente temporal de ante- rioridade; e (2) dando ao mesmo elemento um sentido forte de precedência temática e formal em relação à literatura modernista. Assim, no Brasil, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça Aranha, o inclassificável e enigmático fe- nômeno Augusto dos Anjos, entre outros, foram devidamente enquadrados como “pré-modernistas”. Sânzio de Azevedo, ao referir-se a esta “fase de transição” nos apresenta dois re- presentantes: Mário da Silveira (1899- 1921) e Leão de Vasconcelos (1898-1965). Deixemos o Leão sossegado e vamos fazer um breve comentário sobre o “eter- namente jovem” Mário. Pelo que se sabe, Mário da Silveira, de origem humilde, tinha um excelente cabedal cultural e erudito, devido à leitura intensa dos clássicos. Pes- simista em sua condição de poeta e huma- no, em 1916, publicou No silêncio da noite (fragmentos), dedicado a Carlos Gondim e Luiz de Castro, que trazia a epígrafe de Álvares de Azevedo: “O passado é um tú- mulo”. Em 1919, realizou a conferência “A eterna emotividade helênica”, na Casa de Juvenal Galeno – na época, ainda “Salão”. Em breve passagem no Rio de Janeiro, atuou como secretário de João do Rio n’A Pátria, cultivando amizade com Raul de Leoni (au- tor de Luz mediterrânea, de 1921, cuja anto- logia de poemas – pela Global/2002 – é pre- faciada e organizada pelo cearense Pedro Lyra) e Ronald de Carvalho. O termo “Pré-Modernismo” foi criado pelo crítico Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Ataíde), em Contribuição à história do Modernismo (1939). 2. PRÉ-MODERNISMO E A LINHA DO EQUADOR BOLACHINHAS Leão de Vasconcelos, em 1933, é apresentado em La Revista Americana de Buenos Aires como “o renovador do lirismo brasileiro” e, em 1935, foi eleito, segundo a Revista Brasileira nº 8, “o maior poeta moço do Brasil”. Seus poemas são traduzidos em diversos países. Provavelmente entre 1920 e 1921, es- creveu o poema “Laus Purissimae”, “canto- -novo dedicado ao Mediterrâneo, ‘o grande mar sempre novo’, produção que seria uma antecipação de Raul de Leoni” (ALENCAR, 1984, p.30), composto não somente de ver- sos polimétricos, mas de versos livres, ali- nhando-se aos pressupostos modernistas, razão única pela qual figura neste espaço. Já em Fortaleza, em 1921, em praça públi- ca, é covardemente assassinado. O motivo: passional! Amou além da cota. Nas vestes, “não havia única moeda, mas um soneto...” história tantas vezes repetida. A obra Coroa de rosas e de espinhos seria então publicada por amigos, em tiragem de 500 exemplares, prefaciada por Antônio Sales. Azevedo, em análise da produção de Sil- veira, afirma que “como a poesia de Raul de Leoni, a sua é ao mesmo tempo clássica e renovadora” e “[...] o poeta já começava a li- bertar-se não somente do metro regular, mas também do poema polimétrico, por muitos erroneamente chamado de poema em verso livre. ‘Laus Purissimae’ [...] em seu prenúncio de Modernismo, pende muito mais para CURSO literatura cearense 101 Polimétricos Formado por versos de várias medidas: heptassílabos, octossílabos, alexandrinos etc. Simbolismo do que para outra qualquer es- tética” (AZEVEDO, 1976, p.369-370). Talvez a juventude eloquente – morreu aos 21 anos –, o linguajar e o conhecimen- to clássico dessem um charme especial ao rapaz que, ao ser convidado para uma palestra do Grêmio Literário Paula Ney, recusou-se, justificando a nocividade desses grêmios literários, pois que deles surgiam poetas, comprovando o estado de sua própria maldição. Embora a estrutura (forma) do referido poema tenda à renovadora, a temática e os motivos estão bem distantes do que viria a ser o lastro dos modernistas puros, diga- mos assim, nem daqueles do “Sul” nem do “Norte”, como veremos a seguir. Lastro Base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa; fundamento. 3. AVANT-GARDE MODERNISTA assagem de séculos. Os no- vos tempos assistiam ao sur- gimento de um cenário artísti- co dinâmico, criativo e diverso – para alguns, assustador e de extremo mau-gosto. O avanço tecnológico (a “Era da Eletrici- dade”, o cinema, o telefone, o telégrafo sem fio, o automó- vel, o avião...), a revolução na Física, a psicanálise, os conflitos entre paí- ses, tudo isso e algo mais gerava um turbi- lhão de novas ideias e uma grande agitação, especialmente dos grupos denominados vanguardas que, de uma forma ou de ou- tra, criavam novas referências, renovando o olhar sobre as linguagens artísticas, muitas vezes de forma agressiva, desafiadora e/ou iconoclasta. Ser vanguarda seria antecipar novos caminhos, prenunciar bases e crité- rios estéticos para este mundo “em transfor- mação”. Daí, é nesse contexto que surgiriam os europeus Futurismo, Dadaísmo, Cubismo, Expressionismo, Surrealismo e seus respecti- vos e chocantes manifestos. Para resumir o que nos interessa: “A prin- cipal herança das vanguardas europeias para a Literatura Brasileira [...] é o impulso de (1) destruir os modelos arcaicos, (2) desafiar o gosto estabelecido e (3) propor um olhar inovador ao mundo” (ABAURRE; PONTARA, 2005, p.504), ou seja, ruptura e transformação seriam as palavras de or- dem para a fase heroica – como dizia Mário de Andrade – da primeira geração moder- nista, que é o objeto deste módulo. BOLACHINHAS Coroa de Rosas e de Espinhos só teria uma segunda edição quase 90 anos depois, sob a coordenação do autor deste fascículo, na época, na Secult/CE. 102 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 4. MODERNISMO NA PENUMBRA stávamos cansados dos parnasia- nos brilhantes e bem arrumados, dos versos esculturais e lantejou- lantes, de poesia eloquente, cheia de estardalhaço, de cores e luzes. [...] O governo Serpa [Justinia- no de] estimulava as atividades mentais, inclusive fazendo reviver a velha Academia Cearense, por tantos anos silente. A fundação de grêmios literários; as rodinhas de livraria e as reuniões vesperais no Café Riché ( já nos seus últimos meses); as tertúlias improvisa- das do Art-Noveau fronteiro [ambos, frente a frente numa das esquinas da praça do Fer- reira]; as perspectivas das festas e comemo- rações do Primeiro Centenário da Indepen- dência, tudo isso contribuía para o clima de efervescência mental, de agitação intelec- tual. Havia, na verdade, vibração e até mes- mo alegria naquela quadra ridente e buli- çosa da capital cearense. Processava-se um surto de renovação na vida da cidade com pouco mais de 70 mil habitantes. [...] Foi nesse ambiente de calor e exaltação que o livro delicado e delicioso de Ribeiro Couto [refere-se a O jardim das confidências, sua obra de estreia, em 1921] aportou à capital cearense, acendendo entusiasmos na moci- dade. [...] A temática do poeta santista era outra novidade. Não mais fidalgas e castelãs e sim raparigas doentes de bairros pobres transformadas pelo poeta em princesinhas sem coroa. Estudantes enfermos. Lâmpa- das morrentes. Alcovas sombrias, quase solitárias, tresandando a tristeza e remédio. Pregões de vendedores, crepúsculos enevo- ados pela neblina. Estaçõezinhas modestas de subúrbios. Portões fechados a cadeado, parques desertos, arrabaldes ermos. Elegias e baladas, mas tudo bem do terra a terra, do cotidiano humilde de São Paulo, sem imagens atrevidas, semrutilâncias e sem delírios. Tudo isso, pela força contrastan- te, comovia a gente moça da Terra do Sol.” (ALENCAR, 1984, p. 30-31) A tela acima, pintada por Edigar de Alencar, sobrinho do poeta, pintor e modi- nheiro Raimundo Ramos Filho (1871-1916), o “Ramos Cotoco”, nos mostra uma Fortale- za Belle Époque (1860-1930) – momento de aformoseamento da cidade, do deslumbre com a sensação cinematográfica de pro- gresso provinciano – que antecede à Sema- na de Arte Moderna de 1922. No mesmo texto em que Edigar expõe o fascínio da mocidade cearense pela poéti- ca, denominada penumbrista, de Ribei- ro Couto – que para variar teria entre suas obras mais conhecidas o romance Cabocla, após ser novela de TV –, diz que ela impac- MALACA CHETAS Edigar de Alencar (1901-1993), cultor de vasta obra em diversos gêneros, desde adolescente frequentou grêmios artísticos e literários e escrevia para periódicos como A Jandaia, Fênix e Fortaleza. Em 1925, lançou a revista literária Fanfarra (propriedade de Jorge C. Garcia e Jeová Rosa), que teria um projeto gráfico avançado para os poucos recursos que possuía. Em 1926, embarcou para o Rio de Janeiro, onde residiria até o fim de sua vida. CURSO literatura cearense 103 SABATINA taria alguns jovens poetas e intelectuais dos meios literários e jornalísticos, membros de agremiações e comerciários. Entre os poe- tas, Jáder de Carvalho, Leão de Vascon- celos e o próprio Edigar de Alencar que, em 1922, nas coletâneas A poesia cearense no Centenário e em Os novos do Ceará no Primeiro Centenário da Independência, pu- blicariam “manifestações penumbristas”. E o que seria esse tal penumbrismo, que não era, sabemos, uma escola literária? O próprio Couto, em 1957, em carta a Rodri- go Octávio Filho, diria: “um certo jeito, um tom, um clima de ex- pressão poética [...] a incorporação da vida vivida, a rua, os quintais, o quarto do estudante Batista, as pombas voando quando passa o trem do subúrbio, a mu- lher do bar (Milonguita), o amigo que em segredo ama a irmã do amigo e na cara do outro revê a amada, o pudor das aspira- ções obscuras, a mãe fatigada que espera o filho boêmio altas horas da noite, o ru- mor de passos na rua deserta, enfim a vida de toda gente, a dignidade do cotidiano autêntico, natural, humano, sem nenhu- ma ênfase e nenhuma oratória.” Referia-se, ao final, à sua oposição ao Parnasianismo. Com a criação da revista Fanfarra, de For- taleza, em 1925, Edigar usaria o veículo para promover também os versos de influência ri- beirocoutiana, assim como poesias “à feição de Guilherme de Almeida”, referindo-se aqui ao livro Raça, do poeta, publicado em 1925. A coletânea Os novos do Ceará no Primeiro Centenário da Independência, organizada pelo jornalista Aldo Prado, é a tácita (ou não) manifestação de protesto de uma nova geração deixada de fora da coletânea A poesia cearense no Centenário, organizada por Sales Campos. MALACA CHETAS No Ceará desse período, entre os maiores opositores do penumbrismo e do futurismo, Antônio Sales, o mesmo da Padaria Espiritual, que publicaria no Correio do Ceará uma série de poemetos irônicos e críticas sob o pseudônimo “Artúnio Vales”, o poeta Cruz Filho, Sales Campos, Leonardo Mota, Antônio Furtado e Elias Malmann, entre outros. Edigar de Alencar, que escrevia para A Jandaia, respondia as críticas dos desafetos com outras, sob a máscara dos pseudônimos “Zefo Turista” e “Melpiche da Noite”. 104 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 5. E O MODERNISMO FOI? NÃO FOI? ão nos deteremos no que vastamente encontra- mos nos compêndios de Literatura Brasileira, que afirmam ser esta primei- ra geração, a do “espírito destruidor” do Modernis- mo, a eclodir nos salões do Teatro Municipal de São Paulo, apoiada con- fortável, econômica e so- cialmente pela elite paulista: a Semana de Arte Moderna de 1922. Mas, vá lá, onde é que nós entramos nis- so? Pois bem, o escritor gaúcho Raul Bopp (1898-1984), que jovem já havia fundado periódicos no Rio Grande do Sul, não esta- va em São Paulo durante a Semana – que ele denominava “reação modernista” ou “insurreição literária de 22” –, mas no Rio de Janeiro, o que fez com que acompa- nhasse os seus acontecimentos a distância, assim como também nos seus reflexos em outros estados brasileiros. Conta-nos: Passada a fase de alvoroço, provocado pela Semana de Arte Moderna, começou-se a formar uma lenta consciência do Movi- mento. O impacto de ideias de vanguarda lançou os intelectuais em posições novas. Consequentemente, verificou-se, em vá- rios setores, um abandono gradativo dos princípios, que sujeitavam letras e artes aos moldes formais da época. Iniciou-se um ci- clo diferente para a conquista da expressão própria, em ruptura com o conformismo acadêmico. A evolução era inevitável. Com ela, desenvolveram-se formas embrionárias de um Renascimento brasileiro. Um espíri- to jovem alastrou-se, com entusiasmo, por vários recantos do país, sob o impulso de ritmos construtivos. Foi um ponto de partida para escritores e artistas irem se buscando, aos poucos, com uma nova compreensão do momento. Embora não tivesse exercido uma influência imediata, o Movimento for- mou, gradualmente, e com um alcance cole- tivo, um conjunto de ideias básicas, coeren- tes com a realidade brasileira” (BOPP, 2012). Observamos que esse movimento inspi- rado pelas ideias europeias e que queria, 100 anos depois, proclamar a sua “independên- cia” dos valores estrangeiros – aparente con- tradição – faria uma forte campanha, espe- cialmente por meio de artigos em jornais (tinham bastante acesso a eles), lançamen- to de revistas e manifestos – entre eles, em 1928, o “Manifesto da Antropofagia”, que mais impactaria no Ceará –, além de excur- sões de militantes, como Raul Bopp e Gui- lherme de Almeida, aos demais estados. Guilherme de Almeida (1890-1969), um dos “semanistas” e maiores divulgadores do Modernismo, e que viria a ser, anos depois, o primeiro modernista a ingressar na Aca- demia Brasileira de letras, em 1925, percor- reu algumas capitais brasileiras, como Porto Alegre, Recife e Fortaleza, em conferência, a princípio, a convite do jornalista, escritor e advogado pernambucano Joaquim Ino- josa, principal divulgador do Modernismo – dizia-se “Futurismo” – nas terras nordes- tinas. Inojosa conta que após o seu primei- ro encontro com os “semanistas”, recebeu CURSO literatura cearense 105 BOLACHINHAS “luvas para desafio: livros e exemplares da Klaxon – a senha da renovação” (INOJOSA, 1969, P.44). Neroaldo Pontes de Azevedo diz que após esse encontro “seu comportamen- to é o de um convertido, logo ungido após- tolo, predestinado a pregar entre os ‘gentios’ a mensagem do ‘credo novo’” (AZEVEDO, 1996, p.42). Havia publicado em outubro de 1922, em A Tarde, o artigo “Que é Futurismo”, iniciando a grande peleja “passadistas versus futuristas”, frequente até 1924. Como veículo de divulgação da nova corrente, utilizava a revista Mauriceia, por ele dirigida, conflitando com o Centro Regionalista do Nordeste e os seus defensores. Mais tarde, em 1924, pu- blicaria também a plaquete A Arte Moderna, que, acredita Neroaldo, seria a responsável em divulgar o modernismo no Nordeste, além de propagar o que se passava no Norte- -Nordeste para os demais estados brasileiros. Em Recife, em 1925, em sua conferência, Almeida se contrapunha ao regionalismo, provocando o seu maior defensor, o escri- tor, jornalista, ensaísta e sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), que publicaria, em re- presália ao “Almeida crítico” – pois o “Almei- da poeta” tinha seu valor –, no Diário de Per- nambuco, o artigo “A Propósito de Guilherme de Almeida”, no qual dizia que o conceito de tradição do poeta era o de um “tristonho peso-morto”, e que ele não distinguia “o re- gionalismo à Jeca Tatu, caricaturesco e arre- vesado, do regionalismo que é apenas uma forma mais direta, mais sincera, mais prática,mais viva de ser brasileiro.” Também o paraibano José Lins do Rego (1901-1957), que acreditava que o bom romancista é aquele que consegue conferir universalidade à sua terra, e que combatia o ideário da Semana da Arte Moderna, negando-a enquanto “expres- são centralizadora de um movimento de âmbito nacional” (CHAGURI, 2008), comenta que o principal objetivo do regio- nalismo nordestino era “transformar o chão do Nordeste: de Pernambuco, num pedaço de mundo. Era expandir-se ao invés de registrou o poeta Filgueiras Lima), era edita- do, pela Tipografia Urânia, a mesma que iria editar, em 1930, O quinze, de Rachel de Quei- roz, O Canto novo da raça, um livrinho mais horizontal do que vertical, sem numeração nas suas 40 páginas. Tinha nada menos do que quatro autores: Jáder de Carvalho, Sidney Netto, Franklin Nascimento e Mo- zart Firmeza (Pereira Júnior). Na capa, a dedicatória, não a Guilherme de Almeida, o arauto paulista da nova estética, mas a um poeta do Rio de Janeiro: ‘Homenagem a Ro- nald de Carvalho’” (AZEVEDO, 2012). Baseado em outra afirmativa de Azevedo – “ o Modernismo na terra de Alencar, apesar de precedido por notas de surdina penum- brista, vai explodir mesmo é em clangores de forte telurismo” – sendo Jáder de Carva- lho o mais telúrico dos autores da obra. Em “Modernismo”, um de seus poemas do livro, um exemplo de “poema-piada”: Teu cabelo à Rodolfo, tuas olheiras românticas, teus quadris inquietos e atordoadores teus seios bico-de-pássaro – dão-me a ideia cabal deste século ultra- -chique. Ontem, quando deixavas o cinema. – o colo nu, os braços nus, a perna escandalosamente nua, eu tive a súbita impressão de que, na bolsa de ouro a te pender da mão, vinha, (de precavida que és!) – o teu vestido. (Jáder de Carvalho, 1927) Mesmo sendo considerada marco do modernismo cearense, a segunda edição de O canto novo da raça só seria lançada 83 anos depois, organizada por Raymundo Netto e publicada pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, gestão do prof. Auto Filho, com apresentação de Sânzio de Azevedo, ilustrações de Audifax Rios e acréscimo da “Biografia Perdida” de Franklin Nascimento, por Raymundo Netto. Poema-Piada Textos curtos que desencadeiam efeitos humorísticos por meio de trocadilhos ou jogos verbais. Muito utilizado entre modernistas, especialmente por Oswald de Andrade. restringir-se. Por esse modo o Nordeste absorvia o movimento moderno no que ele tinha de mais sério. Queríamos ser do Brasil sendo cada vez mais da Paraíba, do Reci- fe, de Alagoas, do Ceará” (REGO, 1957, p.50). Percebemos que esses embates entre as realidades do Sul-Sudeste e do Norte-Nordes- te, além da temática regionalista, não é de hoje. O fato é que Guilherme de Almeida veio a Fortaleza e foi acolhido pelo jornalista Gil- berto Câmara em sua casa, na rua da Escadi- nha, hoje Travessa Baturité, sede da Casa de Cultura Christiano Câmara, a mesma que abrigaria mais tarde o escultor paulista Hum- berto Cozzo, responsável pelo monumento de Centenário de José de Alencar (1929), que é, de acordo com o artista plástico Roberto Galvão, “marco simbólico embrionário das novas manifestações plásticas em Fortaleza”. Proferiu sua palestra “A revelação do Brasil pela poesia moderna” no Theatro José de Alencar, publicada na íntegra pela Ceará Illustrado, revista criada em 1924, sob a direção do jornalista e poeta baiano De- mócrito Rocha (1888-1943). Sobre a influência dessa visita, diz Sân- zio de Azevedo: Tenha ou não a pregação de Guilherme de Almeida repercutido na intelectualidade cearense, o certo é que dois anos depois, em 1927 (e não 1928, como equivocadamente 106 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS (1) Jáder de Carvalho é um dos maiores poetas de sua geração e um dos nomes mais lembrados e estudados atualmente. Fundou jornais, publicou poemas, ensaios e romances; (2) Sidney Netto publicou ainda muitos livros, mesmo quando imerso em sua boemia; (3) Franklin Nascimento, apesar de ter poemas publicados em vários periódicos locais e até em outros estados, como a Revista de Antropofagia, após o casamento, em 1933, afastou-se do meio literário; (4) Mozart Firmeza publicaria ainda livros de crônicas e poesia. No Rio, cursou Escola de Belas-Artes. Mais tarde, atuaria em jornais como crítico de arte. SABATINA Guilherme de Almeida é um dos fundadores da revista Klaxon (também dos anúncios da “Lacta”), criador do projeto gráfico de sua capa e da capa da primeira edição de Pauliceia des- vairada, de Mário de Andrade. Em 26 de abril de 1928, o jornal O POVO anunciava: “Na vitrine da Casa Almeida, acha-se em exposição uma original tela a óleo de Pereira Júnior, em que o apreciado artista retrata o nosso colega de imprensa Mozart Firmeza – que não é outro senão o próprio Pereira Junior. O referido trabalho prima pelo exotismo com que foram lançadas as tintas em chocante disposição futurista, pouco conheci- da em nossa capital” (GALVÃO, 2008). MALACA CHETAS Sidney Netto, embora tenha um papel destacado no Modernismo cearense, seus poemas guardavam mais “traços românti- cos e simbolistas”. Franklin Nascimento, em sua produ- ção, se localiza bem em sua época, citando o maxixe e o charleston, lutas de classe – era admirador ferrenho de Luís Carlos Prestes – (“à noveau-riche”, “cantarolava a Interna- cional!”), os avanços tecnológicos e a ins- piração de um Manifesto Futurista – na sua ligação com a velocidade e automóveis (“mil fios elétricos”,“com teus autos chispantes, senhoris, de mistura/com fordzinhos pernal- tas”, “bombas de gasolina”, “antenas de tua primeira estação radiográfica”, “à luz dessas minúsculas lâmpadas ½ watt”, “moléculas de aço da machino-factura”, entre outros. Sem dúvida, “Em louvor da princesa do ver- de mar...” é a sua melhor contribuição à obra. Mozart Firmeza (Pereira Júnior), um dos autores, tem uma particularidade: além de escritor, era pintor – e irmão de pintor, no caso, de Nilo Firmeza, o “Estrigas”. Escre- via “Mozart Firmeza”; pintava o seu pseudô- nimo “Pereira Júnior”. Sânzio de Azevedo detecta nos poemas de Firmeza, além da preocupação social, a dicção mais próxima do penumbrismo. Como todos os bons modernistas da- quele período, ou mesmo em um futuro, seja no Ceará ou em qualquer outra parte do país, percebemos uma pluralidade de orientações e mesmo de contradições, alguns com maior “pureza modernista” ou que ainda trariam notas neoparnasianas, pós-simbolistas, em resumo, “passadistas”. Bom mesmo e necessário para um estudo crítico e reflexivo em literatura é mergulhar na obra, nadar na onda desses versos que engatinhavam naquela que nos chegava em O canto novo da raça, que, como aponta Azeve- do, “é o legítimo iniciador do Modernismo no Ceará” e, assim, tornando-se, como obser- va Assis Brasil, “um dos primeiros estados a tomar conhecimento da Semana de Arte Mo- derna de 22, deflagrada em São Paulo”. CURSO literatura cearense 107 BOLACHINHAS6. MARACAJÁ NÃO É PARA TODO MUNDO, NÃO! O modernismo que eu entendo é esse que nós fazemos: modernismo nacional, saturado de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante... Querem saber? Se eu continuasse a dizer o que penso do modernismo não acabaria mais... Demócrito Rocha, O POVO (13 de junho de 1929). m 7 de janeiro de 1928, o baiano Demócrito Rocha, ex-diretor li- terário d’O Ceará, após uma surra de policiais no centro da cidade, a mando do govenador que estava bastante impressionado com a sin- ceridade do jornalista, decidiu fun- dar o seu próprio jornal: O POVO. O periódico é hoje o mais antigo em exercício no Ceará, sendo nele encartados os fascículos de nosso “curso- -movimento” Literatura Cearense. Vamos agora explicar o porquê de o poeta Filgueiras Lima afirmar ser esse jornalista “a coluna mestra do Modernismo no Ceará”. Demócrito, como falamos anteriormen- te, havia criado a Revista Illustrada, a mes- maque o próprio editor distribuía pessoal- mente nas praças e cafés e que divulgou e contribuiu na promoção da excursão de Guilherme de Almeida em Fortaleza. Como jornalista atento e telegrafista, acompa- nhava os movimentos que aconteciam não somente nos estados do “Sul” do país, mas nos vizinhos do Siará Grande. Era também poeta, amava a literatura, um ser gregário, criador do banco da Opinião Pública. Havia descoberto o talento de Rachel de Queiroz, quando ainda adolescente “Rita de Queluz”, e a inseriu em seu jornal, assim como fez com o jovem Paulo Sarasate, que viria a ser seu braço direito para tudo – e futuramente, seu genro. Daí, Sânzio de Azevedo nos dizer que “Percorrendo-se as páginas d’O POVO de 1928 e 1929 [os dois primeiros anos do pe- riódico], veem-se desfilar os nomes dos mais destacados poetas [cearenses] do mo- vimento na época: Mário de Andrade (do Norte), Filgueiras Lima, Edigar de Alencar, Heitor Marçal, Sidney Netto, Rachel de Quei- roz, Mozart Firmeza (Pereira Júnior), Franklin Nascimento, Jáder de Carvalho, Martins d’Alvarez, Silveira Filho, Lúcio Várzea (pseu- dônimo de Júlio Maciel) e tantos outros vanguardistas de então.” Entre esses nomes, havia outro, o de “Antônio Garrido”, na ver- dade o pseudônimo de Demócrito, que não assinava poesia com seu nome oficial. Ainda em 1928, em O POVO, a estreia da seção “Modernistas e Passadistas”, para não sarapantar ninguém, provavelmente a exemplo de Inojosa – “Passadistas versus Futuristas” – que existiu de 1922 a 1924. Na coluna, também modernistas de outros cen- tros, como Guilherme de Almeida, Ascenso Ferreira (muito festejado no Ceará), Ronald de Carvalho, Pagu, Álvaro Moreyra, Jorge de Lima, Cassiano Ricardo, Jacó Pim Pim (pseu- dônimo de Raul Bopp), Abguar Bastos, Mário de Andrade, Ribeiro Couto, entre outros. Na obra O Modernismo na poesia cearen- se: primeiros tempos, Azevedo traz conside- rações sobre alguns autores que figuravam na coluna e destacava Heitor Marçal como o mais comprometido com o Modernismo, “notadamente a vertente regionalista”. Nasciam e morriam várias revistas que propagavam a bandeira modernista – mes- mo quando ainda traziam contribuições de “cunho tradicional” –, como a Klaxon (1922-1923), Belém Nova (1923-1929), Es- tética (1924-1925), Terra Roxa e Outras Ter- ras (1926), Verde (1927-1928), Festa (1927- 1928 – 1ª fase), A Revista (1925-1926)... Elas papocavam de todos os cantos do país e tinham objetivos maiores do que apenas servirem de meio de divulgação da pro- dução literária e artística de seus colabo- radores. Elas demarcavam um espaço privilegiado de sociabilidade entre os jovens renovadores da arte, legitimando a coautoralidade, o coletivo, facilitando o livre trânsito de suas ideias. Não é de estranhar que diante da efer- vescência cultural (usando um termo bem passadista), do interesse de tantos e da agitação da Antropofagia – que em maio de 1928 havia lançado a sua revista, em “1ª dentição” –, Demócrito não viesse com o empreendimento de sua própria revista modernista. E assim sairia de um forno (não de Padaria), em 7 de abril de 1929, um domingo, o suplemento literário Maracajá: folha modernista do Ceará, em referência ao felídeo encontrado com mais frequência na região Amazônica e cujo nome é originário da língua tupi. Na primeira página, a mar- ca produzida a partir do clichê em madeira de umburana de juazeiro feito pelo artista R. Moreira. A sua redação ficaria a cargo de Antônio Garrido (Demócrito), Paulo Sara- sate e Mário de Andrade (do Norte). E é Sarasate que nos revela a origem do título da revista: “Maracajá, cujo nome de- sentranhei das matas nordestinas, com ple- no assentimento de Demócrito Rocha, para com ele batizar a publicação modernista do Ceará. [...] Com a minha cooperação, a de Mário de Andrade (do Norte) – inteligência Conta Rachel de Queiroz de seu primeiro encontro com o diretor literário d’O Ceará: “Demócrito, que já era a esse tempo o padrinho, o irmão mais velho, o companheiro diário e o crítico condescendente de quase todos os aprendizes de literatura e de jornalismo, em Fortaleza – também me agregou à sua comunidade de discípulos, imediatamente após essa apresentação”. 108 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE SABATINA SABATINA Em 1921, enquanto víamos modernistas que divulgavam o Futurismo, por outro lado, os regionalistas defendiam uma nova escrita, uma nova sensibilidade estética – que não desconsiderava a tradição – com o olhar voltado para o nacional, tanto quanto para o regional. A revista baiana Arco & Flexa teve rápida duração (1928-1929). Seu diretor era Pinto de Aguiar e a redação era na casa do diretor. As edições variavam entre 66 a 77 páginas. A escolha do título, claro, afirmava um caráter de nacionalismo brasileiro: o índio, sempre ele. Um de seus maiores e mais articulados colaboradores foi Carlos Chiacchio. vivíssima, capaz de largos voos e toda sorte de aventuras nos horizontes do pensamen- to – Demócrito Rocha, instituindo Maraca- já, teve o mérito de sacudir, através do ‘gato bravio’, o ambiente literário local, impulsio- nando com maiores energias o movimento que, em 1928, atingira o seu clímax no Rio e em São Paulo e já se refletia no país. [...] Foi um marco notável, que os intelectuais do Sul saudaram com entusiasmo, mas não passou disso” (SARASATE, 1968). E haveria algum modelo em especial, al- guma outra revista além das citadas que os influenciasse nessa decisão? Sim, pelo que vimos, não pensar em publicar uma é que seria difícil, mas para baldear o core- to, trazemos essa informação do nosso Má- rio de Andrade, que, em Cipó de Fogo, em 1931, publicaria sua carta a Teodoro Cabral, explicando: “O nosso primeiro movimento, com Maracajá, foi um avanço para a derru- bada. Nós vivíamos, da Bahia ao Amazonas, sem um surto de progresso mental, no ter- reno literário. Na poesia, de um modo par- ticular, santo Deus! Ainda se perpetravam sonetos! Arco & Flexa, em São Salvador, foi, se não me engano, a nossa principal su- gestão. Quando nos veio Arco & Flexa, Ma- racajá se fez. Este, o primeiro movimento”. E por falar em Salvador, adiantamos que, da mesma forma que lá aconteceu, no Ceará o primeiro movimento modernis- ta surgiu em torno da literatura local, não abrangendo sobremaneira as demais ar- tes. Haveria então um segundo movimento, também na década de 1940, que coincidiria e, em nosso caso, até se emparelharia como um “despertar das artes”. Mas esta é uma história CLÃdestina, que fica para o próximo módulo. Continuemos! Rachel de Queiroz, uma das colabora- doras da revista – que se lançaria ao mundo, posteriormente, como uma de nossas maio- res romancistas –, relatou: “Destinava-se o Maracajá a pregar o modernismo pelas terras nordestinas, e nele todos nós desferimos voo [...] Sei que tivemos a glória insigne de nos ver lidos e comentados por alguns dos grandes do Rio e São Paulo, para nós, então, as duas metades inacessíveis do Paraíso.” BOLACHINHAS Não temos dúvida de que o espírito da turma da Maracajá seria o mesmo prati- cado pela Padaria Espiritual e, mais tarde, pelo grupo CLÃ: apresentar a produção li- terária do Ceará para todo o Brasil e até ao exterior. Por vezes, até com os mesmos exageros ou utilizando o tom gracejador dos “tempos heroicos”, como esse texto de “Garrido” em Maracajá nº 2: O primeiro número de Maracajá foi espalha- do por todo o globo e até por fora do referi- do asteroide. A esta hora, qualquer habitan- te de Marte já estará fazendo antropofagia. Vocês lá do Sul que escreveram sobre o gato selvagem do Nordeste, toquem nos ossos. Isso! Nós estamos ligados por um sentimento único – o da voracidade. Juntemo-nos para comer tudo o que deva ser comido no Brasil. Demócrito Rocha (assinando “Antônio Gar- rido”) Maracajá nº 2, em 20 de maio de 1929. De fato, em nossas pesquisas, encontra- mos várias citações, artigos, notas sobre olançamento da Maracajá cearense: O Globo (RJ), Correio Paulistano (SP), Diário Carioca (RJ), Diário de S. Paulo (SP), Diário da Tarde (PR), Diário de Notícias (RS), Movimento Bra- sileiro (RJ), O Jornal (RJ), Revista da Antropo- fagia (SP), entre outros. Um dos periódicos nos quais mais per- cebemos esse movimento é o A Manhã (RJ). Inclusive é nele que encontramos a carta que Antônio Sales – reconhecido articulador e “mestre-sala” da literatura cearense – envia a Raul Bopp, pedindo para não ser mais in- termediador dos recados entre os “antropo- fagistas paulistas” e os “canibais cearenses”, e que se entendessem diretamente com eles, “cuja fera simbólica, o Maracajá, tem sua toca na redação d’O POVO, à rua Barão do Rio Branco, 239. E abro os braços com o de- sejo de abraçá-los, mas realmente para não ser engolido”. Esse mesmo texto seria publi- cado no Diário de S. Paulo, quando acolhia a 2ª dentição da Revista da Antropofagia. Sim, Raul Bopp, autor de Cobra Norato, seria uma espécie de “embaixador do Mo- dernismo de lá” por aqui, assim como em outros estados. Ele mesmo explica a sua atuação na época: A minha participação, foi mais no sentido de divulgação da revista [da Antropofagia], de estabelecer contatos, solicitar matérias, colaborações, realizar um trabalho editorial. A revista era uma espécie de cartão de visita para todo o intelectual do Brasil. Era uma coi- sa nova, moderna, radical, ousada, diferente do que se publicava na época. Nosso público era muito restrito e contávamos ainda com problemas de distribuição. (BOPP, 2012) Bopp enviaria uma carta para Heitor Marçal sobre o “movimento renovador”, anunciando: “O Maracajá foi um dia de festa por aqui [Rio de Janeiro e São Paulo]. Man- da coisas do Garrido, do Mário de lá, para correr uma carreira com o daqui. Turf. E o Franklin Nascimento? Mande prosa. Prosa Raul Bopp seria o responsável pela sugestão do título “Abaporu” (antropó- fago) à obra de Tarsila do Amaral e pelo apelido “Pagu”, pelo qual se tornaria conhecida a jornalista Patrícia Galvão, a “musa dos modernistas”. Carlos Drummond de Andrade dizia ser Cobra Norato (1931) “possivelmente o mais brasileiro de todos os poemas brasilei- ros, escritos em qualquer tempo.” 110 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS Em 17 de agosto de 1929, O POVO anunciava uma edição especial de Maracajá. Nessa edição, os modernistas escreveriam poemas em homenagem às misses eleitas no concurso do Gazeta de Notícias. Além dos poemas, a edição se- ria enriquecida por clichês com imagens das senhorinhas participantes do torneio de beleza. A 3ª edição da Maracajá não saiu, mas a ideia de Mário de Andrade se concretizou em outro veículo. BIBLIOGRAFIA ABAURRE, M.L.M; PONTARA, M. Literatura Brasileira: tempos, leitores e leituras. São Paulo: Moderna, 2006. ALENCAR, Edigar de. Variações em tom menor: letras cearenses. Fortaleza, Edições UFC-Proed, 1984. AZEVEDO, Sânzio de. Aspectos da Literatura Cearense. Fortaleza: Edições UFC-Proed, 1982. AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense. 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[...] A gente aqui não conhece nada do Norte.” (Maracajá nº 2) E assim, Bopp, que assinaria em algu- mas revistas sob pseudônimo “Jacó Pim Pim”, entre todos os modernistas, foi o que mais teve relações com os modernis- tas de cá, publicando inclusive no jornal O POVO (não necessariamente literatura) e em Maracajá, correspondendo-se com a reda- ção por anos, mesmo quando fora do país, além de angariar contribuições cearenses e publicá-las na Revista da Antropofagia, e, possivelmente, entre outros periódicos. Isso, a distância, pois só esteve no Ceará em 2 momentos. O primeiro em 1921, quando não tinha contato com nenhum deles, e, ra- pidamente, em 22 de junho de 1931, ou seja, dois anos após o fim da revista cearense, em almoço no restaurante Beira-Mar, “cerca- do de bons amigos da turma de Maracajá”. Irônico é que, enquanto a Agência de No- tícias do poeta cearense Américo Facó, para quem Raul Bopp trabalhava, era uma espécie de central que reunia os intelectuais antropó- fagos, como Oswald de Andrade a proclamar a sua revolução caraíba – “Tupi or not tupi thats is the question” –, no Ceará, era na redação de O POVO que nossos modernistas se vestiam em cocares, se armavam de maracás e plane- javam mudar o mundo. Em especial: Paulo Sarasate e Mário de Andrade (do Norte). Acreditem: a Maracajá, mesmo com todo esse alvoroço, em um ano que a Bolsa de Va- lores “crackou”, resultando na crise econômi- ca mundial, e sendo o papel jornal calibrado pelo dólar, “guardou as garras” ainda na se- gunda edição, de 26 de maio de 1929. Provavelmente inconformados com esse fim, alguns dos colaboradores da Maracajá decidiriam resistir criando um novo veículo: O Cipó de Fogo, lançado independente- mente de qualquer jornal, em 27 de setem- bro de 1931, com direção “por enquanto e para efeitos gerais” de Mário de Andrade – assinando sem o habitual (do Norte) – e anunciando: “Cipó de Fogo circula em todo mundo civilizado, consequentemente será pouco lido no Ceará”. O periódico, cuja linha de frente trazia, além de Mário, João Jacques e Heitor Mar- çal, e que garantia ter a colaboração de to- dos os modernistas cearenses, sem exceção, só chegou a ter o primeiro número, pro- vavelmente por “caquexia pecuniária”, como tantos até hoje. Mário, em alguns anos, seria um dos maiores incentivadores da criação do movimento que resultaria no CLÃ. CONCLUSÃO Você, caro(a) cursista, deve estar sentindo a falta de comentários sobre o conteúdo des- ses dois periódicos, Maracajá e Cipó de Fogo. Curioso(a), quer saber quem colaborou nes- sas raras edições e o que escreveu, como es- creveu... Não é verdade? Isso nos deixa mui- to felizes, mas o espaço é curto e mais feliz ainda você ficará ao saber que poderá matar a sua curiosidade diretamente na FONTE. Sim, na Biblioteca Virtual do AVA, você poderá lê-los e relê-los, analisá-los, do jeitinho que sa- íram e com o mesmo impacto dos leitores dos anos 29 e 31. Já pensou? Fica com a gente! “Negrada do Maracajá, [...] Vocês são uns bichos! Publicar uma folha modernista nesse Ceará mole e bambo é coragem como todos os diachos”. Edigar de Alen- car, O POVO (20.5.1929). CURSO literatura cearense 111 AUTOR Raymundo Netto É jornalista, escritor, editor e produtor cultural. Autor de obras literárias premiadas em diversos gêneros. É cronista convidado do caderno “Vida& Arte” do jornal O POVO desde 2007. Foi coeditor das revistas CAOS Portátil, Para Mamíferos e curador da Maracajá (2019). Atuou como coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da Secult/CE, responsável pela curadoria e edição das suas coleções (2008-2011) – compostas, especialmente, por obras esgotadas ou inéditas da Literatura Cearense –, curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará, redator e elaborador do Prêmio Literário para Autor(a) Cearense e um dos coordenadores da I Feira do Livro do Ceará em Cabo Verde. Coordena e executa diversos projetos na área da educação e cultura e é gerente editorial e de projetos da Fundação Demócrito Rocha. Mantém o blog AlmanaCULTURA desde 2009. ILUSTRADOR Carlus Campos Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Realização Apoio Patrocínio FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional CURSO LITERATURA CEARENSE Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Carlus Campos Ilustrador Luísa Duavy Produtora ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-18-3 (Fascículo 7) Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br
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