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Esse Ofício do Verso JORGE LUIS BORGES Esse Ofício do Verso ORGANIZAÇÃO Calin-Andrei :vlihailescu TRADUÇÃO José Yiarcos Yiacedo CoMPANHIA DAS LETRAS Copnight ·r· 2ooo hv the Presirll'nt and l·{·llows of llarvard Colkgc Publicado nH·diant<• acordo con1 llarvard University l'rr·ss. Todos os dirf'Ítos n•st•rvados. TITULO ORIGINAL This craft of H'fSP CAPA E PROJETO GRÁFICO Haul Lonrt:>iro, sobn• Páp,inas ( 1972 ), óleo snhn· tt·la df' Vlaria I ,eont in a. CoiPção Alexandre da Costa. FOTO DA P. 5 Copvright n lljli:- hv ChristophPr S . .lohnson ÍNDICE REMISSIVO CarPn luoue PREPARAÇÁO \Jaria \!achado REVISÁO lkatriz ck Frr•1t<Js \lon•ira e ,\na \larÍ<~ B<~rhosa ]J,,do~ lttl~·ntdl tOlldl!> dt• (:.Jto~log<~•;·-lll tld 1 1 tthlw<~t,;:ln (I ti') Í:d!lJ<tr.l Hra~dt•Jt<l do l.t\ro. "'' Bro~~d Horg1·-.. lnq_(t' 1.1!!". triqlj tq-~li ]".,.,e oltt to do U't"o lor,!-:1' !.111.., ltuJgt'" ur~,Ullt..H.\n C.dtTI \Hd!<'l \!th<ttlc..,tll tt.uhJ~:Io )n;.l·. \l.nco-. \l,Hnlo ~.In 1\udn (,PIIIjldllhl.i d,J., l.t·ITrt'- .!11011 !'ítlllo orq_,:ln,d Tl11" naft of \t'l"'-1' L'>Bi\ ,q,Í ''>')q 00:"1-) Índl<t• p<~rd 1 dl.dngo ~bii'IILÚII n: 1 Pot•t'J,\ lfl.,hlll.l t' 1 ri til <1 Hoq.1 2000 Todos os din·itos desta edi~;~o rt'S('rvados à EOITOH.I SCII\\'AHCZ LTIL\, Rua Bandf'ira Paulista, 702. cj. )2 0+5)2 oo2- São Paulo- SP Telcfon<' ( 1 1) 3H+ti oH o 1 Fax ( 11) )H+ ti oH 1+ W\Yv\·.rorrl pa 11l1 i ctdasletras.conl. h r 1 O Enigma da Poesia 9 2 A Metáfora 29 3 O Narrar uma História so 4 Música da Palavra e Tradução 63 5 Pensamento e Poesia 82 6 O Credo de um Poeta 102 "Desse e daquele ofício versátil" por Calin-Andrei Mihailescu 127 Notas 133 Índice remissivo 155 1 O Enigma da Poesia De início, gostaria de alertá-los sobre o que esperar~ ou antes, sobre o que não esperar~ de mim. Creio que co- meti um deslize já no título da minha primeira palestra. O título, se não estamos enganados, é "O enigma da poe- sia", e a ênfase, claro, recai na primeira palavra, "enig- ma". Assim, vocês podem pensar que só o enigma é que interessa. Ou, o que seria talvez pior ainda, podem pensar que me iludi acreditando de algum modo ter encontrado a verdadeira chave do enigma. A verdade é que não te- nho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo, anali- sando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando. Descobri ser esta última coisa a mais im- portante de todas. "Sorvendo" poesia, cheguei a uma der- radeira conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de redescobrir a literatura para mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como disse, te- nho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes oferecer dúvidas. O grande escritor e sonhador inglês Thomas De Quin- cey escreveu~ em alguma das milhares de páginas de seus catorze volumes~ que descobrir um problema novo era tão importante quanto descobrir a solução de um an- tigo. Mas nem isso eu posso lhes oferecer; posso lhes ofe- recer somente perplexidades consagradas pelo tempo. 10 ESSE OFÍCIO DO VERSO E no entanto, por que me preoCU!Jar com isso? O que é a história da filosofia senão a história das perplexidades dos hindus, dos chineses, dos gregos, dos escolásticos, do bispo Berkeley, de Hume, de Schopenhauer e assim por diante? Desejo apenas partilhar essas perplexidades com vocês. Sempre que folheava livros de estética, tinha a des- confortável sensação de estar lendo as obras de astrôno- mos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um pra- zer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma "expressão". Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. As- sim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia- a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante. Ora, tendemos a fazer uma confusão cornque1ra. Pensamos, por exemplo, que se estudarmos Homero, ou a Divina comédia, ou Frei Luis de León, ou Macbeth, estare- mos estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poes1a. 11 O ENIGMA DA POESIA Creio que Emerson escreveu em algum lugar que uma biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mor- tos. E aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta à vida quando se abrem as suas páginas. Falando sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza dos Estados Uni- dos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã- a maçã não pode ter gos- to por si mesma- nem na boca de quem come. É pre- ciso um contato entre elas. O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físi- co num mundo de objetos físicos. É um conjunto de sím- bolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras -ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as pró- prias palavras são meros símbolos- saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra. Ocorre-me agora um poema que vocês todos conhe- cem de cor; mas nunca terão notado, talvez, como ele é estranho. Pois as coisas perfeitas na poesia não parecem estranhas; parecem inevitáveis. E assim mal agradecemos o escritor por seu esforço. Estou pensando num soneto escrito há mais de cem anos por um jovem em Londres (em Hampstead, creio), um jovem que morreu de compli- cações pulmonares, John Keats, e de seu famoso e talvez batido soneto "On first looking into Chapman's Homer" 12 ESSE OFÍCIO DO VERSO [O Homero de Chapman à primeira vista]. O que é es- tranho nesse poema- e só pensei nisso três ou quatro dias atrás, quando refletia sobre esta palestra- é o fato de ser um poema escrito a respeito da próprià experiên- cia poética. Vocês o conhecem de cor, porém gostaria que ouvissem mais uma vez o lampejo e o trovão de seus versos finais, Then felt I like some watcher of the skies When a new planet swims into his ken; Or like stout Cortez when with eagle eyes He stared at the Pacific- and all his men look'd at each other with a wild surmise- Silent, upon a peak in Darien. [Então me senti como um observador dos céus Quando um novo planeta desliza para o seu campo de vista; Ou como o resoluto Cortés quando com olhos de águia Contemplou o Pacífico- e todos os seus homens Entreolharam-se com um alucinado presságio- Em silêncio, sobre um pico em Darién.] Aqui temos a própria experiência poética. Temos George Chapman, o amigo e rival de Shakespeare, que 13 O ENIGMA DA POESIA jaz morto e subitamente torna à vida quando John Keats lê sua Ilíada ou sua Odisséia. Creio que era em George Chapman (mas não posso ter certeza, não sou um espe~ cialista em Shakespeare) que Shakespeare pensava ao escrever: "Was it the proud full sail of his great verse,/ Bound for the prize of all too precious you?" [Terá sido a altiva e enfunada vela de seu grande verso,/Em deman~ da do prêmio teu, precioso que és?] 1• Há uma palavra que me parece muito importante: "On .first looking in to Chapman's Homer". Esse "first", a meu ver, pode se revelar extremamente útil para nós. No exato momento em que repassava esses vigorosos versos de Keats, pensava que talvez só estivesse sendo fiel a minha memória. Talvez o verdadeiro frêmito que senti com osversos de Keats remonte àquele distante momen~ to de minha infância em Buenos Aires, quando ouvi pela primeira vez meu pai lê~los em voz alta. E quando o fato de que a poesia, a linguagem, não era somente um meio de comunicação, mas também podia ser uma paixão e um prazer- quando isso me foi revelado, não acho que tenha compreendido as palavras, mas senti que algo acon~ tecia comigo. Acontecia não com meu simples intelecto, mas com todo o meu ser, minha carne e meu sangue. Voltando às palavras "On .first looking in to Chap~ man's Homer", me pergunto se John Keats sentiu esse frêmito depois de ter transposto os vários livros da Ilíada 14 ESSE OFÍCIO DO VERSO e da Odisséia. Penso que a primeira leitura de um poema é a verdadeira, e depois disso que nos iludimos acredi- tando que a sensação, a impressão, se repete. :vias, como disse, pode ser mera fidelidade, mero truque da memó- ria, mera confusão entre nossa paixão e a paixão que sen- timos uma vez. Portanto, pode-se dizer que a poesia é uma experiência nova a cada vez. Cada vez que leio um poema, a experiência acaba ocorrendo. E isso é poesia. Li certa ocasião que o pintor americano Whistler es- tava num café em Paris, e as pessoas discutiam como a hereditariedade, o ambiente, a situação política da época etc. influenciavam o artista. E Whistler então disse: "A ar- te acontece". Quer dizer, existe algo misterioso sobre a arte. Gostaria de conferir a suas palavras um novo sentido. Direi: a arte acontece cada vez que lemos um poema. Ora, isso pode parecer suprimir a noção dos clássicos consa- grada pelo tempo, a idéia de livros eternos, de livros em que se pode sempre encontrar beleza. Mas espero estar errado nesse aspecto. Tal vez possa fazer um breve resumo da história dos livros. Até onde me lembro, os gregos não faziam grande uso deles. A maioria dos grandes mestres da humanidade não foram escritores, mas oradores. Pensem em Pitágo- ras, Cristo, Sócrates, Buda e assim por diante. E já que falei de Sócrates, gostaria de dizer algo sobre Platão. Lem- bro que Bernard Shaw disse que Platão foi o dramaturgo 15 O ENIGMA DA POESIA que inventou Sócrates, tal como os quatro evangelistas inventaram Jesus. Isso talvez seja ir longe demais, mas há nisso uma certa verdade. Kum dos diálogos de Platão, ele fala sobre os livros de modo um tanto depreciativo: "()que é um livro? Um livro, como uma pintura, parece um ser vivo; no entanto, se lhe perguntamos algo, não responde. Vemos então que está morto" 2. Para fazer do livro um ser vivo, ele inventou- felizmente para nós- o diálogo platônico, que se antecipa às dúvidas e pergun- tas do leitor. Mas podemos dizer também que Platão tinha sau- dades de Sócrates. Depois da morte de Sócrates, ele terá dito a si mesmo: "Ora, o que Sócrates diria sobre essa minha dúvida específica?". E então, a fim de ouvir mais uma vez a voz do rnestre a quem amava, escreveu os diá- logos. Em alguns desses diálogos, Sócrates representa a verdade. Em outros, Platão dramatizou os seus vários hu- mores. E alguns não chegam a conclusão alguma, porque Platão estava pensando à medida que os escrevia; ele não sabia qual seria a última página quando escreveu a pri- meira. Estava deixando que sua mente vagasse, drama- tizando-a em várias pessoas. Imagino que seu principal objetivo era a ilusão de que, a despeito do fato de Sócra- tes ter bebido cicuta, o mestre ainda estava com ele. Sinto ser essa a verdade porque tive muitos mestres em minha vida. Tenho orgulho de ser um discípulo- um bom dis- 16 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno cípulo, espero. E quando penso em meu pai, quando pen- so no grande autor judaico-espanhol Rafael Cansinos- Asséns\ quando penso em Macedonio Fernández4, tam- bém gostaria de ouvir suas vozes. E de vez em quando treino minha voz para imitar as suas vozes, a fim de que possa pensar corno eles teriam pensado. Eles estão sem- pre ao meu redor. Há outra frase, num dos Pais da Igreja. Dizia que era tão perigoso pôr um livro nas mãos de um ignorante quanto pôr urna espada nas mãos de urna criança. Assim os livros, para os antigos, eram meros paliativos. Numa de suas muitas cartas, Sêneca escreveu contra as bibliote- cas; e, séculos depois, Schopenhauer afirmou que muitas pessoas confundiam a compra de um livro com a compra dos conteúdos do livro. Às vezes, olhando os muitos livros que tenho em casa, sinto que morrerei antes que chegue ao fim deles, porém não consigo resistir à tentação de adquirir novos. Sempre que entro numa livraria e encon- tro um volume sobre um de meus hobbies- por exem- plo, inglês antigo ou poesia nórdica antiga-, digo comi- go: "Que pena que não posso levar esse livro, já tenho um exemplar em casa". Depois dos antigos, do Oriente chegou urna outra idéia do livro, a da Sagrada Escritura, de livros escritos pelo Espírito Santo; chegaram os Alcorões, as Bíblias etc. Seguindo o exemplo de Spengler em seu Untergang des 17 O ENIGMA DA POESIA Abendlandes- O declínio do Ocidente-, gostaria de to- mar o Alcorão como exemplo. Se não estou enganado, os teólogos muçulmanos o consideram anterior à criação do mundo, O Alcorão é escrito em árabe, porém os muçul- manos o consideram anterior à linguagem. Aliás, li que consideram o Alcorão não uma obra de Deus, mas um atributo de Deus, tal como são Sua justiça, Sua miseri- córdia e toda a Sua sabedoria. E assim foi introduzida na Europa a noção da Sagra- da Escritura- uma noção que não é, a meu ver, inteira- mente equivocada. Certa vez indagaram a Bernard Shaw (a quem sempre estou recorrendo) se ele pensava real- mente que a Bíblia fosse obra do Espírito Santo. E ele disse: "Acho que o Espírito Santo escreveu não só a Bí- blia, mas todos os livros". Isso é ser um tanto injusto com o Espírito Santo, claro- mas todos os livros valem a pena ser lidos, suponho. Era isso, imagino, o que Homero tinha em mente ao falar com a musa. E é isso o que os hebreus e o que :Ylilton tinham em mente ao falarem do Espírito Santo, cujo templo é o correto e puro coração dos homens. E em nossa não tão bela mitologia, falamos do "eu subliminar", do "subconsciente". Claro, essas pala- vras são bastante toscas quando comparadas às musas ou ao Espírito Santo. Seja como for, temos de nos haver com a mitologia de nosso tempo. Pois as palavras significam essencialmente a mesma coisa. 18 ESSE OFICIO DO VERSO Bruno Chegamos agora à noção dos "clássicos". Devo con- fessar que não considero um livro um objeto imortal a ser tomado em mãos e devidamente cultuado, mas antes uma ocasião para a beleza. E assim tem de ser, pois a lin- guagem está mudando o tempo todo. Tenho muito gosto pelas etimologias, e gostaria de relembrá-los (pois tenho certeza de que conhecem muito mais essas coisas do que eu) de algumas bastante curiosas. Por exemplo, temos em inglês o verbo "to tease" [caçoar] -uma palavra maliciosa. Significa uma espé- cie de brincadeira. Porém em inglês antigo tesan signifi- cava "ferir com uma espada", tal como em francês navrer significava "trespassar alguém com uma espada". E, para tomar uma palavra diferente do inglês antigo, preat, vocês talvez descubram já nos primeiros versos do Beowulfque ela significava "multidão em fúria"- quer dizer, a cau- sa da "threat", da ameaça. E assim podemos prosseguir ao infinito. Mas vamos agora atentar para alguns versos em par- ticular. Tomo os meus exemplos do inglês, já que tenho um amor todo especial pela literatura inglesa- embora meu conhecimento dela seja, é claro, limitado. Há casos em que a poesia cria a si mesma. Por exemplo, não acho que as palavras "quietus" [óbito] e "bodkin" [adaga] sejam especialmente belas; aliás, diria que são um tanto ásperas. Mas se pensamos em "When he himself might 19 O ENIGMA DA POESIA Bruno Bruno his quietus make/With a bare bodkin" [Quando ele pró-prio causar seu óbito/Com uma adaga nua], nos ocorre o grande monólogo de Hamlet5. E assim o contexto cria poesia para aquelas palavras- palavras que ninguém jamais se atreveria a usar hoje em dia, porque seriam meras citações. E há outros exemplos, talvez mais simples. Tomemos o título de um dos livros mais famosos do mundo, Historia deZ ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. A pala- vra hidalgo tem hoje uma dignidade toda própria, mas quando Cervantes a escreveu, ela significava "um cava- lheiro interiorano". Quanto ao nome "Quixote", preten- dia ser uma palavra bastante ridícula, como os nomes de muitos dos personagens de Dickens: Pickwick, Swiveller, Chuzzlewit, Twist, Squears, Quilp etc. E temos ainda "de la Mancha", que hoje soa nobre em castelhano para nós, mas quando Cervantes escreveu, pretendia que soasse talvez (peço desculpas a algum residente dessa cidade que esteja presente) como "Dom Quixote de Kansas City". Já se vê como aquelas palavras mudaram, como foram eno- brecidas. Eis um fato estranho: ao fazer graça com La Mancha, o velho soldado Miguel de Cervantes transfor- mou-a em uma das palavras eternas da literatura. Tomemos outro exemplo de versos que mudaram. Penso num soneto de Rossetti, um soneto que opera sob um título que não é dos mais belos, "Inclusiveness". 20 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno Bruno Bruno Bruno Começa assim: What manhas bent o'er his son's sleep to brood, How that face shall watch his when cold it lies? - Or thought, as his own mother kissed bis eyes, Of what her kiss was, when his father wooed?6 [Que homem debruçou-se sobre o sono do filho para refletir, Como esse rosto observará o seu quando frio ele jazer?- Ou pensou, ao beijar sua própria mãe os seus olhos, O que era o beijo dela, quando seu pai a ·cortejava?] Penso que esses versos são talvez mais vívidos agora do que quando foram escritos, cerca de oitenta anos atrás, porque o cinema nos ensinou a seguir as rápidas seqüências de imagens visuais. No primeiro verso, "What man has bent o'er his son's sleep to brood", temos o pai se debruçando sobre o rosto do filho adormecido. E no segundo verso, como num bom filme, temos a mesma imagem invertida: vemos o filho debruçado sobre o rosto do morto, seu pai. E talvez o nosso recente estudo da psi- cologia nos tenha feito mais sensíveis a estes versos: "Or thought, as his own mother kissed his eyes,/Of what her kiss was, when his father wooed". Temos aqui, é claro, a beleza das suaves vogais inglesas em "brood", "wooed". 21 O ENIGMA DA POESIA E a beleza adicional de "wooed" estar sozinha- não "wooed her", mas simplesmente "wooed". A palavra se- gue ressoando. Há também um tipo diferente de beleza. Tomemos um adjetivo que antes era lugar-comum. Não sei grego, mas acho que em grego é oinopa pontos, e a versão ingle- sa comum é ''the wine-dark se a" [o mar vinho-escuro]. Suponho que a palavra "escuro" foi inserida para facilitar as coisas para o leitor. Talvez fosse "the winy sea" [o mar vináceo] ou algo do gênero. Tenho certeza de que quando Homero (ou os vários gregos que compilaram Homero) escreveu isso, pensava simplesmente no mar; o adjetivo era direto, sem rodeios. Mas hoje em dia, se eu ou qual- quer um de vocês, depois de tentarmos vários adjetivos imaginosos, escrevermos num poema "the wine-dark sea", não será uma simples repetição do que os gregos escreveram. Será, sim, uma volta à tradição. Quando fa- lamos de "the wine-dark se a", pensarnos em Homero e nos trinta séculos que nos separam. Assim, embora aspa- lavras sejam bastante parecidas, quando escrevemos "the wine-dark sea" estamos na verdade escrevendo algo bem diferente daquilo que Homero escrevia. Portanto, a linguagem está mudando; os latinos sa- biam muito bem disso. E o leitor está mudando também. Isso nos faz remontar à antiga metáfora dos gregos- a metáfora, ou antes a verdade, sobre nenhum homem se 22 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno banhar duas vezes no mesmo riu 7. E há, a meu ver, um elemento de temor aqui. A princípio tendemos a pensar no rio como um fluxo. Pensamos: "Claro, o rio segue adi- ante, mas a água está mudando". Então, com um emer- gente sentido de espanto, sentimos que nós também estamos mudando- que somos tão cambiantes e eva- nescentes quanto o rio. Contudo, não precisamos nos preocupar muito com o destino dos clássicos, porque a beleza está sempre conosco. Gostaria aqui de citar outro verso, de Browning, talvez um poeta hoje esquecido. Diz ele: Just when we're safest, there's a sunset-touch, A fancy from a flower-bell, some one's death, A chorus-ending from EuripidesH. [Agora que estávamos mais seguros, um toque do pôr-do-sol, O capricho de um canteiro, a morte de alguém, Cm coro evanescente de Eurípides.] Porém o primeiro verso já basta: "Just when we're safest ... ". Quer dizer, a beleza está à espreita por toda a parte. Pode chegar a nós no título de um filme; em algu- ma canção popular; podemos encontrá-la até nas páginas de um grande ou famoso escritor. 23 O ENIGMA DA POESIA E já que falei de um falecido mestre, Rafael Cansi- nos-Asséns (talvez seja a segunda vez que ouçam o seu nome; não sei direito por que ele foi esquecido ) 9, lembro que Cansinos-Asséns escreveu um primoroso poema em prosa no qual pedia a Deus que o defendesse, que o sal- vasse da beleza, porque, dizia ele, "há beleza demais no mundo". Ele achava que esse mundo era esmagado pela beleza. Embora eu não saiba se fui um homem particu- larmente feliz (espero que seja feliz na maturidade de meus sessenta e sete anos), ainda acho que a beleza está por toda parte a nossa volta. Se um poema foi escrito por um grande poeta ou não, isso só importa aos historiadores da literatura. Suponha- mos, só para argumentar, que eu tenha escrito um belo verso; tomemos como uma hipótese de trabalho. Uma vez escrito, esse verso não me serve mais, porque, como já disse, esse verso me veio do Espírito Santo, do subcons- ciente, ou talvez de algum outro escritor. Vluitas vezes descubro que estou apenas citando algo que li tempos atrás, e isto se torna uma redescoberta. Vlelhor seria, tal- vez, que os poetas fossem anônimos. Falei de "the wine-dark sea", e já que meu hobby é inglês antigo (receio que, se tiverem a coragem ou a paciência de ouvir minhas próximas palestras, talvez lhes seja impingido mais inglês antigo), gostaria de re- cordar alguns versos que julgo belos. Direi primeiro 24 ESSE OFICIO DO VERSO em inglês, e depois no forte e vocalizado inglês antigo do século IX. It snowed from the north; rime bound the fields; hail fell on earth, the coldest of seeds. Norpan sniwde hrim hrusan bond hregl feol on eorpan cor na caldast 10. Isso nos traz de volta ao que eu disse sobre Homero: quando o poeta escreveu esses versos, estava apenas regis- trando coisas que haviam acontecido. Isso, claro, era muito estranho no século IX, quando as pessoas pensavam em termos de mitologia, imagens alegóricas etc. Ele estava apenas narrando coisas bem triviais. Mas hoje em dia, quando lemos It snowed from the north; rime bound the fields; hail fell on earth, the coldest o f seeds ... , 25 O ENIGMA DA POESIA há uma poesia suplementar. Há a poesia de um saxão ter escrito esses versos junto às praias do Mar do Norte -em Northumberland, eu acho; e de aqueles versos chegarem a nós tão francos, tão diretos e tão patéticos através dos séculos. Temos então os dois casos: o caso (nem preciso me estender nele) no qual o tempo degra- da um poema, no qual as palavras perdem a sua beleza; e também o caso no qual o tempo enriquece em vez de degradar um poema. Falei no início sobre definições. Para concluir, gosta- ria de dizer que cometemos um erro bastante comum ao pensar que ignoramos algo por sermos incapazes de defi- ni-lo.Se estivermos num humor chestertoniano (a meu ver um dos melhores humores em que se pode estar), diremos talvez que só podemos definir algo quando nada soubermos a respeito dele. Por exemplo, se preciso definir poesia, e se me sinto um tanto hesitante, se não tenho muita certeza, digo algo como: "Poesia é a expressão do belo por meio de palavras habilmente entretecidas". Essa definição pode ser boa o suficiente para um dicionário ou um manual, mas todos sentimos ser bastante frágil. Existe algo muito mais im- portante- algo que pode nos encorajar a seguir adiante e não somente treinar a mão escrevendo poesia, mas des- frutá-la e sentir que sabemos tudo a seu respeito. Isso é o que sabemos ser a poesia. Sabemos tão bem 26 ESSE OFICIO DO VERSO que não podemos defini-la em outras palavras, tal como não podemos definir o gosto do café, a cor vermelha ou amarela nem o significado da raiva, do amor, do ódio, do pôr-do-sol ou do nosso amor pela pátria. Essas coisas estão tão entranhadas em nós que só podem ser expressas por aqueles símbolos comuns que partilhamos. Por que pre- cisaríamos então de outras palavras? Vocês talvez não concordem com os exemplos que escolhi. Talvez amanhã eu me recorde de exemplos me- lhores, pense que poderia ter citado outros versos. Mas assim como vocês podem pegar e escolher seus próprios exemplos, não é necessário que se preocupem muito com Homero nem com poetas anglo-saxões nem com Rosset- ti. Porque todos sabem onde encontrar poesia. E quando ela chega, sente-se seu toque, aquela comichão própria da poesia. Para concluir, trago uma citação de Santo Agostinho que, a meu ver, vem bem a calhar. Disse ele: "O que é o tempo? Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei" 11 • Sinto o mesmo em relação à poesia. Dificilmente alguém se incomoda com definições. Dessa vez estou bastante desnorteado, porque não sou na- da bom em pensamento abstrato. Mas nas palestras se- guintes- se vocês forem bondosos o bastante para me aturar-, daremos exemplos mais concretos. Vou falar 27 O ENIGMA DA POESIA Bruno sobre a metáfora, sobre a n1úsica da palavra, sobre a pos- sibilidade ou a impossibilidade da tradução poética e so- bre o narrar uma história- ou seja, sobre poesia épica, o mais antigo e talvez o mais admirável gênero de poe- sia. E encerrarei o ciclo com algo que nem posso adivi- nhar agora. Encerrarei com uma conferência intitulada "O credo de urn poeta", na qual tentarei justificar minha própria vida e a confiança que alguns de vocês tal vez tenham em mim, apesar dessa minha primeira palestra um tanto canhestra e titubeantt'. 28 ESSE OFÍCIO DO VERSO 2 A :\Ietáfora Como o assunto da conferência de hoje é a metáfora, co- meçarei com uma. Essa primeira das muitas metáforas que tentarei recordar vem do Extremo Oriente, da China. Se não me engano, os chineses chamam o mundo de "as dez mil coisas" ou- e isso depende do gosto e da fanta- sia do tradutor- "os dez mil seres". Podemos aceitar, suponho, a estimativa bastante mo- desta de dez mil. Certamente há mais de dez mil formi- gas, dez mil homens, dez mil esperanças, medos ou pe- sadelos no mundo. Mas se aceitarmos a cifra de dez mil e se pensarmos que todas as metáforas são feitas pelo en- cadeamento de duas coisas diversas, então, tivéssemos tempo suficiente, poderíamos formular uma soma quase inacreditável de possíveis metáforas. Esqueci a minha ál- gebra, mas imagino que a soma seria 10 ooo multiplicado por 9 999, multiplicado por 9 998 e assim por diante. Claro que a soma de possíveis combinações não é infinita, mas atordoa a imaginação. Assim, podemos ser levados a pen- sar: por que diabos os poetas pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar as mesmas metáforas sur- radas quando há tantas combinações possíveis? O poeta argentino Lugones, lá pelos idos de 1909, escreveu pensar que os poetas estavam usando sempre as mesmas metáforas e que tentaria treinar a mão desco- brindo novas metáforas para a lua. E, de fato, inventou várias centenas delas. Disse também, no prefácio a um 30 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno Bruno livro chamado Lunario sentimental 1, que cada palavra é uma metáfora morta. Essa declaração, claro, é uma me- táfora. Mas acho que todos sentimos a diferença entre metáforas mortas e vivas. Se pegarmos qualquer bom di- cionário etimológico (estou pensando em meu velho ami- go ignorado, dr. Skeat2) e se procurarmos uma palavra qualquer, na certa encontraremos uma metáfora enfurna- da em alguma parte. Por exemplo- e vocês podem encontrar isso já nas primeiras linhas do Beowulf- a palavra preat significa- va "uma horda em fúria", mas agora a palavra é dada ao efeito e não à causa. Temos ainda a palavra "king" [rei]. "King" era originalmente cyning, que significava "um homem que representa a parentela-o povo". Assim, etimologicamente, "king", "kinsman" [parente] e "gen- tleman" [cavalheiro] São a mesmapalavra. Mas se eu dis- ser, "O rei estava em sua sala, contando dinheiro", não pensamos na palavra "rei" como uma metáfora. Aliás, se formos dados ao pensamento abstrato, temos de esquecer que as palavras eram metáforas. Temos de esquecer, por exemplo, que na palavra "consider" [considerar] há uma sugestão de astrologia- "consider" significava original- mente "estar com as estrelas", "fazer um horóscopo". O importante sobre a metáfora, eu diria, é ser senti- da pelo leitor ou pelo ouvinte como uma ·metáfora. Cir- cunscrevo essa conferência a metáforas que são sentidas 31 A METÁFORA Bruno Bruno Bruno Bruno como metáforas pelo leitor. Não a palavras como "king", "threat"- e poderíamos prosseguir, talvez para sempre. Primeiro, gostaria de tomar alguns modelos surra- dos de metáforas. Uso a palavra "modelo" porque as me- táforas que vou citar, ainda que bem diferentes quanto à imaginação, são quase as mesmas para o pensador lógico. De modo que podemos falar delas como equações. Inicie- mos com a primeira que me vem à cabeça. Tomemos a comparação batida, a comparação consagrada pelo tem- po, de olhos com estrelas, ou, inversamente, de estrelas com olhos. O primeiro exemplo de que me lembro vem da Antologia Grega3, e penso ter sido Platão quem o es- creveu. Os versos (eu não sei grego) dizem mais ou menos assim: "Eu queria ser a noite, de modo a poder velar teu sono com olhos mil". Aqui, é claro, o que sentimos é a ternura do amante; sentimos seu desejo de ser capaz de ver a amada de vários pontos ao mesmo tempo. Sentimos a ternura por trás desses versos. Agora tomemos outro exemplo, menos ilustre: "As estrelas olham do alto". Se levarmos o pensamento lógi- co a sério, temos aqui a mesma metáfora. Porém o efeito em nossa imaginação é bem diverso. "As estrelas olham do alto" não nos faz lembrar de ternura; antes, passa a idéia de gerações e gerações de homens labutando e as estrelas olhando do alto, com uma espécie de indife- rença altiva. 32 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno Bruno Bruno Bruno Deixem-me tomar um exemplo diverso- uma das estrofes que mais me impressionam. Os versos são de um poema de Chesterton chamado "A second childhood" [Uma segunda infância]: But I shall not grow too old to see enormous night arise, A cloud that is larger than the world And a monster made of eyes 4. [Mas não chegarei à idade de ver surgir a noite enorme, C ma nuvem que é maior que o mundo E um monstro feito de olhos.] Não um monstro cheio de olhos (conhecemos esses monstros do Apocalipse de são João), mas- e isso é tan- to mais aterrador- um monstro jeito de olhos, como se estes olhos fossem o seu tecido vivo. Vimos três imagens que podem todas ser recondu- zidas ao mesmo modelo. :Vias a questão que gostaria de salientar- e essa é realmente uma das duas questões importantes da conferência- é que,embora o modelo seja essencialmente o mesmo, no primeiro caso, o exem- plo grego "Eu queria ser a noite", o que o poeta nos faz sentir é a sua ternura, a sua ansiedade; no segundo, senti- mos uma espécie de indiferença divina a coisas humanas; e no terceiro, a noite familiar vira um pesadelo. 33 A METÁFORA Tomemos agora um modelo diferente: tomemos a idéia do tempo fluindo- fluindo como um rio. O pri- meiro exemplo vem de um poema que Tennyson escreveu aos treze ou catorze anos, penso eu. Ele o destruiu; mas, felizmente para nós, um verso sobreviveu. Acho que vocês o encontram na biografia de Tennyson escrita por Andrew Lang 5. O verso é: "Time flowing in the middle of the night" [O tempo fluindo no meio da noite]. Acho que Tennyson escolheu seu tempo com muita sabedoria. Na noite todas as coisas estão silenciosas, as pessoas dormem, porém o tempo flui sem ruídos. Esse é um exemplo. Há também um romance (tenho certeza de que vocês estão pensando nele) chamado simplesmente OJ time and the river6. A mera conjunção das duas palavras sugere a metáfora: tempo e o rio, os dois seguem fluindo. E há ainda a famosa sentença do filósofo grego: "Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio" 7• Temos aqui o início do terror, porque a princípio pensamos no rio como algo que flui, nas gotas de água sendo diversas. E então somos levados a sentir que nós somos o rio, que somos fugidios como o rio. Temos também estes versos de Manrique: Nuestras vidas son los ríos que van a dar en la rnar qu'es el morir. 34 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Our lives are the rivers that flow into that sea which is deathH. Essa declaração não impressiona muito em inglês; gostaria de poder lembrar como Longfellow a traduziu em suas "Coplas de Manrique" 9• Mas, é claro (e entrare- mos nessa questão em outra palestra), por trás da batida metáfora temos a grave música das palavras: Nuestras vidas son los ríos que van a dar en la mar qu'es el morir; allí van los sefíoríos derechos a se acabar e consumir ... Porém a metáfora é exatamente a mesma em todos esses casos. E agora passaremos a algo bem banal, algo que tal- vez faça vocês rirem: a comparação de mulheres com flo- res, e também de flores com mulheres. Aqui, é claro, há exemplos de sobra, todos muito fáceis. Mas há um que gostaria de lembrar (talvez não seja familiar a vocês), daquela obra-prima inacabada, o Weir oj Hermiston de Robert Louis Stevenson. O herói de Stevenson vai a urna 35 A METÁFORA igreja, na Escócia, onde vê uma garota- uma garota adorável, pressentimos. E sentimos que ele está prestes a se apaixonar por ela. Porque olha para ela e então se per- gunta se há uma alma imortal dentro daquela bela mol- dura, ou se ela é um mero animal da cor das flores. E a brutalidade da palavra "animal" é destruída, claro, por "da cor das flores". Não acho que precisamos de mais exemplos desse modelo, que pode ser encontrado em todas as épocas, em todas as línguas, em todas as literaturas. Agora passemos a outro dos modelos essenciais da metáfora: o modelo da vida sendo um sonho- a sen- sação que nos invade de que a vida é um sonho. O exem- plo evidente. que nos ocorre é: "\Ve are such stuff as dreams are made on" [Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos] 111 • Ora, isto pode soar como blasfêmia -eu amo demais Shakespeare para me importar-, mas penso que aqui, se olharmos bem (e não acho que devemos olhar muito de perto; devemos, isso sim, agra- decer a Shakespeare por essa c muitas outras dádivas), há uma ligeira contradição entre o fato de que nossas vidas são como um sonho ou têm dentro de si uma essência onírica, c a declaração um tanto indiscriminada de que "Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos". Por- que se somos reais em sonhos, ou se somos meramente sonhadores de sonhos, então me pergunto se podemos fazer tais declarações indiscriminadas. Essa frase de 36 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno Shakespeare está mais para a filosofia ou para metafísica do que para a poesia- embora, é claro, esteja realçada, esteja elevada à poesia, pelo contexto. Outro exemplo do mesmo modelo vem de um gran- de poeta alemão- um poeta menor ao lado de Shake- speare (mas suponho que todos os poetas sejam menores ao lado dele, salvo dois ou três). Trata-se de um poema bastante famoso de Walther von der Vogelweide. Imagino que a pronúncia seja esta (não sei quão bom é meu médio- alemão- por favor, me perdoem): "Ist mir min leben getroumet, oder ist es war?". "Terei sonhado minha vida ou foi eia verdadeira?" 11 . Penso que isso se aproxima mais do que o poeta está tentando dizer, porque em vez de uma afirmação indiscriminada, temos uma pergunta. O poeta indaga consigo mesmo. Isso aconteceu com todos nós, mas não o formulamos em palavras como Walther von der Vo- gelweide. Ele se pergunta: "Ist mir min leben getroumet, oder ist es war?", e a meu ver essa hesitação nos confere aquela essência da vida como um sonho. Não lembro se em minha última palestra (porque esta é uma frase que costumo citar com freqüência, e a citei durante toda a minha vida) lhes falei do filósofo chinês Chuan Tzu. Ele sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem. Essa metáfora, a rríeu ver, é a mais sutil 37 A METÁFORA Bruno de todas. Primeiro porque começa com um sonho, e, mais tarde, quando ele acorda, a sua vida ainda guarda algo dos sonhos. E segundo porque, com uma espécie de felicidade quase miraculosa, ele escolheu o animal cer- to. Tivesse dito "Chuan Tzu sonhou que era um tigre", não seria nada. Uma borboleta tem algo de delicado e evanescente. Se somos sonhos, o verdadeiro modo de sugeri-lo é com uma borboleta, não com um tigre. Se Chuan Tzu tivesse sonhado que era uma máquina de escrever, não valeria nada. Tampouco lhe valeria uma baleia. Creio que encontrou a palavra exata para aquilo que tentava dizer. Tentemos seguir outro modelo- um muito comum, que encadeia as idéias de dormir e morrer. É uma metá- fora bastante corriqueira também na fala do dia-a-dia; mas se buscarmos exemplos, vamos descobrir que são muito diversos entre si. Creio que numa passagem de Homero ele fala do "sono férreo da morte" 12 . Aqui ele nos dá duas idéias opostas: a morte é uma espécie de sono, porém essa espécie de sono é feita de um metal rijo, implacável e cruel- o ferro. Claro, há também Heine: "Der Tod daL3 ist die frühe Nacht" [A morte é a boca da noite]. E já que estamos ao norte de Boston, acho que cabe recordar aqueles versos de Robert Frost, talvez co- nhecidos à exaustão: 38 ESSE OFíCIO DO VERSO Bruno Bruno The woods are lovely, dark, and deep, But I have promises to keep, And miles to go before I sleep, And miles to go before I sleep 15. [Os bosques são adoráveis, escuros e fundos, J\!Ias tenho promessas a cumprir, E milhas a trilhar antes de dormir, E milhas a trilhar antes de dormir.] Esses versos são tão perfeitos que mal pensamos num truque. Porém, infelizmente, toda a literatura é feita de truques, e esses truques- a longo prazo- acabam sendo desvendados. E então os leitores se cansam deles. Mas nesse caso o truque é tão discreto que sinto certa vergonha de mim mesmo por chamá-lo de truque (só chamo assim por falta de palavra melhor). Porque Frost tentou aqui algo bastante ousado. Temos o mesmo verso repetido palavra por palavra, duas vezes, porém o senti- do é diverso. "E milhas a trilhar antes de dormir": isso é meramente físico- as milhas são milhas no espaço, na Nova Inglaterra, e "dormir" significa "ir dormir". A se- gunda vez- "E milhas a trilhar antes de dormir"- nos faz sentir que as milhas não estão somente no espaço, mas no tempo, e que "dormir" significa "morrer" ou "descansar". Tivesseo poeta dito isso literalmente, teria 39 A METÁFORA Bruno sido bem menos eficaz. Porque, no meu entender, qual- quer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada. Talvez a mente humana tenha uma ten- dência a negar declarações. Lembrem o que dizia Emer- son: argumentos não convencem ninguém. J'\ão conven- cem ninguém porque são apresentados como argumentos. E então os contemplamos, e refletimos sobre eles, e os ponderamos, e acabamos decidindo contra eles. Mas quando algo é simplesmente dito ou- melhor ainda- insinuado, há uma espécie de hospitalidade em nossa imaginação. Estamos dispostos a aceitá-lo. Lembro ter lido, há uns trinta anos, as obras de Martin Buber- que considerei poemas extraordinários. Então, quando fui para Buenos Aires, abri o livro de um amigo meu, Dujovne 14, e descobri em suas páginas, para grande es- panto, que Martin Buber era um filósofo e que toda a sua filosofia estava contida nos livros que eu lera como poe- sia. Talvez eu tenha aceitado aqueles livros porque che- garam a mim pela poesia, pela sugestão, pela música da poesia, e não como argumentos. Creio que em alguma passagem de Walt Whitman a mesma idéia pode ser en- contrada: a idéia de razões serem inconvincentes. Creio que ele diz em alguma parte achar o ar noturno, as pou- cas estrelas graúdas, bem mais convincentes que meros argumentos. Podemos pensar em outros modelos de metáforas. 40 ESSE OFICIO DO VERSO Bruno Bruno Bruno Bruno Bruno Tomemos agora o exemplo (este não é tão comum quan- to os outros) de uma batalha e um incêndio. Na Ilíada, encontramos a imagem de uma batalha se alastrando co- mo uma conflagração. Temos a mesma idéia no fragmen- to heróico de Finnesburg 1 ~. Nesse fragmento nos são rela- tadas as lutas entre dinamarqueses e frísios, o fulgor das armas, dos escudos e das espadas. Diz então o autor que parecia que o Finnesburg inteiro, que todo o castelo de Finn ardia em chamas. Suponho que tenha omitido alguns modelos bastante comuns. Até agora tratamos de olhos e estrelas, mulheres e flores, tempo e rios, vida e sonho, morte e sono, incên- dio e batalhas. Tivéssemos tempo e erudição suficientes, poderíamos encontrar mais meia dúzia de modelos, e estes talvez nos rendessem a maioria das metáforas na literatura. O que realmente importa é que há uns poucos mode- los, mas que são capazes de variações quase infindas. O leitor que aprecia poesia e não teoria poética pode ler, por exemplo, "Eu queria ser a noite" e então mais tarde "Um monstro feito de olhos" ou "As estrelas olhavam do alto" e jamais parar para pensar que tudo isso pode ser reconduzido a um único modelo. Se eu fosse um pensa- dor arrojado (mas não sou; sou um pensador bem tímido, avanço às apalpadelas), poderia dizer, é claro, que somente uma dúzia desses modelos existe e que todas as outras 41 A METÁFORA metáforas são meros passatempos arbitrários. Isso redun- daria na declaração de que, entre as "dez mil coisas" da definição chinesa, somente umas doze afinidades essen- ciais podem ser encontradas. Porque, é claro, podem-se en- contrar outras afinidades que são apenas surpreendentes, e a surpresa dificilmente dura mais que um instante. Lembro que esqueci um exemplo bastante bom da equação sonho-e-vida. :vias acho que posso evocá-lo agora: é do poeta americano cummings. São quatro ver- sos. Peço desculpas pelo primeiro. Evidentemente foi escrito por um jovem, para jovens, e não posso mais pleitear tal privilégio- estou velho demais para esse tipo de jogo. :vias a estrofe deve ser citada na íntegra. O primeiro verso é: "god's terrible face, brighter than a spoon" [a terrível face de deus, mais luzente que uma colher]. Lamento bastante pela colher, pois se sente, claro, que ele pensou primeiro numa espada, ou numa vela, ou no sol, ou num escudo, ou em algo que tradi- cionalmente brilha; e então disse: "Kão- afinal sou moderno, vou meter aqui uma colher". E assim teve a sua colher. Mas podemos perdoá-lo pelo que vem depois: "god's terrible face, brighter than a spoon,/ collects the image of one fatal word" [a terrível face de deus, mais luzente que uma colher,/colhe a imagem de uma pa- lavra fatal]. Esse segundo verso é melhor, a meu ver. E como me disse meu amigo :\1urchison, numa colher mui- 42 ESSE OFÍCIO DO VERSO tas vezes colhemos várias imagens. Nunca pensara nisso, pois caíra para trás com a colher e desistira de pensar a respeito. god's terrible face, brighter than a spoon, collects the image of one fatal word, so that my life (which liked the sun and the moon) resembles something that has not occurred 16. [a terrível face de deus, mais luzente que uma colher, colhe a imagem de uma palavra fatal, de modo que minha vida (que gostava do sol e da lua) parece algo que não ocorreu.] "Resembles something that has not occurred": esse verso carrega uma espécie de estranha simplicidade. Creio que ele nos confere a essência onírica da vida melhor do que aqueles famosos poetas, Shakespeare e Walther von der Vogelweide. Claro, escolhi somente uns poucos exemplos. Tenho certeza de que a memória de vocês está repleta de metá- foras entesouradas- metáforas que talvez esperem ser citadas. Sei que depois desta palestra serei invadido pelo remorso, pensando nas belas metáforas, muitas, que terei deixado escapar. E claro que vocês me dirão, a meia-voz: "Mas por que é que o senhor omitiu essa metáfora ma- 43 A METÁFORA ravilhosa de fulano de tal?". E terei então de gaguejar e pedir desculpas. Mas agora, acredito, podemos passar a metáforas que parecem estranpas aos antigos modelos. E já que falei da lua, tomarei uma metáfora persa que li em algum trecho da história da literatura persa de Brown. Digamos que seja de Farid al-Din Attar, ou de Ornar Khayyám, ou de Hafiz 17, ou de outro dos grandes poetas persas. O poeta fala da lua, chamando-a "o espelho do tempo". Suponho que, do ponto de vista da astronomia, a idéia de que a lua seja um espelho é apropriada- mas isso é um tanto irre- levante do ponto de vista poético. Se de fato a lua é um espelho ou não, carece de toda a importância, já que a poe- sia fala à imaginação. Olhemos a lua como um espelho do tempo. Creio que essa é uma metáfora muito sutil- pri- meiro, porque a idéia de um espelho nos transmite o bri- lho e a fragilidade da lua, e, segundo, porque a idéia do tempo nos faz lembrar de repente que essa própria lua cristalina para a qual olhamos é muito antiga, é cheia de poesia e mitologia, é antiga como o tempo. Já que usei a expressão "antiga como o tempo" [as old as time], devo citar outro verso-um que talvez es- teja fervilhando na memória de vocês. 1\"ão estou lem- brado do nome do autor. Achei-o citado por Kipling num livro seu não muito memorável, chamado From sea to sea: "A rose-red city, half as old as Time" [Uma cidade 44 ESSE OFÍCIO DO VERSO rubro-rósea, com a metade da idade do Tempo] 18. Tives- se o poeta escrito "A rose-red city, as old as Time", não teria escrito absolutamente nada. Mas "half as old as Time" empresta uma espécie de precisão mágica- a mesma espécie de precisão mágica obtida por aquela estranha e corriqueira expressão inglesa "I willlove you forever anda day" [Vou te amar para sempre e um dia]. "Para sempre" significa "por um tempo muito longo", mas é abstrato demais para empolgar a imaginação. Temos a mesma espécie de truque (peço desculpas pelo uso dessa palavra) no título daquele livro famoso, as Mil e uma noites. Pois "as mil noites" significam para a imaginação "as muitas noites", tal como "quarenta" cos- tumava significar "muitos" no século XVII. "When forty winters shall besiege thy brow" [Quando quarenta inver- nos assediarem teu semblante] escreve Shakespeare 19 ; e penso na trivial expressão inglesa "forty winks" expri- rnindo "uma soneca". Pois "quarenta"significa "mui- tos". E temos aqui as "mil noites e uma noite"-tal como "a rose-red city" e a fabulosa precisão de "half as old as Time", que fazem o tempo, é claro, parecer ainda mais longo. A fim de considerar diferentes metáforas, retomarei agora- inevitavelmente, dirão vocês- meus anglo-sa- xões. Recordo aquele kenning 211 bastante usual que chama o mar de "caminho da baleia". Pergunto-me se o saxão 45 A METÁFORA anônimo que primeiro cunhou esse kerznirzg sabia como ele era engenhoso. Pergunto-me se ele sentiu (embora isso nem precise nos preocupar) que a imensidão da ba- leia sugeria e enfatizava a imensidão do mar. Há outra metáfora- uma nórdica, sobre o sangue. O kerzrzirzg usual para sangue é "a água da serpente". Nessa metáfora, temos a noção- que encontramos tam- bém entre os saxões- de uma espada como um seres- sencialmente maléfico, um ser que sorvia o sangue dos homens como se fosse água. Temos ainda as metáforas para batalha. Algumas delas são bem banais- por exemplo, "encontro de ho- mens". Aqui, talvez, haja algo bastante sutil: a idéia de homens se reunindo para matar uns aos outros (como se não houvesse outros "encontros" possíveis). Mas temos também "encontro de espadas", "dança de espadas", "embate de armaduras", "embate de escudos". Todas elas podem ser encontradas na "Ode" de Brunanburh. E há outra boa: porn ameoht, "uma assembléia de cólera". Aqui a metáfora impressiona talvez porque, quando pensamos numa assembléia, pensamos em camaradagem, em ami- zade; e aí sobrevém o contraste, a assembléia de cólera. :\1as essas metáforas não são nada, eu diria, com- paradas a uma metáfora muito sutil sobre a batalha, de origem nórdica e- por estranho que pareça- irlan- desa. Ela chama a batalha "a teia de homens". A palavra 46 ESSE OFÍCIO DO VERSO "teia" é realmente formidável aqui, pois na idéia de uma teia assimilamos o modelo de uma batalha medieval: te- mos as espadas, os escudos, o entrelace das armas. Depois, há o toque de pesadelo de uma teia feita de seres vivos. "Uma teia de homens": uma teia de homens morrendo e matando uns aos outros. Ocorre-me de repente uma metáfora de Góngora bem no estilo da "teia de homens". Ele fala de um via- jante que chega a uma "bárbara aldea"- a uma "bár- bara aldeia"; e então essa aldeia tece uma corda de cães a seu redor. Como suele tejer Bárbara aldea Soga de perros Contra forastero. Assim, por estranho que pareça, temos a mesma imagem: a idéia de uma corda ou uma teia feita de seres vivos. Porém mesmo nesses casos que parecem ser sinôni- mos, há uma sensível diferença. Uma corda de cães é algo barroca e grotesca, enquanto "teia de homens" tem um quê de terrível, um quê de pavoroso. Para concluir, tomarei uma metáfora, ou uma com- paração (afinal de contas, não sou um professor, não pre- ciso me preocupar com a diferença), do hoje esquecido 47 A METÁFORA Byron. Li o poema quando garoto~ imagino que todos vocês o leram em idade bem tenra. Porém dois ou três dias atrás descobri de repente que essa metáfora era bas- tante complexa. Jamais pensei em Byron como um poeta especialmente complexo. Todos vocês conhecem as pala- vras: "She walks in beauty, like the night" [Ela anda em beleza, como a noite ]21 . O verso é tão perfeito que não lhe damos valor. Pensamos, "Ora, isso nós poderíamos ter escrito, se tivéssemos nos dado ao trabalho". ::vias só Byron se deu ao trabalho de escrevê-lo. Passo agora à complexidade oculta e secreta do ver- so. Suponho que já descobriram o que vou revelar avo- cês. (Porque isso sempre acontece com surpresas, não é? Acontece conosco ao lermos um romance policial.) "Ela anda em beleza, como a noite": no início temos uma adorável mulher; então nos é dito que ela anda em bele- za. Isso sugere um quê de língua francesa~ algo como "vous êtes en beauté" etc. Mas: "Ela anda em beleza, como a noite". Temos, em primeiro lugar, uma adorável mulher, uma adorável senhora, ligada à noite. Mas a fim de compreender o verso, temos de pensar também a noite como uma mulher, senão o verso não tem sentido. Assim, dentro dessas palavras bem simples, temos uma dupla metáfora: uma mulher é ligada à noite, mas a noi- te é ligada à mulher. Não sei e não me importo se Byron sabia disso. Penso que se tivesse sabido, o verso dificil- 48 ESSE OFICIO DO VERSO mente seria tão bom. Talvez antes de morrer ele o tenha descoberto, ou alguém lhe tenha feito notar. Agora somos levados às duas óbvias e principais con- clusões dessa palestra. A primeira, claro, é que, embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, todas elas podem ser reconduzidas a uns pou- cos modelos simples. Mas isso não precisa nos preocupar, já que cada metáfora é diferente: toda vez que o modelo é usado, as variações são diferentes. E a segunda conclu- são é que há metáforas- por exemplo, "teia de homens" ou "caminho da baleia"- que não podem ser recon- duzidas a modelos definidos. Assim, acho que a perspectiva- mesmo depois de minha palestra- é bem promissora para a metáfora. Porque, se quisermos, podemos treinar nossa mão em novas variações das principais tendências. As variações seriam muito bonitas, e somente uns poucos críticos, como eu, se dariam ao trabalho de dizer: "Bem, aqui te- mos olhos e estrelas e aqui temos tempo e rio- sempre a mesma coisa". As metáforas vão surpreender a imagi- nação. :vias talvez ainda nos seja dado- e por que não esperar também por isso?-, talvez ainda nos seja dado inventar metáforas que não façam parte, ou que ainda não façam parte, dos modelos aceitos. 49 A METÁFORA 3 O Narrar uma História Devemos levar em consideração distinções verbais, já que representam distinções mentais, intelectuais. É pe- na, porém, que a palavra "poeta" tenha sido fracionada. Pois hoje em dia, quando falamos de um poeta, pensamos apenas em quem profere tais notas líricas, à maneira de pássaros, como "With ships the sea was sprinkled far and nigh,/Like strars in heaven" [De navios o mar estava salpicado por toda parte,/ Como estrelas no céu] (Words- worth) t, ou "Music to hear, why hear'st thou music sadly? /Sweets with sweets war not, joy delights in joy" [Ouvir música, por que estás triste a ouvir música?/ Doçura com doçura não guerreia, o prazer se deleita no prazer V Ao passo que os antigos, quando falavam de um poeta- um "fazedor" -, pens~vam nele não somente como quem profere essas agudas notas líricas, mas tam- bém como quem narra uma história. Uma história na qual todas as vozes da humanidade podem ser encon- tradas- não somente a lírica, a pesarosa, a melancólica, mas também as vozes da coragem e da esperança. Ou seja, me refiro ao que suponho ser a mais antiga forma de poesia: a épica. Consideremos algumas delas. Talvez a primeira que nos venha à cabeça é uma que Andrew Lang, que tão bem a traduziu, chamou The tale oj Troy [A história de Tróia]. Vamos examiná-la em bus- ca daquele narrar muito antigo de uma história. Logo no primeiro verso, temos algo como: "Tell me, muse, of the 51 O NARRAR UMA HISTÓRIA anger of Achilles" [Conta, musa, da fúria de Aquiles]. Ou como o professor Rouse, se não me engano, traduziu: "An angry man- that is my subject" [Um homem fu- rioso- eis o meu tema]"'. Talvez Homero, ou o homem que chamamos Homero (pois essa é uma velha questão, claro), tenha pensado que escrevia o seu poema sobre um homem furioso, e isso de algum modo nos desconcerta. Pois entendemos a fúria como os latinos: "ira furor bre- vis"- a fúria é uma loucura breve, um acesso de loucu- ra. O enredo da Ilíada, em si próprio, não é mesmo dos mais atraentes- a idéia do herói amuado na sua tenda, sentindo que o rei o tratara injustamente, e que então move a guerra como uma rixa privada porque o seu ami- go fora morto, e depois disso vende o homem que matara ao pai dessehomem. Mas talvez (é possível que eu tenha dito isso antes, tenho certeza que sim), talvez as intenções do poeta não sejam tão importantes. O que importa hoje em dia é que, embora Homero possa ter pensado que narrava essa his- tória, estava na verdade narrando algo bem mais sutil: a história de um homem, um herói, que ataca uma cidade sabendo que jamais irá conquistá-la, sabendo que morrerá antes de ela capitular; e a história tanto mais instigante de homens defendendo uma cidade de cuja desgraça já têm consciência, uma cidade que já está em chamas. Creio que este seja o verdadeiro tema da Ilíada. E, de 52 ESSE OFÍCIO DO VERSO fato, os homens sempre sentirarn que os troianos eram os verdadeiros heróis. Pensamos em Virgílio, mas pode- mos pensar também em Snorri Sturluson\ que, em sua jovem era, escreveu que Odin ~ o Odin dos saxões, o deus~ era filho de Príamo e irmão de Heitor. Os ho- mens buscaram parentesco com os derrotados troianos, e não com os vitoriosos gregos. Isso talvez porque haja uma dignidade na derrota que dificilmente faz parte da vitória. Tomemos uma segunda épica, a Odisséia. A Odisséia pode ser lida de duas maneiras. Suponho que o homem (ou a mulher, como pensava Samuel Butler") que a es- creveu tenha sentido que havia na verdade duas histó- rias: o regresso de Ulisses a casa e as maravilhas e perigos do mar. Se tomarmos a Odisséia no primeiro sentido, temos a idéia do regresso ao lar, a idéia de que estamos no exílio, que o verdadeiro lar está no passado ou no paraíso ou em algum outro lugar, que jamais estamos em casa. Mas claro que o périplo e o regresso ao lar tinham de ganhar interesse. Assim foram inseridas as muitas maravilhas. E já quando chegamos às Mil e urna noites, vemos que a versão árabe da Odisséia, as Sete viagens de Sirnbá, o marujo, não é uma história de regresso ao lar, mas uma história de aventuras; e acredito que assim a lemos. Quando lemos a Odisséia, acho que sentimos é o glamour, a mágica do mar; o que sentimos é o que en- 53 O NARRAR UMA HISTÓRIA contramos no homem do mar. Por exemplo, ele não tem olhos para a harpa, nem para a troca de anéis, nem para os prazeres de uma mulher, nem para a grandeza do mun- do" Só pensa nas longas correntes salgadas do mar. De modo que temos as duas histórias numa só: podemos lê-la como um regresso ao lar e podemos lê-la como uma his- tória de aventuras- talvez a mais primorosa que jamais tenha sido escrita ou cantada. Chegamos agora a um terceiro "poema" que avulta muito acima deles: os quatro evangelhos. Os evangelhos também podem ser lidos de duas maneiras. Pelo fiel, são lidos como a estranha história de um homem, de um deus, que expia os pecados da humanidade. Um deus que se digna ao sofrimento-à morte na "amarga cruz", como diz Shakespeare6. Há ainda uma terceira interpre- tação, que encontrei em Langland 7: a idéia de que Deus queria saber tudo sobre o sofrimento humano e que não Lhe bastava sabê-lo intelectualmente, como é facultado a um deus; queria sofrer como um homem, e com as limi- tações de um homem. Contudo, se você for um incrédu- lo (muitos de nós somos), então poderá ler a história de modo diverso. Pode pensar num homem de gênio, num homem que pensava ser deus e que no final descobriu ser somente um homem, e que deus- o seu deus- o abandonara. Pode-se dizer que, por muitos séculos, essas três his- 54 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno tórias- a história de Tróia, a história de Ulisses, a his- tória de Jesus- têm sido suficientes à humanidade. As pessoas as têm contado e recontado muitas e muitas ve- zes; elas foram musicadas; foram pintadas. As pessoas as contaram inúmeras vezes, porém as histórias continuam ali, ilimitadas. Pode-se pensar em alguém, em mil ou dez mil anos, tornando a escrevê-las. Mas no caso dos evan- gelhos há uma diferença: a história de Cristo, a meu ver, não pode ser contada de modo melhor. Foi contada inú- meras vezes, porém os poucos versos em que lemos, por exemplo, Cristo sendo tentado por Satã, são mais fortes que os quatro livros juntos do Paradise rt;gained [Paraíso reconquistado]. Sente-se que Milton talvez não tivesse a menor idéia de que tipo de homem era Cristo. Bom, temos essas histórias e temos o fato de que os homens não precisavam de muitas histórias. ]\;"ão supo- nho que Chaucer algum dia tenha pensado em inventar uma história. ]\;"ão acho que as pessoas fossem menos criativas naquela época do que são hoje. Acho que sen- tiam que as nuances introduzidas na história- as sutis nuances nela introduzidas- bastavam. Além do mais, isso facilitava as coisas para o poeta. Os seus ouvintes ou leitores sabiam o que ele diria. E assim podiam assimilar todas as diferenças. Ora, na épica- e podemos pensar nos evangelhos como uma espécie de épica divina-, podem-se encon- 55 O NARRAR UMA HISTÓRIA Bruno trar todas as coisas. Mas a poesia, como disse, foi fragmen- tada; ou melhor, de um lado temos o poema lírico e a ele- gia, e do outro temos o narrar uma história -o romance. Quase somos tentados a pensar o romance como uma de- generação da épica, a despeito de autores como Joseph Conrad ou Herman Melville. Pois o romance remonta à dignidade da épica. Ao considerarmos o romance e a épica, somos tenta- dos a pensar que a diferença principal está na diferença entre verso e prosa, entre cantar algo e enunciar algo. :VIas acho que há uma outra maior. A diferença está no fato de que o importante na épica é o herói- um homem que é um modelo para todos os homens. Ao passo que a essência da maioria dos romances, como salientou :\!Iencken, reside na aniquilação de um homem, na degeneração do caráter. Isso nos leva a outra questão: o que pensamos da feli- cidade? O que pensamos da derrota e da vitória? Quando se fala hoje em dia num final feliz, as pessoas conside- ram-no uma simples concessão ao público ou uma estra- tégia comercial; consideram-no artificial. Mas por séculos os homens puderam acreditar sinceramente na felicidade e na vitória, embora percebessem a dignidade intrínseca da derrota. Por exemplo, quando se escrevia sobre o Velo- cino de Ouro (uma das velhas histórias da humanidade), leitores e ouvintes sabiam desde o início que o tesouro seria encontrado no final. S6 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno Bruno Bem, hoje em dia, se alguém Pmpreende uma aven- tura, sabemos que terminará em fracasso. Quando le- mos- penso num exemplo que admiro- The Aspern papersH, sabemos que os papéis jamais serão encontrados. Quando lemos O castelo de Franz Kafka, sabemos que o homem jamais ingressará no castelo. Ou seja, não pode- mos realmente acreditar em felicidade e sucesso. E isso talvez seja uma das pobrezas de nosso tempo. Suponho que Kafka tenha sentido algo bem parecido quando quis que seus livros fossem d\estruídos: queria na verdade es- crever um livro feliz e triunfante, e sentiu que não podia fazê-lo. Ele poderia tê-lo feito, é claro, mas as pessoas teriam percebido que ele não estava dizendo a verdade. Não a verdade dos fatos, mas a verdade dos seus sonhos. Ao final do século XVIII ou início do século XIX, diga- mos (não precisamos entrar em discussão de datas), o homem começou a inventar histórias. Talvez se possa dizer que a tentativa começou com Hawthorne e com Edgar Allan Poe, mas claro que há sempre precursores. Como salientou Rubén Darío, ninguém é o Adão lite- rário. Ainda assim, foi Poe quem escreveu que a história deveria ser escrita em vista da última ftase, e um poema em vista do último verso. Isso degenerou na história de peripécias, e nos séculos XVIII e XIX as pessoas inventa- ram toda espécie de enredos. Esses enredos às vezes são bem engenhosos. Se meramente narrados, são mais enge- 57 O NARRAR UMA HISTÓRIA Bruno Bruno Bruno nhosos que os enredos dos épicos. Porém de alguma forma sentimos quehá algo artificial neles- ou melhor, algo trivial. Se tomarmos dois cas'os- vamos supor a história de O médico e o monstro, de um lado, e, de outro, um romance ou um filme como Psicose-, talvez o enredo do segundo seja mais engenhoso, mas sentimos que há mais por trás do enredo de Stevenson. Voltando à idéia de que falei no início, a idéia de que há somente uns poucos enredos: talvez devêssemos men- cionar aqueles livros nos quais o interesse não está no enredo, mas na alteração, na mudança de vários enredos. Estou pensando nas Mil e uma noites, em Orlando furioso etc. Pode-se acrescentar também a idéia de um tesouro maligno. É o que temos na Volsunga Saga 9, e talvez no final do Beowulf- a idéia de um tesouro que acarreta o mal às pessoas que o encontram. Aqui talvez tenhamos chegado à idéia que tentei desenvolver em minha última palestra, sobre a metáfora- a idéia de que talvez todos os enredos pertençam somente a uns poucos modelos. Claro, hoje em dia as pessoas inventam tantos enredos que somos ofuscados por eles. :vias talvez esse acesso de inventividade esmoreça, e quem sabe então achemos que esses muitos enredos não passam de aparências de uns poucos enredos. Isso, contudo, não cabe a mim discutir. Há outro fato a ser notado: os poetas parecem esque- cer que, outrora, o narrar uma história era essencial, e o S8 ESSE OFÍCIO DO VERSO narrar uma história e o declamar o verso não eram pensa- dos como coisas diversas. Um homem narrava uma histó- ria; cantava-a; e seus ouvintes não o tomavam como um homem empenhado em duas tarefas, mas antes como um homem empenhado numa tarefa que tinha dois as- pectos. Ou talvez não sentissem que houvesse dois aspec- tos e considerassem a coisa toda como algo essencial. Chegamos agora ao nosso tempo e nos deparamos com esta circunstância um tanto esquisita: tivemos duas guerras mundiais, porém delas não surgiu, de um modo ou de outro, nenhuma épica- exceto talvez os Sete pila- res da sabedoria 111 • !\os Sete pilares da sabedoria encontro muitas qualidades épicas. Mas o livro é tolhido pelo fato de que o herói é o narrador, e tem assim algumas vezes de se rebaixar, se fazer humano, se fazer crível demais. De fato, tem de cair nas armadilhas de um romancista. Há outro livro, hoje bastante esquecido, que li, acho eu, em 1915 -um romance chamado Le feu, de Henri Barbusse 11 • O autor era um pacifista; foi um livro escrito contra a guerra. Mas de algum modo a épica imiscuiu-se no livro (recordo uma investida de baioneta primorosa). Outro escritor que tinha senso épico era Kipling. É o que vemos numa história tão maravilhosa como "A Sahib's war". \1as do mesmo modo que Kipling nunca tentou o soneto, por pensar que isso podia indispô-lo com seus leitores, ele nunca tentou a épica, embora pudesse fazê- 59 O NARRAR UMA HISTÓRIA Bruno Bruno lo. Também me ocorre Chesterton, que escreveu "The ballad of the white horse", um poema sobre as guerras do rei Alfredo contra os dinamarqueses. Kele encontramos metáforas bem estranhas (fico imaginando como fui esquecer de citá-las da última vez!) -, por exemplo, "marble like solid moonlight" [mármore como luar sóli- do], "gold like frozen fire" [ouro como fogo congelado], nas quais mármore e ouro são comparados a duas coisas que são ainda mais elementares 12 . São comparados a luar e fogo- e não ao fogo propriamente, mas a um fogo magicamente congelado. De certo modo, as pessoas estão famintas e sedentas de épica. Sinto que a épica é uma das coisas de que os ho- mens precisam. Mais que todo outro lugar (e isso talvez soe como uma espécie de anticlímax), foi Hollywood que abasteceu o mundo de épica. Por todo o globo, quando as pessoas assistem a um faroeste- observando a mitolo- gia de um cavaleiro, e o deserto, e a justiça, e o xerife, e os tiroteios etc.-, imagino que resgatem o sentimento épico, quer tenham consciência disso ou não. Afinal, ter consciência da coisa não é importante. Ora, não quero profetizar, porque tais coisas são pe- rigosas (embora talvez se revelem verdadeiras com o tempo), mas acho que, se o narrar uma história e o cantar um verso pudessem se reunir outra vez, uma coisa muito importante talvez acontecesse. Talvez isso venha dos Es- 60 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno tados Unidos- já que, como vocf>s todos sabem, os Esta~ dos Unidos têm um senso ético para o certo e o errado. Quem sabe isso seja sentido em outros países, mas não imagino que possa ser encontrado de modo tão explícito como encontro aqui. Se isso pudesse ser alcançado, se pu~ déssemos remontar à épica, algo muito importante seria obtido. Quando Chesterton escreveu "The ballad of the white horse", foi bem acolhido pela crítica e tudo o mais, porém os leitores não tomaram afeição pelo poema. De fato, quando pensamos em Chesterton, pensamos na saga do Father Bro,wn e não naquele poema. Só fui refletir sobre o assunto bem tarde na vida; e além disso, não sei se conseguiria experimentar a épica (embora tenha trabalhado em dóis ou três versos épicos). Isso cabe aos mais jovens fazer. E espero que o façam, porque todos sentimos, claro, que o romance está de um modo ou de outro em declínio. Pensem nos principais romances de nossa época- digamos, o Ulisses de Joyce. Ficamos sabendo de mil coisas sobre os dois personagens, porém não os conhecemos. Sabemos mais sobre as per~ sonagens de Dante ou de Shakespeare, que nos vêm- que vivem e morrem- em umas poucas frases. Desco~ nhecemos mil circunstâncias sobre eles, mas os conhece~ mos intimamente. Isso, claro, é muito mais importante. Acho que o romance está em declínio. Acho que todos aqueles experimentos bastante ousados e interes~ 61 O NARRAR UMA HISTÓRIA santes com o romance- por exemplo, a idéia de deslo- camento temporal, a idéia de a história ser contada por diferentes personagens-, todos eles conduzem ao mo- mento em que o romance não estará mais entre nós. Mas existe algo com a história, com a narrativa, que sempre estará presente. Não creio que um dia os homens se cansarão de contar ou ouvir histórias. E se, junto com o prazer de nos ser contada uma história, tivermos o pra- zer adicional da dignidade do verso, então algo grandioso terá acontecido. Talvez eu seja um homem antiquado do século XIX, mas tenho otimismo, tenho esperança; e como o futuro comporta várias coisas- como o futuro com- porta, talvez, todas as coisas-, acho que a épica voltará para nós. Creio que o poeta haverá de ser outra vez um fazedor. Quero dizer, contará uma história e também a cantará. E não consideraremos diversas essas duas coisas, tal como não pensamos que são diversas em Homero ou em Virgílio. 62 ESSE OFÍCIO DO VERSO Bruno Bruno 4 Música da Palavra e Tradução Em favor da clareza, atenho-me agora ao problema da tradução poética. Um problema menor, mas também muito relevante. Essa discussão nos deve abrir um cami- nho para o tópico da música da palavra (ou talvez da ma- gia da palavra), do sentido e do som na poesia. Segundo uma superstição amplamente difundida, todas as traduções traem os seus inigualáveis originais. Isso é expresso pelo conhecido trocadilho italiano, "Tra- duttore, traditore", que se julga irretorquível. Sendo esse trocadilho bastante popular, há de existir um núcleo de verdade, um âmago de verdade, oculto em seu interior. Vamos entrar na discussão das possibilidades (ou não) e do sucesso (ou não) da tradução poética. Segundo meu hábito, começa~emos com alguns exemplos, pois acho que nenhuma discussão pode ser levada adiante sem exemplos. Já que a minha memória costuma ser muito afeita ao esquecimento, adotarei exemplos breves. Esta- ria além de nosso tempo e de minha capacidade analisar estrofes ou poemas inteiros. Começaremos com a Ode de Brunanburh e sua tra- dução por Tennyson. Essa ode (minhas datas são bas- tanteinstáveis) foi composta no início do século x para celebrar a vitória da gente de Wessex contra os vikings de Dublin, os escoceses e os galeses. Passemos ao exame de um ou dois versos. No original, encontramos algo mais ou menos assim: "sunne up ret morgentid mrere 64 ESSE OFÍCIO DO VERSO tungol". Ou seja, "o sol na maré matinal" ou "na hora matinal", e depois "aquela famosa estrela" ou "aquela poderosa estrela"- mas aqui "famosa" seria uma tra- dução melhor ("mrere tungol"). O poeta segue falando do sol como "godes candel beorht"- "uma cintilante vela de Deus". Essa ode foi vertida em prosa inglesa pelo filho de Tennyson; foi publicada numa revista 1. O filho prova- velmente explicou ao pai algumas das regras fundamen- tais do verso inglês antigo- acerca de sua cadência, seu uso da aliteração em vez da rima etc. Tennyson, que ti- nha muito gosto por experimentos, treinou sua mão es- crevendo poemas do inglês antigo em inglês moderno. É digno de nota observar que, embora o experimento te- nha sido bastante bem-sucedido, o poeta nunca mais tor- nou a ele. Assim, se estivéssemos buscando poemas em inglês antigo nas obras do lorde Alfred Tennyson, tería- mos de nos contentar com aquele único exemplo ilustre, a Ode de Brunanburh. Esses dois fragmentos- "o sol, aquela famosa estrela" e "o sol, a cintilante vela de Deus" ("godes can- del beorht")- foram traduzidos assim por Tennyson: "when first the great/Sun-star o f morning-tide" [ quan- do primeiro a grande/Estrela-sol da maré-da-manhã]2. Ora, "sun-star of morning-tide" é, a meu ver, uma tra- dução admirável. É ainda mais saxão que o original, já 65 MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO que temos duas palavras germânicas compostas: "sun- star" e "morning-tide". E embora "morning-tide", é cla- ro, possa facilmente ser explicada como "morning-time" [hora-da-manhã], podemos pensar também que Ten- nyson queria nos sugerir a imagem da aurora inundando o céu. Assim, o que temos é uma expressão bem esquisi- ta: "when first the great/Sun-star of morning-tide". E então um verso adiante, quando Tennyson chega à "cin- tilante vela de Deus", ele a traduz como "Lamp of the Lord God" [Lâmpada do Senhor Deus]. Tomemos agora outro exemplo, não só uma tradu- ção impecável, mas também elegante. Dessa vez vamos considerar uma tradução do espanhol. Trata-se domara- vilhoso poema "Noche oscura del alma" [Noite escura da alma], escrito no século XVI por um dos maiores- podemos dizer com segurança o maior dos- poetas es- panhóis, de todos aqueles que usaram a língua espanho- la para os propósitos da poesia. Refiro-me, é claro, a San Juan de la Cruz. A primeira estrofe diz assim: Rn una noche oscura con ansias en amores inflamada jO dichosa ventura! salí sin ser notada estando ya mi casa sosegada 3. 66 ESSE OFÍCIO DO VERSO Uma estrofe maravilhosa. ~as se considerarmos o último verso destacado de seu contexto e tomado em si mesmo (claro, não nos é permitido fazer isso), trata-se de um verso indistinto: "estando ya mi casa sosegada". Temos o som um tanto sibilante dos três sem "casa sose- gada". E "sosegada" está longe de ser uma palavra notá- vel. Não estou tentando desmerecer o texto. Estou mera- mente salientando (e em breve vocês verão por que o faço) que o verso tomado em si mesmo, destacado de seu contexto, é bem pouco extraordinário. Esse poema foi traduzido para o inglês por Arthur Symons no final do século XIX. A tradução não é boa, mas se tiverem interesse, poderão encontrá-la no Oxjord book of modern verse de Yeats 4. Alguns anos atrás um grande poeta escocês que é também sul-africano, Roy Campbell, ensaiou uma tradução da "Noite escura da alma". Gos- taria de ter o livro comigo; mas vamos nos ater ao verso que acabei de citar, "estando ya mi casa sosegada", e ver o que Roy Capmbelllogrou fazer. Ele o traduziu assim: "When all the house was hushed" 1. Temos aqui a palavra "all", que confere um sentido de espaço, um sen- tido de vastidão, ao verso. E depois a bela, a adorável palavra inglesa "hushed". "Hushed" parece nos dar algo da própria música do silêncio. Acrescentarei a esses dois exemplos bem propícios à arte da tradução um terceiro. Este eu não discutirei, já 67 MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÃO que não é um caso de verso vertido para verso, mas antes de prosa sendo alçada a verso, a poesia. Temos aquele bordão latino (herdado dos gregos, claro), "Ars longa, vi ta brevis" ~ou, como suponho tenhamos de pronun- ciar, "ui ta breuis". (Algo sem dúvida muito feio. Torne- mos a "vita brevis" ~a "Virgílio" e não a "Uirgilius".) Temos aqui uma declaração direta, uma declaração de opinião. Uma frase direta, de sentido evidente. Não remete a nada mais profundo. De fato, é uma espécie de profecia do telegrama e da literatura por ele originada. "A arte é longa, a vida é breve." Esse bordão foi repeti- do inúmeras vezes. Então, no século XIV, "un grand translateur" 6, "um grande tradutor"~ mestre Geoffrey Chaucer ~precisou desse verso. Claro, ele não estava pensando na medicina; estava pensando talvez na poe- sia. Mas talvez (não tenho o texto comigo, então po- demos escolher), talvez estivesse pensando no amor e quisesse trabalhar esse verso. Ele escreveu: "The life so short, the craft so long to learn" [A vida tão breve, o ofí- cio tão longo de aprender] ~ou, como podem supor que ele tenha pronunciado, "The lyf so short, the craft so long to lerne" 7. Aqui temos não só a declaração, mas também a própria música do pesar. Podemos ver que o poeta não está simplesmente pensando na árdua arte e na brevidade da vida; também está sentindo. Isso é dado pela palavra-chave aparentemente invisível, inaudível 68 ESSE OFÍCIO DO VERSO -a palavra "so" [tão]. "The lyf so short, the craft so long to lerne." Voltemos aos dois primeiros exemplos: a famosa ode de Brunanburh e Tennyson, e a "Noche oscura del alma" de San Juan de la Cruz. Se considerarmos as duas tradu- ções que citei, elas não são inferiores ao original, porém sentimos que há uma diferença. A diferença está além do que o tradutor pode fazer; depende, antes, do modo como lemos poesia. Pois se olharmos em retrospectiva para a Ode de Brunanburh, sabemos que ela nasceu de profunda emoção. Sabemos que os saxões haviam sido derrotados inúmeras veze<? pelos dinamarqueses e que eles odiavam isso. E temos de pensar na alegria sentida pelos saxões ocidentais depois de uma das maiores bata- lhas na história medieval da Inglaterra- eles derrota- ram Olaf, o rei dos vikings de Dublin, e os odiados esco- ceses e galeses. Pensamos no que sentiram; pensamos no homem que escreveu a ode. Talvez fosse um monge. Mas o que importa é que, em vez de agradecer a Deus (no estilo ortodoxo), ele agradeceu à espada de seu rei e à espada do príncipe Edmund pela vitória. Ele não diz que Deus lhes afiançou a vitória; diz que venceram "swordda edgiou"- "pelo gume de suas espadas". O poema inteiro está repleto de alegria feroz, inclemente. Ele zomba daqueles que foram derrotados. Fala do rei e do irmão regressando a sua própria Wessex- a sua 69 MÚSICA DA PALAVRA E TRADUÇÀO própria "West-Saxonland", como diz Tennyson (cada qual "went to his own West-Saxonland, glad of the war") [foi para sua própria Saxônia Ocidental, feliz com a guerra]K. Depois disso, remonta aos primórdios da his- tória inglesa; pensa nos homens que vieram da Jutlândia, em Hengist e Horsa 9. O que é muito esquisito- não su- ponho que muitos tivessem tal senso histórico na Idade Média. Assim, temos que pensar o poema como fruto da emoção profunda. Temos que pensá-lo como uma irrup- ção da grande poesia. Quando lemos a versão de Tennyson, por mais que a admiremos (e eu a conheci antes de conhecer o original saxão), pensamos nela como um bem-sucedido experi- mento em verso do inglês antigo forjado por um mestre do verso em inglês
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