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AMICUS CURIAE - CNJ - Memoriais (Pedido de Providência - 0001459-08_2016_2_00_0000) Regina Beatriz (1)

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EGRÉGIO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Pedido de Providência - 0001459-08.2016.2.00.0000
Exmo. Sr. Corregedor Ministro João Otávio de Noronha
O INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA – IBDFAM, por intermédio de seus procuradores, na condição de AMICUS CURIAE, tendo em consideração o julgamento do Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000 formulado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões - ADFAS, por meio do qual pleiteia a emissão de ato por este E. Conselho Nacional de Justiça proibindo a lavratura de escrituras públicas de uniões poliafetivas pelas serventias extrajudiciais do Brasil, vem, perante Vossa Excelência, apresentar
MEMORIAIS
em razão da importância da matéria e o faz com amparo nas razões que passa a aduzir.
Há um equívoco elementar na pretensão de que este E. Conselho Nacional de Justiça edite ato proibindo a lavratura de escrituras públicas de uniões poliafetivas. De forma sucinta é o que se pretende demonstrar por meio destes Memoriais. 
I. DA NATUREZA JURÍDICA DA UNIÃO ESTÁVEL 
Para reflexão sobre a questão posta à apreciação deste E. Conselho Nacional de Justiça é imprescindível ter-se em consideração que a união estável não é constituída por um ato cartorial como o casamento. A união estável é, primeira e fundamentalmente, um fato, isso é um ato fato- jurídico. Preenchidos os requisitos legais caracterizados do fato jurídico, o Ordenamento pátrio imputa efeitos à conjugalidade não matrimonializada. Essa compreensão revela-se como necessária e inafastável da simples leitura do art. 1.723 do Código Civil. O pacto de união estável, ou contrato de convivência, previsto como mera faculdade no art. 1.725 do Código Civil, nada mais é que uma declaração de auto reconhecimento da união estável pelos partícipes daquela relação, que podem ou não regulamentar os efeitos patrimoniais que desejam ver emergir da referida relação. 
O pacto de união estável pode, inclusive, ser feito por escrito particular. Trata-se de um contrato formal porque a Lei exige que seja escrito. Mas, a escritura pública é dispensável. Todavia, é possível existir um pacto de união estável celebrado por meio de escritura pública e tal união não existir, por não preencher os elementos legais para sua configuração. Ao contrário do casamento que, uma vez celebrado, em regra, produz imediatamente todos seus efeitos. Em outras palavras, é fundamental distinguir a união estável do casamento. A união estável no sistema jurídico brasileiro é um instituto autóctone. Não deve ser reduzida a um simulacro ou arremedo de casamento, como se fora um casamento menor ou de patamar inferior.
Não existe um ato de celebração da união estável como há para o matrimônio. Considerada a regulação da matéria no Código Civil brasileiro, esta confusão é inadmissível. Aqueles que vivem em união estável podem celebrar contrato de convivência ou simplesmente fazer declaração pela qual reconhecem que constituem uma família em razão da convivência pública, contínua e duradoura por eles estabelecida com esse objetivo. O contrato ou a declaração, todavia, não são atos constitutivos da união estável. Este tipo de declaração pode ser feita por instrumento particular ou por escritura pública. "Cartorializar" a união estável revela-se, portanto, como um equívoco gritante, pois, contraria a natureza jurídica que lhe conferiu a Constituição da República e o Código Civil.
Esta é, pois, uma premissa que não pode ser desconsiderada na apreciação do Pedido de Providências que está em julgamento.
II- DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO DIREITO DO CIDADÃO AO REGISTRO PÚBLICO DE SUAS DECLARAÇÕES
Fixada a premissa em relação à natureza jurídica da união estável no Ordenamento jurídico brasileiro, um segundo aspecto a ser considerado é o direito de liberdade de expressão e o direito de todo e qualquer cidadão valer-se dos serviços notariais para registrar suas declarações em documento que tem fé publica, objetivando assegurar certeza às declarações consignadas em assento público.
A liberdade de expressão é sem qualquer sombra de dúvida um direito fundamental. Está inscrito no inciso IV do art. 5º da Constituição da República, nos seguintes termos: " IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". Ora, se a Constituição da República assegura a livre manifestação do pensamento, que razões podem ser invocadas para proibir que pessoas registrem em escrito particular ou público, evidentemente, com a identificação da autoria, o que pensam de si próprias e da relação entre elas estabelecida? Vedar que pessoas façam declaração conjunta reconhecendo que vivem em união estável por certo constitui gravíssima afronta a um direito fundamental, garantidor e estruturante do próprio Estado Democrático de Direito. Trata-se este, portanto, de ponto fundamental e inafastável para o encaminhamento da reflexão sobre o tema submetido à apreciação deste E. Conselho Nacional de Justiça.
De que argumento se poderia lançar mão para proibir as serventias extrajudiciais de lavrarem declarações de união estável entre três ou mais pessoas? A única possibilidade que se pode vislumbrar seria a evocação da "moral e dos bons costumes". Todavia, se a solução do caso ora em apreço enveredar por este caminho, outras normas constitucionais da maior relevância serão violadas. 
Poderia, por exemplo, ser evocada leitura por analogia do art. 115 da Lei de Registros Públicos, que dispõe: “Não poderão ser registrados os atos constitutivos de pessoas jurídicas, quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem destino ou atividades ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes”. 
Primeiramente, necessário sublinhar que, no caso em análise, não se trata de constituição de coisa alguma. A escritura pública não constitui a união poliafetiva. Da escritura consta apenas e tão somente a declaração de reconhecimento de um fato pelos declarantes. Em segundo lugar, não é possível admitir que tal declaração ofenda à ordem pública, à moral ou aos bons costumes. A declaração, em si, não pode ser considerada ofensiva. Pode alguém, conservador e puritano, até considerar o fato declarado ofensivo à moral e aos bons costumes, mas, jamais a declaração da existência e reconhecimento de tal fato. A declaração, portanto, em si mesma, isenta. 
Evidentemente, num sistema democrático, é inimaginável que pessoas sejam sancionadas pelo fato de viverem uma conjugalidade a três. O direito à intimidade e à forma de estabelecer família não constituem questão na qual o Estado possa imiscuir-se. Trata-se este, também, de um direito fundamental consagrado no inciso X do art. 5º da Constituição da República: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...". O Código Civil, por seu turno, consagra e aplica essa mesma norma constitucional ao âmbito da família em art. 1.513: "É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família". 
 Por outro lado, é necessário não esquecer que a declaração de união estável entre dois homens é considerada por boa parte da população brasileira uma aberração e, também, gritante ofensa aos bons costumes, todavia, o Supremo Tribunal Federal considerou tal união uma família como qualquer outra (ADI 4.227 e ADPF 132) e este E. Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 175/2013, estabeleceu que as serventias extrajudiciais não podem se negar a realização da habilitação e celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Se assim está regulamentado o casamento homoafetivo, considerado ofensivo à moral e aos bons costumes por seguimento expressivo da população, poderá, agora, "a moral ou bons costumes" ser evocada para vedar a feitura de escritura pública declaratória de união estável poliafetiva? Este é um critério perniciosos e discriminatório.
Cada pessoa, cada família, cada grupo religioso ou associativo pode e deve reger-se pelos princípiosmorais que julgarem adequados, mas não têm o direito de fazer de tais princípios normas estatais impositivas a todos os cidadãos de um Estado que se declara laico, democrático e plural.
Logo, se três ou mais pessoas reconhecem e desejam declarar que vivem em união poliafetiva têm elas efetivamente este direito. Todavia, se de tal declaração vão decorrer os mesmos efeitos que, atualmente, são reconhecidos às declarações de união estável entre um homem e uma mulher ou às declarações de união homoafetiva entre duas pessoas do mesmo sexo, esta é outra questão. 
O enorme equívoco do Pedido de Providências ora em apreço é o de que a lavratura da escritura pública de união poliafetiva teria o condão e o efeito de constituir a união estável poliafetiva. Repita-se é fundamental distinguir entre a natureza jurídica da união estável e do casamento e é imprescindível reconhecer o direito à liberdade de expressão e o direito dos cidadãos ao registro público de manifestação de seu pensamento, mormente quando tal declaração diga respeito à sua autocompreensão e ao reconhecimento de suas relações de coexistência e de afetividade. Vedar estes direitos implica inegável violação a direitos fundamentais consagrados na Constituição da República.
III- DA RESERVA DA INTIMIDADE E A PRESERVAÇÃO DA DEMOCRACIA
Necessário ainda registrar que eventual proibição de lavraturas de escritura pública de união poliafetiva endereçadas às serventias extrajudiciais contribuiria para o recrudescimento de moralismo autoritário, uma vez que assumido pelo próprio Estado. O ato de proibição além de contrariar normas constitucionais expressas, se consubstanciaria em um juízo de valor feito pelo Estado em relação à vida íntima dos cidadãos. Tal ato é comum em Estados teocráticos, no qual dogmas religiosos são transformados em normas estatais ou em Estados totalitários, nos quais as liberdades individuais são submetidas e aniquiladas em homenagem a um projeto manejado e controlado pelo poder hegemônico, poder esse que não se limita ao espaço público, mas adentra a casa, a vida, a privacidade e a intimidade das pessoas. 
O que foi denominado pela melhor doutrina em Direito das Famílias como reserva da intimidade deve ser levado em alta consideração. A democracia não pode estar restrita ao espaço público, à praça, o espírito e o sentido da democracia devem espraiar-se à casa e à intimidade, para assegurar a liberdade fundamental, isto é, a liberdade existencial e coexistencial. Não existe democracia sem pluralidade. Construir um país democrático implica a edificação de uma espacialidade onde caibam todos, com seus predicados, matizes, idiossincrasias, modos de ser, etc.
Apenas a título de exemplo, é possível considerar os casos, não raros, de famílias árabes constituídas fora do Brasil e que, depois, fixam residência no território brasileiro. Pelo fato de o homem ter mais de uma mulher esse núcleo não será reconhecido como família? Parece evidente que se trata de uma família e como tal deve ser considerada juridicamente. Se assim é, porque somente ao distante, ao estrangeiro, ao "exótico" pode ser assegurado o direito de ser diferente? O País é continental, somos múltiplos e diferentes. Por que não tem cada qual o direito de constituir sua família da forma que entender melhor? O que ocorre é que o tema está ainda envolto por forte tabu e um amontoado de preconceitos. Estes, todavia, não podem prevalecer sob pena de se fazer letra morta normas constitucionais que asseguram o Estado Democrático de Direito.
A resposta que este E. Conselho Nacional de Justiça deve dar a este Pedido de Providências não é fácil nem simples, mas, deve ser clara e, sobretudo, atenta aos princípios constitucionais da liberdade, da igualdade, da laicidade do Estado e da democracia. É muito preocupante o Estado querer ter o controle da liberdade e da autonomia das pessoas na forma de se relacionarem e constituírem suas famílias. A economia do desejo e da intimidade, não é da alçada do estado. 
Isto posto, são esses memoriais para, complementando e ratificando as manifestações anteriores do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, propugnar pelo indeferimento do pedido de proibição de lavratura de escrituras públicas de declaração de união poliafetiva, posto que tal vedação se revela inconstitucional e, também, em desconformidade com normas infraconstitucionais.
Brasília, 04 de maio de 2018.
Rodrigo da Cunha Pereira
Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família
OAB-MG 37.728
Maria Berenice Dias
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família
OAB-RS 74.024 e OAB-DF 32.863 
Marcos Alves da Silva
OAB-PR 22.936
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