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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito Raphaella Alves Marcelino FAMÍLIAS PARALELAS: desconstrução do princípio da monogamia através das mudanças sociais Betim 2019 Raphaella Alves Marcelino FAMÍLIAS PARALELAS: desconstrução do princípio da monogamia através das mudanças sociais Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Lucas Cruz Neves Área de concentração: Direito Constitucional Betim 2019 Raphaella Alves Marcelino FAMÍLIAS PARALELAS: desconstrução do princípio da monogamia através das mudanças sociais Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Constitucional ___________________________________________________ Prof. Me. Lucas Cruz Neves – PUC Minas (Orientador) ___________________________________________________ Jairo Coelho Moraes – PUC Minas (Banca Examinadora) ___________________________________________________ Fernando Gonçalves Rodrigues – PUC Minas (Banca Examinadora) Betim 2019 “Nossos provérbios precisam ser reescritos. Eles foram escritos no inverno, e é verão agora1”. 1 “Our proverbs want rewriting. They were made in winter, and it is summer now”. (WILDE, Oscar apud TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004, p. 22). RESUMO Este trabalho de conclusão de curso trata do avanço das relações interpessoais, que se formaliza em relações jurídicas, que garantem aos participantes direitos e obrigações, levando em consideração o avanço social, a boa-fé, a vontade dos cônjuges/companheiros, em busca se um bem comum: instituir família. O objetivo deste trabalho é mostrar como as Leis brasileiras, as jurisprudências e as doutrinas têm se posicionado com relações às demandas que vêm surgindo no que se refere às uniões paralelas, no que tange ao seu reconhecimento, de modo a garantir que o princípio da liberdade, dignidade humana e outros elencados na Constituição Federal sejam preservados, e ainda que o “princípio da monogamia”, dito desde os primórdios como obrigatório e correto, ao ponto de vista unicamente moral da sociedade, que perpassa entre as gerações, deixou de ser o único aceito pela comunidade. A metodologia utilizada foi a revisão doutrinária, teses, dissertações, artigos científicos, análise e comparação jurisprudencial, para melhor desenvolvimento do tema. A proposta em analisar este tipo de relação conjugal é auxiliar nas interpretações e ampliar o que a sociedade tem como senso comum, que muitas vezes é o modo de discriminação, ocasionado pela falta de conhecimento, conferindo então, a possibilidade de aceitação, bem como reconhecimento de direitos inerentes às outras formas de relacionamento já elencadas na Constituição Federal e no Código Civil Brasileiro. Palavras-chave: Monogamia. Relações interpessoais. Casamento. União estável. Famílias paralelas. ABSTRACT This project of conclusion of course deals with advancement of interpersonal relations, which is formalized in legal relations, which guarantee to the participants rights and obligations, taking into account social advancement, the good faith, the will of spouses/partners, in search of a good common: to institute a family. The objective of this project is to show how Brazilian laws, jurisprudences and doctrines have been positioned with relations to the demands that arise in relation to parallel unions, regarding their recognition, in order to ensure that the principle of freedom, human dignity and others principles listened in the Federal Constitution are preserved, and even if “principle of monogamy”, which has been said from the beginning as obligatory and correct, to the only moral point of view of society, which permeates between generations, is no longer the only one accepted by the community. The methodology used was the doctrinal review, theses, dissertations, scientific articles, analysis and jurisprudential comparison, for better develop of the theme. The proposal to analyze this type of conjugal relationship is to help in the interpretations and broaden what society has as common sense, which is often the mode of discrimination, caused by lack of knowledge, thus conferring the possibility of acceptance, as well as recognition of rights inherent to other forms of relationship already listed in the Federal Constitution and in the Brazilian Civil Code. Keywords: Monogamy. Interpersonal Relations. Marriage. Stable union. Parallel families. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS § - Parágrafo aC – Antes de Cristo AC – Apelação Cível Ag. – Agravo AREsp – Agravo em Recurso Especial Art. – Artigo Ap. - Apelação CC/02 – Código Civil de 2002 CCB – Código Civil Brasileiro CF/88 – Constituição Federal de 1988 CP/41 – Código Penal de 1941 dC – Depois de Cristo Des. - Desembargador DJe – Diário do Judiciário eletrônico Dr. - Doutor P. - Página Rg. – Regimental RS – Rio Grande do Sul STF – Supremo Tribunal Federa STJ – Supremo Tribunal de Justiça TJMA – Tribunal de Justiça do Maranhão TJRS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul V. - Volume SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 17 2 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ............................. 19 2.1 Breve histórico sobre as formações familiares ........................................... 20 2.1.1 A família para a Constituição Federal de 1988 .......................................... 24 2.1.2 A família para o Código Civil de 2002 ........................................................ 26 2.2 O novo conceito de entidade familiar .......................................................... 27 3 O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL E A HERMERÊUTICA CONSTITUCIONAL .................................................................................................. 29 4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS NO DIREITO DE FAMÍLIA ... 33 4.1 Princípio do livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada membro da entidade familiar .............................................................................. 34 4.2 Princípio da pluralidade de entidades familiares ........................................ 34 4.3 Princípio da solidariedade familiar ............................................................... 35 4.4 Princípio da igualdade ................................................................................... 36 4.5 Princípio da liberdade .................................................................................... 36 4.6 Princípio da boa-fé objetiva .......................................................................... 37 5 A MONOGAMIA COMO VALOR SOCIAL E AS FAMÍLIAS PARALELAS ....... 39 5.1 Do conceito de monogamia .......................................................................... 39 5.1.1 A família monogâmica na sociedade ......................................................... 40 5.1.2 A monogamia para a Constituição Federal de 1988 e para o Código Civil de 2002 ............................................................................................................... 43 5.2 O instituto do casamento, nulidade e impedimentos matrimoniais .......... 45 5.3 Do reconhecimento jurídico da família paralela ..........................................47 5.4 Divergências jurisprudenciais ...................................................................... 51 5.5 Da adoção, guarda, alimentos e bens das famílias paralelas .................... 58 6 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 63 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 65 17 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem o objetivo de estabelecer esclarecimentos acerca das uniões paralelas, também denominadas concomitantes ou simultâneas, que são novos tipos de modalidade familiar. O primeiro capítulo tratará sobre o modelo de família presente no ordenamento jurídico brasileiro, fazendo um breve histórico sobre as organizações familiares romanas, bárbaras, francesas, Brasil Colônia e Império, até os dias atuais, através de dispositivos da Constituição Federal e Código Civil, finalizando com o conceito de família interpretado por doutrinadores e pela legislação vigente. No segundo capítulo será abordado o tema Direito Civil Constitucional e Hermenêutica Constitucional, que buscam assegurar direitos em busca de uma sociedade fraterna e sem preconceitos, através de uma correta aplicação e interpretação da lei e de valores sociais. O terceiro capítulo abarca princípios constitucionais, como liberdade, pluralidade, solidariedade e boa-fé, que são inerentes às formações familiares, sejam elas “novas” ou “antigas”, que buscam cada vez mais, se adequar à realidade. E no quarto, e último capítulo, será abordado o tema principal deste trabalho: a monogamia. Conceituando-a, mostrando seu desenvolvimento nas formações familiares, as visões constitucionais e civis, definindo o casamento e os impedimentos matrimoniais, objetivando a sua desqualificação como princípio constitucional, adequando o reconhecimento jurídico, alisando ainda jurisprudências, e ainda, expondo direitos e deveres no que diz respeito à adoção, guarda e bens. 19 2 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O conceito de família, no mundo moderno, difere do existente no século XIX. O Código Civil de 1916 (CC/16) considerava que as famílias se constituíram somente através do instituto do casamento. Hoje, vemos que o Direito de Família se adequa à realidade social, remoldando os referenciais trazidos pelos antepassados e, consequentemente, quebrando tabus. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) trouxe, além do casamento, o reconhecimento da União Estável e da Família Monoparental, conferindo-lhe proteção do Estado, conforme o artigo (art.) 226, caput2, da Carta Magna. Neste diapasão, desconstruiu-se o modelo patriarcal, patrimonial e hierarquizado. As evoluções sociais vêm trazendo novas estruturas familiares, que objetivam no desenvolvimento de seus membros, através da solidariedade, apoio emocional, psicológico, cooperativismo e proteção. O que antes era considerado como função social da família, baseado na formação, socialização e desenvolvimento do indivíduo, hoje se modificou, pelo simples fato de os laços afetivos e os sentimentos estão sendo preponderantes para a formação da família. A concepção de família, segundo Santos e Viegas3, sofreu mudanças, preponderando atualmente o sentimento e o vínculo afetivo: O pluralismo das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família. A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família4. As autoras ainda destacam que “no atendimento do afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor (...) ao legislador é imposto o dever de 2 Art. 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, [...]. Brasília, DF: Planalto, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 14 ago. 2019. 3 SANTOS, Anna Isabella de Oliveira; VIEGAS, Cláudia Mara A. R. Poliamor: conceito, aplicação e efeitos. In: Caderno do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir./UFRGS, Porto Alegre: Edição Digital, vol. XII, n. 2, 2017, p. 368 4 SANTOS, Anna Isabella de Oliveira; VIEGAS, Cláudia Mara A. R. Poliamor: conceito, aplicação e efeitos. In: Caderno do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir./UFRGS, Porto Alegre: Edição Digital, vol. XII, n. 2, 2017, p. 368 20 programar as medidas cabíveis para a consecução da plena constituição e desenvolvimento das famílias”5. Em suma, a Constituição Federal ressalta a igualdade entre os filhos e os cônjuges, e reconhece que são detentores de direitos e obrigações recíprocas. O Código Civil (CC/02) expressa a importância da proteção às estruturas familiares por parte do Estado, tendo em vista o bem-estar social dos entes, de modo que os interesses sociais devem prevalecer sobre os individuais, ou seja, o Direito de Família se trata de um direito privado e sua formação possui caráter particular, que valoriza a liberdade das partes de contrair matrimônio, dissolver e controlar a natalidade. Para Adriana Maluf6 É difícil o equilíbrio entre as normas de ordem pública e os acordos privados em matéria de família, pois privilegiar o contrato em detrimento das normas de ordem pública familiar desnatura essa sociedade particular e dificulta a plena inserção do indivíduo na sociedade global; por outro lado, um apego exacerbado às normas de ordem pública familiar impede o contrato de produzir plenamente os efeitos que lhe serão inerentes. Apesar da atualização do Código Civil, nota-se a necessidade de nova interpretação do texto normativo, a fim de que não se façam aplicações inequívocas, que possam limitar ou dirimir o direito à dignidade humana e à igualdade para estes novos grupos conjugais. 2.1 Breve histórico sobre as formações familiares Segundo Coulanges7, no Direito Romano, a família era o conjunto de pessoas colocadas sob o poder do paterfamilias, de cunho patriarcal, em que as pessoas eram consideradas bens móveis e estavam sujeitos ao mesmo culto religioso. Não necessariamente o paterfamilias deve ser o pai, ou seja, basta que seja o chefe efetivo ou em potencial, a quem se confia o grupo domestico. E ainda, que a família 5 SANTOS, Anna Isabella de Oliveira; VIEGAS, Cláudia Mara A. R. Poliamor: conceito, aplicação e efeitos. In: Caderno do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir./UFRGS, Porto Alegre: Edição Digital, vol. XII, n. 2, 2017, p. 368. 6 MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabus, apud TERRÉ, François. In: Novas modalidades de família na pós-modernidade. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2010. P. 125 – 126 7 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa. São Paulo: Edameris, 2006. 21 não estava fundada em laços de afetividade, importando apenas a formação da prole, para que não se desfizesse a continuidade de culto aos mortos. O casamento era considerado o precursor de legitimidade da prole e da manutenção da entidade familiar, portanto, era um ato obrigatório na sociedade. Estavam submetidos à patria potestas: a materfamilias (mulher casada, sob o poder do marido), filius e filiasfamilias, descendentes destes e suas esposas (cummanu), os netos, escravos (dominica potestas) e pessoas in mancípio (similares aos escravos). Assim, a família romana tinha como pilar o patriarcalismo, a monogamia e a autonomia. Insta salientar que a monogamia não evitava relações extramatrimoniais, como por exemplo, em casos em que o homem não podia ter filhos, a mulher podia se relacionar com um dos parentes do marido, a fim de procriação. Existiam ainda além do casamento (matrimonium ou justae nuptiae), outras formas de união, sendo: concubinatus (que não nivelava socialmente a mulher ao marido), matrimonium sine connubio (tratava-se da união entre romanos e peregrinos, e era considerado um matrimônio injusto), contubernium (união de fato entre escravos ou pessoas livres, com escravos, não gerando consequências jurídicas), casamento entre peregrinos. Destas relações, ressalta-se que os parentes eram reconhecidos como agnatos (parentesco civil), os cognatos (parentesco sanguíneo), e os parentes por afinidade, sendo que apenas aos agnatos observavam-se os efeitos sucessórios. E comente com Justiniano é que foi possível o reconhecimento do parentesco apenas de forma sanguínea. O concubinato somente passou a ser considerado como união legítima através da Lei Julia de adulteriis, e conferiu aos concubinos a obrigação de fidelidade. No que tange ao segundo matrimônio, Maluf8 aponta que somente era possível após o prazo de dez meses após a morte do marido ou doze meses no caso de divórcio. Caso não respeitados tais prazos, o novo casamento era considerado como uma ofensa à memória do marido, o que gerava danos patrimoniais à mulher. 8 MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabus, apud PEROZZI, Silvio. In: Novas modalidades de família na pós-modernidade. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2010. 22 A viúva que não se casasse em um ano ou a divorciada que não fizesse em seis meses, estipulada pela Lex Julia de maritandis ordinibus de 736 aC, posteriormente alterada pela Lex Pappia Poppaea de 9 dC, do tempo de Augusto, que alterou esse prazo para dois anos e dezoito meses, impunha a mulher caelibe a incapacidade de fazer qualquer aquisição por testamento (por força do costume deveria estar vivendo maritalmente o homem com idade entre 25 e 60 anos e a mulher de 20 a 50 anos, respectivamente).9 Apenas no século IV dC, com Constantino Magno, a família romana ganhou novos olhares, passando a possuir uma concepção cristã, formada pelo casal e seus filhos, tendo a Igreja o poder de legislar sobre a sua estrutura, ou seja, o casamento deixou de ser um contrato e passou a ser um sacramento dotado de grande valor moral. Existiam ainda, impedimentos para o casamento, baseados na bigamia e incesto; e o divórcio era impossível, devido à premissa católica de indissolubilidade do casamento. Para os bárbaros, o casamento era reconhecido em duas modalidades: por rapto e por compra, sendo que neste último, a vontade da mulher não era levada em consideração. Apenas com a evolução dos tempos, foi que a Igreja Católica passou a interferir neste tipo de casamento, passando a permitir que a mulher consentisse e não mais fosse tratada como objeto, fazendo com que sua essência passasse a ser a vontade das partes. Após da Revolução Francesa, o casamento passou a ser definido pela Constituição Francesa de 1791, como contrato civil (art. 7, título 2), e permitiu, em 1792, o divórcio por lei. A partir disso, Maluf10 afirmam que o casamento se tornou uma união livre, em que os cônjuges poderiam formar e dissolver observando as formalidades estabelecidas pela lei. Durante o período colonial e Império, o Brasil considerava o casamento como a única fonte formadora da família, sendo um contrato social necessário à inclusão na sociedade. 9 MALUF, Adriana apud PEROZZI, Silvio. In: Novas modalidades de família na pós-modernidade. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2010. 10 MALUF, Adriana apud MAZEAUD, Henri et Leon; MAZEAUD, Jean. In: Novas modalidades de família na pós-modernidade. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2010. 23 Ocorre que Direito de Família sofreu alterações ao longo dos anos, e o Código Civil de 1916 trouxe a possibilidade do reconhecimento da família natural, a independência da mulher, a afetividade, igualdade e emancipação dos filhos, entre outros fatores. Cresceu ainda, o número de agrupamentos familiares, advindos de junções paralelas à família matrimonializada, e o de famílias chefiadas por mulheres que viviam sozinhas com os filhos. Logo, notou-se uma mudança significativa dos valores e dos costumes em consequência da evolução legislativa. Já no século XX, já com a modernização social, a família passou a se fundar na sua função afetiva, privilegiando os indivíduos que compõem a família, igualando os filhos, possibilitando a independência da mulher, o surgimento do divórcio, e deixando de lado a sua função reprodutiva, ou seja, a partir do século XX aos membros foi reconhecido o direito à dignidade da pessoa humana. Em resumo, Hironaka11 aponta que A família é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos, a história da família se confunde com a própria humanidade. E Dias pondera ainda12 Na ideia de família o que mais importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças e valores, permitindo a cada um sentir-se a caminho da realização de seu próprio projeto de felicidade pessoal – a casa, o lar, a prosperidade e a imortalidade na descendência. Através destas avaliações, é possível dizer que a família contemporânea se tornou menos conservadora, mais humanizada e voltada ao respeito à dignidade e direitos humanos, possibilitando que novas modalidades surjam, sejam reconhecidas e que tenham devida proteção do Estado. 11 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito Civil: estudos. Belo Horizonte: Del Reyu, 2000. P. 17-18. 12 DIAS, Maria Berenice apud HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. In: Casamento: nem direitos nem deveres, só afeto. 01 de setembro de 2010. P. 1 24 2.1.1 A família para a Constituição Federal de 1988 Até 1988, o casamento era o único vínculo familiar reconhecido no Brasil, sendo ele considerado como ato formal e litúrgico. Essa espécie se fundava nas questões da moralidade, com total intervenção do Estado e da religião, como uma forma de manter a ordem social e regular, portanto, as relações conjugais. Após a promulgação da Constituição Federal, o Estado passou a organizar e correlacionar os anseios sociais e seus valores, estabelecendo conceitos novos de família, e ainda imputando reflexos civis e penais, de forma que fossem respeitados e libertos de quaisquer tipos de discriminação. Isto posto, Bahia13 conclui que Com a Constituição de 1988, todo o ordenamento jurídico e toda a atividade legislativa ficaram condicionados à observação e cumprimento dos princípios fundamentais elencados no artigo 1º da Constituição Federal e dos objetivos fundamentais previstos em seu artigo 3º, donde advém que o cerne do sentido passa a ser a valorização do ser humano, e sua efetiva proteção. Baseado na regulamentação do instituto do casamento pela CF/88, temos que pela quantidade de exigências essenciais para a celebração do casamento, pouco vale a vontade dos nubentes, tendo em vista que, os direitos e deveres são instituídos até mesmo depois da dissolução da sociedade conjugal. Ocorre que a sociedade sofreu mutações ao longo dos anos, e alegislação teve que se readaptar às novas realidades. Hoje, o que podemos ver, é que a família não pode ser reconhecida apenas como a compreendida na Constituição, mas como aquele ambiente que possui dois requisitos basilares: a afetividade e a estabilidade. Podemos concluir a partir daí, que existem duas teorias sobre a forma de concepção da família: a primeira aponta ser o casamento o principal vínculo de família. Os adeptos desta corrente apontam que os artigos 226, §1º e §2ª da CF topograficamente privilegiam o casamento. Em verdade, o artigo 226, §3º, da Constituição Federal, ao estabelecer que a lei deva facilitar a conversão da união estável em casamento, de certa forma, dá o tom da preferência do Constituinte pelo casamento. 13 BAHIA, Cláudio José Amaral. A natureza jusfundante do direito à família. Revista do IASP, São Paulo, ano 11, n. 22, p. 21 jul./dez. 2008. 25 E a segunda corrente, que defende o princípio da isonomia entre os vínculos familiares, estabelece que o casamento seja apenas uma das formas de família, baseando sua tese nos artigos 5º e 226 da CF, bem como no projeto do Estatuto das Famílias (Projeto nº 2.285/2007). A Constituição Federal reconhece hoje, como entidade familiar, aquela advinda do casamento, da união estável e a monoparentalidade, conferindo-lhes assim, caráter de legitimidade, o que possibilita o direito de igualdade, sem a distinção de qualquer natureza, seja ela origem, raça, sexo, cor, religião ou idade. Baseiam-se na realização e desenvolvimento da personalidade de seus membros, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Pereira14 afirma que “a família é uma estruturação psíquica onde cada integrante possui um lugar definido, independente de qualquer vínculo biológico”. Lôbo15 ressalta ainda que Somente com a Constituição de 1988, cujo capítulo dedicado às relações familiares pode ser considerado um dos mais avançados dentre as constituições de todos os países, consumou-se no término da longa história da desigualdade jurídica na família brasileira. Em normas concisas e verdadeiramente revolucionárias, proclamou-se em definitivo o fim da discriminação das entidades familiares não matrimonializadas, que passaram a receber tutela idêntica às constituídas pelo casamento (caput do art. 226), a igualdade dos direitos e deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal (§ 5 do art. 226) e na união estável (§ 3 do art. 226), a igualdade entre filhos de qualquer origem, seja biológica ou não biológica, matrimonial ou não (§ 6 do art. 227). Logo, cabe dizer que a família não existe devido ao reconhecimento legal, e sim por traços estruturais da realidade social e suas eventuais mudanças. Ou seja, a Constituição rompeu o ideal de hierarquização, se fundando atualmente, na consagração de uma família plural e eudemonista, tendo como pilar o princípio da igualdade. 14 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e dignidade humana. Anais... Belo Horizonte: IBDFAM, 2005a, p. 20. 15 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 23 26 2.1.2 A família para o Código Civil de 2002 Ao abandonarmos o Código Civil Brasileiro de 1916, abandonamos a tradição de família patriarcal romana, considerada modelo ideal à época de sua elaboração. Hoje, o atual Código Civil (CC/02) reconhece como entidade familiar, a união estável entre homem e mulher, desde que esteja configurada de forma pública, contínua e duradoura, como consta no artigo 1.72316. Reconhece ainda alguns dos novos modelos familiares, que se classificam como: família matrimonial; concubinato; união estável; família monoparental; família anaparental; família pluriparental; eudemonista; família ou união homoafetiva; família paralela; família unipessoal. E estabelece a existência de dois graus de parentesco: o consanguíneo ou natural, e o por afinidade ou civil. Na família contemporânea, todos os seus membros possuem direitos individuais, sendo proibidas quaisquer distinções discriminatórias com relação à filiação. Seu artigo 1.634 estabelece que aos pais cabe, independente de sua relação conjugal: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. 17 Reiterando assim, o que descreve o art. 226, § 5 da CF/88: "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". O que se nota com isto, é que a instituição familiar não se configura hoje como proveniente apenas do casamento. Assim, é necessário que os Tribunais 16 Art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.§ 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.” BRASIL. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil: Planalto. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan 2002. [2019]. 17 BRASIL. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil: Planalto. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan 2002. [2019]. 27 realinhem suas jurisprudências, a fim de que os direitos de todos os membros das relações familiares sejam resguardados. 2.2 O novo conceito de entidade familiar A família está atualmente caracterizada como uma entidade flexível, que se reproduz ao longo dos séculos, tanto no âmbito público, quanto no privado, de acordo com o interesse da sociedade e da mudança de paradigmas. Sob esse aspecto, o Estado busca distinguir as pessoas da relação, segundo o entendimento de Venosa18, entre casadas, conviventes, solteiras, separadas judicialmente, divorciadas, parentes consanguíneos ou afins. O conceito de família paralela vem sendo enfrentado com divergência perante o Poder Judiciário. Muito já se disse sobre os múltiplos arranjos familiares, que sempre foram uma realidade, porém nem todos são protegidos pelo Estado por meio da jurisdição. Ocorre, porém, que a família possui uma diversidade de direitos, deveres e obrigações, logo, suas solicitações visam reafirmar sua existência e reconhecer que geram efeitos jurídicos. Para Dias19, a família simultânea se compara ao concubinato, que está baseado na má-fé, mas essa questão vai além da boa e má-fe, pois cada vez mais essas famílias se tornam uma realidade cada vez mais presente na sociedade. Assim, tendo em vista a importância dos princípios constitucionais que regem o Direito de Família, se vê a necessidade da sociedade em reconhecer a pluralidade das entidades familiares. Portanto, os princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do pluralismo são de extrema relevância para analisar a família paralela. Conforme explica Couto20 em seu artigo “Famílias paralelas e poliafetivas”, para que haja uma entidade familiar, ante o princípio da pluralidade de entidades familiares e conforme a norma aberta e de inclusão do art. 226 da CF, que retirou do casamento a exclusividade de modelo familiar, há necessidade de se verificar três elementos: afetividade, estabilidade e ostensibilidade.18 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 9. Ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 160-161 19 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família. 10. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. P. 282. 20 COUTO, Cléber. Famílias paralelas e poliafetivas. Jusbrasil, 07/2015. 28 Além disso, utiliza-se a afetividade para caracterizar a entidade familiar, que não se baseia em qualquer afeto e sim um afeto especial – considerado como valor jurídico. O afeto familiar se caracteriza pelo animus de constituição de família: o desejo dos familiares compartilharem a mesma vida, o afeto é um dos elementos responsáveis pela constituição das relações familiares. Fiuza e Poli21 esclarecem que O conceito de família hoje decorre do seguinte: família para a promoção do indivíduo, sua autonomia e pleno desenvolvimento da personalidade; família sem necessário casamento, pautada na igualdade entre os filhos e entre os genitores. Em todos os lares onde houver pessoas ligadas, seja por laços de sangue ou não, unidas pelo afeto, pelo plano de concretização das aspirações de cada uma delas e daquele núcleo como um todo, concatenadas e organizadas econômico e psicologicamente, haverá uma família. Além disso, segundo destaca Krapf22, para que o paralelismo familiar se verifique, seja concomitantemente a um casamento ou a uma união estável, é necessário que sejam preenchidos requisitos, que se parecem muito com os pressupostos para a configuração da própria união estável, a demonstrar estabilidade e ostensibilidade no vínculo afetivo, uma vez que não se pretende a tutela de relações eventuais, mas sim a proteção aos partícipes e porventura filhos da união estável paralela. No mesmo sentido também é o entendimento de Almeida23, que retrata que “a família paralela como outros fenômenos sociais que buscaram o reconhecimento jurídico, precisa vencer barreiras e principalmente romper um dos parâmetros sociais de maior carga dogmática, qual seja o ideal de monogamia”. Insta salientar que os relacionamentos “esporádicos”, pelo fato de não serem considerados estáveis, juridicamente falando, não se enquadram no âmbito das relações familiares, logo não recebem proteção à luz da legislação. 21 FIUZA, César; POLI, Luciana. Núcleos familiares concomitantes: (im)possibilidade de proteção jurídica. Fortaleza: Pensar. V. 21, n. 2, p. 631, mai/ago. 2016. 22 KRAPF, Alessandra Heineck. Famílias Simultâneas: Reflexos Jurídicos a partir de uma perspectiva constitucional e jurisprudencial. 2013. 23 ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson Rodrigues. Direito Civil Famílias. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2010. 29 3 O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL E A HERMERÊUTICA CONSTITUCIONAL O Estado Democrático de Direito é compreendido como “governo do povo”, que atua sob os limites da legislação e busca atender os anseios da sociedade. Neste contexto, a Constituição Federal firma em seu preâmbulo, que tem o objetivo de instituir um Estado Democrático Destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.24 Gustavo Tepedino25 mostra que para que se tenha correta aplicação do Direito Civil é necessário um novo modelo interpretativo da lei, em que o Código Civil associe normas que descrevem valores e parâmetros hermenêuticos, e ainda que o intérprete legislativo promova a conexão entre o CC/02 e a CF/88, que define tais valores e princípios fundamentais à ordem pública. A constitucionalização do Direito Civil influencia diretamente nas relações privadas, pelo fato de ser interpretado e, consequentemente, aplicado observando valores e princípios descritos na Constituição, com destaque ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao princípio da igualdade. Tepedino ainda aponta que existem quatro características centrais da técnica legislativa contemporânea26: a narrativa, que permite uma atuação aprimorada e conjunta dos valores jurisprudenciais e dos valores sociais; a busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade dos critérios hermenêuticos, através da definição dos princípios que devem ser tutelados, possibilitando esclarecer os aspectos que definem a identidade cultural, de modo que tenha total integração entre o caso concreto e o preceito normativo; a ampliação 24 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. 25 TEPEDINO, Gustavo (Coordenador). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, 3. ed. rev. p. XV 26 TEPEDINO, Gustavo (Coordenador). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, 3. ed. rev. 30 dos mecanismos de tutela da personalidade, que deve ser considerada um valor jurídico, de maneira mais ampla, visto que o modelo do direito subjetivo tipificado atualmente é insuficiente para atender todas as demandas pleiteadas juridicamente; e a construção de doutrinas que abordem os direitos de personalidade, bem como a tipificação de situações previamente estipuladas, nas quais pudesse incidir o ordenamento, a fim de que não se camufle a realidade. A era da modernidade fez surgir um novo modelo constitucional, e, consequentemente, uma nova ordem social, jurídica e política. Posto isto, a CF se apresenta como o documento catalisador dos ideais e das exigências modernas. Sendo, portanto, símbolo dessa nova filosofia. A idealização da Constituição escrita teve o objetivo de propagar as conquistas e trazer segurança ao homem. Que são segundo Baracho27: a) Crença na superioridade da Constituição escrita sobre a Constituição costumeira por, justamente, atribuir maior certeza à conquista dos direitos; b) Proporcionar a ideia de renovação do Contrato Social; c) Representar um insuperável meio de educação política, difundindo entre os cidadãos o conhecimento de seus direitos. Neste sentido, Canotilho28 aponta que Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. Desta forma, esclarece-se que a constitucionalização escrita foi o marco inicial para a consagração do Princípio da Supremacia da Constituição. A Hermenêutica Constitucional possui problemas interpretativos que a diferenciam da Hermenêutica Jurídica Clássica, no que se referente à originalidade, hierarquia, supremacia da constituição e o fato dessa ser fonte normativa. Ocorre que se considera que há apenas uma Hermenêutica, no sentido que a interpretação da Constituição não se diferencia da interpretação das demais leis. 27 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral das constituições escritas. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1985, v. 60/61 28 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 47. 31 E ainda, Hesse29 estabelece que existe apenas uma Hermenêutica Jurídica, que traça novos critérios de interpretação, sendo sustentados pela: unidade da Constituição, a concordância prática entre o conflito e os bens protegidos, a exatidão funcional no que se refere à separação dos poderes, o efeito integrador, a força normativa da Constituiçãode forma atualizada e efetiva, e a interpretação conforme o padrão constitucional, descartando então os sentidos ambíguos ou indeterminados. Assim, a Hermenêutica Jurídica é a arte de interpretar e determinar o alcance do Direito, sendo sua aplicação realizada de forma justa e equilibrada. Tal equilíbrio somente será alcançado a partir do desenvolvimento do chamado senso de adequabilidade que, segundo Günther30, é a necessidade de adequar o discurso normativo à situação fática. O que se deve ter claro na mente do legislador é que a interpretação dos textos normativos, doutrinas e jurisprudências necessita ocorrer de forma delicada, jamais sendo de forma automática, mecânica, devido ao fato de a interpretação sofrer mutações, assim como a realidade social. Tendo em vista os anseios e transformações da sociedade, faz-se necessária a atualização periódica do ordenamento jurídico, para que não se façam interpretações errôneas e muito menos, que algum direito seja negado/violado. 29 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. 30 GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and law. Trad. John Farrell. Albany: State University of New York Press, 1993, p. 215 et seq. 33 4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS NO DIREITO DE FAMÍLIA Antes de especificar os princípios que regem as relações familiares, é preciso ter em mente que eles não podem ser aplicados integralmente e de forma definitiva, pois necessitam de interpretação Assim, os princípios, quando colidem, devem ser ponderados, analisados e aplicados em observância ao caso concreto. Devemos estabelecer que o princípio da dignidade humana, estabelecido no art. 1º da CF/88, visa orientar toda a sociedade e ser o pilar do Estado Democrático de Direito, que busca a justiça e a equidade de seus membros. Mas que existem outros princípios aplicáveis no direito de família. Robert Alexy31 pondera ainda que princípios não se confundem com valores, pois princípios expressam dever, proibição, permissão ou direito a algo, enquanto os valores estão ligados à classificação do que é bom ou ruim, ou seja, há uma hierarquização ou uma preferibilidade. Deste modo, em se tratando de ponderação, o que se analisa são as normas e os princípios, não os valores que possam vir a conter. Segundo Dworkin32, [...] a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é a natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. [...] Mas não é assim que funcionam os princípios [...] Um princípio [...] não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção. Em resumo, para que haja uma aplicação justa do Direito em uma sociedade mutante, as normas devem ser interpretadas de acordo com o aspecto histórico, com os princípios e valores que eles possuem. 31 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 153. 32 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, 1. Ed. p. 39-41. Disponível em: 34 4.1 Princípio do livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada membro da entidade familiar A CF/88 estabelece que a pessoa humana e a sua liberdade para desenvolver, se expressar e adquirir personalidade, são os pilares dos direitos humanos. Sobre a liberdade de construção da personalidade como um todo, e não apenas no ambiente familiar, Moreira33 pontua: Este direito leva em consideração a autodeterminação da individualidade humana. A pessoa, como dona do seu próprio destino, escolhe cotidianamente os rumos da sua vida. Ao Estado e aos agentes particulares cabe respeitar (abstenção) e promover os meios para a realização destas decisões existenciais. Esta liberdade sofre limitações externas, no que diz respeito ao interesse de terceiros e os demais direitos fundamentais, constitucionalmente estabelecidos. Ocorre, porém, que o legislador não pode interferir em tal agrupamento, pelo falo de que a liberdade no seio familiar seja observada de acordo com a observação social dos fatos, possibilitando que os seus integrantes determinem a forma de constituição e direção, ou seja, faz com que a família tenha um caráter dinâmico. 4.2 Princípio da pluralidade de entidades familiares Podemos afirmar que hoje, a família possui diversas formas de constituição, que se modificam de acordo com o contexto histórico, as necessidades e interesses sociais. A Constituição e o Código Civil se encarregam de estabelecer os modelos de entidade familiar, o que proporcionou uma evolução do Direito de Família. O que ocorre atualmente é que o texto normativo não é atualizado na medida em que a sociedade muda, desta maneira, a doutrina e a jurisprudência começaram a adotar novas modalidades de família. O pluralismo das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o 33 MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao livre desenvolvimento da personalidade: proteção e promoção da pessoa humana. Curitiba: Juruá, 2016. P. 14. 35 aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família. A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família.34 Considerando que o Código Civil de 2002 retrata apenas alguns modelos de família, classificamos as espécies de família da seguinte forma: família matrimonial, concubinato, união estável, família monoparental, família anaparental, família pluriparental, eudemonista, família ou união homoafetiva, família paralela, família unipessoal. Sendo os fatores necessários para a construção das entidades familiares: afetividade, estabilidade, ostensibilidade e animus familiae. Logo, a família que atualmente se busca fomentar é aquela comprometida com a união estável, cooperativa e voluntária dos seus membros, cumprindo a função basilar de proteger seus integrantes de forma solidária. 4.3 Princípio da solidariedade familiar A ideia de solidariedade está ligada à responsabilidade entre os membros, em busca de respeito, cooperação, auxílio material, tolerância e desenvolvimento de um ambiente feliz e harmonioso, onde todos são tratados como iguais. Este princípio é complementar da dignidade da pessoa humana, pelo fato de que no seio familiar, a solidariedade é o meio que se busca o crescimento e a realização individual de seus membros. Nas palavras de Dias35, conclui-se que, [...] ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa- se o Estado do encargo de prover uma gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (CF 227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação. Desta forma, pode-se afirmar que a solidariedade familiar impõe confiança e lealdade entre aquelesque compõem a família. E neste sentido, pode-se dizer que 34 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11.ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais, 2015. 35 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias – de acordo com o novo CPC. 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 36 nas famílias paralelas ou simultâneas, a solidariedade justifica a lealdade e confiança entre os conviventes. 4.4 Princípio da igualdade A evolução social permitiu que a mulher ganhasse direitos e deveres dentro da sociedade conjugal. Desapareceu o poder do pater familias, a submissão e a única função de cuidar da casa, do marido e dos filhos. Ou seja, a mulher passou a ter condições de igualdade. Esta paridade entre os cônjuges está prevista no art. 226, § 5 da CF/88. A condição de igualdade não foi dada apenas às mulheres, mas também aos filhos, que passaram a ser reconhecidos, independente de serem legítimos, adotivos ou naturais, vedando assim, qualquer possibilidade discriminação. Ainda no esclarecimento de igualdade familiar, Moraes36 afirma que: O modelo democrático de família pressupõe justamente a existência de uma pluralidade de estruturas familiares, nenhuma delas apresentando legitimidade superior, na medida em que todas manifestam igual potencial de desenvolver as funções intrínsecas à família. Este princípio proíbe então, qualquer tipo de distinção ou hierarquização tanto para com os indivíduos, quanto para as entidades familiares, principalmente devido à pluralidade de suas estruturas. 4.5 Princípio da liberdade Este princípio está relacionado à menor intervenção do Estado no seio familiar, por ser considerado um ambiente íntimo. Cabe aos seus membros à liberdade para, segundo Alves37: “constituir ou extinguir a entidade, para adquirir e administrar o patrimônio familiar, no planejamento familiar, na formação dos filhos etc”. E completa dizendo 36 MOREAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudo de direito civil- constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 224 37 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Direito de família mínimo: a possibilidade de aplicação e o campo de incidência da autonomia privada no direito de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. P. 145. 37 Em verdade, o Estado somente deve interferir no âmbito familiar para efetivar a promoção dos direitos fundamentais dos seus membros – como a dignidade, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, etc. –, e, contornando determinadas distorções, permitir o próprio exercício da autonomia privada dos mesmos, o desenvolvimento de sua personalidade e o alcance da felicidade pessoal de cada um deles, bem como a manutenção do núcleo afetivo. Em outras palavras, o Estado apenas deve utilizar-se do Direito de Família quando essa atividade implicar uma autêntica melhora na situação dos componentes da família.38 Dito isto, Fugie e Carvalho Neto39 esclarecem que: As relações jurídicas do casamento, união estável, adoção e reconhecimento dos filhos nascem de atos voluntários, do exercício de liberdade, que, entretanto, uma vez realizados, submetem-se às normas cogentes, de interesse público, assumindo na maior parte dos casos o caráter de dever. A liberdade é, portanto, indispensável para a felicidade, afeto e convivência comum dos entes familiares, pois o indivíduo, dotado de razão e consciência, é capaz de decidir o que é melhor para si, sendo então um direito essencial para toda a sociedade. Ou seja, a liberdade na concepção, manutenção e atribuição de direitos deve ser vista como necessária para a promoção da dignidade, da autonomia privada, da solidariedade e do pleno desenvolvimento da personalidade de seus membros. 4.6 Princípio da boa-fé objetiva Este princípio diz respeito à boa-fé dos companheiros dentro da união estável, no que tange ao conhecimento da existência de uma família paralela à primeira união (a união legal), ou seja, a transparência mútua entre os familiares. Não há de se falar em putatividade da união, pelo fato de ser reconhecida por todos que compõem a relação, podendo citar como exemplo: a mulher que é casada com o marido e com ele têm bens e filhos, sabe que o marido possui relação, família e bens com uma terceira pessoa. Insta salientar, que esta terceira relação, para que 38 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Direito de família mínimo: a possibilidade de aplicação e o campo de incidência da autonomia privada no direito de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. P. 145. 39 CARVALHO NETO, Inácio de; FUGIE, Érika Harumi. Novo Código Civil comparado e comentado: direito de família. Curitiba: Juruá, 2002, v. 6, p. 7. 38 se considere união paralela, é necessário que tenha os seguintes requisitos caracterizadores da entidade familiar. A boa-fé objetiva está baseada na honestidade, não podendo dizer que haverá um prejudicado na relação, visto que a todos serão conferidos direitos sucessórios, em caso de falecimento do cônjuge que possuir duas famílias. Embora não conste no Código Civil e nem da Constituição Federal, a união paralela não é um fato a ser negado pela jurisprudência e pela legislação, visto que a sociedade sofre constantes modificações, e negar às famílias os direitos que lhes cabem, é negar-lhes direitos constitucionais. Cabe lembrar que os elementos formadores da família contemporânea são: a afetividade (sentimento de amor, respeito, carinho), a vontade de constituir família, e ainda devendo ser uma relação pública, contínua e duradoura; o que confere aos participantes direitos e obrigações. 39 5 A MONOGAMIA COMO VALOR SOCIAL E AS FAMÍLIAS PARALELAS 5.1 Do conceito de monogamia Monogamia, para Ruzyk 40, pode ser entendida como a relação conjugal entre um homem e uma mulher, na qual os cônjuges devem preencher requisitos formais estabelecidos pelo Estado, e possuem o intuito de formar um ambiente familiar, não podendo possuir mais de uma união com mais de uma pessoa. Pelo fato de o casamento ser um contrato mútuo de vontades, qualquer tipo de relação diferente deste modelo é visto como uma afronta ao “sistema” de regras morais. Ocorre, porém, que monogamia e fidelidade não são sinônimos, não podendo então ser aplicados juntos. A fidelidade desta forma trata-se de uma escolha pessoal, logo, o Estado não é capaz de controlar tal comportamento. A diversidade de estruturas familiares demonstra que não existe mais o temor de abandonar a estrutura familiar antigo, enraizado na sociedade como única relação (legítima) e aceita pelos ditames religiosos. Elevar a monogamia à categoria de princípio constitucional é um retrocesso, visto que é claro que esta característica não passa de um valor de conduta moral enraizado pela Igreja Católica, e ainda, negar o reconhecimento e proteção dos diversos núcleos familiares que vêm surgindo através dos tempos. Neste contexto, Lana e Rodrigues Júnior41 expõem que A monogamia apresenta-se como um valor, resquício da influência religiosa no ordenamento jurídico. Não parece que tenha natureza normativa, apresentando-se como um valor a ser considerado e desejado. Valores pertencem ao âmbito da axiologia, a refletir o conceito de bom; suas avaliações serão consideradas a partir do melhor ou pior. 40 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas e Monogamia. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: Thomson, 2006, p. 197 41 LANA, Fernanda Campos de Cerqueira; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. O direito e a falta de afeto nas relações paterno filiais. In: FIUZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira;SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito Civil: Atualidades IV – teoria e prática no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 267. 40 A monogamia somente será relevante para o Direito de Família quando violar o princípio e direito à dignidade da pessoa humana, logo, não cabe ao Direito fazer juízo de valor, considerando que as demais relações contrariam a moral e a ética, somente pelo fato do seu uso repetitivo na sociedade, como sendo referência de modo de vida e forma de se relacionar. O fato é que a monogamia deixou de ser uma realidade única, devendo, portanto, o legislador reconhecer os diversos elementos formadores das novas relações familiares, se adequando a realidade e não se apegando à dogmática. 5.1.1 A família monogâmica na sociedade A Igreja Católica, pelo Concílio de Trento42, reconheceu o matrimônio como união indissolúvel, no qual os cônjuges tinham o dever de serem fiéis, e sendo o adultério um pecado imperdoável. Porém, a sociedade atual não pode ser considerada como monogâmica. O que podemos notar é que os relacionamentos, não apenas matrimoniais, estão cada vez mais abertos, com traições, ou até mesmo relacionamentos em que o casal, de comum acordo, busca outros parceiros para ingressar em seu meio (o que alguns chamam de “trizal”). Estar em um relacionamento com alguém seja de forma matrimonial ou não, não garante que o parceiro seja fiel, afastando ainda mais a ideia de monogamia. Desde a antiguidade a monogamia não é respeitada. Voltemos ao modelo familiar romano, em que a mulher casada com o homem que não podia ter filhos, deveria se relacionar com um dos parentes do cônjuge, a fim de procriação. Não era então, considerado traição, muito menos seria passível de divórcio. Citemos ainda, as relações entre os animais. O macho não está ligado à fêmea logo após a cópula. Seu único “interesse” é a reprodução de seu gene, independente da quantidade de fêmeas que fertilize. Logo, não podemos dizer que existem evidências biológicas ou antropológicas que sustentem a monogamia como algo natural das uniões. 42 O Concílio de Trento foi o 19º conselho ecumênico reconhecido pela Igreja Católica, convocado pelo papa Paulo III, em 1542, e durou entre 1545 e 1563. Teve esse nome, pois foi realizado na cidade de Trento, no norte da Itália. O principal objetivo do Concílio de Trento era reafirmar os dogmas da fé católica frente à disseminação do protestantismo. 41 Outra coisa que devemos levar em consideração, é o fato de afirmar que “algo é de um jeito”, pois o tempo muda com o passar do tempo, assim como os costumes, os valores, os pensamentos, e as leis. A sociedade passou (e passa) por modificações constantes, e no que diz respeito às formações familiares, por exemplo, surgiram várias, além daquelas advindas do casamento. Então porque dizer que a situação monogâmica não é mutável? Os doutrinadores tratam a monogamia como uma regra de comportamento civil, e que a poligamia afeta a moral e os bons costumes, além de ser contrária à orientação da Igreja. Neste sentido, Silva43 explica que, [...] no senso comum dos juristas, trata-se (a monogamia) de um dogma, isto é, uma verdade proclamada a priori. Uma vez proclamada, ela necessita apenas de amparos argumentativos ou de justificação legitimadora. Dias44 ainda ensina que: Ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla. Ao contrário, tanto tolera a traição, que não permite que os filhos se sujeitem a qualquer discriminação, mesmo quando se trata de prole nascida de relações adulterinas e incestuosas. O Estado tem interesse na mantença da estrutura familiar, a ponto de proclamar que a família é a base da sociedade. Por isso, a monogamia – que só é monogamia para a mulher – não foi instituída em favor do amor, mas mera convenção decorrente do triunfo da propriedade privada sobre o estado condominial primitivo. Em ideia contrária a maioria dos doutrinadores, Fisher45 aponta Our concept of infidelity is changing. Some married couples agree to have brief sexual encounters when they travel separately; others sustain long- term adulterous relationships with the approval of a spouse. Even our concept of divorce is shifting. Divorce used to be considered a sign of failure; today it is often deemed the first step toward true happiness.46 43 SILVA, Marcos Alves da. Da monogamia: a superação como princípio estruturante do direito de família. Curitiba: Juruá, 2013, p. 141. 44 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 58. 45 FISHER, Helen. The new monogamy: foward to the past: na author and anthropologist looks at the future of love. The futurist, Bethesda, v. 44, n. 6, nov./dez. 2010, p. 27 46 “Nosso conceito de infidelidade está mudando. Alguns casais concordam em ter encontros sexuais breves quando viajam separadamente; outros sustentam relacionamentos adúlteros de longo prazo com a aprovação do cônjuge. Até mesmo nosso conceito de divórcio está mudando. O divórcio costumava ser considerado um sinal de fracasso; hoje é muitas vezes considerado o primeiro passo 42 As pessoas estão condicionadas a pensar que o casamento heterossexual, monogâmico e indissolúvel é a única forma correta de relacionamento, e que comportamentos contrários desencadeiam perturbações e são considerados desrespeitosos, moralmente falando. O reconhecimento da família pelo ordenamento como fenômeno social, e não como modelo de obter propriedade, procriação e desenvolvimento da prole, fez com que esta situação jurídica (o casamento) deixasse de ser uma imposição e passasse a ser objeto de livre escolha do casal, e em razão desta liberdade, não devem ser impostas condições extremas para a sua formação (como a exigibilidade de que seja uma relação monogâmica ou que seja uma relação heterossexual - como já observamos hoje, com a existência das relações homoafetivas). Assim, a família se constitui atualmente, pelo desejo de seus membros, respeitando os requisitos mínimos legais, de forma que não importa se monogâmico ou não, e sim a escolha de todos os indivíduos. Vale lembrar ainda, que pelo princípio da pluralidade familiar, não se pode dizer que o rol descrito no CC/02 e na CF/88 é taxativo. Desta forma, a simultaneidade conjugal consiste na formação de duas ou mais famílias, em que um ou ambos ou cônjuges formam núcleos familiares distintos - que se caracterizam como um único núcleo familiar -, na condição de companheiros, sendo pautada na honestidade, consenso, ética e confiança, e ainda de forma estável, ostensiva, afetiva e com intuito familiae. Sobre a imposição da monogamia e a aceitação desta nova estrutura familiar, indaga Santos47: Será que o conceito de família não evoluiu ao ponto das práticas poligâmicas serem alvo de aceitação como um sistema integrado a par da monogamia? De quem é o interesse maior em relação à intangibilidade do preceito monogâmico? Justificar-se-á que a violação do preceito para a verdadeira felicidade.” FISHER, Helen. The new monogamy: forward to the past: an author and anthropologist looks at the future of love. The futurist, Bethesda, v. 44, n. 6, nov./dez. 2010, p. 27. In: SANTOS, Maria Alice de Souza. Famílias simultâneas no direito brasileiro: a boa-fé no reconhecimento e na partilha de bens. (Tese). Belo Horizonte. 2017. p. 56. 47 SANTOS, Marina Alice de Souza Santos. Famílias simultâneas no direitobrasileiro: a boa-fé no reconhecimento e na partilha de bens. Tese (Pós-Graduação) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2017. Apud PINTO, Andreia Novais. Poligamia numa perspectiva jurídica. 2012. 64 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2012. 43 monogâmico constituía um crime contra a família, ou seja, que a transgressão da ordem moral estabelecida justifique, só por si, a prática de uma infração penal, numa era em que o discurso político autodesignado “fraturante” pode ou não revolucionar o conceito de seio familiar? Isto posto, é possível compreender que o ordenamento jurídico que nega às famílias existentes o devido reconhecimento e proteção, simplesmente pelo fato de não atender o “princípio” monogâmico, retroage socialmente e ainda, nega o princípio da dignidade da pessoa humana, ao impor a lei e oprimir direitos básicos inerentes ao cidadão. 5.1.2 A monogamia para a Constituição Federal de 1988 e para o Código Civil de 2002 Com o desenvolvimento da sociedade, alteraram-se os costumes e, consequentemente, surgiram novos conceitos de família, possibilitando a realização pessoal dos membros. Insta salientar que o art. 235 do CP/4048, que trata da bigamia e da punição ao fato de contrair novo casamento, com alguém já casado, é ultrapassado, e é um dos motivos para que a imposição do “princípio da monogamia” seja relaxada, dando possibilidade aos membros da família, composta de mais de duas pessoas, de receberem tutela jurisdicional. Neste sentido, cabe dizer que o seio familiar, independente de sua formação, é o local reservado à liberdade, formação e transformação do cidadão. Logo, impor limites à liberdade individual requer amparo na função social, com base no art. 1513 do CC/0249, pois o contrário é considerado arbitrário, rompendo os avanços sociais e jurídicos conquistados e vigentes neste século. Ou seja, que a monogamia não encontra mais respaldo na ordem jurídica em 48 Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena - reclusão, de dois a seis anos. § 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. § 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime. (BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]). 49 Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família. (BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Congresso Nacional, [2019].) 44 decorrência da inadmissibilidade de qualquer tipo de discriminação, como consta descrito no art. 3º, Constituição Federal de 198850. Cabe aqui a crítica de Gomes51 ao Código Civil: Não se tolera a mistificação de uma recodificação que não renova, nem avança. Se a reforma se consente, é para que pelo menos sirva como fermento de novos critérios de disciplina, de novas lógicas e de novas categorias interpretativas. Neste entendimento, é praticamente impossível limitar à Constituição a imposição de limites à sociedade, a fim de evitar prejuízos à liberdade individual, visto que o papel do poder judiciário é preservar o interesse público, assegurando as garantias constitucionais às minorias, estabelecendo o Código Civil de 2002 a possibilidade do livre planejamento familiar. Tal liberdade não pode significar que o tipo de formação familiar escolhido pelo casal seja considerado “desqualificado”, a ponto que a legislação estaria desfavorecendo alguns e ferindo princípios constitucionais, pois o que a sociedade busca, no final de tudo, é a igualdade, bem como a possibilidade de aplicação dos mesmos direitos inerentes às estruturas familiares ditas “corretas”, estabelecidas na Constituição e no Código Civil, por serem uniões voluntárias e responsáveis. Diante da crescente demanda social por igualdade de direitos, cabe à legislação, embora não havendo previsão expressa do modelo familiar simultâneo, procurar resolver conflitos de interesses daí decorrentes, consagrando-as reconhecimento e importância pelo fato de seguirem com os requisitos basilares da formação familiar, já mencionados anteriormente (convivência pública, contínua, duradoura e com animus de constituir família). 50 Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019].) 51 GOMES, Orlando. A caminho dos microssistema: Novos temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 50. 45 5.2 O instituto do casamento, nulidade e impedimentos matrimoniais Segundo Moraes52, o casamento é, “no modelo tradicional, a relação conjugal indissolúvel era o que fundava a família, portanto, era considerada o seu núcleo central, o eixo de estabilidade em relação ao qual os membros orbitavam”. O Código Canônico trazia em seu cânone nº 1.055, § 1º, a definição do matrimônio53 para a Igreja Católica, que tratava desse instituto como um vínculo entre o homem e a mulher, destinado à procriação e educação da prole. Desde o início dos tempos, o casamento é reconhecido como um negócio jurídico consensual, celebrado entre as famílias, e hoje é baseado no direito de igualdade de direitos e deveres, prestando mútua assistência, e não se destinando apenas à procriação. A principal finalidade do casamento, segundo Gonçalves54, “é estabelecer uma comunhão plena de vida como prevê o artigo 1511 do Código Civil, oriundo do amor do casal, baseado na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges e na mútua assistência”. A validade civil do casamento religioso está condicionada à habilitação e ao registro no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, critérios estes, estabelecidos no art. 1.51555 do CC/02. Entretanto, o casamento pode apresentar vícios, tornando-o nulo (art. 1.548 e 1.549, CC) ou anulável (art. 1550, CC), e consequentemente, impondo consequências à família. Art. 1.548. É nulo o casamento contraído: I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - por infringência de impedimento. Art. 1.550. É anulável o casamento: 52 MORAES, Maria Celina Bodin de. A nova família, de novo – Estruturas e função das famílias contemporâneas. Pensar – Revista de Ciências Jurídicas. Fortaleza. V. 18, n. 2. P. 592, mai./ago. 2013. 53 Cânone, Art. 1055, § 1º - “o pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os batizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade do sacramento”. (CODIGO de direito canônico. 4. Ed. Rev. Lisboa: Conferência Episcopal Portuguesa, 1983). 54 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 6, p. 30- 31. 55 Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração. (BRASIL. Leinº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Congresso Nacional, [2019]). 46 I - de quem não completou a idade mínima para casar; II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal; III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558; IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento; V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges; VI - por incompetência da autoridade celebrante. Art. 1.558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares. 56 E sobre os impedimentos matrimoniais, o art. 1.521 do CC/02 elenca o seguinte: Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.57 Desta forma, Amaral58 aponta que o casamento nulo é “aquele que, embora existente é inválido e ineficaz, pois decorre "da falta de qualquer dos requisitos legais da formação do ato ou de expressa disposição da lei”. No que diz respeito à natureza jurídica do casamento, Maluf59 aponta são três as correntes que visam defini-lo: a contratual, a institucional e a eclética. A teoria contratual, adotada por doutrinadores como Pontes de Miranda, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, aponta a liberdade dos nubentes para a celebração do contrato de casamento. A teoria institucional, defendida por Washington de Barros Monteiro, Maria Helena Diniz, Regina Beatriz Tavares da Silva e Arnold Wald, também denominada 56 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Congresso Nacional, [2019]. 57 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Congresso Nacional, [2019]. 58 AMARAL, Francisco. Direito Civil. 5. Ed. Rev. Aum. Atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2003. P. 524. 59 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas modalidades de família na pós- modernidade. 2010. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2010. P. 125 – 126. 47 supraindividual, considera o casamento como uma relação jurídica, oriundo de um acordo de vontades, cujas normas e efeitos se encontram previamente estabelecidos na legislação. A teoria eclética, defendida por Silvio Rodrigues, consagra dois elementos: o volitivo e o institucional, que considera o casamento “como um contrato em sua formação, por originar-se de acordo com vontades e uma instituição em sua duração, em face da interferência do Poder Público e do caráter inalterável de seus efeitos”60. Dentre as teorias apresentadas, a que ganha destaque é a institucional, que coloca a vontade dos nubentes para a instituição do casamento e da família, garantindo efeitos que decorrem desta união. Ressalta-se que o Código Civil, em seu artigo 1.72761 prevê a definição de concubinato, que se trata da relação não eventual entre homem e mulher, impedidos de contrair novo casamento. A este ponto, seria correto pensar que às relações paralelas não gerariam efeitos jurídicos, porém, caberia dizer que não seria possível o dever, por exemplo, de prestar alimentos? Por que dar direitos até certo ponto? Qual o problema de a legislação atender às necessidades da sociedade e rever o contexto histórico-cultural, e adaptarem-se as novas realidades? Negar o reconhecimento às uniões que surgem é negar o direito a liberdade de escolha, de expressão e até de comunicação com o Judiciário. Hoje, apesar de todas as limitações e preconceitos, considera-se que um dos maiores avanços do sistema jurídico é a admissão da união estável firmada entre pessoas casadas, já separadas de fato, judicial ou extrajudicialmente, possibilitando a formação de novos ambientes familiares. 5.3 Do reconhecimento jurídico da família paralela As uniões paralelas, inicialmente consideradas como concubinato, passaram a adentrar na esfera judicial em busca de igualdade, reconhecimento e direitos. O 60 RODRIGUES, Silvio apud MALUF, Carlos Alberto Dabus Maluf; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Direito de Família. 3. Ed. Rev. Atual. São Paulo: Saraiva. 2018. 61 Art. 1727 CC/02. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato. (BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Congresso Nacional, [2019]). 48 Supremo Tribunal Federal (STF), através da Súmula 380, anuncia que “comprovada à existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”62. A fim de provar judicialmente a sociedade de fato, se fazia necessária à comprovação do convívio e da constituição do patrimônio conjunto, para que não fosse considerado como obtenção ilícita de lucros. Somente com a aceitação pelo ordenamento da união estável, foi que o concubinato foi reconhecido com “bons olhos” pela legislação, possibilitando e assegurando os mesmos direitos, vedando possíveis discriminações. Neste diapasão, os Tribunais estão sendo obrigados a se readequar à realidade social, analisando as situações fáticas, em busca de uma melhor aplicação do direito, não causando desigualdade entre as partes. Baseada no princípio da monogamia, a jurisprudência e a doutrina não possibilitam o reconhecimento da simultaneidade familiar, ou seja, a poliafetividade seria considerada um impedimento matrimonial. Ocorre, porém, que o CC/02 não exclui os efeitos jurídicos a esta forma conjugal, impossibilitando assim, a negação de tutela a estas famílias que vêm ganhando cada vez mais espaço na sociedade. Na esfera criminal, a bigamia é considerada uma atitude ilícita, e está tipificada no art. 235 do Código Penal de 1940 (CP/40), que descreve: Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena - reclusão, de dois a seis anos. § 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. § 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime63. Vale lembrar, que o Código Penal foi promulgado em 1940, logo, não pode ser aplicado com rigidez, por não ter sofrido alterações e adequações condizentes com a realidade social do século atual. E ainda ressalta-se que a monogamia não passa de um valor moral, o que consideraria a bigamia estabelecida no CP como tal, não devendo, portanto, ser analisado como crime. 62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 380. Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.: Diário de Justiça: Brasília, DF, 12 maio 1964. 63 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. 49 Por outro lado, o relacionamento paralelo constituído de má-fé64 não gera possibilidades de reconhecimento jurídico, uma vez que a boa fé é requisito
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