Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Consciência e Liberdade: O debate sobre o livre-arbítrio sob o foco da Filosofia da Mente Consciousness and Freedom: The debate on free will under the focus of Philosophy of Mind ANDRADE, Leonardo F. Costa de - Mestrando em Filosofia – UNESP / Marília Email: leonardo.andrade1991@yahoo.com.br / lf.andrade@unesp.br Resumo: O debate milenar sobre o livre-arbítrio se relaciona com muitos outros debates filosóficos, como por exemplo, o debate do problema mente-corpo, da responsabilidade moral, da causalidade, da explicação científica e da racionalidade. Figuram em meio ao debate sobre o livre-arbítrio dois pressupostos centrais, sendo alegada sua compatibilidade por parte de alguns teóricos, enquanto outros defendem a incompatibilidade destas duas concepções. A tese determinista afirma que todo evento ocorrido no mundo é produto de causas anteriores suficientes para que o evento ocorra, enquanto a tese da liberdade humana questiona se o comportamento humano seria resultado de causas anteriores suficientes, como afirmado pela tese determinista. Desse modo, o presente trabalho terá como objetivo apresentar o debate sobre livre-arbítrio sob o foco da Filosofia da Mente, mais especificamente, focalizando o debate da natureza da consciência, tendo em vista o posicionamento diametral das tentativas de abordagem do tema, bem como a alegação sobre o papel central da consciência na conjugação dos mais diversos estados mentais. Palavras-chave: Consciência, Livre-arbítrio, Filosofia da Mente. Abstract: The millenary debate about free will is related to many other philosophical debates, such as the debate about the mind-body problem, moral responsibility, causality, scientific explanation and rationality. There are two central assumptions in the middle of the debate about free will, with some theorists claiming their compatibility, while others defend the incompatibility of these two conceptions. The deterministic thesis claim that every event that occurs in the world is the product of sufficient preceding causes for the event to occur, while the human freedom thesis questions whether human behavior would be the result of sufficient preceding causes, as claim by the deterministic thesis. In this way, the present work will aim to present the debate on free will under the focus of Philosophy of Mind, more specifically, focusing on the debate on the nature of consciousness, in view of the diametrical positioning of attempts to approach the theme, as well as the claim about the central role of consciousness in the conjugation of the most diverse mental states. Keywords: Consciousness, Free-will, Philosophy of mind. Introdução O debate filosófico sobre a existência de livre-arbítrio apresenta forte relação com outros tantos temas debatidos por filósofos ao longo dos anos. Sendo evidenciada sua relação 2 com a atribuição de responsabilidade moral, a natureza dos estados conscientes, da racionalidade, o problema da causalidade e da explicação científica. Certamente, a maioria de nós declararia sem muita ponderação, que o livre-arbítrio existe e que nossas ações são, em certa medida, livres. Entretanto, a tese do livre-arbítrio parece entrar em conflito com um pressuposto presente nas teorias científicas, principalmente, naquelas cuja a caracterização está sobre o escopo das ciências naturais. A tese em questão é conhecida como determinismo causal ou determinismo nomológico. A tese do determinismo causal pressupõe que todo o curso dos acontecimentos futuros ocorrerão, mediante a conjunção entre eventos ocorridos no passado e as leis da natureza. Posto de outra forma, o determinismo causal assume “que todo o evento ocorrido no mundo tem causas antecedentes suficientes” (SEARLE, 2004, p.151, tradução nossa). A importância deste pressuposto para a ciência, reside na consideração, de que, ao observarmos a ocorrência de um fenômeno específico, podemos retomar dedutivamente aos eventos anteriores, evidenciando as causas antecedentes suficientes à consumação do fenômeno. Desse modo, tendo conhecimento destas causas, podemos explicar e prever a ocorrência do fenômeno. No entanto, deve ser salientado, que a explicação apresentada acima sobre a relação entre o determinismo causal e a elaboração de teorias científicas, é uma explicação exageradamente simplista, sobre como o pressuposto determinista figura em meio as teorias científicas. Segundo Timpe [entre 2005 e 2019], devemos ter em mente que existe uma diferença crucial entre ser um sistema determinado e ser um sistema previsível. Um sistema pode ter fenômenos ocorrendo de modo complemente determinado por eventos anteriores, sem que a ocorrência dos fenômenos atuais seja previsível por qualquer ser ou entidade. A ignorância sobre como os eventos figuram a fim de determinar a ocorrência dos fenômenos observados, não implica na falsidade do determinismo. Entretanto, existem duas maneiras as quais poderíamos garantir a falsidade de um determinismo estrito. Na primeira delas, se em um dado sistema as leis que o governam são leis probabilísticas, então os fenômenos ocorridos no sistema não podem ser estritamente determinados. Já a segunda, afirma que se neste mesmo sistema existem entidades que não são governadas pelas leis da natureza (ou governadas pelas leis do sistema), mesmo que estas leis não sejam probabilísticas, então o sistema não é, novamente, estritamente determinado. Podemos tomar como exemplo, desenvolvimentos na área da Física. A elaboração de teorias físicas, apresentam ao longo de sua história, uma forte consideração à tese do 3 determinismo causal. No entanto, desenvolvimentos recentes no área da Física Quântica sugerem que as leis que governam o comportamento de micro-partículas seriam leis probabilísticas, permitindo a interpretação de que se as leis que governam os elementos físícos mais fundamentais da estrutura do universo são leis probabilísticas, então o determinismo é falso. Contudo, existem autores que defendem que apesar da falsidade de uma forma de determinismo radical, poderíamos considerar um tipo de determinismo proximal. Sugerindo que apenas na escala das micro-particulas seriam observados leis probabilísticas que evidenciariam a indeterminação do sistema, enquanto objetos observados no nível macro se comportariam obedecendo a leis deterministas. Desse modo, uma concepção determinista radical poderia ser rejeitada, mas ainda assim, necessitaríamos considerar uma forma de determinismo mais branda. Mas, e no caso do comportamento humano, este seria, igualmente, determinado por causas anteriores suficientes? E em caso positivo, poderíamos considerar que agimos livremente, mesmo que nossas ações já tenham sido predeterminadas por eventos ocorridos no passado? Certamente, estas são questões que não podem ser respondidas facilmente. No entanto, nossa convicção de que possuímos livre-arbítrio “é baseada em certas experiências de liberdade humana. [...] Faz parte de nossas experiências conscientes que experenciamos as causas de nossas decisões e ações, na forma de razões para essas decisões e ações, como insuficientes para forçar decisões e ações” (SEARLE, 2004, p.152, tradução nossa). Este é o posicionamento de alguns autores que buscam negar as alegações favoráveis a tese do determinismo psicológico. Sendo esta a razão apresentada por teóricos que argumentam sobre a incompatibilidade entre a tese do livre-arbítrio e a tese determinista. Enquanto outros argumentam alegando a compatibilidade entre as duas teses, defensores dessa posição são denominados de compatibilistas. Ser um compatibilista é, grosso modo, afirmar que é possível que um agente seja determinado em suas escolhas e ações, e mesmo assim, agir livremente ao escolher o curso de suas ações. Grosso modo, eles afirmam, com muitas variações de detalhes, quese pode dizer corretamente que alguem é verdadeiramente responsável pelo que se faz, quando se age, desde que não seja causado por um determinado conjunto de restrições. (impulsos cleptomaníacos, neuroses obsessivas, desejos experimentados como alienígenas, comandos pós-hipnóticos, ameaças, casos de força maior e etc.). (STRAWSON, 1994, p. 16, tradução nossa) 4 Desse modo, determinismo e livre-arbítrio são compatibilizados argumentando que apesar das ações humanas serem causalmente determinadas, as mesmas são livres, pois seriam determinadas por convicções internas, processos racionais e reflexões. “Então ações livres não são ações indeterminadas; elas são tão determinadas como quaisquer outros eventos que ocorrem no mundo. Mas, antes, ser livre consiste em ser determinado por certos tipos de causas e não por outras” (SEARLE, 2004, p. 154, tradução nossa). Contudo, a proposta de compatibilizar a liberdade humana com o determinismo, aparenta repousar mais sobre a possibilidade de atribuição de responsabilidade moral, do que, de fato, lidar com a natureza do livre-arbítrio. Assim, o compatibilismo afirma que mesmo em um universo determinista os agentes são moralmente responsáveis pelo curso de suas ações. A concepção incompatibilista se posiciona contra esta noção, alegando a incompatibilidade entre determinismo e livre-arbítrio. Entretanto, existe mais de uma maneira de se posicionar alegando a incompatibilidade entre determinismo e livre-arbítrio. Um modo de se posicionar alegando a incompatibilidade destas duas teses, é afirmar que o determinismo é verdadeiro e que o livre-arbítrio é falso, os defensores desta visão são chamados de deterministas radicaisn. “Deterministas radicais [...] também são incompatibilistas, mas eles aceitam o determinismo e negam que possuímos o tipo de livre-arbítrio requerido para atribuição de responsabilidade moral” (PEREBOOM, 2003, p.XIV, tradução nossa). Outra forma de se endossar a concepção incompatibilista é considerar que o determinismo é falso caso o livre-arbítrio seja verdadeiro, os apoiadores dessa noção são denominados de libertáriosn. “Nós libertários tipicamente acreditamos que é necessário um livre-arbítrio incompatível com o determinismo, [...] de modo que a responsabilidade moral genuína, assim como o livre arbítrio, seja incompatível com o determinismo” (KANE, 2007, p.7, tradução nossa). Entretanto, devemos ter em mente que os posicionamentos incompatibilistas apresentados até agora (determinismo radical ou libertarianismo), não são as únicas formas de se posicionar em meio as concepções incompatibilista. Apesar do posicionamento diametral das duas concepções, podemos ainda citar uma terceira classe de incompatibilismo conhecido como pessimistas de livre-arbítrion. No caso dos pessimistas, estes são concordantes de que se o determinismo é verdadeiro, então é impossível que exista livre-arbítrio. No entanto, ao contrário do libertários, os pessimistas argumentam que, mesmo que seja provado a existência de fatores indeterminados no processo de deliberação, esse fato não auxilíaria de nenhum 5 forma sustentar a existência de livre-arbítrio. Na realidade, é argumentado que fatores indeterminados no processo de deliberação, afastam o agente do tipo de controle necessário ao efetuar uma escolha livre. “Como o pessimista nos mostra, mesmo uma resolução para o debate entre compatibilistas e incompatibilistas não resolverá, por si só, o debate sobre se realmente temos ou não o livre arbítrio” (TIMPE, entre 2005 e 2019, p.9, tradução nossa). Ao longo desta breve introdução sobre o debate entre o livre-arbítrio e o determinismo causal, podemos notar a ampla dificuldade que enfrentamos ao buscar uma solução a este tipo de problema. Contudo, o objetivo deste artigo será especular se a proposta de John Searle, de aproximação do debate do livre-arbítrio com o debate sobre a natureza da mente, pode apresentar evidências que permitam uma consideração satisfatória do problema, reduzindo distinções entre aspectos mentais e físicos. Segundo Searle, o torna penoso renunciar a noção de que somos livre, reside em “algumas características essesciais da experiência consciente” (SEARLE, 2007, p.14). Desse modo, “na medida em que o problema do livre-arbítrio se volta para os fatos causais relativos a certos estados de consciência, devemos explicar a maneira pela qual a consciência pode funcionar causalmente agindo sobre o corpo” (SEARLE, 2007, p.25). Entretanto, deve ser salientado que o debate sobre o estatuto ontológico da consciência, de mesmo modo, encontra-se amplamente revolto em controversas. Todavia, a proposta de Searle situa-se em priorizar este debate com a finalidade de apresentar evidências que permitam melhor considerar a questão do livre-arbítrio. Em vista disso, na próxima seção apresentaremos os argumentos de um conhecido crítico de Searle, o filósofo Daniel Dennett. Dennett, em crítica a Searle, compreende que se abrimos mão da concepção mistificada deste eu consciente, ou como ele denomina, de teatro cartesiano, podemos conceber que o livre-arbítrio (ao menos, uma variedade de livre-arbítrio que vale a pena querer) e a atribuição de responsabilidade moral pode ser compatível, mesmo em um universo determinado. 6 I – A proposta compatibilista de Dennett e a desmistificação do eu consciente Alguns defensores da compatibilidade entre as teses do livre-arbítrio e do determinismo causal, afirmam que a concepção de livre-arbítrio defendida pelos libertários é demasiadamente obscura e ininteligível. Alegando que, ao contrário das intuições desses autores, o determinismo não colocaria em risco o livre arbítrio, ao menos, nenhuma variedade de livre-arbítrio que “vale a pena querer”, como é o caso de Daniel Dennett. Ao longo de sua carreira, Dennett aborda muitos temas relacionados à Filosofia da Mente e a Ciência Cognitiva. Sua teoria tem a finalidade de dissipar a nevoa de mistério que paira sobre a natureza da consciência e dos estados mentais. Dennett alega a inexistência do que ele denominada de “teatro cartesiano”, ou melhor dizendo, a concepção de que seria possível localizar a consciência em uma, ou mais, áreas específicas do cérebro. De modo semelhante ao conceito de livre-arbítrio defendido pelos libertários, o autor alega que o conceito de consciência é igualmente obscuro e ininteligível. Por um lado, temos a imagem do agente, o feitor, o local e fonte da ação ao invés de mera reação. Pensamos em nós mesmos como tais agentes. [...] Por outro lado, temos a imagem do ser humano físico como, realmente, não mais saliente do que o dominó número 743 em uma cadeia de um milhão de dominós. Se formos meros condutos de causalidade, ao que parece, não podemos ser também agentes. (DENNETT, 1985, p.76, tradução nossa) Dennett pressupõe que o problema da incompatibilidade entre a noção que temos de nós mesmo, enquanto agentes responsáveis por nossas ações e a sobredeterminação causal dos processos fisiológicos ocorridos em nosso corpo na geração de nossas ações, reside em “uma ilusão de escala causada pela ampliação de efeitos pelo sistema nervoso” (DENNETT, 1985, p.76, tradução nossa). Desse modo, ao invés de concebermos a nós mesmo como este eu conscienten metafísico, sendo a fonte última de nossas ações, podemos nos conceber como sistemas de processamento de informação. “Seja o que for, somos sistemas de processamento de informação e todo sistema de processamento de informação depende de amplificadores de uma espécie. [...] Um sistema de processamento de informações é essencialmente uma organização de comutadores ou gatilhos” (DENNETT, 1985, p.77, tradução nossa). Dessa forma, graças ao poder de amplificação de nossos comutadores biológicos e aos gatilhos ambientais desencadeadores da ação, o processo de tomada de decisão gerador denossas ações “é tão irremediavelmente inescrutável que é invisível. Vemos os efeitos dramáticos saindo; não vemos as causas entrando; somos tentados pela hipótese de que não há 7 causas” (DENNETT, 1985,p.77, tradução nossa). No entanto, a invisibilidade das causas não ocorre apenas em meio as obervações de uma perspectiva de terceira pessoa, mas igualmente inescrutável de um ponto de vista de primeira pessoa, por meio de processos introspectivos. Assim, Dennett afirma ser uma ilusão conceber que seriamos a fonte última de nossas ações, gerada pela concepção deste eu consciente. A razão de sermos tão apegado a intuição de nós mesmo, enquanto fonte última de nossas ações reside na concepção que temos do eu consciente, enquanto totalidade unitária e coerente de nosso ponto de vista do mundo, em adição a preocupações com a responsabilidade moral. Diante de nossa incapacidade de "ver" (por "introspecção") onde está o centro ou a fonte de nossa ação livre, e relutando em abandonar nossa convicção de que realmente fazemos coisas (pelas quais somos responsáveis), exploramos o vácuo cognitivo, as lacunas em nosso autoconhecimento, preenchendo-o com uma entidade bastante mágica e misteriosa, o motor imóvel, o eu ativo. [...] Uma vez que reconheçamos que nosso acesso consciente a nossas próprias decisões é problemático, podemos observar quantos dos pontos decisivos importantes de nossas vidas foram desacompanhados, na medida em que a memória retrospectiva da experiência consciente passa por decisões conscientes. [...] Onde isso aconteceu? Na sede central, é claro. (DENNETT, 1985, p.79-80, tradução nossa) O autor afirma que este tipo de dedução, atribui um valor superestimado a realidade psicológica, inserindo a descrição dos processos deliberativos segundo exigencias teóricas e não formuladas por descrições de experiencias genuínas. “O misterioso santuário interno do agente central começa a ter uma vida teórica própria e abre o caminho para doutrinas de agentes como motores fixos” (DENNETT, 1985, p.80, tradução nossa). Assim, Dennett se propõe à apresentar uma abordagem naturalista deste eu consciente. O primeiro passo para compreender a formação natural deste eu consciente é ter em mente a sua estreita relação com a noção de controle. “O eu é, acima de tudo, um lugar de autocontrole. [...] Você determina que está se olhando usando o mesmo teste que usa para determinar que está controlando um aeromodelo. Você vê se controla os movimentos da pessoa que vê” (DENNETT, 1985, p.83, tradução nossa). Sendo, portanto, o eu consciente a soma das partes que são diretamente controladas. Desse modo, todo ser humano nasce com um problema inicial que o acompanhará ao longo da vida: aprender como controlar a si mesmo. Portanto, sendo um compatibilista, o desafio de Dennett é demonstrar como podemos garantir a liberdade dos processos deliberativos e atribuição de responsabilidade, ao iniciarmos a jornada de nossas vidas sob condições iniciais que fogem ao nosso controle. Para 8 isso, o autor apresenta uma explicação sobre o papel dos genes e sua relação com os processos que envolvem sorten e habilidade. Embora não possamos ter crédito pessoal pelo sucesso de nossos ancestrais, nossos genes podem. O concurso que nossos genes venceram foi um teste de destreza genuína. Você tem que ser bom em alguma coisa (de fato, bom nas coisas em geral) para chegar à rodada que está jogando hoje. A pessoa que vence um torneio seletivo em um jogo de habilidade provavelmente se sairá muito melhor do que a pessoa escolhida aleatoriamente em concursos subsequentes; habilidade, ao contrário da sorte, é projetável. E como as habilidades de autocontrole e deliberação foram submetidas a um teste bastante severo ao longo das eras, existe uma base real de fato para termos altas expectativas em relação à habilidade deliberativa e, geralmente, à capacidade de autocontrole de nossos companheiros seres humanos. [...] Não temos apenas sorte; nós somos habilidosos. (DENNETT, 1985, p.94, tradução nossa) Concebendo a complexa relação entre sorte e habilidade, Dennett afirma existirem duas objeções a atribuição de responsabilidade aos agentes devido à fatores que envolvam pura sorte, ou acaso. A primeira delas, afirma ser questão de sorte nascer dotado de características facilitadoras que permitam ao agente, tornar-se um agente habilidoso. A segunda refere-se as oportunidades encontradas ao longo da vida, as quais fogem do controle do agente, sendo assim, eventos ocorridos ao acaso durante o processo de auto-criação. Entretanto, segundo o autor, essas objeções não teriam qualquer relevância ao consideramos a média entre eventos de sorte e azar vivenciados pelos agentes ao longo de suas vidas. O autor argumenta que se levarmos em conta as características iniciais e as oportunidades vivenciadas pelos agentes, analisando casos particulares, certamente, encontraremos diferenças. No entanto, considerando a expectativa de vida média destes agentes essas diferenças tendem a se dissipar. Dennett ilustrar sua afirmação, sugerindo que imaginemos uma corrida onde a linha de saída é escalonada com base na data de nascimento dos competidores. Os competidores nascidos em Janeiro estariam uma jarda a frente daqueles que nasceram em Fevereiro e assim por diante, uma vez que um agente não pode ser responsável pela data de seu próprio nascimento, seria injusto esse tipo de escalonamento? O autor afirma que sim, caso o percursso seja de apenas cem jardas. E negativo, no caso de uma maratona. Como esse pequeno diálogo petulante exibe, há uma tendência de tratar o "sortudo" e o "azarado" como complementares e exaustivos, sem deixar espaço para nenhuma habilidade. Nesta visão, nada em princípio poderia contar como habilidade ou o resultado da habilidade. Isto é um erro. Uma vez que se reconhece que há espaço para a habilidade entre o sucesso e o fracasso, o argumento preocupante que parece mostrar que ninguém poderia ser responsável evapora. A média da sorte é alcançada e a habilidade conta no final. De vez em quando, com certeza, a sorte desempenha um papel muito grande, mas quem pensa que todas as perdas são explicáveis no 9 final como resultado da má sorte e todas as vitórias devido à boa sorte simplesmente usam mal o conceito de sorte. (DENNETT, 1985, p.97, tradução nossa) Assim, o que seria entendido por sorte ou azar tem relação com nossas expectativas sobre o que os agentes poderiam, de fato ou não, fazer. “Se o determinismo é verdadeiro, é apenas porque nunca temos todas as informações que são, em princípio, relevantes para essas questões que esperamos que alguém faça além do que acaba fazendo” (DENNETT, 1985, p.98, tradução nossa). Entretanto, se todas as informações necessárias para prever o curso de cada ação fosse disponível a nós, seríamos capazes de afirma que não poderiam ter ocorrido de outra maneira, senão aquela que foi de fato realizada. Contudo, esta afirmação sobre a possibilidade de previsibilidade do curso de ação dos agentes é exatamente o alvo da objeção de defensores do incompatibilismo, os quais invocam o princípio de possibilidades alternativasn. No entanto, Dennett argumenta que “seja lá o que for que poderia ter feito de outra maneira realmente signifique, não é nisso que estamos interessados quando nos preocupamos se algum ato foi realizado de maneira livre e responsável” (DENNETT, 1985, p.132, tradução e grifo nosso). Assim, o autor afirma que se deixarmos de lado uma concepção ficcional do argumento, encontraremos uma esperança mais modesta: por um lado, perceberemos que ao observarmos o passado, e nos questionarmos se poderíamos ter agido de outra maneira, perceberemos que o passado é fechado a nós. No entanto, almejamos um futuro aberto, com deliberações eficazes, um futuro em que a única possibilidade de ocorrência sejao resultado de nossa deliberação. Por outro lado, os incompatibilista alegam que mesmo considerando um “futuro aberto”, se o determinismo é verdadeiro, então, nada pode ser feito senão o que de fato se faz. Dennett alega que este tipo de objeção, concebe que se o determinismo é verdadeiro, então, a nossa deliberação é ineficaz e estaríamos fadados a um único futuro possível. Contudo, “apesar das primeiras impressões, algo pode ser “causalmente necessário”, mas não inevitável” (DENNETT, 1985, p.130, tradução nossa). Com isso o autor busca evidenciar uma distinção entre determinismo e fatalismo. Entretanto, libertários como Robert Kane afirmam que o princípio de possibilidades alternativas, posto individualmente é insulficiente para alegar a incompatibilidade entre livre- arbítrio e determinismo. Alegando que o princípio em questão deve ser concatenado ao princípio de responsabilidade última, a fim de salvaguardar a modalidade de livre-arbítrio defendida pelos libertários. Na seção seguinte verificaremos como este dois princípios são relacionados na defesa da incompatibilidade entre livre-arbítrio e determinismo 10 II – O incompatibilismo libertário de Robert Kane e o princípio de Responsabilidade Última Apesar elaborada argumentação dos compatibilistas, exemplificada pelas considerações de Dennett, autores libertários, como Robert Kane direcionam seus esforços em evidenciar a relevância de nossas intuições sobre a existência de livre-arbítrio e sua incompatibilidade com o determinismo. “O livre-arbítrio, no sentido tradicional que quero recuperar, [...] é o poder dos agentes para serem os criadores (ou originadores) e sustentadores de seus próprios fins ou propósitos” (KANE, 1998, p.5, tradução nossa). Kane ainda salienta que esta concepção de livre-arbítrio deve ser diferenciada da noção de ação livre, sustentada pelos compatibilistas. Dado que agir livremente significa que alguém esta livre de impedimentos e restrições para a realização de suas ações, enquanto a liberdade da vontade, ou querer livremente, refere-se a ser o criador final de seus próprios propósitos e intenções. Contudo, como destacado no início da seção anterior, seria exatamente esta noção de liberdade da vontade e de agentes enquanto originadores de seus próprios fins que os compatibilistas afirmam ser ininteligível. Desse modo, Kane reserva a primeira parte de seu livro The significance of Free Will visando apresentar um significado inteligível da concepção de livre-arbítrio incompatível com o determinismo e porquê este é um tipo de liberdade que vale a pena querer. Uma coisa que ficou clara com o foco inicial da questão da inteligibilidade foi que liberdade é um termo de muitos significados, alguns dos quais podem designar tipos de liberdade compatíveis com o determinismo, outros que não. [...] O que os incompatibilistas devem reivindicar (e o que eles freqüentemente reivindicam historicamente) é que existe pelo menos um tipo de liberdade incompatível com o determinismo, e é um tipo significativo de liberdade que vale a pena desejar. (KANE, 1998, p.14-15, tradução nossa) Segundo a concepção libertária, agir livremente exige algo a mais do que estar livre de restrições para agir. Ao assumir que um agente raciocína e age livremente, significa que é pressuposto que este é dotado de um intelecto e uma vontade. O conceito de vontade concebido como poder de deliberação, raciocínio prático, formação de intenções e avaliação crítica dos motivos da ação é distinto do intelecto. O intelecto é compreendido como a capacidade ou poder associado ao raciocíonio teórico, capacidade de inferir, concluir, supor, julgar e etc. “Este é o primeiro passo para explicar a fórmula do livre arbítrio. [...] Esse poder está ligado à capacidade de fazer escolhas ou decisões, em virtude do fato, de que escolhas e decisões são formações de intenções” (KANE, 1998, p.23, tradução nossa). 11 Entretanto, Kane salienta que nem todas as nossas ações são precedidas, ou iniciadas por escolhas os decisões. Muitas ações são resultados de hábitos baseados em intenções preestabelecidas, sem a necessidade de escolha e deliberação no instante originador da ação. “O que eles [processos de deliberação] essencialmente fazem, no entanto, é formar intenções e criar propósitos que guiam as ações, agora ou no futuro; e isso explica seu papel central em relação ao livre arbítrio” (KANE, 1998, p 24, tradução nossa). O conceito de vontade requerido pelos libertários assume três significados relevantes a concepção tradicional de livre-arbítrio. São eles a vontade desiderativa ou apetitiva, ou seja, anseios, desejos e preferências; a vontade racional ou razão prática, escolhas, decisões e intenções; e a vontade de lutar ou querer tentar, considerada como o esforço e a prevalência de nossa vontade frente à obstaculos e dificuldades. O livre arbítrio, argumentarei, envolve a vontade em todos esses três sentidos, embora de maneiras diferentes. [...] anseios, desejos, preferências e outras expressões de vontade desiderativa estão entre as entradas para o raciocínio prático; elas funcionam como razões ou motivos para escolha ou ação. Por constraste, escolhas, decisões e intenções, as expressões da vontade racional, são os resultados do raciocínio prático, seus produtos. Se existe indeterminação no livre-arbítrio, a meu ver, ele deve estar em algum lugar entre a entrada e a saída, entre vontade desiderativa e racional. [...] Incompatibilistas, acredito, podem conviver com relatos compatibilistas da relação entre escolha (ou intenção) e ação. O que eles devem insistir é em um relato incompatibilista da relação entre razões, por um lado, e escolha (ou intenção), por outro. (KANE, 1998, p. 27, tradução nossa) Dessa forma, segundo a visão libertária, agir por meio de uma vontade livre é agir segundo razões que permitem ao agente escolher o curso de suas ações. “Uma razão para a escolha ou ação, [...] é uma atitude psicológica de um agente que pode ser corretamente citada em resposta à pergunta de por que o agente agiu como ele ou ela fez” (KANE, 1998, p.28, tradução nossa). No entanto, cabe destacar que essa concepção de razões como atitudes psicológicas faz referência ao sentido internalista de ter razões para agir. Segundo esta concepção, ter razões e motivos para agir são termos ambíguos e intercambiáveis, diferentemente da concepção externalista. “Isso implica querer fazer o que se faz, mas isso não é suficiente. Implica também fazê-lo pelos motivos [ou razões] pelos quais você o fará e de uma maneira que não seja coagida ou obrigada” (KANE, 1998, p.30, tradução nossa). Retomando a sua proposta inicial, Kane argumenta que não são todos os sentidos do conceito de liberdade que são incompatíveis com o determinismo “existem liberdades cotidianas de restrição, coerção e compulsão psicológica, por exemplo, que seriam preferidas a suas alternativas, mesmo em um mundo determinado. [...] Existe outro tipo de liberdade que 12 é mais profundo que eles e não é compatível com o determinismo” (KANE, 1998, p. 32, tradução nossa). O sentido de liberdade que permite contestar a compatibilidade com o determinismo é a liberdade da vontade (segundo os três sentido de vontade apresentados acima). Kane ainda afirma que existem duas condições para que seja garantido este tipo de liberdade. A primeira delas é o princípio de possibilidades alternativas (PA), frequentemente discutido pelos compatibilistas. A segunda condição é o princípio de responsabilidade ultiman (RU), sendo este princípio muito menos discutido por compatibilistas. O autor afirma que o princípio de possibilidades alternativas por si só, não apresenta poder argumentativo para alegar a incompatibilidade entre livre-arbítrio e determinismo, mas deve ser conjugado ao princípio de responsabilidade última para que se possa alegar aincompatibilidade entre as duas teses. “Essa segunda condição enfatiza que cabe a nós não o poder de agir de outra maneira, mas a fonte ou explicação da ação que é realmente executada; essa fonte deve estar "em nós"” (KANE, 1998, p. 34, tradução nossa). A razão que faz com que o princípio de possibilidades alternativa, por si só, não seja condição suficiente para garantir a incompatibilidade entre o livre-arbítrio e determinismo, reside na ampla argumentação compatibilista sobre a possibilidade de atribuição de responsabilidade moral, mesmo sem garantir o poder de fazer de outra forma (exemplificado pela argumentação de Dennett). O que as pessoas se preocupam, diz Dennett, quando atribuem livre arbítrio e responsabilidade moral não é se elas ou outras pessoas poderiam ter agido de outra forma em casos particulares, mas se as consequências das ações são boas ou más e se o comportamento de um agente pode ser modificado por elogios ou culpa, recompensas ou punições. [...] Mas Dennett pensa que os tipos de liberdade que nos interessam em tais casos - "variedades de livre-arbítrio que vale a pena querer" - como ele coloca, como a liberdade presente nas compulsões é compatível com o determinismo. (KANE, 1998, p. 40, tradução nossa) Contudo, Kane posiciona-se de modo concordante aos críticos de Dennett ao afirmarem que esta concepção é estritamente pragmática e consequencialista, uma vez que ignora os detalhes das circunstâncias e o plano de fundo no qual as pessoas agiram. A fim de exemplificar sua contra-argumentação o autor parte do exemplo de Dennett, na apresentação a frase citada por Lutero ao romper com a igreja em Roma: “Aqui estou eu. Não posso fazer outra coisa”. Dennett argumenta que neste caso podermos considerar que Lutero estava errado, pois ele poderia fazer outra coisa. Entretanto, mesmo se considerarmos o contrário, estando correto em sua afirmação, ele não seria destituido da responsabilidade moral de seu ato. A contra-argumentação de Kane enfatiza que se atribuímos responsabilidade moral a 13 Lutero, como sugerido por Dennett, é devido ao fato, de que ele foi responsável por muitas escolhas e ações passadas que o transformaram no tipo de homem que havia sido na época em que pronunciou a frase. “Isso nos permite dizer que, se a RU também for requerido pelo livre arbítrio, o livre arbítrio não exigiria que todas as ações responsáveis satisfizessem as PA, mas exigiria que algumas ações responsáveis na história de vida de um agente satisfizessem as PA” (KANE, 1998, p. 40, tradução nossa). No entanto, apesar do grande auxílio gerado pela inclusão do princípio de responsabilidade última à causa incompatibilista, ainda resta questões a serem respondidas sobre se eventos indeterminados auxiliariam de alguma forma no aprimoramento da liberdade humana. Compatibilistas argumentam que a inclusão de indeterminação retira o controle necessário para a realização de ações livres, sendo este tipo de evento na realidade incomodos, obstáculos ou impedimentos a ação humana. Kane concorda que, de fato, explicar como eventos indeterminados poderiam auxiliar no aprimoramento da liberdade humana é um dos maiores desafios dos incompatibilistas, mas argumenta que a principal razão de distinção entre as intuições compatibilistas e incompatibilistas reside no fato, de que “incompatibilistas geralmente levam a sério uma condição de Responsabilidade Última, como RU pelo livre arbítrio, além da PA, enquanto compatibilistas não” (KANE, 1998, p.59, tradução nossa). Entretanto, o autor afirma que a discordância entre compatibilistas e incompatibilistas pode ser melhor analisado verificando certas teorias compatibilistas denominadas de teorias hierárquicas da motivação. As teorias hierárquicas da motivação são interessantes, pois permitem aos compatibilistas responderem a antiga objeção de que suas teorias dariam conta da ação livre, mas seriam insulficientes para lidar com restrições internas como fobias, obsessões, vícios, neuroses e outros tipos de comportamento compulsivo. Um exemplo de teoria hierárquica da motivação é a teoria de Harry Frankfurt, a qual estabelece uma distinção entre desejos de primeira e segunda ordem. “Para Frankfurt, as pessoas são organismos capazes de ter volições de segunda ordem. Eles são capazes de se importar com os tipos de desejos em que atuam e se esses desejos estão de acordo com suas volições de segunda ordem” (KANE, 1998, p.62, tradução nossa). Porém, é possível elaborar duas principais objeções a teoria hierárquica da motivação. A primeira delas refere-se à possibilidade de regressão ao infinito. O que permitiria que esse tipo de sobredeterminação de desejos fosse encerradas em algum nível? Por que parar no 14 segundo nível ou qualquer outro superior? Frankfurt responde a primeira objeção afirmando haver um tipo de identificação ou “compromisso decisivo” a um ou conjunto de desejos de primeira ordem do agente. Frankfurt introduz ainda a noção de sinceridade, assumindo que seria possível verificar sua presença quando não houvesse conflito ou ambivalência entre os desejos de ordens superiores com desejos de ordem inferior. Nestes casos as pessoas estariam completamente satisfeitas com seus projetos e motivos. No entanto, a resposta de Frankfurt a primeira objeção proporciona a elaboração de outra objeção ainda mais incisiva. Podemos considerar ser consenso entre as concepções compatibilistas e incompatibilistas, de que, se alguém é coagido ou compelido a agir de determinada maneira não pode ser considerado livre em sua ação. Contudo, Kane sugere que existe, ao menos, duas maneiras pela qual um agente pode ser coagido ou compelido a agir, ele denomina essas duas forma de coerção de controle restritivo (CR) e controle não- restritivo (CN). O agente controlado por meio de controle restrivo tem conhecimento das restrições que o impedem de agir segundo a sua vontade. No caso do controle não-restritivo falta ao agente conhecimento sobre as restrições que o impedem de agir, uma vez que seriam suas próprias vontades que seriam alvos de manipulação. Se chegássemos a ser sinceros não por nossos próprios esforços, mas por lavagem cerebral ou ser manipulados por um líder religioso [ou político], ou condicionados por engenheiros comportamentais ou receber uma droga poderosa para alterar a mente, poderíamos ficar satisfeitos com a vontade que tínhamos, mas não teríamos. autonomia no sentido mais profundo de "controle sobre nossas próprias vontades" que era tradicionalmente associado ao livre arbítrio. [...] Os exemplos de controle comportamental que acabamos de mencionar chamam a atenção para uma distinção, de suma importância para debates de livre arbítrio, entre dois tipos de controle que um agente pode exercer sobre outro. (KANE, 1998, p. 64, tradução nossa) Ao considerar o controle não-restritivo, alguns autores podem afirmar que os agentes que encontram-se sob este tipo de manipulação poderiam livrar-se ao refletirem cuidadosamente sobre a origem de suas vontades. “Mas os poderes de reflexão, por mais importantes que sejam para o livre arbítrio, não resolvem o problema colocado pelo controle do CNCn, porque o controle do CNC é consistente com altos graus de reflexão e autoconsciência” (KANE,1998, p.66, tradução nossa). A inclusão do controle não-restritivo discreto em meio ao debate do livre-arbítrio é relevante, pois destaca efetivamente a distinção entre as intuições compatibilistas e incompatibilistas. Por vezes, compatibilistas respondem a questão sobre este tipo de controle, afirmando que este deve ser distinto de formas de determinação gerada pela mera causalidade presente 15 na natureza. Sendo argumentado que o controle não-restritivo discreto é um processo de sobredeterminação da vontade de um agente sobre as vontades de um ou mais agentes, enquanto os processos causaispresentes na natureza não podem ser considerados como agentes no mesmo sentido. Os incompatibilistas contra-argumentam que mesmo considerando esta distinção, em ambos casos, o tipo de impedimento a ação destitui a caraterística fundamental para uma ação genuinamente livre. Nos dois casos a fonte última da ação residiria em fatores externos fora do alcance do agente, levando a conclusão de que livre- arbítrio e determinismo são incompatíveis. Quando compatibilistas e incompatibilistas observam o controle e a mera determinação do CNC, estão interessados em questões completamente diferentes. Os compatibilistas se concentram nos controladores e tentam encontrar as diferenças relevantes lá. [...] No entanto, há outro poder que as pessoas essencialmente perdem ao serem controladas por CNC simplesmente porque o controle é CNC; e esse poder é especialmente interessante para incompatibilistas. É o poder de ser a fonte ou origem última dos próprios fins ou propósitos, em vez de ter essa fonte em algo que não seja você. (KANE, 1998, p.70, tradução nossa) Segundo a Dialética da Origemn, Kane compreende que a intuição incompatibilista ao alegar um tipo de liberdade incompatível com o determinismo se apresenta como a tese inicial, enquanto as intuições compatibilistas, ao compatibilizar determinismo e livre-arbítrio, seriam a antítese. A tese incompatibilista pressupõe que se não considerarmos a condição de responsabilida última e possibilidade alternativas, corremos o risco de ameaçarmos um senso de autoria exclusiva, a qual é necessária para garantir muitas qualidades humanas que vale a pena querer, como: criatividade genuína; autonomia ou autocontrole; mérito pelas realizações; responsabilidade moral em sentido último; individualidade e singularidade como pessoa; e um leque de possibilidades futuras. Enquanto a antítese compatibilista destitui a relevância dessas intuições e se esforça em aprensentar substituições compatibilistas a cada um dos itens citados. “Sua contribuição para a segunda fase da dialética da origem, eles passam a prestar contas de coisas como autonomia, mérito, responsabilidade moral, criatividade, dignidade e coisas assim, de maneiras que não exigem liberdade incompatibilista” (KANE, 1998, p.89, tradução nossa). Entretanto, este jogo dialético entre a tese incompatibilista e a antítese compatibilista nos direciona novamente a questão inicial: o que há de tão importante sobre a responsabilidade última e o senso de autoria exclusiva afinal? 16 Acho que essa pergunta é desconcertante, porque subestimamos o quão "metafísico" alguém deve se tornar para responder. A questão do livre-arbítrio é metafísica exatamente nesse sentido. [...] Trata-se das fontes e explicações finais archai kai aitiain de algumas coisas especiais do universo, a saber, ações humanas responsáveis. [...] Mas os debates sobre livre-arbítrio vão além das preocupações práticas dos tribunais e dos conflitos cotidianos. Eles são sobre a condição humana amplamente concebida, sobre nosso lugar e importância no esquema das coisas. [...] Quando levamos a sério as profundezas metafísicas do livre-arbítrio, acredito que somos impelidos para além da dialética da origem até o que eu chamo de "dialética da individualidade" (KANE, 1998, p. 93, tradução nossa). Kane entende como dialética da individualidade o processo de formação individual desta duas intuições (incompatibilista e compatibilista) conflitantes em relação a nossa concepção de liberdade. Em um primeiro estágio, ao longo do desenvolvimento de nossa individualidade, concebemos a nós mesmo como fontes independentes do mundo. Notamos que influenciamos o mundo de muitas formas segundo a nossa vontade. Contudo, ao começarmos a compreender como o mundo funciona, percebemos que não nos diferenciamos dele e somos em muitas circunstâncias influenciados por seus fatores. “Atrás da janela do mundo, onde deveríamos estar, está o cérebro, e é um objeto físico, como o próprio corpo, que faz parte do mundo e é causalmente influenciado pelo mundo” (KANE, 1998, p.94, tradução nossa). Essa tomada de consciencia nos leva ao segundo estágio da dialética da individualidade e passamos a questionar se talvez não seríamos movidos por forças do mundo, as quais não estaríamos cientes. Uma reação comum neste estágio, com a finalidade de defendermos nossa psique, seria insistir que “esta pode influenciar o mundo externo, intervindo na ordem natural-causal, mas não é inteiramente determinado por essa ordem natural. Essa reação é, claramente, o dualismo mente-corpo do tipo cartesiano” (KANE, 1998, p.94, tradução nossa). O autor ainda concorda que este tipo de reação, apesar de ser uma reação natural, trás mais dificuldades que soluções. Uma outra reação possível, segundo Kane, seria “admitir que fazemos parte do mundo natural e somos influenciados por ele de várias maneiras, mas não completamente. [...] Temos a palavra final sobre a maneira como o mundo nos influencia” (KANE, 1998, p.94, tradução nossa). Ao concebermos como o mundo nos influencia de muitas formas, ao mesmo tempo que utilizamos de algumas estratégias para manter nosso senso de individualidade, é assumido que mesmo considerando as influências do mundo estaríamos no controle do modo como o mundo nos influencia. 17 Contudo, ainda resta a questão: como podemos estarmos certos de que as escolhas que fazemos, não são igualmente determinadas por fatores ambientais? Segundo Kane, este é o terceiro estágio da dialética da individualidade,“pois, a meu ver, o livre arbítrio é uma resposta de estágio superior à dialética da individualidade. Surge como um problema quando percebemos o quão profundamente o mundo nos influencia de uma maneira que desconhecemos” (KANE, 1998, p.96, tradução nossa). Desse modo, uma vez que o determinismo ameça nossa individualidade buscamos formas de recuperá-la, sendo esta a razão que explica porquê o livre-arbítrio é um tipo de liberdade que vale a pena querer. Ao final desta seção, podemos notar a dificuldade enfrentada ao nos depararmos com duas teses incapazes de serem verificadas empíricamente, restando-nos apenas as argumentação sobre a compatibilidade ou incompatibilidade entre elas. Assim, na seção seguinte será apresentada a proposta de Searle de aproximação da questão sobre o livre- arbítrio com o problema ontológico da mente (ou problema da relação mente/corpo). Afirmando que mesmo que este método não permita apresentar respostas conclusivas ao problema da livre-arbítrio, poderia, ao menos, reduzir a questão a duas hipóteses verificáveis pressupondo os desenvolvimentos futuros da neurociência, além de fornecer evidência que permitam fundamentar os posicionamentos sobre a questão. 18 III – A proposta neurobiológica de Searle sobre o problema do livre-arbítrio Apresentado o debate entre a tese do livre-arbítrio e do determinismo causal, bem como alguns dos posicionamentos que compatibilizam e de outros que advogam pela incompatibilidade dessas duas teses. Nesta seção, seguiremos com a proposta de Searle de construir o debate sobre o livre-arbítrio tendo como plano de fundo as teorias da Filosofia da Mente. Searle afirma que o problema do livre-arbítrio nos é tão angustiante, pois “parece que estamos diante de uma contradição. Por um lado, fazemos a experiência da liberdade; por outro, temos dificuldade em renunciar à idéia de que todo acontecimento tem uma causa” (SEARLE, 2007, p.12). O autor propõe que, assim como podemos subscrever o problema da relação entre mente e corpo, enquanto um problema neurobiológico. Ao conceber que “todos os nossos estados mentais são causados por processos neurobiológicos que se produzem no nosso cérebro, em um nível superior ou sistêmico” (SEARLE, 2007, p.13). A mesma estratégia pode ser adotada sobre a questãodo livre-arbítrio Desse modo, poderíamos reformular o debate sobre o livre-arbítrio e o determinismo causal ao considerá-lo de forma semelhante, enquanto um problema neurobiológico. Ao considerar que os principais fatores causais da ação humana seriam nossos processos de deliberação racional experienciados psicologicamente e os processos neuronais ocorridos em um nível inferior. A questão, repetindo, é se, para cada ação humana (incluindo o ato de decidir) que já tenha sido executada ou será executada, há causas antecedentes suficientes para determinar que essa ação e nenhuma outra ação poderia ter sido executada. Portanto, resta uma questão de fato: o que é verdadeiro, determinismo ou sua negação (vamos chamá-lo de "libertarianismo")? Existem dois aspectos nessa questão: psicológico e neurobiológico. (SEARLE, 2004, p.156, tradução nossa). No entanto, antes de apresentarmos as considerações de Searle sobre a veracidade ou falsidade do determinismo, discutindo os aspectos causais psicológicos e neurobiológicos presentes na questão do livre-arbítrio. Devemos apresentar o que é entendido pelo autor, quando este argumenta sobre o papel desempenhado pela consciência ao conferir nossa experiência de liberdade. Em resumo, segundo Searle (1997), podemos considerar duas características principais da consciência. A primeira delas é que a consciência é a noção mental central, a qual figura durante nossos estados de “vígilia”, podemos, contudo, permanecermos conscientes durante o 19 sono nos momentos em que estamos sonhando, embora o nível de intensidade e vividez destes estados conscientes sejam muito menores em comparação ao período desperto. A segunda característica da consciência é que ela é sempre um fenômeno qualitativo interno de primeira pessoa. Além disso, devemos ter em mente que a consciência enquanto uma propriedade do cérebro, estabelece relação causal com processos neuronais ocorridos em um nível inferior. No entanto, Searle nega a possibilidade de redução ontológica da consciência à processos neurobiológicos, uma vez que uma redução causada por uma análise em terceira pessoa pode apresentar perdas significativas das experiências conscientes vivenciadas em primeira pessoa. Elaborada esta pequena caracterização, podemos agora nos debruçar sobre os dois aspectos causais da ação humana elencados pelo autor. Iniciaremos com o aspecto psicológico. Primeiramente, devemos considerar dois atributos distintos de nossas atividades conscientes. A primeira delas é o caráter passivo da consciência perceptiva. Quando estamos conscientes do mundo ao nosso redor, realizamos isso de maneira passiva, uma vez que há algo neste tipo de experiência que não depende de nós, mas de como o mundo é, e da estrutura de nosso mecanismo perceptivo. Por outro lado, quando conscientemente deliberamos sobre a realização de uma ação como, por exemplo, ergue o braço, passear pelo parque ou ir ao banheiro, estas ações são realizadas assumindo que outras ações poderiam tomar o lugar destas. Estas ações são realizadas por meio de uma deliberação ativa consciente e volitiva. Nessas situações típicas de deliberação e de ação, há, expondo de maneira rápida, um intervalo (gap) ou uma série de intervalos entre as causas que intervêm nas diferentes etapas da deliberação, da decisão, da ação e durante as etapas subseqüentes. Se examinarmos o problema mais detalhadamente, podemos constatar que o intervalo pode ser divido em vários segmentos. Observa-se um primeiro intervalo entre as razões que conduzem a uma decisão e a tomada de decisão. Observa-se um outro entre a decisão e o começo da ação e entre outras ações que se seguirão; [...] há de fato um intervalo entre o começo da ação e sua realização final. [...] Em cada etapa, experimentamos estados conscientes que nos parecem insuficientes para impor o estado consciente seguinte. (SEARLE, 2007, p.16-17) No entanto, devemos nos atentar que nem todas nossas ações são como as descritas acima. Por vezes, agimos de maneira não deliberada sobre o curso de nossas ações, como exemplo, podemos citar casos de dependência química, atitudes compulsivas e induções hipnóticas, onde não é observado o tipo de liberdade psicológica necessária para garantir a deliberação da ação. Contudo, deve ser salientado que mesmo considerando esses casos, existe uma diferença crucial na experiência vivenciada nos casos de compulsão e dependência química e nos casos de indução hipnótica. 20 No caso da hipnose o agente opera sobre um intervalo, no qual ele não está ciente de todas as suas motivações. “De fato, ele está engajado em uma ação livre, psicologicamente falando, mas sua motivação primordial é inconsciente” (SEARLE, 2004, p.157, tradução nossa). Já no caso de compulsões e dependência química o agente pode ter plena consciência das razões que o levam a se comportar de tal maneira, entretanto, se vê incapacitado de agir de outra forma. Ao considerar todos esses casos, Searle nos apresenta a seguinte conclusão: Muitos cientistas pensam que esses experimentos dão crédito à hipótese de que todas as nossas ações são psicologicamente determinadas. Mas acho que eles tendem a apoiar a hipótese inversa. [...] Os casos em que o intervalo é uma ilusão são precisamente casos que diferem em certos aspectos importantes dos casos padrão de ações voluntárias. [...] O que estou afirmando agora é que as evidências disponíveis apóiam a visão de que temos liberdade psicológica. Mesmo nos casos em que a liberdade psicológica está ausente, podem ser compreendidos por contraste com os casos em que se apresenta. (SEARLE, 2004, p. 158, tradução nossa) Desse modo, Searle concluí que mesmo considerando todos esses casos, alegar a falsidade da tese do livre-arbítrio afirmando que nossos estados psicológicos podem determinar nossas ações é um erro. Podendo ser verificado pelo contraste entre as ações realizadas de maneira deliberada e ações em que o agente é induzido a ação por compulsão ou dependência, ou ainda, por não ter ciência de todas as suas motivações. Além disso, o autor argumenta que, uma vez experienciado um intervalo entre as razões para agir e a realização da ação, notamos que estas razões não se apresentam como causas necessária para a realização da ação. Assim, resta-nos apenas analisar o segundo aspecto elencado pelo autor como candidato na determinação de nossa ação, o aspecto neurobiológico. O libertarianismo psicológico como eu o defini é provavelmente verdadeiro. [...] Mas, se a liberdade psicológica, a existência do intervalo, fizer a diferença para o mundo, ela deve, de um modo ou de outro, manifestar-se na neurobiologia. [...] Se a liberdade é real, o intervalo tem que ir até o nível da neurobiologia. Mas como poderia? Não há lacunas no cérebro. (SEARLE, 2004, p.158-159, tradução nossa) Esta é a maneira que o autor propõe uma transposição de um debate filosófico argumentativo sobre o livre-arbítrio à uma questão empírica, a qual poderia, de algum modo, ser verificada sobre a luz da neurociência. De tal modo, duas hipóteses podem ser levantadas na verificação das raízes neurobiológicas do problema: (1) Os processos ocorridos no cérebro são causalmente suficiente para determinar nossa ação, logo a liberdade de escolha experienciada no nível psicológico é uma ilusão. Desse modo, a confirmação desta hipótese serve de evidência favorável a tese compatibilista. (2) Os processos ocorridos no cérebro não são causalmente suficiente, uma vez que “o estado total da consciência é fixado pelo 21 comportamento dos neurônios, mas, de um momento a outro, o estado total do sistema não é causamente suficiente para determinar o estado seguinte” (SEARLE, 2007, p. 51), logo mesmo considerando os aspectos neurobiológicos, estes não apresentam causas antecedentes suficientes para determinar a ação. Em caso de comprovaçãoda hipótese (2) a evidência apresentada favorece a tese sobre a incompatibilidade entre livre-arbítrio e determinismo Contudo, se faz necessário uma análise mais cuidadosa para cada uma das hipóteses apresentadas, iniciaremos pela hipótese (1). Segundo o autor a hipótese (1) pressupõe uma espécie de epifenomenismo dos processos conscientes de deliberação. Ao encarar os processos deliberativos consciente enquanto epifenômenos das bases neurobiológicas, concebemos que estes processos de base assumem papel causal na formação dos processos de deliberação, mas o processo deliberativo concebido, por si próprio, não apresenta poder causal para modificar o curso dos processos da base neurológica. “As características distintivas do processo racional de tomada de decisão não terão nenhuma influência no universo. [...] São totalmente determinados causalmente pela atividade que acontece no plano dos microelementos” (SEARLE, 2007, p. 53). Contudo, apesar de considerar a hipótese (1) Searle afirma que esta não se apresenta de modo satisfatório nem do ponto de vista de nossas intuições mais primitivas sobre o livre-arbítrio, nem mesmo segundo uma perspectiva evolucionária. O simple fato de que uma característica sistêmica esteja fixada pelos microelementos não estabelece que a característica sistêmica seja epifenomenal. Muito pelo contrário, sabemos como a consciência pode ser fixada pelo comportamento neuronal e que, no entanto, pode não ser epifenomenal. [...] No estado presente de nossos conhecimentos, a objeção principal que nos impede de aderir ao epifenomenismo consiste em dizer que ele vai de encontro a tudo aquilo que conhecemos sobre a evolução. Os processos da racionalidade consciente representam uma parte tão importante de nossas vidas e, além disso, constituem uma parte biológicamente tão extensa delas que se um fenótipo de tamanha magnitude não desempenhasse nenhum papel funcional para a vida e a sobrevida do organismo, nosso conhecimento da própria evolução é que estaria sendo refutado. (SEARLE, 2007, p. 55-58) Apesar do posicionamento contrário de Searle em relação a hipótese (1). O autor afirma que esta deve ser considerada, pois apresenta um nível razoável de coerência com parte dos nossos conhecimentos em biologia. Considerar o cérebro como um orgão, como outro qualquer, serve como fundamento razoável à pressuposição de que seu funcionamento deve ser tão determinado quanto o funcionamento do coração ou do fígado. Entretanto, alega que essa é uma hipótese pouco sedutora. 22 Todavia, no caso da hipótese (2) esta seria mais atraente, uma vez que é compatível com as experiências de liberdade que vivenciamos durante os processos de deliberação consciente. Searle define três condições de satisfação para que a hipótese (2) possa ser sustentada: A condição (I) sustenta que “a consciência, do modo como é causada pelos processos neuronais e se realiza em um sistema neuronal, tem um funcionamento causal em relação ao corpo” (SEARLE, 2007, p.61). A condição (II) alega que “o cérebro causa e sustenta a existência de um eu consciente capaz de tomar decisões racionais e de traduzí-las em ações” (SEARLE, 2007, p.61, grifo nosso). É com a postulação da condição (II) que, segundo o autor, se apresentam a primeiras dificuldades de sustentação da hipótese (2), uma vez considerada as controversas em relação a noção deste eu consciente. Cabe a este ponto realizar uma ressalva da relevância atribuida por Searle a noção deste eu consciente. Devemos salientar que a fim de explicar os modos de ocorrências de ações voluntárias, a atribuição de razões para agir admite uma forma distinta de explicação em relação a explicações causais ordinárias. “A forma da explicação não pretende ressaltar as condições causalmente suficientes, mas designar a razão pela qual o agente agiu. [...] as explicações de ação racional exigem que postulemos a existência de um eu não redutível, [...] além da sequência dos acontecimentos” (SEARLE, 2007, p. 32-33). No entanto, segundo Searle, este eu consciente não pode ser concebido como uma entidade sobreposta a base neurológica, mas um arranjo esquemático da conjunção do caráter do agente consciente com a noção de racionalidade consciente. Esclareçamos este ponto: os elementos que um organismo exige para ter um eu, a meu ver, são os seguintes: 1) um campo unificado de consciência; 2) a capacidade de deliberar com base em razões – essa capacidade não implica somente capacidades cognitivas de percepção e memória, mas também a capacidade de coordenar estados intencionais, a fim de atingir decisões racionais; 3) o organismo deve ser capaz de iniciar e realizar ações (no jargão antigo, deve ter a “volição” ou a “agency”). Na perspectiva que defendo, a racionalidade não é uma faculdade distinta. [...] Uma descrição neurobiológica dos fenômenos mentais já corresponde a uma descrição racional desses fenômenos. (SEARLE, 2007, p.62-63) Desse modo, ao evidenciar como o cérebro pode sustentar a existência deste eu consciente, teríamos em mão a resolução do problema neurobiológico do eu. Entretanto, “é preciso observar que, no que tange às experiências, tanto a hipótese (1) e a hipótese (2) têm de preencher essa condição. [...] A diferença entre a hipótese (1) e a hipótese (2) deve-se ao fato de que em (1) a atuação racional livre não passa de uma ilusão” (SEARLE, 2007, p.64). Até este ponto, ambas hipóteses devem exibir evidências para sustentar ou negar tais condições. 23 A condição (III) é uma claúsula especial, consequência da veracidade das condições (I) e (II). Sendo alegado por esta condição que “o cérebro é tão capaz quanto o eu consciente, nesse intervalo que nos interessa aqui, de tomar decisões e de agir com base nelas, de modo que nem a decisão nem a ação são predeterminadas pelas condições causalmente suficientes” (SEARLE, 2007, p.64). Esta condição, certamente é mais delicada, uma vez que pressupõe a resolução de duas questão igualmente complexas. A primeira delas é apresentar uma explicação de que maneira o cérebro, enquanto um orgão, como outro qualquer, pode sustentar o indeterminismo presente na deliberação racional. E segundo, mesmo considerando o indeterminismo presente na estrutura cerebral, de que maneira o indeterminismo no nível neurobiológico pode sustentar a noção de liberdade? A fim de apresentar uma resolução ao primeiro problema, Searle afirma que a única manifestação de indeterminismo na natureza é evidenciado por um tipo de determinismo quântico. Considerando, portanto, a consciência como uma característica natural que manifesta o indeterminismo, devemos concluir que a consciência, de algum modo, exprime o indeterminismo quântico. Apesar de pouco convêncional, esta é uma conclusão que deve ser levada em conta, uma vez que concebemos o cérebro, bem como toda a estrutura neurológica, enquanto aparatos físicos. Entretanto, resta-nos ainda a segunda questão. “Se o indeterminação quântica equivale ao acaso, essa indeterminação, por si, não nos permitirá explicar o problema do livre-arbítrio. [...] qual é a relação entre a indeterminação quântica e a racionalidade” (SEARLE, 2007, p.67). O autor propõe que podemos abordar esta questão da mesma maneira que abordamos a relação entre os microprocessos ocorridos no nível neurobiológico e a consciência. “Igualmente, sabemos que as características causais do sistema são inteiramente exlicáveis pela referência ao comportamento dos microfenômenos” (SEARLE, 2007, p.68). Dessa maneira, dado que, relações causais no nível macro assumem a mesma estrutura formal que as relações causais entre os elementos no nível dos microprocessos. Podemos concluir que a indeterminação observada no nível dos microelementos pode explicar a indeterminação do sistema, entretanto, o acaso produzido neste plano não implicaria o acaso no nível macro do sistema.24 Considerações Finais Ao longo deste artigo, podemos notar a complexidade e esforço de ambos lados ao se posicionar frente a uma reposta satisfatória à questão do livre-arbítrio e sua relação com o determisnismo causal. A maior fonte de dificuldade de se apresentar uma resposta satisfatória a relação destas duas teses, reside na impossibilidade de verificação da veracidade de ambas. Quando nos debruçamos sobre questões como essa, temos em mãos duas incógnitas e cabe a nós elaborar os raciocínios dedutivos e encontrar as evidências que permitam sustentar, ou ao menos, priorizar uma em detrimento à outra. Não podemos estar certos se, de fato, o livre- arbítrio ou determinismo causal são verdadeiros. Abordamos o tema munidos apenas de nossas intuições e aspiramos, veementemente, que nossas respostas possam salvaguardar, por um lado um tipo de liberdade que nos é tão caro, e por outro, que todos os eventos ocorridos no mundo tenham causas que permitam explicar a sua ocorrência. Por esta razão, a proposta de Searle de subscrever o problema da relação entre livre- arbítrio e determinismo enquanto um problema neurobiológico, considerando a conjunção com o problema do estatuto ontológico da consciência, pode ser considerada uma proposta razoável. A plausibilidade da proposta reside na primazia da estrutura encefálica, sendo esta um aparato físico e passível de verificação, como fonte última de nossas ações. Ao subescrever o problema desta forma, Searle limita a questão a duas hipóteses que poderiam ser verficadas segundo esse parâmetro. Supondo o sucesso da primeira, teríamos evidências para afirmar que a estrutura neurobiológica é detentora de poder causal para suportar a experiência consciente da liberdade da vontade, como alegado pelos libertários. Entretanto, sua natureza epifenômenal destituíria sua capacidade de figurar como causas antecedentes suficientes para realização da ação. Neste caso, as causas antecedentes suficientes para que a ação seja realizada seria determinada por processos neurobiológicos de nível inferior, servindo, portanto, de evidência a tese compatibilista. Sendo este o único tipo de liberdade que valeria a pena querer, como salientado por Dennett. Por outro lado, ao supormos o sucesso da segunda hipótese, esta além das evidências sobre a relação causal entre a estrutura neurobiológica na causação da experiência consciente, teríamos em mãos, de mesmo modo, evidência que permitiriam suportar a relação causal inversa, ou seja, de que os processos de deliberação conscientes também seriam dotados de poder causal em relação a estrutura neurobiológica. Restando-nos apenas apresentar de que 25 modo o indeterminismo experienciado no nível psicológico, poderia estar subscrito no nível neurobiológico. Sendo proposto que um meio de sustentar essa concepção seria alegar que o intermisnismo quantico no nível dos microelementos, presentes na estrutura neurobiológica, explicaria a indeterminação do sistema, uma vez que o estado total do sistema não seria suficiente para determinar o estado seguinte. Contudo, o acaso verificado ao nível dos microelementos, não figuraria no nível macro do sistema, garantindo o controle necessário para a realização de ações livres. Notamos que a proposta de Searle apresenta possibilidades futuras as pesquisas em neurociência, pressupondo o alto grau de desenvolvimento possível de ser alcançado por esta área de pesquisa nas próximas décadas. Entretanto, mesmo tendo em mãos tais evidências, como salientado pelo autor, poderemos clarear um pouco nosso problema, mas talvez ainda não estaríamos frente a uma solução. De qualquer modo, a proposta em questão pode levar o debate sobre o livre-arbítrio a outro patamar e este é um tipo de desenvolvimento científico interdisciplinar que vale a pena querer. 26 Referências bibliográficas DENNETT, Daniel C. Brainstorms: Ensaios Filosóficos sobre a Mente e a Psicologia. São Paulo: Editora UNESP, 1999. 431 p. ISBN 85-7139-645-0. . Consciousness Explained. New York, USA: Penguin Books, 1993. 492 p. ISBN 0-14-012867-0. . Elbow Room: The Varieties of Free Will Worth Wanting. 2. ed. Massachusetts, USA: The MIT Press, 1985. 200 p. ISBN 0-262-04077-8. . Some Observations on the Psychology of Thinking About Free Will. Are we free? Psychology and free will, Oxford University,New York, NY, p. 248-259, 2008. FRANKFURT, Harry G. Freedom of the Will and the Concept of a Person. The Journal of Philosophy, USA, v. 68, n. 1, p. 5-20, 14 jan. 1971. Disponível em: http://stevewatson.info/courses/IntroductionToPhilosophy/resources/Frankfurt-FreeWill.pdf. Acesso em: 18 mar. 2020. PEREBOOM, Derk. Living WithoutFree Will. New York, USA: Cambridge University Press, 2003. 231 p. ISBN 0 511 01250 0. Disponível em: http://www.stafforini.com/docs/pereboom_-_living_without_free_will.pdf. Acesso em: 27 mar. 2020. HOEFER, C. Causal Determinism. Stanford Encyclopedia of Philosophy, Stanford University, Stanford, CA, p. 1-42, abr. 2016. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/spr2016/entries/determinism-causal/>. Acesso em: 16 jul. 2018. KANE, Robert. The Significance of Free Will. New York, USA: Oxford University Press, 1998. 268 p. ISBN 978-05-8527-836-0. DOI 10.2307/2653432. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/328758533/Robert-Kane-The-Significance-of-Free-Will- Oxford-University-Press-USA-1996-pdf. Acesso em: 23 mar. 2020. . Libertarianism. Four Views on Free Will, USA, p. 1-48, 2007. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265406723_Four_Views_on_Free_Will. Acesso em: 10 mar. 2020. SEARLE, John R. Liberdade e Neurobiologia: Reflexões sobre o livre-arbítrio, a linguagem e o poder político. São Paulo: Editora UNESP, 2007. 102 p. ISBN 978-85-7139-785-9. . Mind: A brief introduction. New York, USA: Oxford University Press, 2004. 224 p. ISBN 0-19-515734-6. . A Redescoberta da Mente. 1. ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 379 p. ISBN 85-336-0619-2. 27 STRAWSON, Galen. The Impossibility of Moral Responsibility. Philosophical Studies: An International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, Netherlands, v. 75, n. 1/2, p. 5- 24, 1994. Disponível em: https://philosophy.as.uky.edu/sites/default/files/The%20Impossibility%20of%20Moral%20Re sponsibility%20-%20Galen%20Strawson.pdf. TIMPE, Kevin. Free Will. Internet Encyclopedia of Philosophy: A Peer-Reviewed Academic Resource, USA, p. 1-19, S/D. Disponível em: https://www.iep.utm.edu/freewill/. Acesso em: 11 mar. 2020.
Compartilhar