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De Outro Mundo (ac_20201)

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Mila Wander
2018
Copyright @ 2018 Mila Wander
A cópia total ou parcial desta obra é proibida
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao surpreendente Universo.
Índice
 
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38
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
 
1
 
Era tudo tão brilhoso que os meus olhos mal conseguiam se acostumar;
as luzes fluorescentes encandeavam e me deixavam constantemente tonta. Eu
me sentia perdida porque, há apenas um segundo, corria com liberdade pelo
vasto milharal da fazenda, trajando as botas favoritas que o meu pai tinha me
dado no meu aniversário de seis anos. Desde que aprendi a andar, circulava
dentro dos limites da cerca, encontrando bichos, plantas e trabalhadores.
Conhecia aquelas terras como a palma da minha mão, e com certeza não
havia nada que justificasse aquelas luzes.
Papai me dizia para nunca explorar a fazenda à noite, pois a escuridão
trazia alguns perigos como, por exemplo, cobras peçonhentas. Eu não tinha
medo delas. Nunca temi nenhum animal que cruzasse as fronteiras das terras
do meu pai. Os bois, as vacas, as ovelhas, as galinhas e até mesmo os insetos;
eu me considerava a melhor amiga de todos eles. Portanto, não havia o que
temer.
Mas aquelas luzes... Jamais tinha visto nada igual.
Caminhei até elas, alimentando a curiosidade que sempre me foi nata.
Dona Margarida, a cozinheira da família, dizia que a minha curiosidade podia
ser perigosa, mas Seu Frederico, o melhor domador de cavalos da região,
retrucava, falando que era ótimo que eu fosse uma menina com sede de saber
mais. Eu não escutava nenhum dos dois, já que eles só viviam discutindo
mesmo e, um dia, tinha os flagrado aos beijos por detrás de um pé de goiaba.
Aquela foi a cena mais bizarra que eu tinha presenciado em seis anos,
tirando, claro, aquelas luzes.
— Alô? Tem alguém aí? — Cruzei alguns arbustos que ficavam entre o
milharal e a cerca mais próxima. Eu sabia que ali perto tinha um pé de urtiga,
logo, permaneci atenta a cada passo que eu dava na direção da sinistra
luminosidade. 
Eu já tinha chamado o nome de todos os funcionários da fazenda, mas
nenhum deles havia respondido. Aproximei-me da luz o máximo que pude,
como se fosse possível tocar o sol com as pontas dos dedos. Uma superfície
gelada foi sentida de imediato, fazendo-me arrepiar. Como o sol poderia ser
tão frio? Não era possível que tamanha luz viesse do astro-rei. Tia Carolaine,
minha professora da segunda série, explicava e repetia que o sol era muito
quente, tanto que nenhum humano seria capaz de chegar tão perto.
De repente, mesmo sem saber do que se tratava, fui tragada pela luz.
O chão foi retirado dos pés e me senti flutuando como um dos tantos
vagalumes que enfeitavam as noites da fazenda. Em poucos segundos,
simplesmente adormeci no ar, como um passarinho preguiçoso que não
esperou a hora de chegar ao seu ninho.
Borrões indefinidos passaram pela minha visão, mas era como se eu
não tivesse qualquer capacidade de discernir o que estava sendo visto.
Haviam botões como no pequeno avião do Seu Otacílio, o dono muito rico da
fazenda vizinha, que tinha me deixado entrar na cabine só para tirar uma foto.
No entanto, aquele lugar não parecia ser tão pequeno. Alguém remexia o meu
tronco como o Seu Nicolau, médico da cidade, fazia toda vez que eu pegava
uma gripe. Eu não estava doente, logo, não entendia porque estava sendo
analisada.
Depois da inusitada consulta, senti meu corpo sendo carregado, até
que fui colocada em uma espécie de gaiola. Pelo menos era como pareciam
aquelas grades prateadas ao meu redor. Chamei pelo meu pai, porém não
obtive resposta. Alguém me mandou ficar em silêncio. A voz era esquisita,
como se a pessoa tivesse muita dificuldade de pronunciar um simples:
“calada!”. Eu não era capaz de obedecê-la. Às vezes meu pai também me
pedia silêncio, principalmente quando eu tinha descoberto alguma coisa nova,
e eu nunca o levava a sério. Insistia até que escutasse de uma vez. Sempre
dava certo, se quer saber.
Por este motivo, continuei chamando, perguntando onde eu estava e
por que tinham me colocado numa gaiola, já que eu não era um pássaro e
nunca seria capaz de dormir em pé, ainda que Dona Margarida conseguisse
esse feito nos dias em que estava muito cansada de cozinhar. Eu quase nunca
ficava cansada. Meu pai dizia que eu era ligada no duzentos e vinte. Jamais
entendi o que isso queria dizer, mas não parecia com algo que ficava quieto
por muito tempo.
— Oi — ouvi uma voz infantil bem ao meu lado, e virei o rosto por
achar que se tratava de algum amigo da escola. Meus olhos finalmente
conseguiram focar em alguma coisa, mas o que vi me deixou assustada: era
um par de olhos vermelhos.
— O que foi isso no seu olho? — perguntei, apontando para o que
achei ser uma criança, por ser do meu tamanho. Entretanto, era uma criança
bem esquisitona. Seus cabelos curtos eram azuis. Não um azul como a água
do açude ficava no inverno, era um azul tipo cor de céu em dia ensolarado. A
pele dela era tão branca quanto o leite que Madame Olívia tirava das vacas, e
que eu adorava tomar com Nescau.
— Não há nada no meu olho — ela fez uma careta. Não sei como,
mas percebi que a criança, na verdade, era um menino que devia ter a minha
idade. — Eles são assim, diferentes do seu, em sua própria natureza.
— Você não está usando lentes de contato? Meu pai usa, mas ela é
transparente. — O menino fez uma careta de descrença, e eu continuei: —
Ele me disse que tem gente que usa colorida e deixa o olho de outra cor.
— Desculpe-me por não saber do que a senhorita está falando.
Foi a minha vez de fazer uma careta. Simplesmente porque ninguém
nunca tinha me chamado de senhorita, nem mesmo falado comigo de um jeito
tão... esquisito. Era quase como se o moleque fosse um adulto em miniatura.
Guiei meus olhos por todo seu corpo. Ele vestia uma espécie de roupa
que eu só tinha visto na televisão, durante as Olimpíadas. Os nadadores
costumavam usar algo como aquele macacão, mas não eram prateados como
o do menino.
— Qual é o seu nome? — perguntei, toda curiosa. Se estava presa em
uma gaiola, queria ao menos fazer uma amizade. Papai dizia que eu era a
pessoa mais fácil de fazer amigos no mundo todo. Ele não gostava muito que
eu falasse com as pessoas desconhecidas quando estávamos na fila do banco.
— O meu é Estrela — informei logo, sem esperar qualquer resposta. — Sabe
por que tenho esse nome? Porque meu pai adora olhar para o céu e diz que eu
brilho como as estrelas. Meu sonho, um dia, é poder chegar bem perto de
uma estrela e tocá-la com as mãos.
— É impossível — o menino falou, simplesmente.
Cruzei os braços em frente ao meu corpo miúdo.
— Quem disse? Claro que não é! Tia Carolaine falou que nada é
impossível.
— Poucas coisas são impossíveis, uma delas é tocar em uma estrela.
Devido à composição química, sua mão derreteria em menos de um milésimo
de segundo. Sem contar que a senhorita jamais conseguiria chegar tão perto.
A estrela mais próxima do seu planeta é o Sol, e o seu corpo limitado não
resistiria e explodiria antes mesmo de...
— Cala a boca, seu menino feio! — gritei em pleno ataque de nervos.
Coloquei minhas mãos nos ouvidos. — É mentira! Um dia você vai ver, vou
tocar uma estrela e não vou explodir, nem derreter.
— Como pretende fazer isso se seu planeta tem uma tecnologia tão
limitada? — Foi a vez de ele cruzar os braços. Sua expressão também não
estava nada satisfeita, mas eu não ligava. — Serão necessários pelo menos
mais dois milênios para que os terráqueos desenvolvam a capacidade de
explorar o próprio sistema onde habitam.
Eu não estava entendendo absolutamente nada daquela conversa.
Imediatamente, tive vontade de ir pra casa só pra contar ao meu pai que
alguém o chamara de mentiroso. Ele tinha me dito, com todas as letras, que,
sim, eu alcançaria as estrelas um dia, se quisesse. Sempre acreditei no meu
pai. Ele era o homem mais inteligente do mundo inteiro, jamais mentiria para
mim.
— Eu quero ir pra casa — choraminguei.
— A senhoritavai assim que eles encontrarem uma resposta — o
menino colocou as mãos para trás, como a professora mandava a gente fazer
quando estávamos em fila.
— Eles? Eles quem?
— Não posso dizer. Se bem que eu poderia... A senhorita não vai se
lembrar de nada do que foi dito mesmo — o menino ergueu os ombros e os
soltou junto com um longo suspiro.
— Eu não tenho “amnanese”. Vou me lembrar de tudinho!
— Creio que a senhorita quis dizer amnésia. Não entendo como
alguém pode não ter propriedade sobre a língua que usa para se comunicar
diariamente. Eu a aprendi em poucos dias de estudo. — Ele coçou a cabeça
enquanto o meu cérebro dava um nó maior ainda. Que moleque mais
esquisito! Tudo bem que os garotos costumavam ser bem estranhos, mas
aquele merecia uma medalha. — Sua raça é mesmo muito atrasada.
— Não sou cachorro pra ter raça! Você que parece um... um... — Eu
não conhecia tantas raças de cães assim. — Um “pudou” tingido de azul e
com olhos de coelhinho da Páscoa!
O menino passou algum tempo apenas me encarando, todo confuso,
até que um resquício de sorriso cruzou seus lábios pequenos e rosados.
Aquilo não era uma piada, por isso me irritei ainda mais. Prometi a mim
mesma que nunca deixaria um garoto me beijar. Rosana, uma de minhas
melhores amigas, falou que um dia nós meninas namoraríamos os meninos e
beijaríamos a boca deles. Eu achei tudo aquilo um nojo completo. A boca
humana tem muitas bactérias, segundo explicou tia Carolaine na aula de
Ciências.
— Oh... — o esquisito desviou o rosto como se alguém o tivesse
chamado. Depois, voltou a me observar atentamente. — Tenho boas notícias.
A senhorita vai voltar para casa agora.
— Eu? Quando? Como?
— Sim, a senhorita. Hoje, agora. E não posso dizer como, sinto
muito. Você não entenderia a explicação minuciosa sobre as possibilidades
de te devolver para a Terra. 
Fiquei confusa porque nunca, nunquinha mesmo, alguém havia
respondido a todas as perguntas que eu costumar soltar atrás das outras. Por
um segundo, quase criei simpatia pelo moleque de cabelos azuis.
A forte luz retornou com força total, tomando parte do meu corpo.
Fiquei assustada porque é natural temer o desconhecido. Olhei no fundo dos
olhos vermelhos do garoto, que devia ter percebido o meu pavor.
— Não tenha medo, Estrela. Logo, logo estará de volta. Se preferir,
feche os olhos.
Eu o obedeci prontamente. Senti uma dor aguda em meu braço
direito, como se tivesse levado uma segunda injeção contra a paralisia
infantil.
— Aiii! O que foi isso? — gritei, porém não ousei abrir os olhos de
novo. Tinha medo do que encontraria pela frente.
— É algo extremamente necessário, que vai te fazer esquecer tudo
depressa — ouvi a voz do menino, ainda bem perto de mim. Uma longa
pausa se fez antes que ele murmurasse, tão baixo que tive dificuldade de
ouvir: — Eu prometo, Estrela, que tentarei achar uma forma de te mostrar
uma estrela bem de perto.
— Verdade? — voltei a abrir os olhos. A luz que me envolvia tinha
tomado todo o meu corpo, de forma que, por trás dela, só consegui visualizar
um par de olhos vermelhos fixos em mim.
— Um dia... Quem sabe? Terei muito orgulho de ser o responsável
por um avanço a nível universal. A senhorita disse que nada é impossível e,
por um instante, fui capaz de acreditar.
Sentia meu corpo cada vez mais leve, flutuando no espaço. Uma parte
dentro de mim sabia que eu voltaria para casa em breve, era só ter paciência.
No entanto, outra parte desejou ficar um pouco mais na presença do garoto
esquisitão. Havia muitas perguntas a serem feitas e ele parecia ter as
respostas, por mais que não aparentasse ser mais velho do que eu, logo, não
podia ser tão mais inteligente ou esperto.
— Você não me disse o seu nome! — gritei, pois a cortina luminosa
me preencheu de vez e, naquele instante, não consegui mais vê-lo. 
 
— Meu nome é impronunciável em sua língua, senhorita Estrela.
Foi a última coisa que ouvi partindo daquele menino. Fui tragada por
uma energia intensa, que me fez gritar de pavor e porque meu estômago ardia
como se eu estivesse caindo da árvore mais alta da fazenda — coisa que já
tinha acontecido e que, graças a Deus, não me gerou nada além de um braço
quebrado.
 
Abri os olhos de supetão, com o corpo todo suado e a respiração falhando.
Demorei mais tempo que o normal para me localizar dentro da maior suíte da
casa, a que pertencera ao meu pai antes de ele morrer por causa de um infarto
fulminante. Levantei do colchão macio, sentindo-me meio trôpega, alcancei o
banheiro e lavei meu rosto com uma grande quantidade de água.
Aquela porcaria de sonho tinha acontecido outra vez. Desde os seis
anos que aquela luz e o estranho garoto de cabelos azuis tomavam conta do
meu sono, de forma que me deixava intrigada. Meu pai e Dona Margarida
tinham se esforçado para me fazer acreditar que nada daquilo foi real. Eu
tinha ido a várias sessões com a psicóloga da cidade só para que ela colocasse
na minha cabeça que sonhos loucos aconteciam e que nem sempre
significavam alguma coisa.
Obviamente, eu nunca fui abduzida, como sugeria o sonho. Não tinha
mais idade para acreditar naquilo, embora fosse da turma que se encantava
por histórias sobre extraterrestres. Meu gosto pelo céu ainda era enorme e,
por mais que tenha enterrado o sonho infantil de me tornar uma astronauta,
ainda existia, dentro do meu peito, uma vontade louca de atravessar o espaço.
Olhei-me no espelho por um segundo antes de vestir um casaco e
deixar o casarão para a minha caminhada matinal. Aquela seria realizada
ainda mais cedo, antes mesmo de eu ter coragem de escovar os dentes. Nunca
precisei de relógios. Pela posição do Sol, quase despontando no horizonte à
minha frente, devia ser umas quatro e meia da manhã. A fazenda inteira
estava gelada, devido ao rigoroso inverno, e silenciosa. Os primeiros
trabalhadores só dariam as caras perto das seis da manhã.
Eu tinha muito tempo para pensar antes de começar a realizar as tarefas
do dia, que eram inerentes a todos os fazendeiros. Tentei listar as coisas que
eu tinha para fazer, mas a mente ainda estava longe. Propriamente, no espaço.
Atravessei a horta a passos curtos, distraídos, escutando os primeiros galos
cantarem e observando os espantalhos horrorosos no meio da plantação.
Estava tão frio que saía vapor da minha boca toda vez que eu respirava com
mais veemência.
Alcancei o velho celeiro depois de alguns minutos de caminhada. Não
costumava ir ali sem ser à noite, mas o sonho havia despertado a curiosidade
de saber o que acontecia no céu do interior do estado. Subi as escadas de
madeira até o patamar mais alto, ignorando os cavalos e a grande quantidade
de feno jogado em um canto.
Caminhei devagar até o velho telescópio de papai, apontado para a
única janela do ambiente. O coitado havia gastado uma fortuna por causa da
minha obsessão pelo espaço. Era a coisa mais valiosa, na minha opinião, que
existia dentro daquela fazenda. Eu tinha tantos ciúmes dele que não deixava
ninguém chegar perto.
Posicionei-me atrás do telescópio, sentando-me em um banco
estrategicamente colocado, e apoiei meu rosto perto da lente. Na noite
passada tinha perdido horas observando a lua cheia, mas ela já havia ido
embora e eu precisava de uma nova distração.
— Vem cá, belezinha... Cadê você? — sussurrei para mim mesma,
ajustando a lente para um ponto que era bastante visitado pelos meus olhos.
Eu sabia que ainda dava para vê-lo, era só ter paciência e um pouco mais de
precisão. — Aqui! Achei.
Sorri ao observar a pequena bola quase sem luz, com algumas faixas
acinzentadas enfeitando. Era ele, todo imponente, nosso querido vizinho
Vênus. Eu era especialmente apaixonada por aquele planeta.
Passei longos minutos observando fixamente, como se pudesse
encontrar algo novo naquela bola que parecia desinteressante aos olhos de
qualquer pessoa. Às vezes nem eu mesma entendia tanta obsessão. Os
segundos se agruparam mais e mais, transformando-se em longos minutos,
que fecharam a primeira hora sem que eu me desse conta.
Foi de repente que uma bolade luz enorme atravessou a lente do
telescópio, fazendo-me gritar alto. Os cavalos relincharam, inquietos, e eu me
levantei de supetão, derrubando o banquinho atrás de mim. Corri na direção
da janela para tentar enxergar a olho nu o que havia sido aquilo. A luz foi tão
intensa que não era possível que não desse para vê-la longe do telescópio.
E lá estava ela. Era similar a um avião, mas tinha um formato
esquisito, além de que parecia estacionada no ar, como um gavião mirando
uma presa antes do ataque. Meu coração se espremeu dentro do peito. Foi
impossível não comparar aquela luz com a que permeava os meus sonhos
infantis. A emoção foi tanta que meus olhos marejaram sem qualquer
explicação lógica. Acho que, no fundo, sempre quis mostrar ao mundo inteiro
que eu estava certa o tempo todo.
— Que merda é essa? — perguntei a mim mesma. Doida como eu era,
fiz o favor de responder: — Parece uma nave espacial.
A luz começou a se movimentar para a esquerda. Foi crescendo...
crescendo... Era como se tivesse se aproximando da fazenda. Meu desespero
cresceu na mesma medida, porque, por um instante, imaginei que poderia ser
abduzida a qualquer momento. A realidade e a fantasia constantemente se
chocavam dentro do meu cérebro, que ainda carregava os sonhos de criança
junto com os problemas da mulher que me tornei.
Fiquei parada feito uma estátua, apenas observando, com os olhos
bem abertos, a luminosidade esquisita. Alguns segundos se passaram e ela
simplesmente desapareceu. A frustração que me invadiu foi tanta que soltei
um grunhido alto, assustando, de novo, os coitados dos cavalos.
Não me restou nada além de procurar me contentar. Eu tinha uma
fazenda para levar adiante e os afazeres não seriam ignorados só por causa de
minha loucura. A realidade berrava por mim. Foi por este motivo que deixei
o celeiro e voltei para o casarão. Precisava tomar um banho quente e fazer o
desjejum antes de iniciar a labuta.
Os planetas, as naves, as estrelas e as luzes ficariam apenas dentro da
minha imaginação, bem como o estranho par de olhos vermelhos.
2
 
Depois de um banho demorado e aquecido a gás, ganhei novo ânimo
para começar o dia. Apertei o interruptor para ligar as lâmpadas da enorme
sala de jantar, onde o desjejum já estava sobre a mesa. O meu pai tinha
construído um verdadeiro casarão para morar comigo, com a minha mãe e
com os filhos que eles teriam se ela não tivesse morrido de câncer antes da
hora. Cada cômodo daquela casa era desnecessariamente grande e difícil de
remover poeira. Dona Margarida reclamava constantemente daquilo.
Apertei o interruptor outra vez, estranhando o fato de nada ter
acontecido. Foi com muita surpresa que constatei que a energia tinha faltado,
coisa que raramente acontecia.
Ouvi burburinhos vindos da cozinha e me aproximei devagar. As
vozes de Dona Margarida e de Seu Frederico estavam calmas, baixinhas, por
isso logo estranhei. Em condições normais, eles estariam aos berros. O
apelido de Dona Margarida era “boca de alto-falante”, e não era nem um
pouco em vão.
— Eu vi, mulher. Vi com esses olhos que a terra há de comer — Seu
Frederico balbuciava, parecia angustiado e se tremia todo. Parei rente à porta
da cozinha e fiquei escorada no batente, observando os dois conversando sem
me dar o trabalho de anunciar a minha presença. — Era uma luz muito forte.
De desinteressante, a conversa tragou a minha atenção total. Deixei a
coluna ereta e me escondi atrás da geladeira. Os motivos de aqueles dois
estarem falando baixo foram compreendidos por mim imediatamente. Eles
jamais falariam sobre o assunto comigo por perto, e certamente o trocariam
se soubessem que eu estava ouvindo.
Mal sabia eles que eu também tinha visto a luz. Não havia sido coisa
da minha cabeça. Aquela comprovação me deixou extasiada e, ao mesmo
tempo, espantada. 
— Deixa disso, homem! E nem invente de contar à menina Estrela, ou
vou te dar um sopapo de colher de pau. — Consegui ver o momento em que
Dona Margarida ergueu a colher para o marido. Ela apenas ameaçava, nunca
tinha, de fato, colocado em prática as coisas absurdas que dizia.
Os dois haviam casado há apenas quatro anos, logo quando meu pai
morreu e eu pedi, por tudo no mundo, para que morassem comigo no casarão.
Seu Frederico, com a mente presa às tradições de antigamente, disse que seria
muito feio morar com a Margarida sem desposá-la. Sim, ele usara o verbo
“desposar” em dois mil e dezessete.
— Não vou dizer nada, sei que o assunto deixa a menina
impressionada. — Seu Frederico tirou o chapéu de palha e fez uma expressão
de quem sofria. — Só estou dizendo que eu vi. Era uma luz medonha de
grande no céu. Depois a energia se foi e agora estamos no breu. Já tentei ver
as fiações, mas não tem nada de errado. Tem caroço nesse angu, mulher...
— Ora... Mas que conversa esquisita. — Margarida ainda se mantinha
descrente. Pudera, ela foi a pessoa que mais sofreu com as minhas paranoias.
Eram madrugadas e mais madrugadas insones em que eu saía do casarão e
perturbava seu sono na antiga palhoça, dentro da fazendo mesmo, onde ela
morava. — O que essa doidice tem a ver com a energia? Melhor ligar pra
companhia de luz de uma vez.
— Vou fazer isso agora mesmo. Mas que foi esquisito, foi. E aquilo
não era um avião nem aqui e nem na China! — Seu Frederico se afastou e
veio na minha direção. Resolvi me fazer presente antes que ele descobrisse
que eu estava à espreita.
— Bom dia! — entrei na cozinha feito um foguete.
— Ai, Senhor! — Dona Margarida levou uma mão ao peito, assustada
com minha entrada barulhenta. Ela teria um troço se fosse obrigada a
conversar comigo sobre luzes vindas do céu de novo. — Bom dia, menina.
Saiu da cama cedo.
— Bom dia, Estrelinha — Seu Frederico deixou um beijo no topo da
minha cabeça. Em seguida, deixei outro na bochecha rechonchuda de Dona
Margarida. Eu a amava como se fosse a minha mãe. — Faltou luz.
— É, percebi. O senhor sabe o que pode ter acontecido? — questionei
para Seu Frederico, querendo jogar verde pra colher maduro. Ele era um
senhor de sessenta e um anos que não fazia ideia de como mentir, sobretudo
para mim. Foi por isso que soltou um monte de gaguejos, até que Margarida
se adiantou:
— Ele vai ligar pra companhia elétrica, não é, homem?
— Ah, é... Sim, vou ligar. Não se preocupe, Estrelinha, a energia vai
voltar logo.
Ele deixou a cozinha antes que eu pudesse fazer mais perguntas. Seu
Frederico estava mancando um pouco, devido a um problema crônico na
coluna. Mas ele era teimoso e não largava os cavalos por nada. Eu só ficava
quieta a respeito daquilo porque tinha certeza de que, caso o impedisse de
cuidar dos bichos, ele adoeceria de vez.
— Seu café está na mesa, Estrela. — Pelo cheiro delicioso, Dona
Margarida já estava fazendo feijão para o almoço.
Ela era outra pessoa que eu queria que nunca mais precisasse
trabalhar. A fazenda ia muito bem e eu podia contratar alguém mais nova
para o serviço, mas a mulher era um poço de teimosia, além do que, por mais
que reclamasse, amava cozinhar. O máximo que ela me deixou fazer foi
contratar uma pessoa para os serviços de limpeza do casarão; Odete vinha
duas vezes por semana e deixava tudo nos trinques.
— A senhora já comeu? — Alisei a longa trança de Dona Margarida.
Seus cabelos eram escuros e bem lisos, herança de sua descendência
indígena. Eu os amava porque sempre estavam arrumados, diferentes dos
meus, que viviam cheios de frizz.
— Já, sim, meu bem. — Ela começou a mexer a panela porque se
desconcertava toda vez que eu a pegava. Margarida nunca foi de carícias. Era
uma guerreira criada na roça com pouco carinho familiar. — Vá se alimentar
direito antes de sair, viu? Vou ficar de olho na senhorita.
Ela amava ser a minha fiscal de prato. Eu comia pouco naturalmente,
e isso sempre a deixava nervosa. Não tinha culpa se meu organismo era
acostumado com menos comida do que o aceitável para o povo interiorano.
— Pode deixar, vou comer direito. — Bati continência, sorrindo, e
voltei para a sala de jantar.
Assim que me sentei, os pensamentos bizarros voltaram. Olhandopara o lugar à mesa que pertencia ao meu pai — e que jamais fora ocupado
por mais ninguém desde sua partida —, refleti sobre os meus sonhos e sobre
a luz que finalmente alguém, além de mim, tinha visto.
A fazenda era cheia de histórias, mas, estranhamente, todas as que se
relacionavam às aparições estranhas e objetos voadores não identificados
morriam antes de chegarem ao meu conhecimento. Eu sabia daquilo porque
Valentim, o sobrinho de Margarida e meu braço direito na fazenda, me
contava às escondidas. Nós tínhamos crescido juntos e éramos muito amigos.
Ele sempre acreditou nos meus sonhos, dizia que era possível, sim, que eu
tivesse sido abduzida, sobretudo porque eu tinha uma prova carnal.
Ergui a manga do meu casaco e verifiquei, pela milionésima vez, o
sinal que fazia parte do meu corpo desde os seis anos. A pequena marca no
braço direito tinha um formato esquisito que lembrava a letra H. Ela
queimava de vez em quando, mas Dona Margarida dizia que era uma reação
alérgica. O meu pai fez pouco caso; ele achava que eu mesma tinha
provocado a cicatriz só para inventar aquela história de extraterrestre e nave
espacial. Às vezes ele dizia que eu tinha aprontado alguma e me machucado,
depois criado a história para não ser punida pela minha desobediência em
andar pela fazenda à noite.
Comi uma banana e tomei um gole de café enquanto a saudade do
meu pai me preenchia. Ele era um fazendeiro meio bruto, mas tinha um
coração de ouro. Herdar aquela fazenda era uma responsabilidade que, na
maioria das vezes, eu não sabia se poderia arcar. Ainda bem que contava com
a ajuda de todos os funcionários, pessoas humildes que amavam aquelas
terras e lutavam por elas com unhas e dentes.
— Estrela! Estrela! — Valentim invadiu o casarão às pressas. Suas
botas se chocavam com força no piso de madeira. — Estrela!
— Aqui na sala! — gritei, já me levantando. Dona Margarida
certamente perceberia que eu não tinha comido tanta coisa, mas já me sentia
satisfeita.
— Estrela! — O homem parou assim que me viu e se curvou diante
de si mesmo, tentando recuperar o fôlego.
Valentim era um homem alto e bonito, sabia domar cavalos, cuidar da
horta e me ajudava com as finanças. O sonho de Margarida era me ver casada
com ele, mas não ia rolar. Não que a gente não tivesse se pegado várias
vezes. É só que Valentim era também o tipo de cara que podia ser um ótimo
amigo, mas um companheiro terrível. 
— O que foi, Valentim? Que bicho te mordeu? Já sei que faltou
energia.
— O... milharal... — ele ainda tentava recuperar o fôlego. — O
milharal. Você precisa ver isso. É urgente!
— O que houve? Pegou fogo de novo? — Levei as duas mãos ao
peito. No ano em que meu pai morreu, demos vacilo e a plantação de milho
sofreu uma queimada horrível. Perdemos todo o trabalho do ano inteiro.
— Não. Você precisa ver. Rápido! Já selei a Açucena.
Ele mal me deixou falar alguma coisa e foi logo deixando a sala.
Corri atrás dele porque Valentim não era alguém que se espantava com
facilidade. Desci as escadas na entrada do casarão na maior velocidade, até
alcançar Açucena, a minha égua puro-sangue toda preta. Aquela menina era o
meu xodó.
Valentim logo montou no Tufão, o seu cavalo marrom, e me esperou.
Ele sabia do ritual. Puxei o focinho de Açucena e a acariciei por alguns
segundos, mantendo contato visual. Eu não precisava falar nada, ela sabia
que eu tinha pressa e que depois ganharia uma escovação bem demorada por
tê-la feito correr tão cedo. Açucena era arisca e tinha um rei na barriga.
O meu ritual demorou a metade do tempo comum. Montei em
Açucena com destreza, mantendo as rédeas curtas e as pernas bem fechadas
ao seu redor. Nós estávamos prontas para acelerar.
Segui Valentim pelo amplo pasto. Cruzamos o açude, a horta, a
pequena plantação de uvas — que o meu pai mantinha porque amava vinhos
artesanais, e que eu resolvi transformar em mais uma fonte de renda — e
alguns casebres, que pertenciam aos funcionários mais íntimos do papai.
Adentramos a longa trilha da plantação de milho. Respirei aliviada ao
perceber que, aparentemente, estava tudo bem e nós teríamos uma colheita
abençoada.
— Aqui! — Valentim berrou e fez o seu cavalo brecar.
Parei ao seu lado, olhando para os dois lados do milharal e sem
entender o que estava acontecendo. O homem desceu de Tufão habilmente.
Deixei Açucena ao lado dele. Os dois animais eram treinados a não saírem do
lugar enquanto não retornássemos para levá-los ao celeiro, por isso não havia
necessidade de prendê-los.
— Vem comigo, Estrela — Valentim fez um sinal com a cabeça e
adentrou a plantação a passos largos. Eu o segui, ainda bastante encucada
com a situação toda.
Comecei a ouvir algumas vozes. Umas berravam e outras pareciam
cochichar. Valentim continuou o percurso, sempre conferindo se eu ainda o
seguia. Localizei, à frente, alguns funcionários da fazenda, até que um
descampado imenso surgiu do nada, contradizendo toda a lógica.
— Que merda é essa? — gritei, atônita, sentindo os meus nervos se
espatifarem.
— Não sabemos o que aconteceu ainda, senhorita Estrela — um
funcionário, chamado Jailton, murmurou, segurando seu chapéu de palha
sobre o peito.
Olhei bem para o estrago feito, acocorando-me para ter uma ideia
melhor do que poderia ter acontecido. Analisei a terra, até que encontrei um
milho que parecia ter sido pisoteado, como todos os outros. Os pés de milho
daquela área foram todos achatados, formando uma circunferência perfeita e
enorme no meio da plantação.
Minha mente fantasiosa logo fez com que eu me lembrasse de um
filme chamado “Sinais”. A plantação do protagonista também havia sido
marcado de um jeito bem similar. Eu me arrepiei dos pés à cabeça, porque,
no filme, aqueles sinais haviam sido feitos por seres extraterrenos e suas
naves espaciais luminosas.
— Isso só pode ser coisa do demônio! — uma funcionária deu sua
opinião. A mulher estava tão apavorada quanto todos os outros.
— Deve ter uma explicação lógica para tudo isso — Filomeno, o
homem que cuidava da plantação de uvas, falou em um timbre firme. —
Deve ser alguma praga.
— Não tem nenhuma praga aqui — Seu Luís, o cara responsável pelo
controle de pragas, pareceu chateado com a suposição de Filomeno. — É
uma coisa sobrenatural. Vocês viram as luzes mais cedo? Eu vi.
Metade dos funcionários olhou para mim de imediato. Seu Luís deu
de ombros, arrependido por ter suposto aquilo na minha frente. Obviamente,
todos sabiam dos meus probleminhas com o assunto.
— O que acha que é? — Valentim se acocorou ao meu lado. Segurou
um pedaço de milho achatado entre os dedos. — Ninguém nunca viu coisa
igual.
— Eu não sei. Não há o que ser feito — ergui-me depressa, uma parte
porque queria ir embora e outra porque não estava a fim de ficar tão perto do
Valentim. — Voltem aos seus trabalhos! — bradei para todos ouvirem. Eu
não gostava de usar aquele tom, mas reger uma fazenda daquele porte
requeria certa brutalidade. — Seu Luís, verifique o terreno antes de limpar.
Vamos replantar tudo e ver o que acontece, sim?
— Certo, senhorita!
Eu me afastei da circunferência tão depressa quanto me aproximei
dela. Uma coisa horrível revirava o meu estômago, e eu sentia gosto de bile
na boca.
Valentim correu atrás de mim.
— Estrela! Estrela, espere!
Parei entre um pé de milho e outro. Eles já estavam enormes, bem
maiores do que eu. A colheita seria proveitosa se nada mais saísse dos
conformes.
— O quê?
— Não vai querer saber o que houve? — Valentim parou na minha
frente, resfolegante. — Aquilo... Você viu o filme. A gente assistiu juntos,
lembra?
Claro que eu me lembrava. Valentim e eu costumávamos namorar na
sala de TV, de mãos dadas, único jeito que meu pai careta permitia. Mal sabia
ele o que a gente fazia quando estávamos soltos pela fazenda...
Dei de ombros.
— O que posso fazer, Valentim? Já achei a solução. Vamos replantar
e pronto.
— Seu Frederico viu uma luz forte hoje cedo. E uma nave espacial.
Bom, ele não disse essa palavra, só falou que não era um avião. Você acha
que...
— Valentim — coloquei uma mão para frente, obrigando-oa parar.
— Chega. Eu não posso alimentar isso, certo? A vida real é essa aqui...
Temos que plantar o milho, colher e vender. Esse é o nosso sustento.
— Você não está falando sério — ele se aproximou mais alguns
passos. — Qual é? Depois de vinte anos querendo entender o que houve, vai
simplesmente deixar pra lá? Você deve estar explodindo por dentro, querendo
saber se essa coisa esquisita é o que parece ser.
— Vinte e dois. Foram vinte e dois anos — corrigi no impulso.
Ele tinha toda razão. Eu estava prestes a partir o meu corpo em
milhões de pedacinhos angustiados. Havia uma certeza enorme dentro de
mim, mas havia também o medo do desconhecido e de ficar louca, cheia de
paranoias, a ponto de incomodar Dona Margarida outra vez. Era mais seguro
que eu focasse na realidade. Pelo menos naquele momento, na frente de
todos. Intimamente, eu já estava decidida a tirar a limpo.
Mas Valentim não precisava saber daquilo.
— Seja o que for, estragou parte da plantação. — Dei alguns passos
para trás, distanciando-me. Ergui a cabeça para parecer mais alta que ele,
porém era impossível. — Agora, volte ao trabalho. Vou ver como estão as
vacas e o carregamento de leite.
Valentim não falou mais nada, e eu nem permiti que retrucasse. Virei
as costas e continuei o percurso até encontrar Açucena. Na minha mente,
planos mirabolantes começaram a se formar. Se uma nave espacial aterrissou
na minha plantação, ela com certeza retornaria, cedo ou tarde. Afinal, no
filme não havia apenas um sinal, mas vários, e em todos os dias aparecia
mais um.
Se um extraterrestre metido a merda queria entrar em contato com a
Terra, eu conferiria bem de perto. Mesmo que morresse de medo e que não
soubesse como — ainda —, faria questão de tirar a limpo. Eu queria
reencontrar aquele menino estranho de olhos vermelhos só para ter o gostinho
de poder gritar bem alto: VOCÊ EXISTE! NÃO SOU LOUCA! 
 
3
 
A sombra de um homem surgiu no meio de uma luz tão forte, uma
mistura de azul e lilás, que mal dava para enxergar os contornos do
desconhecido. Eu estava parada no meio da vegetação extensa que existia
depois da cerca, lugar que não frequentava desde o incidente aos seis anos.
Por mais que estivesse com medo, não ousei recuar. A sombra continuou se
aproximando, e me obriguei a esperar porque ele poderia ter as respostas que
eu tanto queria.
— Estrela? — uma voz firme, muito séria, ecoou pela mata. Cada
pelo do meu corpo se eriçou diante daquele timbre. Continuei respirando
rápido, segurando a vontade de dar meia volta e permanecer bem longe de
tanta esquisitice. — Estrela... Está perfeita a sua capacidade de me ouvir?
— S-Sim — consegui gaguejar enquanto nova onda de arrepios me
acometia. O homem usava um sobretudo preto e encapuzado, de forma que
não consegui ver seu rosto nem quando ele ficou a um metro de distância.
— Isso é uma ótima notícia. Preciso que se mantenha atenta ao que
direi agora.
Engoli o choro que ameaçava tornar a cena ainda mais patética.
Respirei fundo, expulsando o medo, e então a coragem me fez perguntar:
— Quem é você? O que quer aqui?
— Eu... — ele hesitou. Passaram-se alguns segundos de silêncio, até
que o desconhecido emitiu um riso meio sem graça. Mais arrepios tomaram o
meu corpo. — Todo esse tempo e não pensei a respeito.
— A respeito do quê? — Enrolei os braços ao redor do meu corpo
para conter o frio proveniente da brisa que corria entre as árvores. — Por
favor, me diga quem você é e o que quer comigo.
— Não pensei em uma tradução para o meu nome. Estrela, preste
atenção. Eu vim te buscar.
Finalmente meus pés resolveram se mexer. Dei alguns passos para
trás, assustada com a afirmação daquele cara. Sequestro não estava em meus
planos, de jeito nenhum. Só que, ao recuar com mais velocidade, tropecei em
uma raiz. O homem conseguiu me alcançar antes que eu me estatelasse;
segurou os meus braços com força. Suas mãos queimaram a minha pele como
se estivessem em brasa. Soltei um grito abafado pelo pavor e ele finalmente
me largou, dando-me certo espaço.
— Não é necessário ter medo, pois não te machucarei — sua voz se
tornou quase gentil. — Só preciso cumprir a minha promessa.
— P-Promessa? Que promessa? — choraminguei, olhando para todos
os lados. A luz atrás do homem ainda era forte, por isso consegui encontrar o
caminho de volta para a fazenda. Meu objetivo era sair correndo assim que a
situação piorasse.
— Eu tenho conhecimento de que você se lembra de tudo. De alguma
forma, a injeção não funcionou em seu organismo. Foi um grande erro. —
Ele deu um passo na minha direção, porém recuei mais um, daquela vez
atenta para não tropeçar de novo.
Toquei em meu braço direito, bem em cima da estranha marca.
— É você? Você é o menino dos olhos vermelhos?
A sombra balançou a cabeça para cima e para baixo. Por um instante,
desejei que retirasse aquele capuz para que eu pudesse vê-lo por inteiro.
Queria conferir os olhos vermelhos e os cabelos azuis outra vez, só para
constatar que eu não tinha enlouquecido, que aquele garoto era real.
— Por favor, encaminhe-se para o centro do milharal. Não tenho mais
tempo, nossa conexão se romperá assim que eu cruzar a atmosfera de seu
planeta.
— O quê?
— Se quer realizar o seu maior sonho, Estrela, faça exatamente o que
falei. Agora!
A imagem do homem encapuzado se partiu em milhões de pedaços,
como se ele fosse um espelho diante de mim.
Abri os olhos no susto, e me deparei com o teto do celeiro. Sentei-me
no chão de madeira, tentando fazer a minha respiração voltar ao normal. Eu
tinha acabado de acordar de um sonho ainda mais louco que aquele que
sempre surgia.
Meio desnorteada, percebi que tinha adormecido no celeiro depois de
ter passado horas observando o céu no telescópio, à espera de alguma luz ou
qualquer coisa que indicasse a presença de um corpo estranho. Apenas a luz
de um velho candeeiro bruxuleava as paredes de madeira, tudo porque nem a
companhia elétrica havia conseguido devolver energia para a fazenda,
alegando um problema mais sério nas fiações. O reparo completo seria feito
na manhã do dia seguinte, que, pelo visto, não demoraria a chegar.
O céu ainda estava escuro, mas eu já podia sentir o sol se
aproximando devagar. Devia ser quase quatro horas da manhã. A frustração
que me invadiu por ter sonhado com aquele desconhecido fez com que eu
soltasse um grunhido irritado. Levantei-me do chão frio, colocando as mãos
geladas dentro do bolso do casaco. Naquela época do ano, as temperaturas
eram sempre extremas; fazia um calor horroroso nas horas de sol e um frio
insuportável nas de lua.
Peguei o candeeiro pela alça lateral, disposta a retornar ao casarão
para tentar dormir um pouco, em um lugar confortável e quentinho. Não
adiantaria ficar e alimentar ainda mais as minhas fantasias galácticas. Não
havia nada de diferente no céu, e o problema com o milharal devia ter alguma
explicação que não fosse a presença de extraterrestres. No fim das contas, eu
devia aprender a lidar, de uma vez por todas, com minhas maluquices.
Desci as escadas devagar, para não acordar os cavalos, e deixei o
celeiro em silêncio. Senti um incômodo em meus braços, como se mãos
fortes os segurassem. Ignorei a sensação até me dar conta de que era uma dor
real, o que aconteceu depois que cruzei a horta. Com a mão livre, afastei a
manga do casaco para dar uma olhada. Havia uma marca avermelhada
sobressalente em minha pele morena, um perfeito desenho de dedos
humanos, como se alguém tivesse me puxado com bastante força.
Meu coração passou a bater acelerado. Eu me acocorei, deixei o
candeeiro no chão e conferi o outro braço. As mesmas marcas também
estavam presentes.
Tudo bem eu ter sonhado com aquilo. Mas nenhum sonho deixava
marcas tão evidentes, que latejavam de verdade. Minha doidice tinha limite,
não era possível que estivesse vendo coisas que não existiam e sentindo dores
infundadas. Tornei a me levantar e olhei para o céu, com o corpo inteiro
tremendo de pavor.
Para olhos desacostumados, não havia nada de errado com o céu
daquela madrugada.Mas, para os meus, que conhecia cada estrela como a
palma da minha mão, foi impossível não notar que havia um novo ponto de
luz. Ele cresceu gradativamente, enquanto eu me decidia sobre o que fazer.
Poderia voltar ao celeiro e observar atrás do telescópio ou simplesmente dar
ouvidos ao sonho maluco.
O meu cérebro se decidiu antes do meu corpo. Por este motivo, passei
algum tempo parada, olhando para o horizonte da fazenda. Depois, soprei o
fogo do candeeiro e o deixei no chão, correndo em disparada na direção da
minha caminhonete. Não havia tempo a perder. Mesmo que parecesse louco
demais, nada me faria desistir de estar no meio do milharal, tal como o
homem tinha dito. Ainda que ele fosse cumprir a promessa de me buscar, e
que isso fosse o suficiente para me deixar apavorada, obedeci-o como se
aquela fosse a minha única opção.
A caminhonete estava estacionada em frente ao casarão, como sempre
ficava. Ninguém mexia nela além de mim. A fazenda era o lugar mais seguro
do mundo, não existia essa coisa de ter medo de assalto ou de algo da
espécie.
Entrei no veículo às pressas, peguei as chaves debaixo do tapete, no
banco do carona, e a girei na ignição. Fiz uma pausa para olhar a luz que
crescia no céu. Ela já estava do tamanho de um avião, porém, dentro de mim
havia a certeza de que se tratava de outra coisa.
— Você só pode ter endoidado de vez, Estrela... — murmurei para
mim mesma antes de passar a marcha e arrancar com a caminhonete, rumo à
pequena estrada que dava para o milharal.
Segui a toda velocidade, trocando a minha atenção ora para a estrada,
ora para o céu. Freei bruscamente no ponto exato em que estive mais cedo
com a Açucena; a circunferência estranhamente marcada estava bem
próxima. Meus braços ainda ardiam, bem como a cicatriz passou a latejar.
Peguei uma lanterna, que sempre ficava no porta-luvas, e desci da
caminhonete me sentindo pronta para o que desse e viesse. Pensei em pegar
alguma coisa para me defender, mas não havia nada por perto além do
canivete que vivia no bolso da minha calça. Ele precisava servir.
Corri entre os pés de milho como se minha vida dependesse daquilo.
Tentei não pensar muito em estar sozinha no escuro e no meio de uma vasta
plantação. O cenário era ideal para um filme de terror com muito sangue
jorrando.
Cheguei até o local devastado por alguma força desconhecida. Eu me
coloquei no que achei ser o centro da enorme circunferência, só depois voltei
a olhar para o céu. No fundo, eu estava morrendo de medo do que
encontraria.
E não era para menos.
— CACETE! — gritei muito alto, pois a luz já estava tão perto que
dava para ver os contornos de uma imensa, e redonda, nave espacial. —
MEU DEUS DO CÉU!
Meus olhos se encheram de lágrimas. Foi impossível não me
emocionar com a cena, por mais que estivesse quase urinando nas calças de
tanto medo. Aquela só podia ser a prova de que estive certa todo aquele
tempo. Vinte e dois anos sendo julgada à toa. Nada importava mais. Eu não
era louca.
A nave foi ficando cada vez mais próxima, até que todas as suas luzes
se apagaram, talvez para não chamar tanta atenção. Um único filete de luz
desceu de seu centro e me atingiu como um holofote em pleno espetáculo.
Pelo visto, eu era a protagonista.
E agora? O que aconteceria?
Esperei ansiosamente, de repente sentindo uma coragem profunda de
ser sugada pela luz de novo. Sentia, lá no fundo da minha alma, que não
havia o que temer. Comecei a gargalhar desesperadamente, entrando em uma
crise de riso fora de hora. Abri os meus braços para tentar sentir a
luminosidade que me atingia, e jurei ter sido tocada por uma onda de energia
forte, emocionante. Algumas lágrimas escaparam enquanto girava meu corpo
e gargalhava alto. Quem visse a cena de fora, teria a certeza de que eu nunca
tive juízo.
Ouvi um ruído estranho e voltei a olhar para o céu. Tive certa
dificuldade de enxergar o que estava acontecendo, mas foi como se uma nave
menor tivesse saído de dentro da maior. A luz se apagou totalmente. Passei
longos segundos feito uma estátua, com medo de me mexer e até de respirar.
A pequena nave se aproximava do chão devagar, fazendo um barulho
similar a um drone em pleno funcionamento. Parei de rir porque o medo
retornou, mas continuei chorando e segurando as coxas uma na outra para
não fazer xixi. Seria vergonhoso demais.
Quando já estava perto do chão, a pequena nave, que era branca e em
formato de ovo, como se uma galinha gigante a tivesse botado, foi atingida
por uma luz vermelha vinda da maior. Pulei de susto, soltando um grito alto.
O que aconteceu depois foi tão depressa que demorei a assimilar,
tanto que nem deu tempo de me mexer. A pequena nave passou a despencar
do céu ao mesmo tempo em que a maior se distanciou. O movimento que fez
foi tão rápido que, em alguns segundos, já havia se tornado uma pequena
estrela de novo.
Então, veio o choque. A nave em forma de ovo gigante caiu a alguns
metros de mim, arrastando-se por alguns pés de milho. Ela levantou terra e
fumaça, até finalmente parar, deixando-me desnorteada ainda no centro da
circunferência. Eu não fazia ideia do que tinha acabado de acontecer, mas era
certo que aquela nave não deveria ter caído.
Eu corri na direção dela de forma bastante inconsequente. Não sabia o
que encontraria, nem se era prudente me aproximar tanto, mas, no fundo, tive
o reflexo de ajudar quem quer que estivesse em apuros.
A pequena nave era do meu tamanho. Por um breve momento,
imaginei que se parecia com um ovo de tiranossauro. E se um dinossauro
filhote saísse dela?
— Ai, meu Deus... Ai, meu Deus... — repeti enquanto tocava, de
leve, na superfície fria e lisinha da nave. Eu sabia que não deveria pegar
naquilo, vai que era uma bomba? No entanto, realmente parecia um ovo. —
Que merda é essa?
Uma fumaça azul começou a sair dela. Fiquei desesperada e me
afastei rápido, cambaleando para trás desajeitadamente. A fumaça se tornou
cada segundo mais azul, até que o ovo se abriu em camadas, como aquelas
cebolas maravilhosas do Outback.
Soltei um grito sonoro quando enxerguei um homem saindo de dentro
do ovo aberto. Dei vários passos para trás e, obviamente, caí de bunda no
chão. O cara andou, tão cambaleante quanto eu, até que se ajoelhou no chão,
curvando-se para frente.
— Alô? — falei com a voz falhando. Segurei meu pescoço porque a
sensação era a de que a minha cabeça se deslocaria a qualquer momento. —
Oi? Ei, você está bem?
O homem tentava respirar, mas parecia não conseguir. Fazia um
barulho horroroso similar a alguém que estava com o pulmão carregado de
catarro. Não sei o que me fez sentir pena da criatura. Era loucura demais
prestar socorro a um ser vindo sei lá de onde, em uma nave em formato de
ovo de dinossauro.
Ainda assim, fiz força para me levantar e andei até o homem como se
nada de anormal estivesse acontecendo. Eu me ajoelhei ao seu lado e apontei
a lanterna para ele. Claro que eu soltei um grito.
— Ai, Senhor! — Escorreguei para trás, deixando a lanterna cair ao
meu lado. O homem que tentava respirar tinha cabelos azuis escorridos até os
ombros, e seu olho vermelho brilhou ao encontro da luz da lanterna.
— Estrela... — balbuciou com dificuldade. Ele se contorceu todo e
jogou o corpo para trás, deitando-se no chão. A respiração ainda estava
ofegante, mas parecia ter melhorado.
— Puta merda, você... — tornei a me ajoelhar ao seu lado. O cara
usava um macacão de mergulhador todo preto, incluindo sapatos e luvas da
mesma cor. No escuro, só conseguia ver direito o rosto, composto de uma
pele tão branca que acendia. — Meu Deus. O que eu faço?
— Ajude-me — o cara murmurou sofregamente. — Está... Está
muito... frio.
Foi no impulso que retirei o meu grosso casaco e o depositei sobre o
homem. Ele começou a se enroscar como uma minhoca, encontrando a
melhor forma de se empacotar no casaco que eu o oferecera.
— Ei... Você está bem? — Peguei a lanterna com as mãos trêmulas,
voltando a apontá-la para a criatura. Foi impossível não ficar embasbacada
com aquele ser. Seu rosto pertencia a de um homem comum, tirando ostraços
perfeitos que o faziam estranhamente belo. As únicas coisas diferentes, que
deixavam claro de onde ele tinha vindo, eram os olhos e os cabelos.
O ser de outro mundo me encarou por alguns instantes. Os olhos
vermelhos pareciam querer penetrar a minha carne. Experimentei uma
sensação louca que corroeu o meu estômago, trazendo-me uma emoção
jamais sentida. Nem dava para explicar o que tinha sido aquilo. Não pareceu
uma coisa boa, mas também não foi de todo ruim.
Devolvi aquele olhar fixo com a mesma intensidade, até que o
desconhecido simplesmente desmaiou. Chacoalhei o casaco — porque tocá-
lo não me pareceu uma boa ideia —, tentando reanimá-lo, porém nada
aconteceu. Eu estava no meio de um milharal deserto e escuro com um ser
que tinha acabado de vir do espaço em um ovo.
Passei alguns minutos sentada na areia, observando o corpo inerte e
esperando aquele sonho ter fim. Não tinha mais o que fazer, eu já estava no
limite da incompreensão.
Não podia ter outra explicação para o que acontecera; ou eu estava
sonhando ou pronta para ser internada num hospício. 
 
4
 
Passei um tempo incalculável em estado de choque, apenas sentada na
terra batida — pois Seu Luís certamente providenciara o preparo do terreno
para o replantio —, esperando algum milagre cair do céu. Um que não tivesse
a ver com aquele ser desacordado e de cabelos azuis, nem com naves em
formato de ovo. Só percebi que estava apavorada ao notar que meu corpo
inteiro tremia muito, e o frio da madrugada não era o culpado, por mais que
eu tivesse me livrado do casaco.
Mantive o olhar entre a nave e a criatura, tomando o cuidado de
permanecer longe, sem dar ouvidos à minha curiosidade. Ela berrava para
que eu fosse explorar melhor o ovo de dinossauro, ou ainda que tentasse fazer
respiração boca a boca no sujeito. Simplesmente não ia rolar. Não que eu
quisesse que ele morresse, mas me aproximar demais podia ser perigoso em
muitos sentidos.
Sem que eu tomasse qualquer decisão, o ser começou a se remexer
sob o meu casaco. Fiquei atenta, observando em silêncio enquanto ele se
movia cada segundo com mais precisão. Foi de repente que se sentou, e o
fato de eu conseguir vê-lo com mais nitidez me deixou assustada por já estar
amanhecendo. Por incrível que pareça, eu não havia percebido o sol
despontando no horizonte do milharal.
Abri a boca para tecer qualquer comentário idiota, porém me calei ao
perceber a seriedade nos olhos vermelhos dele. Sua pele parecia ainda mais
branca, naquele instante em que tudo estava mais claro. Ele passou as mãos
enluvadas pelos cabelos lisos e cheios, depois inspirou profundamente.
Repetiu o processo como se tivesse dificuldade de assimilar o que tinha
acabado de lhe acontecer. Por fim, a criatura virou o rosto na minha direção e
deixou o vermelho de seus olhos ainda mais nítido, como se fosse uma
grande surpresa me ver outra vez.
— Estrela — o meu nome foi a única coisa que falou por longos
segundos. Passei todos eles me sentindo tonta com seu timbre de voz
marcante; continha doçura e seriedade na mesma medida, de forma que foi
impossível não sofrer arrepios.
Continuamos nos encarando fixamente. Ele parecia raciocinar
bastante enquanto me olhava, já eu, mal conseguia formular uma simples
frase dentro da minha cabeça. Desisti de pensar em algum momento e passei
a assimilar suas características: as sobrancelhas em um tom de azul mais
escuro que o cabelo, o formato másculo do rosto, o nariz que parecia
esculpido, os lábios finos, discretos e meio arroxeados, as orelhas um pouco
pontudas, feito um duende. O mais incrível de tudo era considerá-lo um ser
bonito, ainda que também fosse bem estranho.
— Suas funções vitais estão em pleno funcionamento? — ele
perguntou, ainda me observando como se eu fosse atração turística. Se aos
olhos dele eu era tão esquisita quando ele era aos meus, então seu
comportamento estava mais do que justificado.
Aquiesci devagar, maravilhada e meio confusa com a forma com que
ele usava as palavras, e como parecia cantar ao pronunciá-las.
— Permita-me dizer que a senhorita me parece assustada. Peço para
que não se sinta assim, pois não é minha intenção machucá-la.
Aquiesci de novo porque me via incapaz de dar alguma resposta sem
gaguejar.
O desconhecido se levantou do chão em um salto, sem se apoiar em
absolutamente nada, e deu alguns passos para me alcançar.
— Consegue se levantar sozinha ou permite a minha ajuda? — ele
colocou a mão para frente como se não houvesse uma escolha. Sem pensar
em nada, entrei em contato com a superfície encrespada de sua luva. Ele me
puxou sem qualquer dificuldade e me coloquei de pé. Fiz o possível para não
bambear, pois não o queria me tocando.
Limpei o meu traseiro sujo de areia com as duas mãos, sem ousar
perdê-lo de vista. Ele me devolveu o casaco em um movimento suave,
ajudando-me a vesti-lo. Eu nem estava com tanto frio assim, mas não me
encontrava com forças de rebater sua atitude gentil.
— O... frio p-passou? — Odiei a mim mesma por ter soado tão
patética. Mal deu para entender a pergunta que fiz, prova daquilo foi ele ter
demorado a responder.
— Não, para ser sincero. O meu corpo possui uma ampla capacidade
de adequação às mais diversas temperaturas, porém, leva um tempo. Precisei
de alguns minutos para me adaptar à presença constante do oxigênio, por isso
sofri um desmaio. — Ele tirou os olhos de mim pela primeira vez. Andou na
direção da nave, que ainda estava aberta. — O seu planeta é extremamente
frio, suponho que eu vá me sentir mais confortável daqui a uns dias. No
entanto, obviamente, não ficarei por tanto tempo.
Ele apenas encostou os dedos na nave e ela voltou a se fechar,
provocando um ruído discreto de um veículo em marcha ré.
— 14038, ativar — falou seriamente, em tom de ordem. Nada
aconteceu. — 14038, ativar. — Por uns instantes, a coisa mais palpável foi o
silêncio do milharal. — 14038, modo de emergência, ativar. — Ainda que a
voz dele continuasse séria e indiferente, eu sabia que algo havia dado errado
com a nave do sujeito.
Aproximei-me lentamente, creio que dando ouvido à curiosidade. Se
não fosse ela, o pavor já teria me levado para bem longe dali.
— 14038, modo de emergência, ativar! — O ser de outro mundo
repetiu algumas vezes antes de, enfim, se dar por convencido. A nave dele
tinha quebrado e eu não fazia ideia do que isso implicaria. — Não responde.
Todo o sistema parece ter sido desintegrado.
Ele ergueu um braço e afastou a manga do macacão preto. Encostou a
boca em seu pulso branco, como se ali houvesse algum tipo de comunicador.
Começou a falar uma língua estranha, tão esquisita que meu cérebro deu um
nó. Não consegui identificar vogais ou consoantes. Eram apenas alguns sons
aleatórios que se chocavam, se misturavam e deviam fazer sentido em um
lugar bem distante do planeta Terra.
Dei alguns passos para trás por puro medo do desconhecido.
— Você quer me dizer o que está acontecendo? — perguntei de uma
vez, tomando coragem. O sujeito parou de pronunciar aquelas bizarrices e me
olhou. — Quem é você e por que está aqui?
— Eu vim te buscar, Estrela — deu de ombros.
— M-Me... b-buscar?
Ele se aproximou até ficar bem na minha frente. Tive medo de me
mexer.
— Sua mente humana limitada não me permite explicar exatamente o
que está acontecendo.
— Está me chamando de burra? — cruzei os braços para frente.
Nenhum extraterrestre metido se acharia o dono do mundo enquanto eu
estivesse por perto.
— De forma alguma, não vejo nenhuma similaridade entre a senhorita
e o animal. — Fiz uma careta para ele. — Só preciso que entenda que estou
com um grande problema agora. 14038 não funciona e perdi todas as
conexões físicas e psíquicas.
— Significa que... — pausei, atordoada com a conclusão tirada pelo
meu cérebro.
— Significa que estou preso em seu planeta. — Ele não pareceu
exatamente chateado com aquilo. — Não há nenhuma tecnologia aqui que
torne possível o contato necessário para um pedido formal de ajuda
interplanetária.
— Ai, meu Deus... — depositei as mãos na cabeça, sentindo-me cada
segundomais desesperada.
— Peço desculpas por frustrar os planos, Estrela. Fiz o possível para
pensar em cada detalhe de nossa viagem, só não contava com uma traição.
Fechei os olhos com força. Quando os reabri, notei que a criatura não
estava mais tão indiferente. Parecia surpreso. Ou não. Suas expressões eram
difíceis demais de interpretar. A seriedade e indiferença predominavam,
como se fosse de sua natureza não expressar qualquer sentimento.
— Espera... Viagem? Traição?
— Exatamente — ele aquiesceu, reflexivo. Olhou para a nave em
formato de ovo. — 14038 foi atingida porque escolhi não compartilhar meu
experimento com outras galáxias. Eles me enganaram, ajudando-me a entrar
em sua atmosfera, e me exilaram.
— Que experimento?
Ele suspirou e virou o rosto na minha direção. Olhos vermelhos
cintilaram diante da presença disfarçada dos primeiros raios solares.
— Estrela X-189.
— Hã?
— É o nome do experimento.
Continuei o observando enquanto ele não tirava os olhos de mim.
— Percebo sinais de exaustão em sua aparência, Estrela — falou
baixo, quase como se tentasse me seduzir, não me ofender. Ainda assim, me
senti mal por ele ter notado que eu devia estar igual a um zumbi. — Acredito
que minha presença tenha contribuído para sua instabilidade física e
emocional. Sugiro que descanse. Tentarei consertar 14038 e, então,
partiremos.
A irritação por causa da maneira como falou que me atingia — e que
por acaso era a mais pura verdade — me fez explodir de uma forma
malcriada:
— Partiremos? Eu não vou a lugar algum com você, mano. Que ideia
é essa? Acha que pode vir até aqui e me levar para o raio que o parta? Não,
meu amigo, sinto muito!
— Não a levarei a nenhum raio. Acredito que a senhorita não esteja
me entendendo perfeitamente. Há algum problema com a minha pronúncia?
— Você por inteiro é um problema, não percebeu? Tem um ovo
gigante no meio do milharal — apontei para a nave. — Meus funcionários
vão acordar em breve e não sei como explicar isso.
— Não, a senhorita não pode dizer nada a ninguém. Há uma regra de
sigilo muito importante entre o seu planeta e o resto do Universo, que deve
ser mantida a todo custo. — Ele balançou a cabeça em negativa, daquela vez
mudando a expressão para uma meio assustada. — Entenda que quebrei
muitas regras ao entrar em contato com a senhorita e a planejar removê-la de
seu planeta, mesmo que o motivo seja de profunda importância.
Não fazia ideia de qual era a importância, só queria que ele sumisse
da minha frente. Assim, eu não me sentiria tão “instabilizada física e
emocionalmente”, usando suas palavras. A situação era tão inusitada que eu
ainda esperava acordar de um sonho.
— Sugiro que tire essa nave do meu milharal — resmunguei. — E
que não deixe que ninguém te veja. Você não imagina o inferno que será se
alguém desconfiar de... — parei de falar porque o sujeito se afastou e
levantou o ovo como se ele não pesasse nada. A nave tinha a minha altura e a
largura de um carro, voava e devia ser pesada pra dedéu. Não era possível
que fosse leve. — Quanto que essa coisa pesa?
— Hum... Passando para o seu sistema de medidas... Em torno de 2,1
toneladas.
— Minha Nossa Senhora! — levei uma mão ao peito, absolutamente
surpresa. O cara era forte pra burro. — Como... consegue?
— A gravidade ajuda. — Fiz uma careta porque uma coisa que não
ajudava ninguém a pegar peso na Terra era a tal da gravidade. — Onde posso
escondê-la até encontrar uma forma de fazê-la funcionar?
— V-Venha... c-comigo.
Andei rápido pelo milharal, de volta à caminhonete estacionada.
Ignorei a presença do desconhecido logo atrás, que não parecia cansado em
carregar aquele ovo, e que pedia desculpas toda vez que um pé de milho caía
no chão por causa do pouco espaço para caber a nave. Apontei para a
caçamba da caminhonete e ele depositou o ovo sobre ela. A carroçaria soltou
um ruído feio e abaixou na parte de trás. Eu não sabia se daria certo. A
caminhonete podia levar até uma tonelada e meia, não mais que isso.
Ainda assim, tentei disfarçar o desespero e entrei no veículo. A
criatura demorou demais a dar a volta e entrar pela porta do carona.
— Não entendo por que seus veículos não voam.
Deixei seu comentário sem resposta. Precisei acelerar bastante para a
caminhonete não morrer, e a senti meio estranha durante todo o percurso pela
fazenda. Devia ser quase cinco da manhã e eu estava rezando para que
ninguém tivesse acordado, ou se tivesse, que não cruzasse o nosso caminho.
Seria impossível disfarçar aquele ovo.
Estacionei de ré na velha garagem ao lado do casarão. Ninguém a
frequentava desde que o papai morrera, deixando uma grande quantidade de
entulhos por ali.
— Tire o ovo daí de cima e cubra com aquela lona — apontei, dando
ordens como se o desconhecido fosse um funcionário.
— Ovo? — ele fez uma careta e coçou o cabelo azul.
— Sim, essa coisa aí.
— Você quis dizer a 14038?
— Não, eu quis dizer ovo mesmo.
Ele resolveu não discutir, talvez porque não tivesse entendido a minha
ironia. Fez o que pedi sem nenhuma dificuldade. No fim das contas, a nave se
tornou apenas mais um entulho no meio de tantos outros.
Voltamos para a caminhonete, daquela vez bem mais leve, coitada, e
parei em frente ao casarão. Queria que a presença dele passasse despercebida,
então teria que ser jogo rápido. Ainda pensei em deixá-lo na velha garagem,
mas queria ficar de olho em seus movimentos para que não fizesse nenhuma
besteira que pudesse chamar a atenção. Eu que não o deixaria sozinho por um
único instante. Se era estranho estar em sua presença, pior ainda seria não
saber seus planos.
Eu o puxei pela mão enluvada enquanto subia as escadas.
Atravessamos o terraço, a sala de estar e um largo corredor. Fiquei em dúvida
se o deixaria em um quarto de hóspede, mas Dona Margarida desconfiaria
depressa se eu não fosse mais esperta. O único lugar da casa que ela não
entrava era na minha suíte, pois respeitava a minha privacidade. Portanto, foi
para lá que levei o dono de olhos vermelhos brilhantes.
Fechei a porta atrás de nós e a tranquei. Soltei um suspiro ruidoso. Ele
estava me olhando com atenção e a seriedade que lhe era inerente.
— Está com sono? — questionei em um tom ameno. Ele abaixou um
pouco a cabeça. — Ou melhor, você dorme?
— Claro que durmo, Estrela. Todo ser vivo merece descanso para
restabelecer a ordem de seu organismo. Contudo, não tenho certeza de que
conseguirei dormir. Estou preocupado e sentindo um frio absurdo.
Olhei-o com mais atenção. Nada em seu corpo sugeria preocupação
ou frio.
— Não vai me dizer o seu nome? Não me sinto à vontade te
chamando de extraterrestre.
— Compreendo. Não me sentiria confortável chamando-a de
terráquea. — Ele caminhou até uma cômoda onde repousavam alguns porta-
retratos. — A tradução de meu nome, em sua língua primária, é
G12L07N98P.
— Isso é um nome ou a senha do Wi-Fi? — Fiz uma careta enorme.
Como alguém poderia se chamar assim?
— Não usamos a internet há cerca de quatro milênios. É uma
tecnologia absurdamente ultrapassada.
Revirei os olhos.
A criatura de nome esquisito segurou um retrato meu de quando era
criança. Sua expressão modificou um pouco. Os olhos se tornaram menos
agressivos e mais gentis. Senti o princípio de um sorriso em seus lábios. 
— Pode dizer seu nome em sua língua? — pedi.
Ele emitiu alguns sons fantasmagóricos, tão ou mais incompreensíveis
que seu nome traduzido.
— Tudo bem, desisto. Já que é a primeira letra, eu vou te chamar de
Gê.
— Como quiser, Estrela — depositou meu retrato no local de origem.
— Não se preocupe com a minha presença. Vá descansar. Eu... — ele olhou
bem para o meu quarto, como se procurasse por alguma coisa. Andou até o
guarda-roupa e abriu as portas. Enfiou-se dentro dele sob meu olhar confuso.
— Aqui está ótimo.
— Gê... Nós não dormimos dentro de guarda-roupas. Venha, deite-se
aqui. — Removi o edredom e o grosso lençol para noites frias. Gê se
aproximou sem entender nada, mas me obedeceu prontamente. Coloquei o
travesseiro embaixo de sua cabeleira azul e o cobri com o edredom. — Ainda
sente frio?Ele aquiesceu.
— Não creio que qualquer tecido fiado com materiais terrestres vá
ajudar, Estrela. O meu planeta é muito mais quente que o seu. Para ser
específico, o mais quente do Sistema Solar, com precisamente quatrocentos e
sessenta e um graus Celsius.
Continuei o olhando como se ele fosse ainda mais estranho do que já
era. Eu conhecia aquelas informações. Só estava tentando assimilar sem
enlouquecer.
— Você... veio de... Vênus? — Engoli em seco.
Gê fez um gesto com a boca que lembrava um sorriso.
— Exatamente.
— Como é possível? — Eu me sentei sobre o colchão, ao lado dele.
— Como pode ter vida em Vênus? E como vocês podem ser tão... parecidos
conosco?
— Posso tentar te explicar depois que descansarmos. Estou
verdadeiramente preocupado com a senhorita.
Grunhi de frustração, dando-me por vencida. Ele tinha toda razão, eu
estava morta. Meu corpo se encontrava exausto e a cabeça parecia prestes a
explodir.
Antes que eu pudesse me levantar, Gê murmurou:
— Obrigado por me receber em seu planeta, Estrela. — Seus olhos se
aprofundaram de forma que me arrancou o ar. Como ele podia fazer aquilo?
Havia uma sensação esquisita pairando o meu ser toda vez que me encarava.
— Não tive muita escolha.
— Claro que teve. Passei os últimos anos planejando a nossa viagem.
Se estou aqui, foi porque você plantou em mim a vontade de fazer o
impossível.
— O que está dizendo, Gê? Não sou culpada por nada disso.
— Ser culpada por fazer grandiosidades é uma honra. Devia se sentir
honrada porque eu jamais encontrei alguém tão inacreditável em todo o
Universo.
Meu rosto deve ter ficado igual a um pimentão, pois senti minhas
bochechas arderem de desconcerto. Receber um elogio de uma criatura vinda
de Vênus era tão legal quanto pavoroso. Foi por este motivo que disfarcei
minha incapacidade de levar o assunto adiante e me levantei da cama.
Fui ao banheiro para tomar um banho e colocar uma roupa mais
confortável. Quando voltei, Gê já estava com os olhos fechados, deitado na
mesma posição; com a barriga para cima e as mãos estendidas nas laterais de
seu corpo. Respirava devagar, silenciosamente, e mantinha uma expressão
séria que, nele, ficava muito próxima à perfeição que um rosto dormindo
poderia atingir.
Levei alguns edredons para a poltrona antiga de papai, que era larga e
bastante confortável, aninhando-me enquanto o observava. Bem que tentei
parar de encará-lo, mas era impraticável. A energia não tinha voltado, por
isso não podia ligar o aquecedor e fazer sua estada em minha suíte ser mais
confortável.
Fiz o possível para não pensar que tudo aquilo era uma loucura
gigantesca. Era inconcebível que um extraterrestre vindo de Vênus, o planeta
que eu tanto amava observar pelo telescópio, estivesse dormindo na minha
cama. Mas estava. Bem como havia uma nave espacial quebrada na garagem
de papai, e que, quando consertada, prometia me levar para bem longe junto
com o Gê.
A ideia me parecia tão absurda quanto tentadora.
5
 
Acordei com batidas desesperadas na porta do meu quarto. Dona
Margarida me chamava como se uma tragédia estivesse em pleno
acontecimento dentro da fazenda. Eu me sentei no colchão em um pulo,
confusa porque não me lembrava de ter adormecido na cama. Meu
pensamento encontrou morada nos olhos vermelhos me encarando
seriamente, e analisei tudo ao redor, procurando por algum indício de que o
Gê esteve comigo na noite passada.
Levantei depressa demais, atropelando alguns móveis e batendo com
o joelho na velha poltrona de papai. Corri até o banheiro na esperança de
encontrá-lo fazendo a higiene matinal, se é que extraterrestres precisavam
disso. A porta continuou batendo insistentemente. Eu estava tão fora de
controle que demorei uma eternidade para abri-la. Dei de cara com dona
Margarida, que estava com o semblante apavorado.
— Oh, Senhor, graças a Deus! Eu estava preocupada, quase
procurando o Frederico para ele arrombar a porta. — Ela soltou um suspiro,
colocando uma mão sobre o peito. — Menina, você me assustou.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa? — Olhei para os dois lados
do corredor, um tanto apreensiva. Onde Gê havia se metido?
— Você não apareceu para o café da manhã e a porta estava
trancada... Já são quase dez da manhã. Eu que pergunto o que aconteceu,
Estrela. Está doente? — Dona Margarida tacou a mão no meu pescoço,
depois na minha testa, conferindo a temperatura. — Não parece febril.
— Estou bem, acho que só estava muito cansada.
— Mas você nunca acorda tarde.
— Eu sei... — Revirei os olhos, um pouco irritada com sua
preocupação extremosa, embora também fosse o motivo para eu me sentir tão
amada, mesmo sem meus pais por perto. — Não precisa se preocupar. Vou
tomar um banho.
Eu estava prestes a fechar a porta, mas parei no meio do caminho.
Ainda me sentia um pouco fora de órbita, sem acreditar que a noite anterior
realmente havia existido. Mas se sim, onde estava Gê? Ele não podia andar
pela fazenda chamando a atenção dos funcionários. Eu não tinha como
explicar a sua presença para ninguém.
— Dona Margarida... A senhora, por acaso, viu alguma coisa?
Ela arregalou os olhos.
— Que coisa, menina? Não, não vi nada, não. — Seu desespero se
tornou evidente porque toda vez que eu fazia aquela pergunta, começava a
narrar sonhos estranhos que sempre aconteciam comigo. — Vá logo, você
tem um carregamento de verdura atrasado pra levar à feira.
Soltei um grunhido diante daquela responsabilidade inevitável e
fechei a porta. Ainda bastante nervosa, tomei um banho rápido, coloquei
jeans velhos, camisa regata — já que o frio tinha ido embora junto com a
noite — e calcei minhas botas de galocha, ideal para o trabalho que me
aguardava naquele dia. Porém, antes de verificar o carregamento de verduras
saídas da horta, foi impossível não procurar pelo Gê.
Eu sabia onde ele poderia estar, por isso que caminhei
apressadamente até a velha garagem. Foi com muita surpresa que olhei para o
vazio onde devia estar a nave. Não havia nada ali. A lona empoeirada que
devia estar sobre o ovo jazia no chão, embolada como um pedaço grande de
trapo velho, como costumava ficar. Num rompante desesperado, percorri
cada centímetro da garagem à procura de algum sinal que me fizesse crer que
eu não tinha pirado na batatinha.
Não havia nada. Não existia nave, luzes estranhas ou um venusiano
com cabelos azuis e rosto perfeito. Definitivamente, a minha carência tinha
atingido um nível elevado, bem como a minha capacidade de imaginar as
coisas mais inusitadas da face da Terra. Vencida pela própria razão, me
arrastei para longe da garagem.
Não deu para mensurar o sentimento horrível que invadiu o meu
coração, deixando-me aérea durante todo o dia. Fiz minhas obrigações no
automático, respondendo questões importantes sem refletir e sendo chamada
atenção pelo Valentim o tempo todo.
— O que você tem, Estrela? — ele perguntou enquanto dávamos uma
olhada no celeiro. Precisávamos de mais feno e tínhamos uma égua
adoentada.
Peguei a escova que eu costumava usar para massagear a Açucena.
— Nada.
Ele soltou um risinho de deboche. Arrumou o chapéu sobre a cabeça e
continuou abastecendo a comida dos animais. Seus braços fortes eram muito
úteis para carregar os inúmeros sacos de ração usados diariamente.
Eu me aproximei da Açucena delicadamente e passei a escová-la.
— Você está no mundo da lua, muito mais que o habitual —
Valentim soltou outra risada. — Vamos, me fala, aconteceu alguma coisa e
não estou sabendo?
— Só estou cansada — falei enquanto relembrava cada detalhe criado
pela minha mente perturbada. Só uma maluca como eu para cair numa ilusão
tão fora de sentido. Por alguns segundos, pensei que devia ouvir os conselhos
de Margarida e voltar para a psicóloga. — Acho que preciso de umas férias.
— Férias? Mas a colheita das uvas é no mês que vem.
— Eu sei, Valentim. Como se eu já tivesse tirado férias antes, hein?
— Suspirei, passando a escova pela crina lustrosa da égua puro-sangue, que
se deliciava com a carícia. — Sair daqui está fora de cogitação desde que
nasci.
Ele depositou o saco enorme de ração nochão. Colocou as mãos na
cintura e me olhou com seriedade e certo ar confuso.
— Você pensa em sair daqui? Achei que amasse a fazenda.
— Eu amo a fazenda! — expliquei antes que me torturasse com o
assunto. Valentim era do tipo que não costumava pensar fora da casinha. Sua
vida seria sempre aquela, tudo igual, dia após dia. Ele não desejava nada além
da vida no campo. Um dos motivos por não termos dado certo. — Só acredito
que há um mundo enorme lá fora, um mundo que talvez eu pudesse conhecer.
— Estrela... — Sem que eu percebesse, Valentim já estava perto
demais. Ele colocou sua mão calejada sobre a minha. — A fazenda depende
de você. Sabe disso, não é?
— Claro que sei. — Eu já estava irritada com a conversa. Toda vez
que eu mencionava viajar, seja para qualquer lugar e por qualquer motivo,
sempre tinha alguém para me dizer que era loucura.
— Precisamos de você aqui. — Valentim piscou os olhos de um jeito
diferente, fazendo-me franzir o cenho e me questionar se ele estava falando
dos funcionários ou de si próprio. Pela maneira como passou a alisar minha
mão, a segunda opção estava mais próxima da realidade. — Seu lar é aqui
com a gente.
Abaixei minha mão, desvencilhando-me de seu toque. Eu me afastei
dele, seguindo para o outro lado de Açucena. Passei a escovar sua barriga. A
égua se remexeu um pouco, sentindo cócegas, mas ela adorava aquilo tanto
quanto eu.
— Estrela, eu...
— Já chega, Valentim — minha voz soou firme. Era o mesmo tom
que eu usava para lidar com os problemas cotidianos. — Não sei no que está
pensando, mas não vai acontecer de novo.
Ele contornou Açucena, aproximando-se novamente. Revirei os
olhos.
— Sei que você não quer nada comigo, sou apenas um funcionário.
— Seu olhar estava sobre mim, e por um momento eu lhe concedi a chance
de uma explicação para aquele comportamento ridículo. — Mas, sabe, somos
jovens e desimpedidos. Só tem gente velha nessa fazenda e tenho saudades de
sua companhia.
— Você tem saudade de quê exatamente?
Ele colocou as mãos no bolso da calça jeans sujas de lama.
— Sexo — desabafou junto com um arquejo. — Desculpa ser tão
direto, mas sei que com você só funciona assim.
— Pois é. — Ergui a cabeça para manter minha pose diante de sua
proposta. Eu estava carente, com certeza precisando de sexo tanto quanto ele,
mas recomeçar uma relação descompromissada com Valentim era como um
tiro no pé.
— O que me diz? — Ele estava visivelmente ansioso por uma
resposta.
— Olha... — Larguei a escova de lado e me afastei definitivamente da
área dos cavalos. Valentim me seguiu como um cão atrás do osso. — Eu vou
pensar, beleza? — Enxuguei o suor que escorria da minha testa com as costas
das mãos.
— Pensar em quê, Estrela? Não tem no que pensar, fizemos isso
tantas vezes...
— E em todas eu me dei mal. — Virei-me em sua direção. Valentim
odiava ser contrariado, mas sua personalidade birrenta não me dizia respeito e
eu a ignorava com cem por cento de aproveitamento. — Você devia estar
feliz porque não neguei de cara. — Ele bufou em descontentamento e eu
tratei de deixar o celeiro de uma vez. Havia ainda muito serviço para ser feito
naquele fim de tarde.
Ajudei a guardar as galinhas, conferi a horta e resolvi algumas
questões financeiras. Era tanta coisa para pensar que eu não sabia como dava
conta de tudo. Talvez todos estivessem com a razão e a fazenda realmente
fosse o meu lugar no mundo. Eu não me via fazendo outra coisa. Em
contrapartida, não me imaginava vivendo daquela forma pelo resto da vida.
Não conseguir criar expectativas de um futuro diferente me frustrava.
Já era noite quando parei em frente à escadaria do casarão, cansada
demais até para subi-las. A exaustão me fez sentar em um dos primeiros
degraus, como sempre, observando o céu estrelado que já cobria a fazenda,
deixando-a imersa em uma meia-luz suave, quase romântica. Não dava para
evitar sentir decepção.
Certa tristeza invadiu o meu peito e deixei algumas lágrimas caírem,
tomadas pela raiva de ser uma idiota que vivia ansiando coisas que estavam
fora do alcance. Eu nunca me tornaria uma astronauta, não conheceria o
espaço e muito menos tocaria uma maldita estrela. Não existiam
extraterrestes ou naves espaciais, nem luzes fantasmagóricas ou qualquer
outra coisa vinda de outro planeta.
Minha cabeça precisava entender aquilo de uma vez por todas.
Sempre que a realidade colocava seu peso em minhas costas, eu me
sentia perdida. Havia uma solidão incurável dentro de mim, que não era
aplacada por nada que pertencesse àquela fazenda. As terras do meu pai me
davam um orgulho medonho, e eu as amava demais, porém elas eram
também os grilhões que prendiam meus pés, impedindo-me de correr atrás
dos meus sonhos.
Mas... Que sonhos? Extraterrestres, luzes, olhos vermelhos e um
nome impronunciável? Eles eram medíocres. No fundo, eu ainda era uma
menina que teimava em permanecer na infância.
Enxuguei mais algumas lágrimas e voltei a observar o horizonte da
fazenda. Algumas luzes divagaram pela mata adiante, coloridas e esquisitas.
Eu me levantei sobre o degrau de imediato. As luzes se mantiveram
insistentes, até que simplesmente se apagaram. Ainda fiquei algum tempo
parada, piscando os olhos para tentar compreender se havia imaginado coisas
mais uma vez. Contudo, as luzes voltaram a surgir, e eram tão parecidas com
as que eu tinha visto na noite anterior que desci os poucos degraus que me
separavam do chão em um pulo.
Peguei a caminhonete, porque ir a pé até a mata não me pareceu uma
boa ideia, e, como na noite passada, engatei a primeira cantando pneus.
Atravessei a trilha de barro que dava para o princípio do matagal em uma
velocidade amena, tudo para não chamar a atenção dos funcionários que
habitavam dentro da fazenda e deviam estar em suas casas, jantando e se
preparando para dormirem.
Estacionei em frente à cerca de arame farpado que limitava as terras
do meu pai. Desliguei a caminhonete, guardei as chaves no bolso e parei
diante da cerca, procurando pelas luzes coloridas. Não as encontrei. Ainda
assim, minha curiosidade só não era maior que a insistência, por isso me
esgueirei por entre os arames até conseguir atravessá-la sem me machucar
feio. Quando eu era garota, fazia aquilo inúmeras vezes sem que o papai
soubesse.
Dei graças a Deus por estar usando botas grossas e me embrenhei no
meio do mato. Por alguns minutos, ouvi apenas o barulho de cigarras, corujas
e dos galhos sobre os quais eu pisava vez ou outra. As árvores grandes da
mata guardavam seus mistérios, e um sentimento de inquietação passou a me
acompanhar enquanto eu não me cansava de desvendar cada arbusto, cada
raiz grossa, cada farfalhar de pássaros em seus ninhos.
Atravessei um pequeno bosque, e então mãos grandes surgiram por
trás de mim, agarrando-me e tapando a minha boca. Tentei gritar, mas a
pessoa era forte. Comecei a me debater alucinadamente, pois não entrava na
minha cabeça a ideia de morrer na escuridão da mata. De jeito nenhum. Eu
não tinha vivido para terminar daquela forma.
— Eu gostaria muito de que a senhorita parasse de assustar os animais
— um sussurro sério cortou o silêncio esmagador da mata. — Mantenha-se
tranquila, não vou lhe fazer nenhum mal.
Eu conhecia aquela voz. Claro que conhecia.
Parei de me debater com o coração batendo aos pulos dentro do peito.
Ele me soltou devagar, e então pude me virar para vê-lo. Gê estava diante de
mim, do mesmo jeito como eu o havia encontrado na noite anterior. Das duas
uma: ou eu estava sonhando de novo ou aquele extraterrestre de uma figa
realmente existia.
— Gê?! — quase gritei seu apelido. — Meu Deus... — Ele continuou
me olhando como se não entendesse por que eu estava tão desesperada. —
Você... Você existe?
Ele ergueu uma sobrancelha azulada.
— Apesar de ser apenas uma poeira cósmica em transição pelo vasto
Universo, sim, eu existo.
Não contive a emoção absoluta que significou revê-lo. Pulei no
pescoço dele como uma donzela em perigo, abraçando-o com força. Ele não
me abraçou de volta, mas minha alegria foi tanta que nem me importei. A
consistência de

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