Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Fortaleza ● Ceará Angela Vasconcelos Ilustrações Raisa Christina Copyright © 2018 Angela Teresa Nogueira de Vasconcelos Copyright © 2018 Raisa Christina Coordenação Editorial, Preparação de Originais e Revisão Kelsen Bravos Projeto e Coordenação Gráfi ca Daniel Dias Design Gráfi co Emanuel Oliveira Eduardo Azevedo Revisão Final Marta Maria Braide Lima Sammya Santos Araújo Conselho Editorial Maria Fabiana Skeff de Paula Miranda Sammya Santos Araújo Antônio Élder Monteiro de Sales Sandra Maria Silva Leite Antônia Varele da Silva Gama Catalogação e Normalização Gabriela Alves Gomes Governador Camilo Sobreira de Santana Vice-Governadora Maria Izolda Cela de Arruda Coelho Secretário da Educação Rogers Vasconcelos Mendes Secretária-Executiva da Educação Rita de Cássia Tavares Colares Coordenador de Cooperação com os Municípios (COPEM) Márcio Pereira de Brito Orientadora da Célula de Apoio à Gestão Municipal Gilgleane Silva do Carmo Orientador da Célula de Fortalecimento da Aprendizagem Idelson de Almeida Paiva Júnior Orientadora da Célula do Ensino Fundamental II Ana Gardennya Linard Sírio Oliveira SEDUC - Secretaria da Educação do Estado do Ceará Av. Gen. Afonso Albuquerque Lima, s/n - Cambeba Fortaleza - Ceará | CEP: 60.822-325 (Todos os Direitos Reservados) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V331e Vasconcelos, Ângela Teresa Nogueira de. Encontro com palavras / Ângela Teresa Nogueira de Vasconcelos; ilustrações de Raisa Christina. - Fortaleza: SEDUC, 2018. 20p. il. ISBN 978-85-8171-243-7 1. Literatura infantojuvenil. I. Christina, Raisa. II. Título. CDU 028.5 Às minhas fi lhas, Cecília e Clarice, pela partilha de sentimentos, palavras e histórias bonitas. 4 5 Quando a moça foi dar o curso na escola, eu andava muito confusa. Parece que aconteceu tudo de uma hora para outra. Eu já sabia, porque tinha uma prima mais velha do que eu e ela disse que um dia, eu ficaria mocinha. Acho que até queria que esse dia chegasse, porque achei tão bonito quando a minha prima ficou mocinha. Mas comigo foi rápido demais e “de com força”, como diz a minha tia. Não estou falando só de menstruar, aquele sangue que chegou um dia, avisando que agora eu tinha atra- vessado uma espécie de portal de um mundo para outro. Ah, se fosse só isso. Porque isso minha mãe me explicou direitinho, ela é técnica de enferma- gem de um posto de saúde, perto da minha casa. E a doutora que trabalha lá no posto, tão gente boa, também conversou comigo uma vez. Mas, não era só no corpo que minha vida estava mudando. Quando eu nasci, meu pai já tinha saído de casa. A única coisa que eu soube, muitos anos de- pois, é que a minha mãe sofreu tanto que a minha tia veio morar um tempo com a gente, para ajudar a cuidar de mim e dela. Para onde ele foi, se tem ou- 6 tra família, eu nunca soube. Não gosto de perguntar para minha mãe, porque percebi que este assunto é proibido aqui em casa. Mas, às vezes, fico pensando se tenho irmãos; se meu pai torce para o Fortaleza ou para o Ceará; onde e como ele trabalha; a cor da pele; dos olhos e dos cabelos, essas coisas que me ajudam a fazer alguma imagem de um pai na minha vida. E a fazer a minha própria imagem. Quando meu corpo começou a mudar, senti tanta estranhe- za que pensei se não eram os traços do meu pai, que agora se instalavam em mim. Meu pai foi para mim uma ausência constante, que minha mãe insistia em minimizar, através da tentativa de concentrar as atenções sobre a figura masculina na pessoa de seu próprio pai. Meu avô foi muito importante na minha vida. Era marceneiro e fazia brinquedos de madeira, es- pecialmente para mim, só para mim. Era a diversão dele, embora fosse um homem muito sério e con- centrado em manter a família com o seu trabalho. Ele morreu de trombose, quando eu tinha 13 anos. Para minha mãe e minha tia, a trombose foi por 7 8 causa do desgosto que ele teve, depois que o meu tio foi preso por estar envolvido com traficantes de drogas. Eu também gostava muito do tio Alexandre, mas ele foi ficando estranho de uns tempos para cá. Mesmo que minha avó acredite que ele foi preso inocentemente, eu acho que minha mãe e minha tia têm razão. E eu sinto muitas saudades dele, daquele tio que ele foi um dia. Perto da minha casa, esse negócio de viver no crime foi ficando comum nos últimos anos. Foi nes- sa que, além do meu tio, eu vi outras pessoas se da- rem mal. Mas o mais grave de tudo aconteceu com o Alfredo, que foi o primeiro menino de quem eu gostei. Ele surfava, usava um cordãozinho de couro com um pingente do mapa-múndi, torcia pelo Cea- rá, era fera em matemática e era lindo. Eu comecei a gostar dele no dia do aniversário da Larissa, que era prima dele e minha melhor amiga. Eu já conhecia o Alfredo da escola, mas a gente não tinha muito contato e foi nesse dia que ele fez umas brincadeiras comigo, e eu comecei a achá-lo interessante. Foi ele que me mostrou as músicas do Maroon 5 e até hoje 9 quando escuto, sinto vontade de chorar, lembrando dele. A Larissa disse que ele tinha dito que queria ficar comigo, a gente já estava até combinando, mas não deu tempo. Um dia a polícia chegou lá no bair- ro e o Alfredo que estava com uma galera suspeita, foi morto com quatro tiros. Aposto que chorei mais do que minha mãe chorou, quando meu pai saiu de casa. E eu nunca tinha dado nenhum beijo nele. 10 A Larissa ainda é minha amiga e junto com a Aline nós fazemos o trio das meninas superpodero- sas desde os 8 anos, quando a gente assistia juntas a esse desenho animado. Agora não sei mais se a gente se parece com elas, as coisas mudaram tanto, mas, mesmo assim, o nome pegou e continuamos a brincar com isso. No entanto, se tem uma coisa das meninas superpoderosas com que eu ainda me identifico é aquele corpo desproporcional. Às vezes, rezo para o espelho estar com defeito, porque nun- ca me sinto bem quando me vejo lá. Parece tudo fora do lugar, porém não parece engraçado como no desenho animado, é estranho mesmo. Estranho, também, é quando me dá uma vontade de chorar sem saber o porquê. Já melhorou um pouco, mas teve um tempo que eu chorava do nada, minha tia me acalmava, minha mãe se irritava e minha avó rezava. E me dizia para rezar. As minhas amigas, essas me convidavam para dançar. As duas dançam funk super bem e eu, ape- sar de não gostar muito, danço com elas pela diver- são. Elas fazem umas coreografias engraçadas e di- 11 12 zem que dançar funk ajuda muito na hora de ficar com alguém. A Larissa já ficou com três meninos e com uma menina. A Aline ficou com dois meninos e agora está quase namorando o João Guilherme, mas eles ainda não admitem. Eu já fiquei com dois meninos, o Andrezinho, que também é um surfista fofo, e o Léo, filho do professor de educação física. Nós três só andamos juntas e somos confidentes, mas acho que não somos muito verdadeiras. A Larissa e a Aline não admitem, mas penso que elas também são virgens. Quando minha mãe me levou para a con- sulta com a médica do posto, ela me deu uns livrinhos explicando várias coisas sobre meu corpo e o corpo dos meninos. Eu fiquei tranquila e, ao mesmo tem- po, tensa quando ela disse que nem sempre a primeira vez é como nas novelas e nos filmes. Decidi esperar um pouco, até encontrar um menino legal com quem eu me sinta à vontade para a primeira vez. As meni- nas acham que sou muito dramática, sonhadora, mas ando estranhando tanto o meu próprio corpo, que só me sinto segura para compartilhá-lo com alguém, de- pois que me encontrar nele. 13 Minha mãe, minha tia, minha prima e minha avó são a minha família, desde que meu pai se foi, meu tio preso e meu avô não está mais entre nós. Nunca entendi por que uma mulher bonita como a minha mãe, não casou de novo. Lembro do Tobias, um namorado que ela teve que parecia muito legal. 14 Ele trabalhava nos Correios, tinha uma filha mais nova do que eu, era simpático e eu pensei que ele daria um bom padrasto. Fiquei tristequando eles acabaram e acho que foi a partir daí que comecei a pensar mais no meu pai, a sentir saudade de uma coisa que eu nem sabia o que era e a me irritar com a minha mãe. Tudo gerava uma briga entre nós duas. Às vezes, a chatice era dela, mas agora sei que algumas vezes era minha também. Quando a gente brigava, eu pensava na minha prima, que quando fez dezoito anos foi morar com o pai, em Brasília, e eu ficava com inveja dela, eu nem podia escolher com quem morar. Não podia escapar para lugar ne- nhum, porque até minha avó e as minhas amigas eram nossas vizinhas e aí não adiantava muito. 15 16 A gente começou a brigar muito, quando a mi- nha mãe começou a insistir para que eu fosse médica. Eu até acho uma profissão muito bonita, e a coorde- nadora da escola também me incentiva, pois minhas notas são boas. Uma conhecida da minha mãe falou que, se eu quisesse mesmo poderia até concorrer a uma bolsa em escola particular, por causa das no- tas que eu tenho, mas minha mãe insistia tanto com isso, que me fez ficar irritada. E também não sei se eu queria pensar nisso agora, tendo tanta coisa a ocupar meus pensamentos e meus sentimentos. 17 Foi nessa época que a minha professora de por- tuguês me deu a dica de fazer um curso de escrita criativa que uma aluna de faculdade foi ministrar na escola. Como eu adoro as aulas de português e gosto de ler, a professora Marta insistiu que eu o fi- zesse. A professora do curso era muito simpática e estava fazendo um trabalho para a faculdade. Ela dizia coisas bonitas como “escrever faz a gente en- contrar palavras escondidas dentro da gente” e “es- crever faz a gente enxergar o mundo com olhos que temos escondidos dentro de nós mesmos”. Eu fazia cada exercício que ela passava, lia tudo que ela suge- ria, prestava atenção a tudo que ela falava. 18 19 Eu já gostava de ler, mas a ideia de escrever me pareceu muito mais interessante. A professora do curso dizia que eu estava me saindo muito bem, sempre elogiava os meus escritos. Sei que essa coisa de encontrar palavras, dentro da gente, me fez achar nomes para as coisas que eu andava sentindo e achar lugares para expulsar os medos que eu tinha. Eu olhava para tudo com mais atenção e sabia o que não tinha conhecido ainda. Acho que permaneço meio confusa, continuo dançando funk meio sem graça e, às vezes, discuto com minha mãe. Ah, e ainda sinto aquela saudade de coisas que eu nem sei, mas isso virou poesia no livro que a professora do curso e o pessoal da escola irão me ajudar a publicar no dia do meu aniversário de 17 anos. Angela Vasconcelos Meu nome é Angela Vasconcelos e nasci em Viçosa do Ceará, em outubro de 1975. Quando tinha 15 anos me mudei para Fortaleza, onde moro atualmente. Sou psicóloga e mestre em psicologia e tenho muita afeição pelas palavras ditas e escritas. Sou autora do conto Por causa de você, publicado no livro Farol (Moinhos, 2017) e de outros textos literários. Este é o meu primeiro texto juvenil. Gosto muito de livros porque acredito que a leitura pode ampliar nosso mundo e nos ajudar a entender nossos pensamentos e sentimentos. Raisa Christina Raisa Christina é artista visual e escritora, nascida em Quixadá - CE. Graduou-se em Artes Visuais pelo IFCE e é mestre em Artes pela UFC, onde realizou pesquisa dedicada a poéticas no desenho e na criação de mapas de jovens skatistas e seus percursos errantes em Fortaleza. É autora do livro “Mensagens enviadas enquanto você estava desconectado”, publicado pela Editora Substânsia em 2014. Integra a Antologia de Contos Literatura Br, publicada pela Editora Moinhos em 2016, e a revista Para Mamíferos N° 4, 2017. Colaborou com revistas como Subversa e Garupa, dentre outras. Acredita na arte e na educação. Mantém a página: http://corposonoro.tumblr.com/.
Compartilhar